Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3802/20.8T8GMR.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O Decreto-Lei n.º 214-G/2015 de 2/10 veio alargar o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração Pública atue sem título que as legitime, e que se enquadram no artº. 4º, n.º 1, al. i) do ETAF e artº. 2º, nº. 2, al. i) do CPTA, na redação dada pelo citado DL 214-G/2015.
II- Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, onde são enquadráveis as ações de reivindicação que têm por objeto situações em que entidades como a Ré (Junta de Freguesia) ocupam imóveis de propriedade privada sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime, nomeadamente sem proceder à respetiva expropriação.
III- Os tribunais administrativos são materialmente competentes para decidir a ação de reivindicação, sendo de configurar o litígio como emergente de uma relação jurídica administrativa, se o autor alega que o terreno de que é proprietário foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público - no caso em apreço uma Junta de Freguesia, através dos atos materiais consubstanciados no abate dos plátanos antigos existentes na parcela de terreno em causa e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento – de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior e restituído ao seu legítimo proprietário.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

X - Indústrias Têxteis, S.A. intentou a presente acção de reivindicação, sob a forma de processo comum, contra Junta de Freguesia de ..., ... (Guimarães), pedindo a condenação da Ré:

a) a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a parcela de terreno identificada nos artºs 1º e 2º da petição inicial;
b) a restituir à A. a dita parcela de terreno.
Para fundamentar a sua pretensão, a A. alega, em síntese, que é legítima proprietária e possuidora do prédio urbano sito no Lugar …, inscrito na matriz urbana da Freguesia de ... (...), concelho de Guimarães, sob os artigos … e …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº. .../19920317, correspondendo tal descrição predial a um edifício de cinco pisos e logradouro e outro de três pisos, anexo e logradouro, e tem as confrontações indicadas no artº. 2º da petição inicial.

Dos documentos juntos aos autos resulta que:

