Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
13/22.1GCTMC-A.G1
Relator: PAULO ALMEIDA CUNHA
Descritores: QUEBRA DO DEVER DE SIGILO
SEGURADORA
INTERESSE PREPONDERANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE QUEBRA SIGILO
Decisão: JUSTIFICADO O FORNECIMENTO DE DOCUMENTOS
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A determinação do interesse preponderante deverá ser alcançada tendo em conta, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento ou dos documentos para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
2. Num contexto em que o próprio denunciado (oficina reparadora) não apresenta cópia dos documentos relativos à reparação do veículo automóvel do denunciante (proprietário do veículo sinistrado) e em que o segurador invoca o respectivo dever de sigilo para sustentar a recusa de entrega de cópia do processo de regularização do sinistro envolvendo a reparação do mesmo veículo automóvel, não oferecerá qualquer controvérsia o entendimento de que o acesso a estes documentos – tendencialmente alheios ao denunciante na sua génese e transmissão – se revela imprescindível para a descoberta da verdade.
3. No plano da gravidade concreta dos crimes, os ilícitos sob investigação não são propriamente bagatelas penais, pois são ambos puníveis com pena de prisão até 3 anos e, caso não seja accionado o disposto no art. 16.º, n.º 3, do CPP, o julgamento de tal concurso verdadeiro de crimes até poderá determinar a intervenção de Tribunal colectivo.
4. A informação pretendida releva de uma mera reparação automóvel e não contende minimamente com a reserva da vida privada do tomador do seguro ou de quaisquer outros intervenientes nestes autos, sendo que o próprio tomador do seguro e a própria companhia de seguros terão igualmente todo o interesse em ver esclarecido se houve fraude nesta regularização do sinistro e assim contribuir para a restauração da confiança na sua actividade relativa a seguro de natureza obrigatória.
5. Por outro lado, a tutela do “património” e da “segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório relacionadas com os documentos” – visada com as incriminações em apreço – carece de reforço e sairá reforçada pelo efectivo exercício da acção penal.
6. Após a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida, a gravidade dos crimes investigados e a necessidade de proteção de bens jurídicos, o interesse público na realização da justiça apresenta-se claramente como o interesse preponderante a satisfazer na investigação a decorrer no âmbito do inquérito em curso.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

No âmbito do processo n.º 13/22.1GCTMC, que corre os seus termos nos Serviços da Procuradoria de ..., Comarca ..., por determinação do respetivo titular, foi concretamente solicitado à seguradoraC..., Seguros, S.A.” o envio de cópia do processo de regularização do sinistro envolvendo a reparação do veículo automóvel, com a matrícula ..-RX-.. pertencente ao denunciante AA.

Contudo, esta seguradora não enviou a documentação solicitada pelo Ministério Público, invocando então para tanto que a mesma está abrangida pelo dever de sigilo previsto no art. 119.º, n.º 1, do Regime do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008.

Perante esta recusa, o Ministério Público junto da 1.ª instância suscitou o presente incidente de quebra do dever de sigilo.

Apresentados os autos ao Senhor Juiz de Instrução do Juízo de Competência Genérica ..., Comarca ..., concluiu este pela legitimidade da recusa e, por isso, remeteu os autos, devidamente instruídos, a este Tribunal, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de estar justificada a quebra do sigilo em apreço.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Objecto do incidente

No presente incidente importa apenas apreciar e decidir se se mostra justificada a quebra do dever de sigilo invocado pela seguradora.

B. Apreciação

1. Dever de sigilo do segurador e processo penal
1.1. O presente incidente versa a matéria da quebra do dever de sigilo invocado pelo segurador no âmbito de um procedimento criminal.

Conforme bem salientado por ANA F. NEVES, o sigiloé uma imposição legal específica de circunspecção relativamente a informação, documentos e factos de que se tenha conhecimento num certo contexto funcional ou institucional” (Vide “Os segredos no Direito”, AAFDL, 2019, pp.20-21).

Dispõe o artigo 119.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008 de 16 de Abril, que:
1 - O segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado.
2 - O dever de sigilo impende também sobre os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respetivas funções.”

À face deste normativo, é inequívoco que o segurador está onerado com o dever de sigilo e que está obrigado a invocá-lo no âmbito de qualquer processo, nomeadamente penal, sob pena de poder incorrer em responsabilidade criminal (art. 195.º, do Código Penal).

1.2. A lei adjectiva penal regula expressamente a situação em que seja necessário obter informação ou documentação que se encontre na posse do segurador em virtude da celebração ou execução de um contrato de seguro, bem como a forma de ultrapassar o aludido dever de sigilo do segurador.

Desde logo, a respeito das limitações que poderão ser opostas ao segredo profissional em geral, o artigo 135.º, do CPP, estatui que:
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”

Esta solução gizada para a necessidade de obtenção de depoimento do titular do direito de recusa vale igualmente para a necessidade de obtenção de documentação que se encontra na posse de pessoas abrangidas pelo segredo profissional ou pelo dever de sigilo.

Na verdade, dispõe o artigo 182.º, do CPP, que:
1 - As pessoas indicadas nos artigos 135.º a 137.º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objetos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado.
2 - Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 135.º e no n.º 2 do artigo 136.º
3 - Se a recusa se fundar em segredo de Estado, é correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 137.º.”

1.3. Uma vez invocado o dever de sigilo e verificada a legitimidade da escusa, compete, então, ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado decidir da prestação de testemunho ou da apresentação dos documentos com quebra do dever de sigilo.

A quebra do dever de sigilo implica uma ponderação dos diferentes interesses em confronto (Vide ANTÓNIO GAMA, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, pp. 167-168).

