Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4603/18.9T8BRG.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
INCAPACIDADE PERMANENTE
ALTA CLÍNICA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
1. Não pode ser classificada de incapacidade permanente a lesão que ainda é susceptivel de modificação e tratamento segundo as terapêuticas disponíveis.
2. Compete à autora sinistrada a prova da lesão que não tenha sido manifestada imediatamente a seguir ao acidente- 10º, 2, LAT.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

Os autos respeitam a acção especial emergente de acidente de trabalho que prosseguiu para a fase contenciosa, em que é autora L. R. e rés Hospital ..., E.P.E. e “X – Companhia de Seguros, S.A.

Na petição inicial a autora pede a condenação das rés no pagamento de:
a) a pensão anual e vitalícia obrigatoriamente remível que se vier a fixar, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, com início a 03/09/2018;
b) os períodos de ITA’S e ITPS que se vierem apurar e não pagos;
c) todas as remunerações que a autora deixou de auferir desde a data do sinistro até à alta clinica, no montante de 1.200,00€ mensais, desde julho de 2017 a setembro de 2018;
d) a quantia de 15,00€ referentes a de deslocações obrigatórias ao tribunal;
e) a título de danos não patrimoniais (dano estético incluído), quantia a fixar pelo tribunal, mas nunca inferior a 50.000,00€.

CAUSA DE PEDIR: alega que no exercício da sua profissão de enfermeira, em 3-07-2107, quando chegava ao trabalho, no acesso pedonal do Hospital sofreu um entorse do pé direito, com rotura de ligamentos, sendo atendida de imediato nas urgências. Sofreu ITA e ITP e ficou com uma IPP. Sofre dificuldades de locomoção e em outras tarefas simples. Tem dores diárias e ficou com o membro desfigurado, sendo a autora incapaz de ir à praia, dançar, usar saia ou sapato aberto. Necessita de usar palmilha de forma definitiva. Sente-se inferiorizada. Sofre de síndroma pós-traumático, estando limitada nas capacidades intelectuais e sociais. Continua a necessitar de fisioterapia.

CONTESTAÇÃO DA RÉ EMPREGADORA- não contestou.

CONTESTAÇÃO DA RÉ SEGURADORA- aceita a ocorrência de acidente de trabalho. Refere que a autora não alega factos que sustentem o pedido de condenação no pagamento de danos não patrimoniais. A A encontra-se afectada de uma IPP de 3,97% desde o dia da alta- 4/09/2018. Padeceu apenas dos seguintes períodos de incapacidade: ITA de 04/07/2017 a 15/12/2017; ITP de 10,00% de 10/08/2018 a 03/09/2018 da alta. A afectação da A. do ponto de vista físico é muito reduzida, limitando-se essencialmente a dor residual discreta e muito discreto aluimento da arcada plantar, valorizáveis nos termos dos Cap. I - 14.2.4 e Cap. I - 15.2.1 a) da TNI. Ou seja, modestas sequelas do foro ortopédico. Sofrer uma entorse de um pé, sem sequer fracturar o mesmo ou qualquer tendão não é causa adequada das alegadas alterações psicológicas e psiquiátricas invocadas pela autora. A estar a A. afectada de outras sequelas, designadamente do foro psicológico ou psiquiátrico, como alega, não têm as mesmas qualquer relação causal com o acidente dos autos, que não as provocou nem agravou. Antes do acidente, a autora tomava medicação do foro psiquiátrico, como antidepressivos para combater as ansiedades e os estados depressivos que, de vez em quando, a assolavam.
Elaborou-se despacho saneador onde se fixaram os factos assentes, identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.

Por decisão proferida no apenso para fixação de incapacidade decidiu-se que:

a) a autora esteve afetada dos seguintes períodos de incapacidades temporárias: ITA entre 04/07/2017 e 15/12/2017; ITP a 10% entre 10/08/2018 e 03/09/2018;
b) a autora está clinicamente curada, mas padece de sequelas que lhe determinam uma incapacidade permanente parcial de 5,716% (0,05716) desde 04/09/2018 (dia seguinte ao da alta);
c) a autora não está afetada de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.

No início da audiência de julgamento foi proferida decisão a julgar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, tendo sido absolvido da instância a ré Hospital ..., E.P.E. quanto a todos os pedidos e a ré X – Companhia de Seguros, S.A. quanto ao pedido de condenação no pagamento de 50.000,00€ a título de danos não patrimoniais. Em consequência foram eliminados do despacho saneador os pontos de facto nºs 10º a 13º e 16º a 19º.
Após julgamento, proferiu-se sentença.