- Esta descrição sob o nº. ..., tem origem na descrição n.º … da mesma Conservatória;
- Esta última descrição anexou as descrições n.ºs … e … da mesma Conservatória;
- Esta última descrição anexou parte da descrição n.º …, com uma área de 1.750 m2, da mesma Conservatória;
- Em 26 de Julho de 1967, a A. adquiriu a J. J. e F. F., por compra e venda, um terreno destinado a construção, com a área de 5.700 m2, situado no Lugar …, Freguesia de ... (...), concelho de Guimarães, a confrontar do Norte com eles vendedores e dos demais lados com a Estrada Camarária, dos quais 1.750 m2 corresponde a igual área desanexada do prédio descrito sob o n.º … da mesma Conservatória.
Há mais de 10 anos, a A., tendo em vista a facilitação da fluidez do trânsito nas artérias que envolvem o seu prédio, cedeu ao domínio público uma parcela de terreno destinada à criação de uma nova artéria viária, com 40 metros de comprimento e 13,8 metros de largura, parcela essa localizada no lado Nascente daquele prédio, tendo tal cedência provocado um desmembramento físico do seu prédio, do qual resultou o surgimento de uma parcela de terreno sobrante, com uma configuração quase triangular, em que um dos seus bicos, aponta para Nascente, continuando a confrontar com o Largo do ….
Em consequência da criação daquela nova artéria, a parcela de terreno triangular sobrante passou a ter, em matéria de circulação automóvel, as funções próprias de uma “rotunda”, quando observadas as inerentes regras estradais, ou seja, obrigando aquela circulação a contorná-la segundo as mesmas regras.
Em simultâneo, a A. destinou o “miolo” do mesmo terreno a parqueamento automóvel, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, e por se tratar de propriedade privada sua, a A., desde logo, colocou adequada sinalética, de forma a impedir a utilização do espaço por pessoas estranhas aos seus recursos humanos, realidade esta que nunca foi contrariada por ninguém.
Em 7/05/2019, através de email dirigido à A., a Ré remeteu a esta minuta de Protocolo a celebrar entre si e a A., destinado a regular a trasladação do busto do fundador da A., Sr. A. C., no qual a Ré reconhece expressamente que a A. é a proprietária daquele terreno, visando, através do Protocolo, fixar com a A. as condições de transladação do referido busto e sua implantação no terreno em apreço.
O terreno em apreço está na posse da A. e dos seus antecessores há mais de vinte anos, ininterruptamente, de forma pública e pacífica, tudo levando a crer que a A. a fundou num modo legitimo de adquirir, e que o possuía de boa fé.
Acrescenta que ao início da manhã de 22/04/2020 compareceram, no local correspondente à sobredita parte sobrante do prédio da A., homens e máquinas, com os quais se deu início ao abate dos plátanos antigos (com dezenas de anos) aí existentes e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento, sendo que tal ocupação do espaço propriedade da A. impossibilita o acesso ao mesmo, por parte dos seus trabalhadores, para fins de parqueamento dos seus automóveis.
Alertada para a ocorrência daqueles factos e inconformada com a persistência da Ré em manter a execução dos referidos trabalhos, a A. promoveu, em 23/04/2020 pelas 10h30, o embargo extrajudicial da obra, o que concretizou na pessoa do seu representante legal, A. R., o qual, acompanhado das testemunhas V. J. e J. S., notificou verbalmente a Ré para a necessidade de suspensão imediata dos trabalhos, através de quem se encontrava então no local da obra, concretamente o Sr. D. M., empreiteiro responsável e o Sr. A. M., encarregado da Junta de Freguesia.
Posteriormente, em 28/04/2020, a A. apresentou contra a Ré procedimento cautelar destinado à ratificação do embargo extrajudicial, o qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Guimarães - Juiz 1, sob o nº. 2013/20.7T8GMR.
No âmbito do referido processo, as partes chegaram a acordo nos termos do qual a A. se comprometeu a desistir do pedido, ao passo que a Ré aceitou aquela desistência, e adicionalmente, no âmbito daquele acordo, as partes celebraram um contrato-promessa de compra e venda do referido terreno, submetendo-o, todavia, a condição resolutiva, consistindo esta no trânsito em julgado de sentença judicial que não reconheça à A. a propriedade da parcela do terreno em causa nos presentes autos.
Refere, ainda, que a A. beneficia quer da presunção de titularidade derivada do registo predial, prevista no artº. 7º do Código de Registo Predial, quer da presunção de titularidade do direito de propriedade derivada da posse, prevista no artº. 1268º do Código Civil.

Em 2/11/2020 foi proferido despacho liminar a “declarar incompetente este tribunal em razão da matéria para conhecer e julgar a presente ação e, consequentemente, absolver a Ré da presente instância.

Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

1. A questão que aqui se coloca à douta apreciação do Meritíssimo Tribunal ad quem, resume-se a saber se, no caso em apreço, se verifica a excepção de incompetência em razão da matéria.
2. Nos termos do disposto no artigo 211º, número 1, da CRP, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
3. O artigo 212°, número 3, da Lei Fundamental estabelece que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
4. São, assim, da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (Cfr. artigo 64º do Código de Processo Civil e artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto). 5. Já a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4° do ETAF que enumera os litígios que se encontram incluídos no âmbito da jurisdição administrativa.
6. Para se determinar a competência absoluta dos Tribunais há que atentar no pedido e na causa de pedir (“quid disputatum”), irrelevando qualquer tipo de indagação sobre o seu mérito (“quid decisum”).
7. Deste modo, partindo da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na Petição Inicial, encontramos as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para o conhecimento do mesmo.
8. Na Petição Inicial, a A. invoca a titularidade do direito de propriedade, pede o seu reconhecimento e, consequentemente, pede a restituição da coisa.
9. A alegação da A. reside apenas, e só, na violação, pela R., do seu direito de propriedade.
10. O objecto do litígio, tal qual consta da Petição inicial, não envolve nem se centra na discussão da legalidade da construção da obra, nem da natureza da obra, nem do seu maior ou menor interesse público.
11. Não é identificado nenhum concreto procedimento administrativo ou um qualquer acto administrativo.
12. Está em causa, outrossim, uma mera actuação material, imputada à R., que, no entender da A., viola o seu direito de propriedade.
13. Por conseguinte, o caso respeita, exclusivamente, a uma figura jurídica de direito privado.
14. Trata-se de uma acção de reivindicação (conforme, de resto, o Tribunal a quo reconhece), tal como vem prevista no artigo 1311º do CC, ou seja, de uma acção real.
15. Tal acção não se confunde com as acções obrigacionais em que se exerce a responsabilidade civil extracontratual.
16. E não é a circunstância de uma das partes ter feição pública que impõe concluir-se que as questões decidendas emergem de uma relação jurídica administrativa.
17. Por conseguinte, entende a Recorrente que a competência para apreciar o pedido (no âmbito de uma acção real) é dos Tribunais Judiciais, uma vez que, salvo melhor opinião, não se inclui em qualquer das hipóteses do artigo 4º do ETAF.
18. No mesmo sentido da posição da Recorrente pronunciaram-se, designadamente, os Acórdãos do Tribunal de Conflitos proferidos no âmbito dos seguintes processos: 035/13, de 27/11/2013, 024/13, de 15/05/2013, 018/13, de 18/12/2013, 011/09, de 07/07/2009, 01/17, de 24/05/2017, 1/15-70, de 22/04/2015, 015/14 de 30/10/2014, 052/14, de 26-01-2017, 013/14 de 19-06-2014, 015/14, de 30-10-2014, 046/15, de 04/02/2016, 048/15, de 07/07/2016 e 027/14, de 25-09-2014 e, ainda, o Tribunal Central Administrativo Norte no Acórdão proferido no processo nº 00103/14.4BEPRT, de 11/01/2019 e o Tribunal da Relação do Porto, no processo nº 0637020, de 18/01/2007 – Cfr. trechos dos referidos Acórdãos que se transcrevem nas Alegações.
19. Porque a Recorrente alegou factos capazes de demonstrar que é titular do direito de propriedade sobre o terreno em causa nos presentes autos, está, pois, em causa a defesa de um direito real (artigo 1315º do CC), sendo que qualquer eventual responsabilidade extracontratual que se venha apurar (mas que, por ora, não se encontra configurada) não surgirá ligada a qualquer relação jurídica administrativa mas, antes, a uma relação jurídica de direito privado - desde logo, subjaz à pretensão deduzida em juízo, a invocada existência de um direito de propriedade.
20. Assim, o Tribunal a quo é competente para apreciar e decidir este pleito já que está apenas em causa uma questão de natureza cível.
21. Destarte, o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou, entre outras, as citadas normas do ETAF e da CRP.

Termina entendendo que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 11/01/2021 (refª. 171259961).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, é a de saber se a competência para apreciar e julgar a presente acção de reivindicação pertence aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos.

Com interesse para apreciação da questão em causa há que ter em conta a dinâmica processual supra referida, em sede de relatório.
*
Apreciando e decidindo.

Na decisão recorrida declarou-se a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Cível de Guimarães – Juiz 1 para conhecer e julgar a presente acção, com fundamento no facto da Ré Junta de Freguesia ser uma entidade pública e estar a ocupar (com uma obra) uma parcela de terreno que, pretensamente, pertence à A., sem o consentimento desta, pretendendo a A. o reconhecimento de que tal trato de terra lhe pertence e que a Ré deixe de lá exercer actos como se dona do mesmo se tratasse, mediante a condenação à remoção de situação constituída em via de facto, sem título que a legitime, enquadrável na alínea i) do n.º 1 do art.º 4º do ETAF.

Relembremos o teor da decisão recorrida, que transcreveu grande parte do acórdão deste Tribunal da Relação de 22/02/2018, proferido no âmbito de um procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova (proc. nº. 2476/17.8TBBCL, relatora Raquel Baptista Tavares, aqui 1ª Adjunta, disponível em www.dgsi.pt), no qual se fundou para sustentar a sua posição [transcrição parcial]:

