Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1029/16.2T8VCT-C.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE
CO-EXECUTADO AVALISTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O art. 356º do Cód. Proc. Civil, onde se prevê a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, tanto é aplicável na ação declarativa como na ação executiva e tanto às situações de cessão de créditos como às de sub-rogação;

II- Não obstante a expressão “sub-rogado” utilizada no art. 32º da LULL, o direito do avalista que paga é um direito próprio e autónomo, emergente da letra – o avalista que paga a letra adquire uma ação cambiária de regresso contra o avalisado e obrigados anteriores a ele –, e não um direito que lhe tenha sido transmitido ou em que haja sucedido;

III- Apesar de o aval constituir uma garantia, é uma garantia autónoma: diferentemente do fiador, o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por quem dá o aval, mas assume a responsabilidade do pagamento da letra;

IV- Um co-executado avalista que suportou o pagamento (em parte forçado, em parte voluntário) da quantia exequenda titulada por uma livrança, não sucede por sub-rogação legal no direito do exequente, não podendo, por isso, através do incidente de habilitação legal, substituir-se a este na execução, para com ele prosseguir a mesma contra os executados subscritores da livrança.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

M. C. veio, por apenso à execução comum instaurada pelo Banco … S.A. contra si e outros, deduzir incidente de habilitação de adquirente contra os executados M. M. e A. V. requerendo que seja declarada a sua habilitação como adquirente do direito identificado nos números 10. a 15. do articulado inicial e se ordene o prosseguimento da execução, pelo valor de € 42.115,31 (quarenta e dois mil cento e quinze euros e trinta e um cêntimos) acrescido de juros contados desde o dia 16 de Julho de 2019, à taxa de 4%, figurando ela como exequente e como executados M. M. e A. V..
Foi cumprido o disposto no artigo 356º, nº 1, alínea a), do C.P.C., notificando-se a parte contrária para contestar.
Não foi oferecida contestação.
Na sequência do referido, foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido de habilitação.

Inconformada, a Requerente interpôs o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