DISPOSITIVO DA SENTENÇA RECORRIDA:

“Assim, e nos termos expostos, julgo a ação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, condeno a ré X – Companhia de Seguros, S.A., sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho), no pagamento à autora L. R. das seguintes quantias:
a) 15,00€ (quinze euros) a título de reembolso de despesas de transporte;
b) o capital de remição da pensão anual e vitalícia, devida em 04/09/2018, no montante de 733,49€ (setecentos e trinta e três euros e quarenta e nove cêntimos).
*
Custas por autora e ré seguradora (relativamente à parte de 32.557,93€ não abrangida pela decisão proferida em audiência de julgamento), na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 62,66% para a primeira e 37,34% para a segunda – sem prejuízo da alteração de modalidade de apoio judiciário que possa vir a ser concedida à autora na sequência do último pedido apresentado e junto aos autos. “

RECURSO – FOI INTERPOSTO RECURSO PELA RÉ SEGURADORA
CONCLUSÕES:

1 – Ocorreu manifesto erro na decisão da matéria de facto ao dar-se como provados os factos constantes das seguintes alíneas do Ponto II – Factos Provados da Douta decisão em crise:
I)A autora evidencia sérias dificuldades de locomoção, claudicando de forma significativa, o que obsta a que possa caminhar por algum lapso temporal, em face das dores e consequências que tal esforço contende;
J) Tem manifestado ainda dificuldades em permanecer de pé, sempre na mesma posição, mesmo que por curtos períodos temporais;
K) A autora tem dores quase que diariamente;
L) A autora tem de usar palmilhas especiais, para se conseguir movimentar da melhor forma, e minimizar o desgaste no membro que suporta o seu peso no movimento.
M) A autora padece de sequelas, que interferem no funcionamento diário, designadamente, na sua locomoção, tendo dificuldade numa tarefa que parece simples, como entrar numa banheira, subir num autocarro, deslocar-se dentro da sua própria casa;
N) Devido às sequelas do pé direito, a autora tem grandes dificuldades em se deslocar e em manter uma postura correta e o equilíbrio;
O) A autora padece regularmente de dores fortíssimas no pé direito, nas pernas, o ombro direito e nas costas;
P) Em consequência do acidente, a autora apresenta períodos de tristeza e labilidade emocional;
2 – Não há nos autos um único documento que sustente tal factualidade.
3 – Não existe igualmente qualquer prova pericial que o sustente.
4 – Não existindo sequer a sempre falível prova testemunhal - ou outra de qualquer de distinta natureza – que o demosntre.
5 – Como resulta da fundamentação da decisão em crise, estas alíneas da matéria de facto dada como provada estribaram-se unicamente nas declarações de parte da própria A. as quais, no entender do Mmo. Juiz a quo, “as declarações de parte da autora (prestadas de modo aparentemente coerente) serviram essencialmente para confirmar e complementar o que resultava já das duas juntas médicas realizadas no apenso, nomeadamente quanto às dificuldades acrescidas que a autora passou a enfrentar (na medida da incapacidade de que padece) para exercer as suas funções profissionais.
6 – Ora, a verdade é que o que é dado como provado nas alíneas supra referidas, estribado nas declarações de parte da A., não é um confirmar e complementar o que resultava já das duas juntas médicas realizadas no apenso - antes extravasa e contraria claramemnte o que das mesmas resulta
7 – Na Junta Médica de psiquiatria nada se disse de ortopedia e das limitações físicas da A.
8 – Na junta médica de ortopedia apenas se reconheceu o seguinte:
1 – Sequelas de entorse do tornozelo direto. Sem rigidez ou sinais inflamatórios locais.
2 – A sinistrada refere dores no pé após períodos de bipedestação prolongados. 3 – Sim, na medida da incapacidade atribuída.
4. Ver quadro anexo. (em que assinalam Cap. I – 14.2.4 e Cap. I - 15.2.1 a)) 5 – 3,97%
6 – Não.
9 – Entre esta parca realidade declarada na Junta Médica e aquilo que pretendia a Apelada - até uma incapacidade definitiva e absoluta para o seu trabalho habitual de enfermeira de bloco operatório (IPATH) - vai um mundo de distância.
10 - De facto, não só foi negada à A. qualquer incapacidade absoluta para o trabalho habitual como mesmo a incapacidade permanente que lhe foi atribuída é muito modesta – de apenas 3,97%.