«(…)
Dispõe o n.º 1 do artigo 209º da Constituição da República Portuguesa, nas suas várias alíneas que, “além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas”; e o artigo 211º n.º 1 que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, cabendo, por usa vez, aos tribunais administrativos, segundo o artigo 212º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Em conformidade, decorre também do artigo 64º do Código do Código de Processo Civil que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, e em sentido idêntico dispõe o artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26/01) que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Por outro lado, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que a competência se afere pelo pedido do autor, considerando a pretensão formulada e os fundamentos em que a mesma se baseia, sendo irrelevante qualquer juízo de prognose que se possa fazer relativamente à sua viabilidade (v. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, página 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, página 91) e que não cabendo uma causa na competência de outro tribunal ela será do tribunal comum por uma questão de competência residual (cfr. entre outros, Acórdãos da Relação de Guimarães de 05/03/2009 e de 18/01/2018, da Relação do Porto de 22/02/2011 e de 07/04/2016, da Relação de Lisboa de 13/07/2010 e do STJ de 02/03/2017, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).
A competência material dos tribunais comuns é assim fixada em termos residuais.

E quanto aos tribunais administrativos, consta do artigo 4º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, vigente à data da propositura da presente providência cautelar e actualmente em vigor, que lhes compete a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

Analisemos então a questão colocada no caso concreto à luz dos considerandos acabados de enunciar, começando por verificar o pedido formulado na presente providência pelos Requerentes e os fundamentos em que a mesma se baseia uma vez que a determinação da competência em razão da matéria assim deve ser aferida.
E no caso em apreço, os Requerentes peticionam a ratificação do embargo que efectuaram em 17/10/2017 quanto às obras que a Requerida se encontrava a efectuar no prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, invocando o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico (…) no qual alegam ter a Requerida realizado trabalhos de abertura de uma vala, que é a continuação da que está a ser executada no prédio expropriado pela Requerida.
Analisada a decisão recorrida conclui-se que a mesma fundamenta a atribuição da competência aos tribunais administrativos por entender que a pretensão dos Requerentes se baseia na responsabilidade civil extracontratual da Requerida e enquadrar a situação concreta na alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF.
Em sentido contrário sustentam os Recorrentes que a acção principal a instaurar só pode ser real ou possessória como resulta do disposto do n.º 1, do artigo 397° do Código de Processo Civil e que o alegado e a factualidade ínsita no requerimento inicial indicam que a acção a propor será a “acção de reivindicação” prevista no artigo 1311º, do Código Civil, não sendo por isso uma situação de responsabilidade civil extracontratual.
Entendem que são os tribunais comuns, e não os administrativos, os competentes para conhecer duma providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova, à qual se seguirá a propositura de uma acção real, com fundamento em ofensa do direito de propriedade, por obras realizadas por uma concessionária de um serviço público num prédio que não foi objecto de expropriação, por se tratar de questões que não emergem de uma relação jurídica administrativa, mas que se traduz na reivindicação de propriedade privada.