I. Vem o presente recurso interposto da decisão de direito que veio julgar improcedente o presente incidente de habilitação de adquirente, por determinar não se mostrarem verificados os pressupostos legais previstos no artigo 356.º do Código de Processo Civil, ao considerar que "atenta a falta de título, não se mostrando preenchidos os pressupostos legais previstos no art.º 356.º do CPC, o presente incidente não poderá proceder”.
II. Sendo absoluta a discordância da recorrente, a sua pretensão assenta, fundamentalmente, na transmissão em seu favor por via sub-rogatória do direito exequendo incorporado na relação cambiária, devendo ser admitido o incidente de habilitação deduzido.
III. Da factualidade apurada, e tal como decorre da própria sentença recorrida, ressalta que a ora recorrente, executada (avalista) nos autos principais, ou seja, garante do cumprimento da obrigação dos devedores principais, satisfez o crédito da exequente pelo montante de € 42.115,31 (quarenta e dois mil cento e quinze euros e trinta e um cêntimos), com vista a obstar ao prosseguimento da execução, com a consequente penhora do seu salário e venda do seu bem imóvel.
IV. Ora, estipula o art.º 32º, da LULL, aplicável ao regime jurídico das livranças, em conformidade com o art.º 77º, do mesmo diploma legal: “Se o dador de aval paga a letra (livrança), fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra (livrança) contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra (livrança).”
V. Paralelamente, dispõe o art.º 644º, do Código Civil: “O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que foram por ele satisfeitos.”
VI. Opera-se a sub-rogação quando um terceiro, que cumpre uma dívida alheia ou que para tal empresta dinheiro ou outra coisa fungível, adquire os direitos do credor originário em relação ao respetivo devedor.
VII. Tem como efeito que o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.
VIII. A figura da sub-rogação, sendo igualmente uma forma de transmissão de créditos (pelo cumprimento), distingue-se substantivamente da cessão de créditos prevista no art.º 577º, nº 1, do CC, sendo o art.º 356º, do CPC referente ao incidente de habilitação, aplicável às situações de cessão de créditos, previstas no art.º 577º, do CPC, e, bem assim, igualmente, às de sub-rogação.
IX. A lei prevê duas espécies de sub-rogação: a sub-rogação voluntária/convencional (art.º 589º e 590º do CC) e a sub-rogação legal (art.º 592º Do CC).
X. A situação factual delineada revela que, no âmbito do processo executivo de que o incidente de habilitação é apenso, a ora recorrente, revelava-se executada/devedora mercê do aval por si prestado no título cambiário dado à execução e, portanto, garante do cumprimento da dívida dos subscritores do mesmo, tendo-lhe sido penhorada a metade indivisa de prédio urbano de que é proprietária e, ainda, a quota-parte do vencimento, legalmente admissível, que esta auferia junto da Secretaria Geral do Ministério da Educação e Ciências Cooperantes, totalizando os montantes do referido vencimento penhorados a quantia global de € 37.256,41 (trinta e sete mil duzentos e cinquenta e seis euros e quarenta e um cêntimos).
XI. Acresce que, para obstar ao prosseguimento da execução contra os seus bens, designadamente a venda do bem imóvel penhorado de que é proprietária, a recorrente procedeu, no dia 16 de julho de 2019, ao pagamento da totalidade da quantia exequenda remanescente, no montante de € 4.583,27 (quatro mil quinhentos e oitenta e três euros e vinte e sete cêntimos).
XII. Resulta, concomitantemente, que o caso vertente configura indubitavelmente uma situação de sub-rogação legal, pretendendo a recorrente, em razão de tal e por essa via, alcançar a realização coativa do valor que deveria ter sido suportado pelos executados subscritores da livrança.
XIII. Atente-se que o instituto invocado pela recorrente não é o do Direito de Regresso contra co-executados, que seria o instituto correto caso a recorrente pretendesse ser ressarcida pelo co-executado, também avalista, A. C., direito que igualmente tem e que lhe advém do facto de este co-executado ser, também ele, avalista do título cambiário dado à execução.
XIV. Contudo, esse direito de regresso, surgido ex novo e com âmbito diverso, já extravasa o âmbito do título executivo, pelo que não pode ser objeto dos autos de execução de que o presente incidente é apenso, pelo que, aí sim, terá de ser exercido em ação própria.
XV. Daí a recorrente ter lançado mão do presente incidente de habilitação somente contra os executados que se revelam devedores principais porquanto subscritores da livrança.
XVI. Ora, a sub-rogação legal produz-se diretamente por força da lei, não sendo exigível acordo entre o terceiro que paga e o credor ou entre aquele e o devedor, consubstanciando uma sucessão no direito da exequente, nos termos previstos no art. 54° do CPC, o qual abrange todos os modos de transmissão das obrigações, mortis causa ou inter vivos, aqui residindo o lapso do Tribunal a quo quando determina ser exigível a existência de «título» para a recorrente poder fazer valer o seu direito de habilitar-se como exequente nos autos de execução principais.
XVII. Tal sub-rogação operou-se ex lege, não se exigindo qualquer declaração expressa do credor, ou seja, não sendo exigindo qualquer título, sendo que as liquidações efetuadas pela recorrente se encontram inteiramente documentadas nos autos.
XVIII. De forma que, tem legitimidade ativa para, com base na sub-rogação, deduzir o incidente de habilitação com vista ao prosseguimento dos termos da execução e pagamento dos valores devidos pelos executados/devedores principais.
XIX. Dito de outro modo, no caso vertente, o meio de transmissão de créditos materializou-se por via da sub-rogação legal, pelo que assiste à recorrente, o direito de requerer a sua habilitação para substituir a credora originária e em lugar dela prosseguir com os termos da execução e obter a realização coativa da prestação que lhe é devida pelos executados, encontrando-se, portanto, reunidas condições para o prosseguimento dos legais termos do incidente de habilitação da recorrente.
XX. Exigir à recorrente, como ressalta da decisão recorrida, que, para fazer valer o seu direito por via da sub-rogação, deve intentar ação autónoma viola os mais elementares princípios da economia e celeridade processuais ínsitos na normatividade adjetiva.
XXI. Ao julgar improcedente a habilitação da recorrente para prosseguir a execução como exequente violou a Douta Sentença os artigos 6º, 54.º e 351.º a 356.º do CPC, 592.º e 593.º do CC e 32º e 77º da LULL.
Concluiu pedindo seja o recurso julgado procedente e, em consequência, revogada a Sentença recorrida, admitindo-se a habilitação da Recorrente e ordenando-se o prosseguimento do incidente.
Não houve contra-alegações.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, nº 4, 636º, n.º 1, e 639º, n.º 1, do NCPC).