11 – As únicas dores e limitações que os peritos reconheceram à A. foram as dores no pé após períodos de bipedestação prolongados –negando as suas pretensões e queixas de que estaria afectada de dores na perna direita, de dores nas costas, com menor força de preensão de pé direito e com Hipoestesia do nervo periférico orbitário – tudo isso foi negado.
12 – Não se pode aceitar, por isso, que, unicamente com base nas declarações de parte da A. e contra toda a documentação clínica e nosológica existente no processo e, muito especialmente, contra a prova pericial – exame INML e Juntas Médicas – se declare que a A. padece de sérias dificuldades de locomoção, claudicando de forma significativa, o que obsta a que possa caminhar por algum lapso temporal, em face das dores e consequências que tal esforço contende; que tem manifestado ainda dificuldades em permanecer de pé, sempre na mesma posição, mesmo que por curtos períodos temporais; que tenha dores quase que diariamente; que autora tenha de usar palmilhas especiais, para se conseguir movimentar da melhor forma, e minimizar o desgaste no membro que suporta o seu peso no movimento; que as suas sequelas interferem no funcionamento diário, designadamente, na sua locomoção, tendo dificuldade numa tarefa que parece simples, como entrar numa banheira, subir num autocarro, deslocar-se dentro da sua própria casa e que tenha, devido às sequelas do pé direito, grandes dificuldades em se deslocar e em manter uma postura correta e o equilíbrio. Ou ainda que padeça regularmente de dores fortíssimas no pé direito, nas pernas, ombro direito e nas costas e até que em consequência do acidente, a autora apresente períodos de tristeza e labilidade emocional.
13 – Nada disto é reconhecido pelos peritos que avaliaram a A. e suas sequelas.
14 – Em suma: violou-se a regra e entendimento generalizado de que as declarações de parte, desacompanhadas de outros meios de prova, não podem servir para fundamentar respostas positivas às pretensões de quem as prestar – e, com isso, os Arts,. 466º CPC e 342º CCiv.
15 – de facto, o único meio de prova que sustenta a resposta positiva, o dar-se como provado o elenco de factos constante das alíneas I), J), K), L), M), N), O) E P) do item factos provados da Douta decisão em crise são as declarações de parte da A. – o que é de todo em todo insuficiente.
16 – devem assim ser eliminadas do elenco de factos provados da Douta decisão em crise as alíneas I), J), K), L), M), N), O) E P) – o que se requer apenas em abono da verdade material, pois que em termos de prestações arbitradas a situação é igual – as indemnizações e a pensão em função do grau de IPP, no qual esta factualidade não tem influência.
17 – Ao exposto acresce que ao integrar na sentença o resultado do apenso de fixação de incapacidade ocorreu novo erro de julgamento, pelo qual se considera que a A. está afectada de uma IPP de 5,716% (2% em psiquiatria e 3,97% em ortopedia, cumulados segundo o princípio da capacidade restante).
18 – A verdade é que a A. não pode ser considerada como afectada de uma IPP (Incapacidade Permanente Parcial) de 2% por psiquiatria.
19 – Resulta clato das respostas unânimes dos senhores peritos médicos de psiquiatria que 1 – A Sinistrada apresenta períodos de tristeza e de labilidade emocional, no entanto, a própria nega a presença de qualquer doença mental; 2 – A Sinistrada apresenta uma incapacidade enquadrável no Cap. X - graú I (0,01 -0,05), 0,02, no entanto, esta incapacidade não pode ser considerada permanente dado ser curável com tratamento. Quando proposto encaminhamento para tratamento, recusa o mesmo; 3 – Não”
20 – São os próprios peritos médicos quem, por unanimidade, nega tal pretensão, dizendo claramente que “…no entanto, esta incapacidade não pode ser considerada permanente dado ser curável com tratamento. Quando proposto encaminhamento para tratamento, recusa o mesmo;”
21 - A incapacidade transforma-se em permanente, absoluta (IPA) ou parcial (IPP), se do acidente resultar alguma sequela que afetará definitivamente a capacidade de ganho ou de trabalho do sinistrado.
22 - Daí que se diga que atingiram estabilidade médico-legal - cfr. nº 2 do Art, 35º Lei 98/2009.
23 – Resultando claro do nº 3 do mesmo Art. 35º Lei 98/2009 – que a alta clínica é a situação em que a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insusceptível de modificação com terapêutica adequada.
24 - Só então se dá a consolidação das lesões - quando, à luz dos conhecimentos científicos e médicos actuais, não existe terapêutica adequada para fazer baixar a incapacidade do sinistrado.