No caso concreto, e porque efectivamente o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado, podendo ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa (cfr. artigo 364º n.º 1 do Código de Processo Civil) importa caracterizar o objecto do litígio da acção principal a intentar pelos Recorrentes: sem dúvida está em causa a violação (por força da obra em causa) pela Requerida do direito de propriedade dos Requerentes, violação que os Requerentes pretendem fazer cessar com a suspensão imediata da obra, pretendendo dessa forma evitar o prejuízo decorrente da ocupação do seu prédio pela Requerida.
É certo que para além do seu direito de propriedade os Requerentes alegam no requerimento inicial a existência de obra executada pela Requerida em violação daquele direito e, por isso, a prática de facto ilícito por esta, o que decorre aliás dos próprios pressupostos da providência de embargo de obra nova (artigo 397º do Código de Processo Civil).
Mas tal não obsta a que se conclua que a acção principal a instaurar, e da qual os presentes autos são dependência, seja uma acção de reivindicação conforme referem os Recorrentes (cfr. artigo 1311º do Código Civil), na qual poderão até pedir a condenação da Requerida no pagamento de uma qualquer indemnização para ressarcimento de eventuais prejuízos causados, pois nada obsta a que com o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e de entrega da coisa se cumule o pedido de indemnização; tal não descaracteriza a acção de reivindicação e não a torna sem mais numa uma acção de responsabilidade civil extra-contratual onde, não obstante a invocação do direito de propriedade, o objectivo principal é o da obtenção de indemnização.
Pensamos por isso que a pretensão dos Requerentes se baseia primordialmente no seu direito de propriedade e na defesa deste pelo que a acção principal a propor será a acção de reivindicação, conforme os próprios Recorrentes referem, e não uma acção de responsabilidade civil extracontratual.
No entanto, tal conclusão, distinta da que consta da decisão recorrida [que sustentou a competência dos tribunais administrativos com base na responsabilidade civil extracontratual], levará à alteração desta e à atribuição da competência ao tribunal a quo?
Pensamos que não.
É que com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10 o legislador alargou, em nosso entender, o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos ao caso presente.
De facto, e em sentido distinto do que pensamos ser até então a posição jurisprudencial maioritária, de atribuição da competência aos tribunais judiciais, o artigo 4º do ETAF passou a prever na alínea i) do n.º 1 que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime.
E o artigo 2° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) prevê que no seu n.º 1 que o princípio da tutela jurisdicional efectiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, e mediante um processo equitativo, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão; e no seu n.º 2 que a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter a condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao estabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime (alínea i).
A propósito desta alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 Mário Aroso de Almeida (Manual do Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2ª Edição, página 171) pronuncia-se no sentido de que o ETAF “passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respectiva expropriação. No passado, como a competência para as acções de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objecto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”.
Pode ler-se também no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015 que no que “respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo actual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às acções de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.
Parece-nos pois que a actual alínea i) do artigo 4º do ETAF (e do nº 2 do artigo 2º do CPTA), veio consagrar a atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para as acções de reivindicação que têm por objecto situações em que entidades como a Requerida (empresa pública, concessionária, em regime de exclusividade, da exploração e gestão do Sistema Municipal de Abastecimento de Água e de Saneamento para Captação, Tratamento e Distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes de vários municípios) ocupam terrenos de particulares sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime; trata-se de situações enquadráveis ainda no exercício do poder administrativo, mas em que este é exercido de forma ilegítima (veja-se no caso concreto que a abertura da vala no prédio do qual os Requerentes são proprietários é a continuação da vala que está a ser executada no prédio expropriado tendente à execução do entroncamento da EN 103).
Em face da actual alínea i) do artigo 4º do ETAF (e do nº 2 do artigo 2º do CPTA) temos de concluir que a competência para julgar a presente providência cautelar se encontra atribuída aos tribunais administrativos.» (sublinhado nosso).
Em sentido idêntico, veja-se o analisado e decidido no Ac. Tribunal Central Administrativo do Norte de 30.11.2016, Proc. n.º 00975/16.6BEPNF, também disponível em www.dgsi.pt, donde se transcreve o sumário, «I - Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, nomeadamente quando a Administração ocupa imóveis de propriedade privada sem proceder à respectiva expropriação; I.1 - é competente para a presente acção o Tribunal Administrativo nos termos dos artigos 2º/2/alínea i) do CPTA e 4º/1/alínea i) do ETAF, na redacção do DL 214-G/2015, de 2/10.»
Outrossim, ainda que sobre questão surgida antes da alteração legislativa mas por fazer uma integração normativa dos factos a nosso ver também defensável, o Ac. Relação de Coimbra de 20.01.2015, Proc. n.º 61/14.5TBPNC.C1, disponível em www.dgsi.pt: «O pedido de ratificação de embargo de obra nova levada a cabo por entidade pública, no fim típico da sua atividade, com base na violação do direito de propriedade poderá enquadrar-se no litígio que tem por objeto “a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, encontrando-se abrangido pela alínea g) do nº1 do art.º 4.º do ETAF.»
Revertendo, agora, ao caso concreto, verificamos, pelos factos narrados na p.i., que em causa estará uma parcela que, pretensamente, pertence à Autora e que está a ser objeto de ocupação (com obra) não consentida por parte da Ré, esta órgão que integra a Freguesia, a Administração Pública.
Verificamos, pela p.i., que a Autora pretende o reconhecimento de tal trato de terra é seu e que a Ré deixe de lá exercer atos como se dona do mesmo se tratasse (obra que estará a levar ou levou a cabo).
A presente ação é efetivamente uma ação de reivindicação (reclamação do que é alegadamente seu a quem a detém, ocupa e sobre a coisa exerce atos, supostamente sem título).
Por conseguinte, pelo pedido, a Autora pretende a condenação à remoção, de situação constituída em via de facto, sem título que a legitime, enquadrável, s.m.o., na alínea i) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.
Impõe-se, pois, concluir pela incompetência absoluta do presente Tribunal por ser incompetente em razão da matéria para conhecer do presente litígio, por para tal serem competentes os Tribunais Administrativos – artigo 96.º do CPC. Incompetência essa que nos termos do artigo 97º do CPC é de conhecimento oficioso e, consequentemente, impõe a absolvição da Requerida da instância – artigos 99º e 278º n.º 1 alínea a) e 576.º e 577º, todos do CPC.»

Insurge-se a A., ora recorrente, contra a referida decisão, alegando que para se determinar a competência material do tribunal há que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e ao pedido formulado, sendo que na petição inicial, a A. invoca a titularidade do direito de propriedade e a violação do mesmo pela Ré, pede o seu reconhecimento e a restituição da coisa objecto desse direito.
Sustenta a recorrente que o objecto do litígio, tal qual consta da petição inicial, não envolve nem se centra na discussão da legalidade da construção da obra, nem da natureza da obra, nem do seu maior ou menor interesse público, não é identificado nenhum concreto procedimento administrativo ou um qualquer acto administrativo, estando apenas em causa uma mera actuação material, imputada à Ré, que no entender da A., viola o seu direito de propriedade, respeitando o caso, exclusivamente, a uma figura jurídica de direito privado.
Mais alega que se trata de uma acção de reivindicação, tal como vem prevista no artº. 1311º do Código Civil, que não se confunde com as acções obrigacionais em que se exerce a responsabilidade civil extracontratual, não sendo a circunstância de uma das partes ter feição pública que impõe concluir-se que as questões decidendas emergem de uma relação jurídica administrativa.
Deste modo, entende a recorrente que a competência para apreciar o pedido (no âmbito de uma acção em que está em causa a defesa de um direito real) é dos tribunais comuns, uma vez que não se inclui em qualquer das hipóteses do artº. 4º do ETAF.

Vejamos se lhe assiste razão.

Dispõe o artº. 211º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, cabendo, por usa vez, aos tribunais administrativos e fiscais, segundo o artº. 212º n.º 3 da CRP, “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Decorre também do artº. 64º do NCPC que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, e em sentido idêntico dispõe o artº. 40º, nº. 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº. 62/2013 de 26/01) que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
A competência material dos tribunais comuns é assim fixada em termos residuais.
Porque no caso “sub judice”, o confronto é delineado entre a competência dos tribunais comuns e a dos tribunais administrativos, importará conhecer qual é o âmbito da competência destes últimos.
Em conformidade com o comando constitucional estabelecido no artº. 212º, n.º 3, e no desenvolvimento do mesmo, o artº. 1º, nº. 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19/2, na versão republicada em Anexo ao DL 214-G/2015 de 2/10 (doravante ETAF), preceitua que “os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal encontra-se actualmente definido no artº. 4º do ETAF, o qual sofreu, desde o diploma que o aprovou (a Lei nº 13/2002 de 19/2, na versão final revista que viria a entrar em vigor com o início da vigência da reforma de 2002-2004, dada pelas Leis nºs 4-A/2003 de 19/2 e 107-D/2003 de 31/12), as modificações introduzidas pela Lei nº. 59/2008 de 11/9, pelo Decreto-Lei nº. 214-G/2015 de 2/10 (este no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015 de 19/8) e mais recentemente pela Lei n.º 114/2019 de 12/9.
Tendo a presente acção sido instaurada em 14/08/2020, importa considerar o artº. 4º do ETAF, na redacção dada pelo DL 214-G/2015 de 2/10, em vigor à data, na medida em que a competência se fixa no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (cfr. artº. 5º do ETAF e artº. 38º, nº. 1 da LOSJ).
Importa, ainda, ter presente, na esteira das considerações iniciais da decisão recorrida que cita, e bem, a doutrina de José Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, página 111) e do Prof. Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, pág. 91) e os acórdãos da RG de 18/01/2018 (proc. nº. 2367/17.2T8VCT) e da RP de 7/04/2016 (proc. nº. 340/14.1T8PVZ-A), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, que é consensualmente entendido e aceite na doutrina e na jurisprudência que a competência em razão da matéria é aferida em função dos termos em que o autor configura a acção na petição inicial, ou seja, com base nos pedidos formulados e nos fundamentos que para tanto são invocados e que consubstanciam a causa de pedir.
A este propósito também Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha afirmam (in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ed., Almedina, pág. 125) que “… a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual, tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado.”

No caso em apreço, a aqui recorrente instaurou a presente acção de reivindicação contra a Junta de Freguesia de ..., ..., no tribunal comum, com fundamento de que é legítima proprietária de uma parcela de terreno que está a ser ocupada pela Ré (com obras que estará a levar a cabo) sem o consentimento da A., pretendendo que a Ré seja condenada a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a dita parcela de terreno e a proceder à sua entrega à Autora.
A decisão recorrida entendeu serem os tribunais administrativos os competentes para conhecer do presente litígio e, por isso, declarou a incompetência em razão da matéria do tribunal comum para conhecer da presente acção e absolveu a Ré da instância.
Pelas razões explanadas na decisão recorrida, não podemos deixar de concordar com tal decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.
Com efeito, com a alteração introduzida ao ETAF e ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) pelo DL 214-G/2015 de 2/10, o legislador alargou o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos ao caso presente.

Na verdade, o art°. 4° do ETAF, na redacção dada pelo citado DL 214-G/2015, passou a dispor:

1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas a:

(…)
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime.

E o artº. 2º, n.º 2 do CPTA, aprovado pela Lei n.º 15/2002 de 22/2, na versão republicada em Anexo ao mencionado DL 214-G/2015 de 2/10, estatui o seguinte:

2 - A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter:

(…)
i) A condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime.

Sucede que o artº. 4º, nº 1 do ETAF, na versão decorrente da revisão operada pelo DL 214-G/2015 de 2/10, expressamente contempla no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais, entre outras, as situações que tenham por objecto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração Pública actue sem título que a legitime, a que se refere a al. i) daquele dispositivo legal, na redacção dada pelo citado DL 214-G/2015, que é aqui a aplicável, como já vimos.
Aliás, lê-se no preâmbulo do DL 214-G/2015 que no que “(…) respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo atual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.

A propósito desta alteração introduzida pelo DL 214-G/2015 de 2/10, o Prof. Mário Aroso de Almeida (in Manual do Processo Administrativo, 2ª ed., 2016, Almedina, pág. 171) escreve o seguinte:
«Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n° 1 do artigo 4° do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo.»

Neste mesmo sentido, veja-se o que foi escrito pelo Prof. Assis Raimundo, em “Âmbito de Jurisdição - Contratos e Responsabilidade Civil Extracontratual”, o qual aplaude a previsão nas competências do tribunal administrativo e fiscal relativamente a situações de acções de reivindicação em que a Administração ocupa um terreno de um particular sem para o efeito estar munida do competente título que a habilite (as chamadas actuações em vias de facto), existindo, aliás, uma expressa referência a essa nova competência no preâmbulo do diploma.

Ainda a respeito desta matéria, Jorge Pação (in “Novidade em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4º, nº 1 do ETAF”, em Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, AAFDL Editora, 2ª ed., 2016, pág. 197), defende ser de concluir que «(…) com a revisão do contencioso administrativo português de 2015, os tribunais administrativos são os tribunais competentes para apreciação das situações de “via de facto”, de apropriação irregular e, consequentemente, de expropriação indireta, visto ser uma mera “ramificação” da figura da apropriação irregular, e que, aliás, traz à colação o princípio da intangibilidade da obra pública, de natureza puramente administrativa, devendo este último ser trabalhado e aplicado pelos tribunais administrativos desde 1 de dezembro de 2015, em detrimento da jurisdição comum.»