No caso vertente, a questão a decidir que releva das conclusões recursórias é a de saber se um co-executado avalista que suportou o pagamento (em parte forçado, em parte voluntário) da quantia exequenda titulada por uma livrança, sucede por sub-rogação legal no direito do exequente, podendo, por isso, através do incidente de habilitação legal, substituir-se a este na execução, para com ele prosseguir a mesma contra os executados subscritores da livrança.
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos
Os Factos considerados provados, pela primeira instância, são os seguintes:

-1- Os executados M. M. e mulher A. V. emitiram e subscreveram uma livrança, no valor de € 46.468,64 (quarenta e seis mil quatrocentos e sessenta e oito euros e sessenta e quatro cêntimos), tendo, por tomador, a instituição bancária, Banco ..., S.A.;
-2- Livrança a que a ora requerente deu o seu aval juntamente com A. C., também executado nos autos principais;
-3- Na data do seu vencimento, a 18.09.2015, a livrança em questão não foi paga por nenhum dos devedores;
-4- Tendo a instituição bancária credora intentado o processo executivo para cobrança do respectivo valor;
-5-No âmbito do processo executivo supra referenciado, em Setembro de 2016, foi penhorado 1/3 do vencimento que a requerente auferia junto da Secretaria Geral do Ministério da Educação e Ciências Cooperantes;
-6- Os montantes do vencimento da requerente penhorados totalizam a quantia global de € 37.256,41 (trinta e sete mil duzentos e cinquenta e seis euros e quarenta e um cêntimos);
-7-Foi, ainda, penhorado o saldo bancário da ora requerente, ali executada, no montante de € 275,63 (duzentos e setenta e cinco euros e sessenta e três cêntimos), existente na instituição bancária Caixa …, S.A.;
-8- A penhora sobre o saldo bancário mencionado em -7- foi levantada nos termos determinados na decisão proferida a fls. 17 e seguintes do apenso A;
-9- A requerente procedeu, no dia 16 de Julho de 2019, ao pagamento da quantia exequenda remanescente na execução de que o presente incidente é apenso, no montante de € 4.583,27 (quatro mil quinhentos e oitenta e três euros e vinte e sete cêntimos).

O direito

De acordo com o princípio da estabilidade da instância (art. 260º do CPC), iniciada a instância, a mesma deve permanecer idêntica até final, ressalvadas as possibilidades de modificação legalmente consignadas, entre elas a de aquele que adquiriu a coisa ou direito que se discute na ação, poder ocupar no processo a posição do transmitente, em substituição dele, nos termos previstos no art. 356º do CPC, prosseguindo, então, a instância com o adquirente (art.´s 262º e 263º do CPC).

De acordo com o nº 1 do referido art. 356º do CPC, a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se nos termos seguintes:

“a) Lavrado no processo o termo de cessão ou junto ao requerimento, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar; na contestação pode o notificado impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo;
b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário”.

Este normativo deve ser conjugado e harmonizado com o art. 263º do CPC, onde se estatui que:

“1- No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.
2- A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recursar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária.
3- A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que esse não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação.”

Assim, como se frisa no Acórdão da Relação de Coimbra de 2017/05/09 (Relator – Isaías Pádua), “poder-se-á, em jeito de síntese, dizer que a admissibilidade da incidente de habilitação do adquirente, nos termos do artigo 356º depende da verificação dos seguintes pressupostos:

a) Da pendência da ação;
b) Da existência de uma coisa ou de um direito em litigioso;
c) Da transmissão, por ato entre vivos, dessa coisa ou direito em litígio na pendência da ação, ou do seu conhecimento no decurso da mesma”.