25 – Tal foi negado nos autos pelos senhores peritos médicos, que disseram claramente não estermos perante sequelas permanentes – pois que era curáveis, só que a A. não queria fazer a sua cura.
26 – Afirmar então, como se faz na decisão em crise, que, não obstante as lesões ainda serem curáveis – como os médicos declararam – estariam já consolidadas – constitui clara petição de princípio.
27 – A decisão em crise viola ainda a própria TNI, na sua instrução geral nº 3, que diz o seguinte: A cada dano corporal ou prejuízo funcional corresponde um coeficiente expresso em percentagem, que traduz a proporção da perda da capacidade de trabalho resultante da disfunção, como sequela final da lesão inicial, sendo a disfunção total, designada como incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, expressa pela unidade.
28 - Neste sentido, cfr., vg. O Douto Acórdão do STJ de 17/05/2018 em que se decidiu o seguinte:
I - Em regra, o recurso ordinário …………………….
II - A consolidação médico-legal mais não é do que, em linguagem corrente, a data da alta clínica, correspondendo esta à situação em que a lesão desapareceu totalmente (cura) ou se apresenta como insusceptível de modificação com terapêutica adequada (consolidação).
29 - Ao decidir diferentemente, ficcionando que uma lesão que era curável deve ser valorizada como se tivesse sido atingida a alta clínica ou estabilidade médico-legal por ser insusceptível de melhoria à luz das terapêuticas existentes (o que os peritos unanimemente negaram) o Mmo. Juiz a quo fez uma valoração absolutamente infundada da prova pericial produzida, sem que tivesse na posse de quaisquer outros meios de prova que legitimassem tal posição e interpretou erradamente - e com isso violou - os Arts. 8º, 35º nº 2 e 3 da Lei 98/2009 assim como a instrução geral nº 3 da TNI.
30 – devendo declarar-se, assim, que deve ser negada a atribuição de qualquer IPP por tal especialidade à A., fixando-se a sua IPP em apenas 3,97%, pois que essa é a que resulta da especialidade de ortopedia, na qual as lesões atingiram, realmente, estabilidade médico legal, alta clínica.
31 – Ainda que assim não se entendesse, jamais poderia a decisão final a proferir poderia ser de condenação, como foi.
32 - É que, como salientaram os senhores peritos, “…esta incapacidade não pode ser considerada permanente dado ser curável com tratamento. Quando proposto encaminhamento para tratamento, recusa o mesmo;”
33 - Atente-se ainda, a este propósito, nas próprias instruções específicas da TNI em que, no seu Cap. X – Psiquiatria – estabelecem precisamente o seguinte:
Na avaliação pericial, deve ainda ter-se em conta o conceito de consolidação, i.e., a altura em que, na sequência de um processo transitório de cuidados terapêuticos, a situação clínica (lesão ou défice funcional) se fixa e adquire um carácter permanente ou, pelo menos, duradouro, persistindo por um período de tempo indefinido.
34 - Realidade que, como atestaram unanimemente os senhores peritos, não existe nos autos.
35 – Mas, ainda que existisse, ter-se-ia de todo o modo que considerar o expressamente estatuído na lei, a saber, no Art. 30º nº 2 da Lei 98/2009 que tem os seguintes dizeres: “Sendo a incapacidade ou o agravamento do dano consequência de injustificada recusa ou falta de observância das prescrições clínicas ou cirúrgicas, a indemnização pode ser reduzida ou excluída nos termos gerais.”
36 – Resultado a que se chegaria pela consideração do Art. 570º CCiv. (sendo ainda, num caso como o dos autos, enquadrável na figura do abuso de direito prevista no Art. 334º CCiv – o lesado recusa tratamento que é possível mas pede indemnização por incapacidade que poderia não ter, se aceitasse ser tratado.
37 - Ao decidir de modo distinto, atribuindo á Apelada uma IPP de 2% por psiquiatria que não passa de uma ficção, pois que inexiste qualquer incapacidade permanente e, ainda por cima, ao fazê-lo quando os próprios médicos atestam que o seu estado tem cura (não mera melhoria) mas que a mesma recusa o tratamento, violou ainda o nº 2 do Art. 30º da Lei 98/2009 assim como os Arts. 570º e 334º CCiv.
38 – Preceito cuja consideração impunha que a decisão ou sentença final a proferir nos autos principais deveria ser a de que a indemnização – no caso, pensão – pela referida IPP de 2% por psiquiatria, deve ser excluída, pois que assenta num putativo dano (lesão ou sequela) que só por um acto deliberado da sua vontade existe -expressa recusa da A. em se tratar.

Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de V. Exas., deve a Douta Sentença ser substituída por outra que altere a decisão sobre a matéria de facto nos moldes propostos, ou, de qualquer modo, altere a decisão de direito considerando que não existe ou não é indemnizável a alegada IPP de 2% por psiquiatria absolvendo por isso, em parte, a Apelante dos pedidos…

CONTRA-ALEGAÇÕES: não foram produzidas.
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: propugna pela improcedência da apelação.
Foram colhidos os vistos dos adjuntos e o recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): impugnação da matéria de facto fixada na sequência de audiência de julgamento e no apenso de fixação de incapacidade para o trabalho; grau de IPP a atribuir à autora.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:

Factos provados :
A) A autora nasceu no dia -/09/1985;
B) No dia 03.07.2017, pelas 7:50 horas, durante o tempo de trabalho e no seu local (acesso pedonal ao hospital) da propriedade da empregadora, quando se dirigia para o serviço no Hospital ..., onde exerce a atividade de enfermeira, ao descer o passeio, a autora ao sair do carro pousou o pé ao descer do passeio e torceu o pé direito para o lado interno sentindo um “esticão”, tendo uma entorse no respetivo tornozelo;
C) Na sequência do evento foi assistida no serviço de urgência do Hospital ... onde foi sujeita a RX que não revelou fraturas;
D) A sociedade Escala … - Sociedade Gestora de Estabelecimento, S.A, tinha a responsabilidade transferida para a seguradora X – Companhia de Seguros, S.A., por contrato de seguro válido e em vigor, com o n.º de apólice ……59;
E) A autora auferia na data referida em B) a retribuição anual de 18.331,72€ (dezoito mil trezentos e trinta um euros e setenta dois cêntimos) – 1.212€ x 14 + 4,52€ x 22 x 11 + 22,49€ x 12, salário base, subsídio de alimentação e trabalho suplementar, respetivamente);
F) A autora recebeu da 1ª ré a quantia 5.888,75€ a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos;
G) As lesões causadas à autora determinaram-lhe, pelo menos, um período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA) de 04/07/2017 a 15/12/2017 e um período de incapacidade temporária parcial para o trabalho (ITP) de 10% de 10/08/2018 a 03/09/2018;
H) A autora não logrou, em face da extensão e natureza das lesões, a recuperação plena das suas capacidades locomotoras, estando impossibilitada, na medida da incapacidade de que padece, para o exercício das suas funções nos mesmos moldes que a exercia;
I) eliminado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
J) A autora tem manifestado dificuldades em permanecer de pé sempre na mesma posição - alterado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
K) A autora por vezes tem dores- alterado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
L) A autora tem de usar palmilhas especiais, para se conseguir movimentar da melhor forma - alterado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
M) A autora padece de sequelas de entorse do tornozelo e pé referidas no exame de junta médica de ortopedia - alterado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
N) eliminado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
O) eliminado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
P) eliminado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto;
Nos termos do disposto no art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho (para além do já constante da alínea G)
Q) Em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora padece de sequelas que lhe determinam uma incapacidade permanente parcial de 3,97% - alterado em conformidade com a decisão do recurso sobre a matéria de facto.

Factos Não Provados

1) Que em consequência direta e necessária do acidente, a autora sofra de síndrome pós-traumático;
2) Que a autora apresente sintomas persistentes da ativação aumentada, com dificuldade em dormir, irritabilidade e dificuldade de concentração e relacionamento;
3) Que antes do acidente, a autora tomasse medicação do foro psiquiátrico, como antidepressivos para combater as ansiedades e os estados depressivos que, de vez em quando, a assolavam.

B) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

O tribunal da Relação deve modificar a decisão de facto quando os factos considerados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diferente – art. 662º do CPC. A utilização do verbo “impor” confere um especial grau de exigência na prova. Mas, do mesmo modo, obriga à modificação da decisão de facto sempre que ressalte de modo claro uma errada valoração.
Factos provados que são algo de impugnação e que a seguradora entende que devem ser não provados: I), J), K), L), M), N), O) E P).

Têm a seguinte redacção dada na 1ª instância:

I) A autora evidencia sérias dificuldades de locomoção, claudicando de forma significativa, o que obsta a que possa caminhar por algum lapso temporal, em face das dores e consequências que tal esforço contende;
J) Tem manifestado ainda dificuldades em permanecer de pé, sempre na mesma posição, mesmo que por curtos períodos temporais;
K) A autora tem dores quase que diariamente;
L) A autora tem de usar palmilhas especiais, para se conseguir movimentar da melhor forma, e minimizar o desgaste no membro que suporta o seu peso no movimento.
M) A autora padece de sequelas, que interferem no funcionamento diário, designadamente, na sua locomoção, tendo dificuldade numa tarefa que parece simples, como entrar numa banheira, subir num autocarro, deslocar-se dentro da sua própria casa;
N) Devido às sequelas do pé direito, a autora tem grandes dificuldades em se deslocar e em manter uma postura correta e o equilíbrio;
O) A autora padece regularmente de dores fortíssimas no pé direito, nas pernas, o ombro direito e nas costas;
P) Em consequência do acidente, a autora apresenta períodos de tristeza e labilidade emocional.

A ré seguradora alega que não existe prova pericial que a comprove e que as declarações de parte da autora, interessada na causa, não são suportadas por outros meios de prova.
A motivação da decisão recorrida baseia-se nas declarações de parte da autora e no teor das juntas médicas de ortopedia e psiquiatria.
(“…Face à ausência de prova testemunhal, as declarações de parte da autora (prestadas de modo aparentemente coerente) serviram essencialmente para confirmar e complementar o que resultava já das duas juntas médicas realizadas no apenso….No que diz respeito às sequelas psiquiátricas, a resposta do tribunal foi restritiva e baseou-se diretamente no resultado da junta médica de fls. 20 e 21 do apenso – não se demonstrou a existência de síndrome pós-traumático ou os sintomas alegados, mas apenas das sequelas ali descritas, enquadráveis no Capítulo X, grau I (“perturbações funcionais ligeiras, com nula ou discreta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional”) da Tabela Nacional de Incapacidades. Conforme resulta da análise dos autos e foi notado pelos Ex.mos Peritos naquela mesma junta, não há qualquer registo de perturbações psiquiátricas da autora anteriores ao acidente ou de toma de medicação dessa índole, ao contrário do alegado pela seguradora. “
Lidos os relatórios das juntas médicas (ortopedia e psiquiatria), o auto médico singular efectuado na fase conciliatória, restante documentação junta, mormente com a participação, e ouvidas as declarações de parte da autora, concluímos que, em grande parte, a razão está do lado da seguradora, não existindo prova para a extensão de danos que foi considerada como provada. Nem tão pouco sobre a causalidade entre os alegados danos psicológicos e o evento “entorse da tibio-társica” referido na alínea P.

Vejamos a prova.

JUNTA MÉDICA POR ORTOPEDIA:
Consta:
As lesões por ortopedia foram enquadradas do mesmo modo que haviam sido no exame médico singular da fase conciliatória que apenas considerou lesões ortopédicas:
Cap. I-14.2.4, aparelho locomotor, sequelas de entorse do tornozelo (persistência de dores, insuficiência ligamentar, edema crónico) e no Cap. 15-2.1.a, aparelho locomotor, deformação do pé: a) pé plano com depressão moderada da abóbada plantar.
A junta médica atribuiu, por unanimidade, uma IPP de 3,97%.

EXAME MÉDICO SINGULAR DA FASE CONCILIATÓRIA:

Consta no item





“ESTADO ACTUAL” (os outros pontos deste item mereceram todos resposta de “sem alterações”):
.


No item “EXAME OBJECTIVO” consta:

No exame médico singular as lesões/doença foram integradas nas mesmas rubricas da TNI em sintonia com a junta médica posteriormente realizada. Simplesmente atribuiu-se maior desvalorização dentro da variação dos coeficientes, sendo a IPP final de 6,8800%.
De notar que as lesões foram sempre referidas ao pé/tornozelo direito.

JUNTA MÉDICA DE PSIQUIATRIA:

Os quesitos formulados pela autora nesta especialidade formam os seguintes

1. Em consequência da lesão de que foi vitima a autora apresenta humor geralmente apagado, tendência para o isolamento; pouco dialogante; dificuldade no seu relacionamento; dificuldade nos atos da vida diária? 2
2. Qual o coeficiente de IPP correspondente a tais sequelas?
3. As aludidas sequelas impedem a autora de exerce de forma absoluta e definitiva a sua actividade de enfermeira, tendo em conta o tipo de funções que a mesma executa -enfermeira de bloco operatório?