Como se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 30/11/2016 (proc. n.º 00975/16.6BEPNF, disponível em www.dgsi.pt), cuja doutrina sufragamos, «não se compreende outro conteúdo e alcance a dar às alíneas i) do nº. 1 do artigo 4º do ETAF e do nº. 2 do artigo 2º do CPTA, que não a da atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para as acções de reivindicação em que a Administração ocupa um terreno de um particular sem para o efeito estar munida do competente título que a habilite, conforme foi interpretado pelos referidos autores, tanto mais que, tais casos mereciam usualmente, no foro, o epíteto de "atuações em vias de facto".»
Na situação dos autos a A. peticiona a condenação da Ré Junta de Freguesia a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a parcela de terreno identificada nos artºs 1º e 2º da petição inicial e a restituição da mesma à A., com fundamento de que tal parcela lhe pertence e está a ser ocupada pela Ré, que lá exerce actos como se fosse dona daquele terreno (obras que estará a levar a cabo naquela parcela), sem o consentimento da Autora.
Atentos os fundamentos da acção, tal como foram explanados na petição inicial, a A. pretende reagir e defender-se face aos actos materiais alegadamente levados a cabo pela Ré Junta de Freguesia com a utilização de máquinas, no que concerne ao abate dos plátanos antigos existentes na dita parcela de terreno e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento, impossibilitando o acesso àquele espaço propriedade da A., por parte dos seus trabalhadores, para fins de parqueamento dos seus veículos automóveis.
Como vem sendo defendido pela mais recente jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Norte, compete aos tribunais administrativos, por se configurar como litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, apreciar e decidir se o imóvel de cuja propriedade o autor se arroga foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa colectiva de direito público - no caso em apreço, a Ré Junta de Freguesia, através dos actos materiais consubstanciados no abate dos plátanos antigos existentes na parcela de terreno em causa e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento - “de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior, ou então, indemnizado pelos danos causados, mormente quanto ao valor da área do terreno que lhe foi, alegadamente, ocupado e retirado” (cfr. acórdão do TCA Norte de 5/02/2021, proc. nº. 00278/16.8BEMDL, disponível em www.dgsi.pt, que cita também os acórdãos de 31/01/2020, proc. n.º 249/18.0BEPNF e de 18/12/2019, proc. nº. 725/19.7BEPNF).
O que significa que os Tribunais Administrativos são materialmente competentes, à luz do artº. 4º, nº. 1, al. i) do ETAF (e do artº. 2º, nº. 2, al. i) do CPTA), na redacção dada pelo DL 214-G/2015 de 2/10, para apreciar e decidir a presente acção de reivindicação intentada pela A. contra a Junta de Freguesia de ..., ..., razão pela qual deve ser confirmada a decisão recorrida.

Nestes termos, terá de improceder o recurso interposto pela Autora.
*
SUMÁRIO:

I) - O Decreto-Lei n.º 214-G/2015 de 2/10 veio alargar o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração Pública actue sem título que as legitime, e que se enquadram no artº. 4º, n.º 1, al. i) do ETAF e artº. 2º, nº. 2, al. i) do CPTA, na redacção dada pelo citado DL 214-G/2015.
II) - Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, onde são enquadráveis as acções de reivindicação que têm por objecto situações em que entidades como a Ré (Junta de Freguesia) ocupam imóveis de propriedade privada sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime, nomeadamente sem proceder à respectiva expropriação.
III) - Os tribunais administrativos são materialmente competentes para decidir a acção de reivindicação, sendo de configurar o litígio como emergente de uma relação jurídica administrativa, se o autor alega que o terreno de que é proprietário foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa colectiva de direito público - no caso em apreço uma Junta de Freguesia, através dos actos materiais consubstanciados no abate dos plátanos antigos existentes na parcela de terreno em causa e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento - de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior e restituído ao seu legítimo proprietário.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora X - Indústrias Têxteis, S.A. e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
Guimarães, 25 de Março de 2021
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)