No recurso em apreço, em causa está uma habilitação do adquirente ou cessionário com a particularidade de tal habilitação ter sido requerida no âmbito de uma execução.
Na ação executiva, a regra é a de que a mesma tem de ser promovida pela pessoa que no título figura como credor (art. 53º, nº 1, do CPC), mas, tendo havido sucessão no direito, deve a execução correr entre o sucessor da pessoa que no título figura como credor (art. 54º, nº 1, do CPC) e o devedor da obrigação exequenda, vários sendo os acórdãos que têm tomado posição no sentido de que o termo “sucessão” deve ser interpretado em termos amplos, abrangendo todos os casos em que o direito tenha sido transmitido, por ato entre vivos ou por morte (entre outros, acórdão do STJ de 19.09.2002, processo nº 2145/02), igual entendimento tendo vindo a ser defendido na doutrina (cfr. Marco Carvalho Gonçalves, in “Lições de Processo Civil Executivo”, pág. 195, Eurico Lopes Cardoso, “Manual da Acção Executiva”, pág. 119, e Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, I, pág. 92), sendo ainda pacificamente aceite que entre a transmissão por ato entre vivos se conta a cessão de créditos, a transmissão singular de dívida e a sub-rogação.
Mais se tem entendido que, verificando-se a sucessão na pendência da ação executiva, necessário se torna suscitar um incidente de habilitação, nos termos dos art.´s 351º a 357º, por forma a fazer intervir na execução o sucessor da parte primitiva (cfr., entre outros, os Acórdãos do TRG de 02.06.2016, proc. 18/13.3TBVLP-E, e de 29.09.2016, proc. 1799/14.2R8VNF-B.G1).
Não temos, pois, dúvidas de que o art. 356º do Cód. Proc. Civil tanto é aplicável na ação declarativa como na ação executiva e tanto às situações de cessão de créditos como às de sub-rogação.
Importa, então, definir sub-rogação, forma de transmissão que, segundo a Recorrente, fundamenta a peticionada habilitação.
Fazendo-o, dir-se-á que “a sub-rogação consiste na situação que se verifica quando, cumprida uma obrigação por terceiro, o crédito respectivo não se extingue, mas antes se transmite por efeito desse cumprimento para o terceiro que realiza a prestação ou forneceu os meios necessários para o cumprimento” (Luís Menezes Leitão, in “ Direito das Obrigações “, Volume II, pág. 33).
Assim, “a sub-rogação pode definir-se como a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou faculta a este os meios necessários ao cumprimento. A sub-rogação é, pois, uma forma de transmissão das obrigações, que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito conquanto limitado pelos termos do cumprimento que pertencia ao credor primitivo. Vale por dizer que se verifica a sub-rogação quando um terceiro, que cumpre uma dívida alheia ou que para tal empresta dinheiro ou outra coisa fungível, adquire os direitos do credor originário em relação ao respetivo devedor” (Acórdão da Relação do Porto de 21.02.2018, Relatora - Maria Cecília Agante, citando Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4.ª ed., pág. 560).
A sub-rogação tem, pois, como efeito a aquisição, pelo sub-rogado, na medida da satisfação dada ao direito do credor, dos poderes que a este competiam (artigo 593º, nº 1, do Código Civil).
Em suma, como se sintetiza no sumário do Acórdão da Relação do Porto de 14.09.2006 (Relator - Fernando Baptista Oliveira), “Sendo a sub-rogação havida no nosso Direito como uma forma de transmissão do crédito e não como uma das formas de extinção da obrigação, com o pagamento ao credor da dívida de outrem ficou o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo”.

No caso em apreço, os executados M. M. e mulher A. V. emitiram e subscreveram uma livrança, no valor de € 46.468,64 (quarenta e seis mil quatrocentos e sessenta e oito euros e sessenta e quatro cêntimos), tendo, por tomador, a instituição bancária, Banco ..., S.A., livrança a que a ora Requerente deu o seu aval, sendo que, na pendência da execução movida pela referida entidade contra os subscritores da livrança e contra ela própria, a aludida avalista requereu o incidente de habilitação por ter suportado (em parte voluntariamente, em parte por força da penhora que incidiu sobre o seu salário) o pagamento da quantia exequenda, invocando, por isso, estar sub-rogada no direito do exequente.

Será assim?