Por um lado, temos os interesses directamente protegidos pelo sigilo, a saber: i) o interesse público da confiança numa certa actividade empresarial e no seu regular funcionamento; ii) a reserva da vida privada dos particulares que recorrem a essas empresas, com diferentes gradações consoante a maior ou menor sensibilidade da informação para o seu titular.

Por outro lado, temos o interesse público da realização da justiça e do exercício da acção penal.

A quebra do dever de sigilo do segurador em apreço poder-se-á mostrar justificada segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante (art. 135.º, n.º 3, do CPP).

Esta determinação do interesse preponderante deverá ser alcançada tendo em conta, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento ou dos documentos para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos (Idem).

2. O caso concreto
2.1. Analisemos então as circunstâncias do caso concreto sob investigação na Procuradoria de ....

Investiga-se ali a alegada prática pelo arguido BB de factos susceptíveis de integraram a prática, em concurso real, de um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento simples, p. e p. pelo art. 256.º, do mesmo diploma legal.

Em concreto, o AA apresentou uma denúncia contra o referido arguido dando conta de que colocara sua viatura automóvel, com a matrícula ..-RX-.., na oficina deste, para efeito de reparação no âmbito da regularização de um sinistro automóvel a cargo da seguradora “C..., Seguros, S.A.”. Segundo aquele, o denunciado viria a devolver-lhe a viatura sinistrada, após o ter convencido de que a mesma já estava reparada; porém, o denunciado não assegurou a respectiva reparação conforme orçamentado no relatório de peritagem, assim como já teria recebido da referida seguradora o valor integral da reparação orçamentado na peritagem, o que leva o denunciante a sentir-se enganado e a suspeitar da existência de uma factura ou de um outro documento dando falsamente conta de que a reparação estava concluída.

A investigação já conta com cópias da declaração amigável de acidente automóvel, da declaração da seguradora a aceitar a responsabilidade pela regularização do sinistro, do relatório da peritagem automóvel, do livrete do outro veículo envolvido no acidente e da apólice do contrato de seguro automóvel accionado para efeito de regularização do sinistro.

Contudo, ignora-se os termos da relação mantida entre o denunciado e a seguradora “C..., Seguros, S.A.”, incluindo a documentação trocada entre ambos.

Na verdade, o denunciado foi constituído arguido e prestou declarações, tendo então negado a prática dos factos, sem chegar a apresentar as pertinentes cópias dos documentos trocados com a seguradora relativos à reparação do veículo do denunciante.

No âmbito de tal inquérito, por determinação do respetivo titular, foi concretamente solicitado à aludida seguradora o envio de cópia do processo de regularização do sinistro envolvendo a reparação do veículo automóvel, com a matrícula ..-RX-.. pertencente ao denunciante AA.

Foi então que este segurador invocou o dever de sigilo a que está vinculado na execução do contrato de seguro.

2.2. Num contexto em que o próprio denunciado não apresenta cópia dos documentos relativos à reparação do veículo automóvel do denunciante e em que o segurador invoca o respectivo dever de sigilo para sustentar a recusa de entrega de cópia do processo de regularização do sinistro envolvendo a reparação do mesmo veículo automóvel, não oferecerá qualquer controvérsia o entendimento de que o acesso a estes documentos – tendencialmente alheios ao denunciante na sua génese e transmissão – se revela imprescindível para a descoberta da verdade.

No plano da gravidade concreta dos crimes, os ilícitos sob investigação não são propriamente bagatelas penais, pois são ambos puníveis com pena de prisão até 3 anos e, caso não seja accionado o disposto no art. 16.º, n.º 3, do CPP, o julgamento de tal concurso verdadeiro de crimes até poderá determinar a intervenção de Tribunal colectivo.

Avançando, agora, para os interesses em presença, dir-se-á que a informação pretendida releva de uma mera reparação automóvel e não contende minimamente com a reserva da vida privada do tomador do seguro ou de quaisquer outros intervenientes nestes autos, sendo que o próprio tomador do seguro e a própria companhia de seguros terão igualmente todo o interesse em ver esclarecido se houve fraude nesta regularização do sinistro e assim contribuir para a restauração da confiança na sua actividade relativa a seguro de natureza obrigatória.
Aliás, nesta parte, dir-se-á que estes últimos até são sérios candidatos a engrossar a lista de vítimas dos crimes sob investigação na medida em que suportaram financeira e contratualmente os custos da pretensa reparação do veículo sinistrado.

Por outro lado, a tutela do “património” e da “segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório relacionadas com os documentos” – visada com as incriminações em apreço – carece de reforço e sairá reforçada pelo efectivo exercício da acção penal.

Aqui chegados, impõe-se concluir – após a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida, a gravidade dos crimes investigados e a necessidade de proteção de bens jurídicos – que o interesse público na realização da justiça se apresenta claramente como o interesse preponderante a satisfazer na investigação a decorrer no âmbito do inquérito em curso nos autos principais.

Aliás, é caso para dizer que até há uma sintonia de todos os interesses em presença.


Consequentemente, a quebra do dever de sigilo solicitada mostra-se legalmente justificada.

III – DECISÃO

Em função do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente incidente de quebra do dever de sigilo e, consequentemente, determinam que a seguradora “C..., Seguros, S.A.”, com os demais sinais dos autos, forneça aos autos principais os documentos que lhe foram solicitados pelo Ministério Público, relativos à regularização do sinistro envolvendo a reparação do veículo automóvel, com a matrícula ..-RX-...

Sem tributação.

D.N.
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Guimarães, 9 de Janeiro de 2023
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos subscritores)
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(Paulo Almeida Cunha - Relator )
(Helena Lamas – 1.ª Adjunta)
(Cruz Bucho – 2.º Adjunto)