RESPOSTA DA JUNTA MÉDICA de PSIQUIATRIA

OUTRA DOCUMENTAÇÃO:
Na documentação que acompanhou a participação do acidente nunca se fez alusão a este tipo de sequela da área de psiquiatria.
Na participação subscrita pela autora consta “ao sair do carro e me deslocar para o hospital aparei mal o pé ao descer o passeio e fiz inocisão do pé direito (para o seu lado interno). Senti um “esticão” causando um entorse”.
No boletim de avaliação da seguradora onde a autora foi tratada consta:
Lesões sofridas “entorse da tibiotársica”;
Terapêuticas realizadas “Analgias. Fisioterapia”;
Sequelas: “Dor residual no tornozelo direto”, com alta por consolidação das lesões a 3-09-18, com IPP, enquadradas no Cap. I.14.2.4., com IPP de 3% dada por médico ortopedista.

DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA:
Relatou o acidente (entorse do pé) e tratamentos que fez – fisioterapia. No que se refere às queixas referiu dificuldades em estar de pé durante muito tempo, dores, edema, pé instável designadamente sobre areia, “pé chato” sem arcada plantar tendo de usar sapatilha (o que também consta no exame singular), não podendo fazer exercício de impacto.
A autora não fez uma única referência a tristeza ou labilidade emocional, nem a danos na área de psiquiatria. Nem a tal foi perguntada.
Ademais, da junta médica de psiquiatria não consta que o alegado estado psicológico da autora seja consequência causal do acidente, conforme resulta da resposta restritiva no confronto com a pergunta mais geral contida no quesito. A causalidade é uma questão a ser respondida após julgamento e na sentença final. Mas nada obsta que se recorra aos exames médicos para aferir dessa causalidade, conjugando-os com a descrição do próprio acidente, donde se pode inferir a potencialidade que um dado evento tem em causar certos danos típicos. No caso a resposta dada pela junta médica, quando confrontada com a pergunta, é restritiva. Limita-se a constatar um alegado dano, sem estabelecer relação causal.
No exame singular como referimos nunca foram afloradas tais sequelas.
Uma vez, que a autora nem se pronunciou sobre esta matéria não vemos como a mesma poderá ficar a constar dos factos provados.
Refira-se que a lesão de psiquiatria não foi referenciada nem manifestada imediatamente a seguir ao acidente. Nem foi referenciada na continuação, de forma subsequente, na evolução e no acompanhamento das restantes queixas e tratamentos de ortopedia. Apenas foi apontada pela primeira vez na fase contenciosa do processo de acidente de trabalho, na petição inicial. Na tentativa de conciliação, aliás, também não encontramos qualquer alusão a esta sequela.
Face ao exposto, a decisão da matéria de facto é incorrecta quanto à extensão dos danos e causalidade de dano de psiquiatria.

A resposta será a seguinte e ficará a constar em lugar próprio:
I), N), O) P) não provados.

Os demais ficarão com a seguinte redação:
J) A autora tem manifestado dificuldades em permanecer de pé sempre na mesma posição;
K) A autora por vezes tem dores;
L) A autora tem de usar palmilhas especiais, para se conseguir movimentar da melhor forma.
M) A autora padece de sequelas de entorse do tornozelo e pé, referidas no exame de junta médica de ortopedia;

Alínea Q tem a seguinte redação:
Q) Em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora padece de sequelas que lhe determinam uma incapacidade permanente parcial de 5,716% (0,05716)

Ora, por arrastamento, sendo eliminada a lesão de psiquiatria, terá de ser alterado e ficará com a seguinte redacção:
Q) Em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora padece de sequelas que lhe determinam uma incapacidade permanente parcial de IPP de 3,97%.
O que resulta do supra exposto e do teor do exame por junta médica de ortopedia, elaborado por unanimidade de peritos, concordando o seu teor com a história clínica e demais documentações acima referidas.

C) CONT. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO FIXADA NO APENSO DE INCAPACIDADE. O GRAU DE INCAPACIDADE PERMANENTE.

A ré seguradora põe em causa a valorização da sequela de psiquiatria, recorrendo nesta parte da decisão que fixou a natureza e grau de incapacidade no respectivo apenso, conforme previsto no artigo 140º, 2, CPT. Alega que a pretensa lesão não é sequer permanente conforme referem os peritos, não havendo consolidação nem cura clínica e que, ademais, recusando a autora injustificadamente tratamento, a mesma nunca seria indemnizável quer por força do artigo 30º, 2, da Lei 98-2009, de 4-09 (doravante LAT), quer recorrendo à figura do abuso de direito.
Também nesta parte a ré seguradora tem razão.
Na decisão proferida considerou-se que, na parte referente ao capítulo de psiquiatria, a autora teria 2% de incapacidade permanente para o trabalho. Ora, desde logo não é isso que consta no relatório médico elaborado pela junta médica.
A doença ali referida é descrita, não como incapacidade permanente, mas sim como curável com tratamento, o qual é recusado pela autora.
A lesão ou doença de que um sinistrado padeça em decorrência de acidente de trabalho é classificada, quanto à sua natureza, como temporária ou permanente. Tirando as situações em que a conversão ocorre por decurso do tempo (2), o que as distingue é a possibilidade de a lesão ser ou não susceptível de modificação com terapêutica adequada.
Participado um acidente de trabalho, o sinistrado deve ser submetido ao tratamento e prescrições que se mostrem necessárias com vista à cura da lesão e doença e à completa recuperação da sua capacidade de trabalho - 30º LAT.
O processo terapêutico culmina, ou com a cura da lesão e seu desaparecimento total, ou com a constatação de não é mais possível melhorar a doença/lesão através dos tratamentos médicos disponíveis. Ambas as previsões dão lugar à chamada “alta clínica” - 35º, 2, LAT.
Se ocorrer esta última previsão a incapacidade temporária passa a permanente, sendo dada alta clinica com fixação do grau de incapacidade. Ocorre a chamada consolidação das lesões porquanto, à luz dos conhecimentos científicos e médicos actuais, não existe terapêutica adequada para reduzir a incapacidade do sinistrado.
Ora, no exame por junta médica é referido que a lesão é suscetível de tratamento, logo a natureza da lesão não pode ser considerada permanente. Ademais, como referido pela seguradora, a indemnização, a ser devida, sempre deveria ser excluída porque a autora recusou o tratamento sem sequer apresentar qualquer explicação. Não pode a autora não querer ser alvo de tratamento (sem apresentar qualquer justificação), mas querer ser indemnizada de quantia a que poderia não ter direito caso se submetesse a terapêutica adequada – 30º, 2, LAT.
Mas, como referimos acima, a verdade é que não se logrou apurar sequer que a sequela constatada em psiquiatria fosse decorrência do acidente.
Repare-se que a prova dos elementos constitutivos do acidente de trabalho recai sobre a autora, excepto nos casos em que haja presunção legal a seu favor- 342º, 1, CC. No caso, a autora não goza dessa presunção porque a lesão “psicológica” não foi manifestada imediatamente a seguir ao acidente- 10º, 2, LAT. Ademais, pese embora os danos psicológicos não se manifestem de imediato, acima já referimos não estar indiciado que aqueles surgissem encadeados dentro de um processo natural e provável. Não há um processo causal ininterrupto. A autora nunca mencionou este dano perante a seguradora a fim de ser equacionado tratamento. A sequela não é referida no exame médico singular da fase conciliatória. Não foi invocada na tentativa de conciliação. Só surge numa fase adiantada e contenciosa. Competia assim a autora a prova da causalidade que não foi feita.
Em suma, não ficou provada a causalidade entre o evento e a lesão de psiquiatria, nem ficou provada a natureza permanente da incapacidade e ademais a autora recusou, injustificadamente, tratamento, pelo que também por esta via a indemnização seria excluída.
Donde, a pensão da autora terá de ser calculada com base na IPP de 3,97º dada por ortopedia.
Tem, assim, direito ao capital de remição resultante de pensão anual correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho, que se cifra em 509,44€ - 48º, 3, c), LAT.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, condenando-se a ré a pagar à autora o capital de remição de pensão anual e vitalícia, devida desde 04/09/2018, no valor de 509,44€ (quinhentos e nove euros e quarenta e quatro cêntimos), acrescida dos correspondentes juros de mora, mantendo-se no mais a decisão recorrida- 87ºCPT e 663º CPC.
Custas a cargo da recorrida.
Notifique.
8-04-2021

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins



1 - Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
2 - Artigo 22º da LAT, Lei 98-2009, de 4-09. Visa-se impedir o arrastamento da situação clinica do sinistrado.