Nos termos do art. 32º da LULL, aplicável ao regime jurídico das livranças, ex vi art.º 77º, do mesmo diploma legal: “Se o dador de aval paga a letra (livrança), fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra (livrança) contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra (livrança).”
Apesar da expressão utilizada no aludido preceito, tanto a doutrina como a jurisprudência nos dizem que, na realidade e ao contrário do que defende a Recorrente, não estamos perante um caso de sub-rogação legal.
“O termo “sub-rogado” está aí impropriamente empregue, por erro de tradução, tanto assim que na correspondente norma do art.27 § 3º da LUCH já não se refere tal expressão, mas a da aquisição dos direitos resultantes do cheque”. (Acórdão da Relação de Coimbra de 3.06.2014, Relator – Jorge Arcanjo).
Na verdade, como se enfatiza no citado acórdão, não se pode esquecer que “o direito do avalista que paga é um direito próprio e autónomo, emergente da letra, e não um direito que lhe tenha sido transmitido ou em que haja sucedido”
Este acórdão segue a posição anteriormente defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 23.11.2010 (Relator – Fonseca Ramos).

Ambos se apoiam em Gonçalves Dias (Da Letra e da Livrança, vol. VII, pág. 563 e 564), que a este respeito elucida:

“ É pois exacto que o avalista, pagando o título, não fica propriamente subrogado nos direitos do portador. Não há subrogação, mas aquisição própria.
Não fica mesmo subrogado nos direitos daquele por quem pagou – nos direitos do avalizado: nem é sucessor do portador pago, porque não é seu cessionário, nem um sucessor do avalizado, porque este é sempre um obrigado cambiário a respeito do avalista que o garante.
Todas estas explicações servem para a Lei Uniforme e seriam desnecessárias se a tradução portuguesa não tivesse adulterado o texto original da alínea III do artº32º.
Esta alínea, reportando-nos à redacção francesa ou inglesa, nem de perto, nem de longe falada da “subrogação”.
A versão correcta seria: “ Efectuando o pagamento, o dador de aval adquire os direitos emergentes da letra contra o seu avalizado e contra os obrigados para com este”.
A aludida posição foi recentemente reafirmada no Acórdão da Relação de Coimbra de 8.5.2019 (Relator – Moreira do Carmo), onde, para além do mais, se acentua: “como relembra ajustadamente A. Varela (em CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 1. ao mencionado artigo, pág. 577) perante um devedor solidário - como é o caso do avalista (…) - que paga ao credor, o crédito deste não se transfere, como é típico da sub-rogação, mas extingue-se (nos termos do art. 523º do CC). E nessa hipótese o devedor não é terceiro, como a lei na sub-rogação exige, tendo por isso o seu direito de regresso, que é próprio e nascido ex novo, com natureza e regime específicos (nos termos do art. 524º do CC).”
No mesmo sentido – isto é de que o avalista que paga a letra adquire uma ação cambiária de regresso contra o avalisado e obrigados anteriores a ele – veja-se, ainda, Alfred Hueck, in “História da letra de câmbio e do direito cambiário”, pág. 196 e ss., e Pereira Coelho, Lições de Direito Comercial, 5º, pág. 88.
Sendo assim, a ora Recorrente não se encontra, pela referida via, sub-rogada nos direitos do exequente credor, não se podendo, pois, afirmar uma “sucessão” no direito daquele para efeito da requerida habilitação.
Invoca ainda a Recorrente, a favor da sua pretensão, o preceituado no art. 644º do Cód. Civil a respeito da fiança.
É certo que, atento o preceituado no art. 644º do Cód. Civil, um dos casos em que a sub-rogação opera por determinação da lei e independentemente da vontade do credor é o da fiança, sendo inegável que “a forma como a lei se exprime, ao afirmar que o fiador, depois de cumprir a obrigação, fica sub-rogado nos direitos do credor revela, em termos inequívocos, que o cumprimento do fiador lhe não confere um simples direito de regresso contra o devedor, porque gera uma verdadeira transmissão do crédito para o fiador”: “para o fiador transfere-se, não apenas o direito à prestação principal, mas todos os atributos ou qualidades do direito encabeçado no credor. Se o credor tinha direito a juros, ao cálculo de juros a certa taxa, a qualquer privilégio ou cláusula penal, todos esses atributos acompanham a sub-rogação operada a favor do fiador solvens”. (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, 2007, Almedina, pág. 497/498).

Mas será o aval uma fiança?

“Tudo está em saber de que modo o fim de garantia, para que o aval é dado, se reflecte no seu regime jurídico. É incontroverso que as partes visam esse escopo; mas comportar-se-á a obrigação do avalista em relação à do avalizado como uma verdadeira obrigação de garantia, como uma fiança? (…) Temos de concluir que o aval, sendo uma garantia, não é rigorosamente uma fiança; que não pode enquadrar-se perfeitamente o aval na fiança: a acessoriedade não esgota a sua natureza jurídica.” - Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, págs. 196, e segs.
Como se frisa no citado acórdão do STJ de 23.11.2010, “o aval é uma garantia autónoma (não é uma fiança): a obrigação do avalista é, por um lado, subsidiária ou acessória de outra obrigação cambiária ou da obrigação de outro signatário; no entanto, o aval é também um verdadeiro negócio cambiário, origem de uma obrigação autónoma; o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por quem dá o aval, mas assume a responsabilidade do pagamento da letra.
O avalista não detém uma posição acessória em relação à obrigação garantida, tanto assim é que a sua vinculação como garante se mantém ainda que seja nula a obrigação garantida – art. 32º II da LULL – por qualquer motivo que não seja um vício de forma.”
Não há, pois, razões para aplicar o aludido regime da fiança e, com base nele, deferir à pretendida habilitação.
Acresce que o pagamento voluntário feito na pendência da execução pelo executado ou por terceiro é causa de extinção da execução (art. 846º, nº1, do CPC); por outro lado, o executado que paga, ainda que haja outros co-executados, não pode considerar-se, para efeito do art. 847º, nº 6, do CPC, um “terceiro”, a quem a lei confere a sub-rogação nos direitos do exequente, pela simples razão de que terceiro é o estranho à relação jurídica, o que não é devedor, nem credor (art.767º do Cód. Civil), e que não figura no título como tal (art.53º do CPC) (como também sublinhado no citado Acórdão da Relação de Coimbra de 8.5.2019).

No caso, a referida avalista não é, pois, “terceira”, antes pretende, pela via da habilitação incidental, passar da qualidade de executada e devedora para a de exequente, o que, para além do mais, implica “uma inversão de posições em sede de título executivo” (citado acórdão do STJ de 23.11.2010).
Por último, no caso concreto, tampouco se pode falar, relativamente a toda a quantia para pagamento da qual a ora Recorrente pretendia que prosseguisse a execução - 42.115,31 € -, num pagamento voluntário pressuposto da aplicação do aludido art. 847º, nº6, do CPC, certo que, na hipótese em apreço, o que sucedeu foi ter sido penhorado 1/3 do vencimento que a Habilitanda auferia junto da Secretaria Geral do Ministério da Educação e Ciências Cooperantes, totalizando os montantes do vencimento da requerente penhorados a quantia global de € 37.256,41, apenas tendo ocorrido um pagamento voluntário no que respeita ao pagamento da quantia exequenda remanescente na execução de que o presente incidente é apenso, no montante de € 4.583,27, pelo que, ainda que se entendesse estar verificado um caso de sucessão no direito do exequente, nunca a execução poderia vir a prosseguir com a Habilitanda para cobrança coerciva da quantia que excedesse este último valor, certo que o fim último da execução – pagamento coercivo da obrigação exequenda – se mostra já cumprido, independentemente da vontade da ora Recorrente e com os encargos a tal inerentes, relativamente ao restante valor.

A decisão recorrida não violou, pois, nenhuma das normas pela Recorrente invocadas.
Face ao exposto e sem necessidade de outras considerações, improcede a apelação.

Sumário:

I – O art. 356º do Cód. Proc. Civil, onde se prevê a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, tanto é aplicável na ação declarativa como na ação executiva e tanto às situações de cessão de créditos como às de sub-rogação;
II – Não obstante a expressão “sub-rogado” utilizada no art. 32º da LULL, o direito do avalista que paga é um direito próprio e autónomo, emergente da letra – o avalista que paga a letra adquire uma ação cambiária de regresso contra o avalisado e obrigados anteriores a ele –, e não um direito que lhe tenha sido transmitido ou em que haja sucedido;
III – Apesar de o aval constituir uma garantia, é uma garantia autónoma: diferentemente do fiador, o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por quem dá o aval, mas assume a responsabilidade do pagamento da letra;
IV - Um co-executado avalista que suportou o pagamento (em parte forçado, em parte voluntário) da quantia exequenda titulada por uma livrança, não sucede por sub-rogação legal no direito do exequente, não podendo, por isso, através do incidente de habilitação legal, substituir-se a este na execução, para com ele prosseguir a mesma contra os executados subscritores da livrança.
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IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 30.01.2020

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues