Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5348/18.5T8VNF-B.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: PEAP
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PARECER
DIREITOS DE DEFESA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Não tendo o devedor logrado, através do PEAP, obter acordo de pagamento e considerando que o mesmo alegara, no requerimento inicial, “não ter capacidade, por meios próprios, de cumprir pontualmente as suas obrigações”, forçoso era concluir pela sua insolvência.

II – O devedor, nos termos das disposições que regulam o processo a que recorreu, foi ouvido sobre a sua situação de insolvência e optou por nada dizer, conformando-se com o Parecer que viesse a ser emitido pelo AJP.

III - Consequentemente, temos de considerar que o recorrente reconheceu a sua situação de insolvência, como já decorria do que alegara no requerimento inicial, prescindindo do direito legal e constitucional de pugnar pela sua solvência no momento processualmente previsto para esse efeito.

IV - Neste contexto a declaração de insolvência efectuada ao abrigo do disposto no art.º 222ºG do CIRE não viola os direitos de defesa do recorrente, plasmados no CIRE, no CPC e na Constituição.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Pedro requereu processo especial para acordo de pagamento, alegando, em síntese, que não tem capacidade, por meios próprios, de cumprir pontualmente as suas obrigações. Concluindo: “Assim sendo, dúvidas não restam que o requerente se encontra em situação económica difícil, pelo que o recurso ao processo especial para acordo de pagamento, com vista a negociar com os seus credores a consolidação do seu passivo e um plano de pagamento das suas obrigações se afigura como a solução mais vantajosa e a viável quer para o requerente quer para os seus credores”.

Concluído o processo sem se ter celebrado acordo de pagamento, o Administrador Judicial Provisório (AJP), após “auscultar” o devedor (que nada disse), e os credores (alguns dos quais se pronunciaram no sentido do devedor se encontrar insolvente), emitiu Parecer, nos termos do nº 4 do art.º 222ºG do CIRE, em que, sustentado no facto de devedor ter dívidas no montante de €785.747,25, não ter património e os únicos rendimentos que aufere serem os da sua actividade de gerente, que em 2015 montaram a €9.485,20, conclui que o devedor se encontra numa situação de insolvência, requerendo que a mesma seja declarada.

Foi determinada a extracção de certidão do requerimento inicial, dos documentos e do parecer e a sua remessa à distribuição.

Distribuído como apenso, foi aberta conclusão, proferindo-se de imediato sentença, com a seguinte

DECISÃO:

– «Face a todo o exposto, julgando procedente a presente acção:

1 – Declaro a insolvência de Pedro, residente na Rua … Braga nesta comarca;
2 – Fixo a sua residência na mesma morada.
3 - Como Administrador da Insolvência nomeio o Sr. Dr. F. D.;
4 – Nos termos do artº 66º, nº 2, e sem prejuízo do disposto no artº 67º, nº 1, não se procede à nomeação da Comissão de Credores.
5 – Determino que o insolvente proceda à entrega imediata ao administrador da insolvência dos documentos a que aludem as alíneas do nº 1 do art. 24º (art. 36º, al. f).
6 - Ordeno a imediata apreensão de todos os bens do insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (art. 36º, a. g).
7 – Fixo em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos (art. 36º, al. j).
9 – Designo, para realização da Assembleia de Apreciação do Relatório a que alude o art. 156º do CIRE o próximo dia 2 de Outubro de 2018, pelas14 horas (art. 36º, al. n).
10 - Dê publicidade à sentença nos termos previstos nos arts. 37 e 38º do CIRE.
11 - Notifique a presente sentença:
a) ao insolvente;
b) ao Ministério Público;
12 – Cite os demais credores e outros interessados, nos termos do art. 37º, nº 5, 6 e 7.
13 – Remeta certidão à Conservatória do Registo Civil, no prazo de 5 dias, nos termos e para os efeitos previstos no art. 38º, nº 2, a. b), nºs 5 e 6 do CIRE e arts. 9º, al. i) e l) do Cod. Reg. Comercial.
14 – Cumpra o disposto no art. 38º, nº 3 e 5.
15 – Custas pela massa insolvente (art. 304º).»
*
Inconformado, o devedor interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«I - O devedor foi declarado insolvente sem citação prévia, com base no entendimento de que este veio, representado pelo seu Administrador Judicial Provisório, apresentar-se à insolvência, nos termos do disposto no art.º 28.º do CIRE, aplicável por força do n.º4 do art.º 222.ºG do CIRE. II. A aplicação do n.º 3 e n.º 4 do art.º 222º-G e art.º 28.º, ambos do CIRE, pelo Tribunal a quo viola, de forma cabal, os princípios contidos nos números 1 e 4 do artigo 20.º da CRP, pelo que não pode ser admitida.
III. È mister, nos termos do n.º4 do art.º 222.º-G do CIRE a extração de certidão para instauração de processo de insolvência sendo certo que, nesse processo, deverá ser ordenada a citação do devedor para contestar a ação nos termos dos artigos 219.º e art.º 225.º, ambos do C.P.Civ., atendendo ao disposto no art.º 17.º do CIRE.
IV. Não é aplicável ao caso o art.º 28º do CIRE, porque que não existe reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência.
V. Nada há na lei que justifique que o AJP possa substituir o devedor na apresentação à insolvência, de sorte que não pode equivaler aquele requerimento à apresentação à insolvência nem pode implicar o reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência.
VI. Compete sempre ao tribunal sopesar os fundamentos factuais alegados pelo AJP no seu parecer e subsumi-los à lei em ordem a concluir ou não pela situação de insolvência do devedor.
VII. Porquanto, os nºs 3 e 4 do art.º 222.º-G não preveem a possibilidade do devedor contraditar judicialmente, de facto e de direito, o parecer do AJP.
VIII. A unidade do sistema jurídico, concretamente o direito de defesa e a exigência de um processo equitativo consagrados no art.º 20º n.º1 e 4 da C.R.P. e o principio do contraditório plasmado nos artigos 29º e 30º do CIRE e 3º do CPC, impedem que se interpretem os artigos 222.º-G n.º 4 e 28º do CIRE, no sentido de equiparar o parecer do AJP de que o devedor está em situação de insolvência ao reconhecimento da insolvência pelo devedor, quando este declarou no PEAP que não se encontrava insolvente.
IX. Estabelece a Constituição da República Portuguesa (art.º 20º, nºs 1 e 4) que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como a que a causa em que intervenham seja objeto de uma decisão mediante um processo equitativo.
X. Sendo pois, as supra citadas normas do art.º 222.º-G do CIRE inconstitucionais na interpretação que delas se pode fazer, está o tribunal impedido de as aplicar, é o que resulta do art.º 204º da CRP.
XI. O requerimento do administrador judicial provisório tendente à declaração de insolvência do devedor no contexto dos nºs 3 e 4 do art.º 222.º-G do CIRE não equivale ao pedido de insolvência por apresentação do devedor.
XII. Não é aplicável, neste caso e a despeito da remissão constante do nº 4, o segmento inicial do art.º 28º do CIRE, pelo que não existe reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência.
XIII. Os nºs 3 e 4 do art.º 222.º-G do CIRE, ao determinarem a insolvência a requerimento do administrador judicial provisório sem prévia audição judicial do devedor e sem que este tenha aceitado a situação de insolvência, padecem de inconstitucionalidade por violação dos princípios contidos nos nºs 1 e 4 do art.º 20º da CRP.
XIV. Veja-se a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo n.º 801/14.2TBPBLC.C1.S1 de 17-11-2015.
XV. São pois, as supra citadas normas do art.º 222.º-G do CIRE inconstitucionais na interpretação que delas se pode fazer, estando o tribunal impedido de as aplicar, (art.º 204º da CRP).
XVI. Devendo pois revogar-se a sentença recorrida e ordenar-se a citação do devedor nos termos do disposto no art.º 30.º do CIRE para, querendo, opor-se ao pedido de insolvência.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser concedido integral provimento às presentes alegações e conclusões, revogando-se a sentença recorrida e ordenando-se a citação do devedor para, querendo, opor-se ao pedido de insolvência, e assim, farão V.ªs Ex.ªs a acostumada JUSTIÇA!.»
*
Dos autos não constam contra-alegações
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

.Os factos com interesse para a apreciação do presente recurso são os que constam do relatório supra, nomeadamente:

O recorrente alegou no requerimento de processo especial para acordo de credores que “não tem capacidade, por meios próprios, de cumprir pontualmente as suas obrigações”
Do processo resulta que as suas dívidas montam a €785.747,25.
Damos aqui por reproduzido o que alegou no requerimento do PEAP sob os artºs 15, 16.
Dá-se aqui por reproduzida a Declaração de Rendimentos referentes a 2015, para efeitos de IRS, que juntou com o requerimento inicial, a fls. 9 e segs. deste apenso.
Considera-se aqui reproduzido o Parecer do AJP a fls. 16 e segs, em que conclui requerendo a declaração de insolvência do aqui recorrente.
O recorrente foi notificado pelo AJP, através do seu mandatário, em 11.7.2018 para se pronunciar, até 19 de Julho do mesmo ano, quanto à sua situação de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo 222ºG do CIRE (fls. 17 verso e 18).

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

No caso em apreço o recorrente não se conforma com a sentença que declarou a sua insolvência, na sequência da conclusão do Processo Especial para Acordo de Pagamento sem a aprovação de acordo de pagamento e do Parecer/Requerimento do Administrador Judicial Provisório, apresentado nos termos do nº 4 do art.º 222º G do CIRE

O referido processo especial, conhecido pelo acrónimo PEAP, foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017. Este diploma veio dirimir dúvidas sobre a aplicação do PER a pessoas singulares, esclarecendo que o processo especial de revitalização (PER) se aplica apenas a empresas. Simultaneamente criou um novo mecanismo que permite a recuperação e reestruturação das pessoas singulares (e das pessoas colectivas sem fins lucrativos).

Tal processo pode ser requerido por quem se encontre em situação económica difícil ou por quem se encontre numa situação de insolvência iminente.

Quando o requerente não se encontre numa situação de insolvência, com a conclusão do processo sem aprovação de um acordo de pagamento cessam os efeitos decorrentes da instauração desse processo sem outras consequências (art.º 222ºG, nº 2, do CIRE).

Encontrando-se em situação de insolvência, a mesma é declarada pelo Juiz

Para esse efeito, nos termos do nº 4 do referido art.º 222ºG do CIRE, o administrador judicial provisório (AJP) na comunicação de encerramento do processo sem acordo, emite o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no artigo 28.º, com as necessárias adaptações, sendo o processo especial para acordo de pagamento apenso ao processo de insolvência.

O referido parecer é emitido com base na informação de que o AJP disponha, após ouvir o devedor e os credores.

No presente caso e como resulta da certidão junta aos autos, o AJP notificou os credores e o devedor para se pronunciarem sobre a situação de insolvência. Tais notificações foram efectuadas na pessoa dos respectivos mandatários por correio electrónico e o devedor nada disse.

Estabelece nº 5 do citado normativo que, “recebida a comunicação e sendo o parecer no sentido da insolvência do devedor, o tribunal notifica aquele para, querendo e caso se mostrem preenchidos os respectivos pressupostos, em cinco dias, apresentar plano de pagamentos nos termos do disposto nos artigos 249.º e seguintes ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 235.º e seguintes.

A insolvência é declarada no termo deste prazo (nº2).

Entende o recorrente que o seu requerimento de PEAP não equivale ao reconhecimento da sua situação de insolvência e que, por isso, esta não poderia ter sido declarada sem a sua prévia citação para contestar.

Em abono da sua tese invoca diversos autores, que se debruçaram sobre o regime previsto no nº 4 do art.º 17º G (conclusão do PER sem acordo de pagamentos homologado) e, entre outros, o acórdão do STJ de 17.11.2015 (801/14.2TBPBL-C.C1.S1), publicado em dgsi.pt

Efectivamente, o referido acórdão e parte dos autores, que nele vêm referidos, também citados nas alegações deste recurso, concluem que “o requerimento do administrador judicial provisório tendente à declaração de insolvência do devedor no contexto dos nºs 3 e 4 do art.º 17º-G do CIRE não equivale ao pedido de insolvência por apresentação do devedor”.

Assim, inexistindo reconhecimento da situação de insolvência por parte do devedor, entende-se não ser aplicável o disposto no art.º 28º do CIRE

Bem como, que “os nºs 3 e 4 do art.º 17º-G do CIRE, ao determinarem a insolvência a requerimento do administrador judicial provisório sem prévia audição judicial do devedor e sem que este tenha aceitado a situação de insolvência, padecem de inconstitucionalidade por violação dos princípios contidos nos nºs 1 e 4 do art. 20º da CRP”.

Aprofundado a questão refere-se no citado acórdão:

«Uma primeira questão que se põe é a de saber em que dimensão este art.º 28º se aplica ao caso, na certeza até de que se trata, como diz a lei, de uma aplicação “com as necessárias adaptações”. Não parece que se possa aplicar a primeira parte da norma, visto que, não sendo o AJP um representante ou substituto do devedor (na realidade, o AJP funciona, por um lado, como um facilitador e fiscalizador do procedimento e, por outro, como um interface com o tribunal), não faz sentido equiparar um tal caso a um reconhecimento por parte do devedor da sua situação de insolvência, que é como quem diz, não faz sentido ver-se na alegação (rectius parecer) do AJP uma confissão dos factos desfavoráveis subjacentes ao pedido de insolvência. O devedor pode não estar de acordo com os fundamentos do parecer do AJP e, como assim, querer contestar o bem fundado do parecer do AJP e do requerimento de insolvência.

Como se poderia então falar em reconhecimento da sua situação de insolvência? Dentro desta linha, afigura-se desajustado dizer-se que se trata de insolvência “por apresentação” (como parece sugerir Luís Martins, Insolvência de Pessoas Singulares, I vol., p. 66) ou que o requerimento do AJP “vai equivaler a confissão da situação de insolvência” (Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, p. 72). Na realidade, do que se trata é bem de um caso específico, em que, a par de outros terceiros legalmente legitimados a requerer a insolvência (art. 20º), surge agora também o AJP. No sentido de que não é aplicável ao caso o segmento inicial do art. 28º, pelo que não existe reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência, pronuncia-se Maria do Rosário Epifânio (O Processo Especial de Revitalização, p. 77). A igual conclusão chega Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, p. 495), expendendo a propósito que nada há na lei que justifique que o AJP possa substituir o devedor na apresentação à insolvência, de sorte que não pode equivaler aquele requerimento à apresentação à insolvência nem pode implicar o reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência. De resto, equiparar o requerimento do AJP a uma apresentação do próprio devedor à insolvência levaria, tal como o art. 17º-G está gizado, a vários outros anacronismos injustificados (aliás violadores do princípio constitucional da igualdade), como seriam o afastamento da possibilidade de requerer a exoneração do passivo restante ou a de requerer a administração da massa insolvente (v. art.s 236º nº 1 e 224º, nºs 1 e 2).

(…)
Na literatura doutrinária que tem abordado o assunto, parece prevalecer a ideia de que o direito de defesa do devedor não fica, ainda assim, comprometido. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., p. 174) afirmam a propósito que “não há (…) nenhuma lesão definitiva dos interesses tutelados, visto que, no quadro das regras gerais, a sentença declaratória estará sempre sujeita a impugnação, tanto por via de embargos como de recurso, nos termos consagrados nos art.s 40º e 42º”. Em igual sentido vai Maria do Rosário Epifânio (ob. cit., p. 77), com o acrescento de que a aplicação dos art.s 40º, nº 1 a) e 42º se faria por aplicação analógica. Também João Aveiro Pereira (apud Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 302) afirma que “o juiz só tem de decretar ou não a insolvência, sem audição das partes, pois estas já foram ouvidas pelo AJP, não lhes sendo dado aqui oporem-se à decisão, sem prejuízo de poderem impugnar a sentença, nos termos do art. 40º e seguintes”.

Na jurisprudência das Relações não há consenso sobre a necessidade de conferir ao devedor a possibilidade de contraditar previamente à decisão o requerimento do AJP. Assim, por exemplo, no acórdão da RC de 10 de março de 2015 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 5204/13.3TBLRA-C.C1, relator Fonte Ramos) defende-se que, declarada a insolvência, o devedor poderá deduzir embargos ou recorrer nos termos do disposto nos art.s 40º e 42º, do CIRE, assegurando-se, deste modo, o seu direito de defesa. Aduz-se a propósito que “não vemos como seja possível concluir pelo desrespeito de quaisquer preceitos da lei ordinária ou da lei fundamental [por exemplo, não se vê em que possa ter sido ofendido o art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, que regula o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva], na medida em que a resposta encontrada é a reclamada pela realidade apurada no confronto com os normativos aplicáveis”, e sendo que, mais se aduz, “o devedor faz uso dos mecanismos legais sem outras limitações que as inerentes ao quadro normativo aplicável, e que respeita os seus direitos e deveres como parte (especialmente) interessada no desfecho dos autos”. Diferente entendimento se encontra no acórdão da RP de 26 de março de 2015 (disponível em www.dgsi.pt, processo nº 89/15.8T8AMT-C.P1, relator Leonel Serôdio). Aí se aduz que a unidade do sistema jurídico, concretamente o direito de defesa e a exigência de um processo equitativo consagrados no art. 20º n.º1 e 4 da C.R.P. e o principio do contraditório plasmado nos artigos 29º e 30º do CIRE e 3º do CPC, impedem que se interpretem os artigos 17º G n.º 4 e 28º do CIRE, no sentido de equiparar o parecer do AJP de que o devedor está em situação de insolvência ao reconhecimento da insolvência pelo devedor, quando este declarou no processo de revitalização que não se encontrava insolvente. Nesta caso, conclui o acórdão, tem de lhe ser concedido o direito de se defender e provar a sua solvência, atento o disposto no art. 30º n.º 4 do CIRE, ou ainda que o ativo é superior ao passivo, segundo os critérios do art. 3º n.º 3 do CIRE.

A nosso ver, e tal como decorre deste último acórdão, há que distinguir entre o caso em que, ouvido pelo AJP, o devedor aceita que está em situação de insolvência e o caso em que tal não sucede. No primeiro caso é óbvio que não se justifica o exercício judicial do contraditório, competindo ao tribunal decidir de imediato sobre o requerimento de insolvência. Neste particular caso nenhum desvalor constitucional se poderá endereçar às normas em causa.» (realce nosso).

Tendo presente o que transcrevemos do citado acórdão, a propósito do nº4 do art.º 17ºG do CIRE (PER), volvamos ao caso sob recurso.


Em primeiro lugar cumpre salientar que o processo especial de acordo de pagamento (PEAP), previsto nos artºs 222ºA a 222ºJ do CIRE, foi introduzido por diploma (DL n.º 79/2017, de 30 de Junho) posterior ao citado acórdão e a outros sobre a mesma questão, sendo então bem conhecida do legislador toda a controvérsia doutrinal e jurisprudencial reportada ao PER, concretamente ao nº 4 do art.º 17º G, cuja redacção, neste ponto, o novo diploma manteve incólume.

É evidente que o legislador de 2017 pretendeu acabar com as dúvidas geradas na jurisprudência sobre a aplicação do PER às pessoas singulares, limitando agora expressamente o PER às empresas e criando um novo procedimento (PEAP), específico para devedor, que, não sendo uma empresa, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente.

Também preveniu a possibilidade de o devedor requerer, antes de declarada a insolvência e na sequência de notificação para esse específico efeito efectuada, a exoneração do passivo restante e apresentar o plano de pagamentos.

Assim, o referido art.º 222ºG responde a algumas das críticas anteriores, reportadas ao art.º 17ºG, mormente ao afastamento da possibilidade do devedor requerer a exoneração do passivo restante ou a administração da massa insolvente.

Efectivamente o nº 5 do art.º 222ºG prevê a notificação prévia do devedor para apresentar plano de pagamentos nos termos do disposto nos artigos 249.º e seguintes ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 235.º e seguintes e só decorrido esse prazo a insolvência é declarada.

Só não resolveu as dúvidas colocadas no tocante à aplicação do art.º 28º do CIRE, redacção que manteve, pois, mesmo com as “necessárias adaptações” nunca comportaria a citação do devedor para contestar. Se isso fosse o pretendido o nº 4 do art.º 222ºG não remeteria para este normativo, mas sim para o art.º 29º.

É certo que aquando da publicação do DL n.º 79/2017, de 30 de Junho ainda não era conhecido o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/17, proferido em 12 de Julho de 2017.


Neste acórdão decidiu-se “a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, números 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência”. (sublinhado nosso)

Ora no caso em apreço e mesmo tendo presente a citada jurisprudência do Supremo e do Constitucional, cremos que, para assegurar o direito do recorrente ao contraditório (art.º3º do CPC) ou os seus direitos de defesa e de acesso a um processo equitativo, garantidos pelo artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, não se impunha a citação do devedor para querendo deduzir oposição ao requerido pelo AJP, o que corresponderia à aplicação do art.º 29º e não do art.º 28º do CIRE, ou seja, que, no concreto contexto destes autos, a aplicação do nº 4 do art.º 222ºG não padece de inconstitucionalidade.

Efectivamente logo no requerimento inicial o ora recorrente admitiu encontrar-se em situação de insolvência, mais do que eminente.

Estabelece o artigo 3º do CIRE que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”

No caso em apreço o recorrente, no requerimento inicial não alegou encontrar-se apenas numa situação de insolvência iminente, logo à cabeça afirmou:



De tudo o que alegou ressalta que tem obrigações vencidas e que não tem meios para as cumprir (artºs 15º e 16º do Requerimento, pois não é necessária a instauração de acções ou execuções para que as dívidas se considerem vencidas, como aliás concede ao admitir já ter sido interpelado).

Não logrou obter o acordo dos credores, indispensável à reestruturação da sua dívida.

O AJP, no seu Parecer, corroborado pelo que resulta do PEAP, afirma que o devedor tem um passivo de €785.747,25, não tem património e os únicos rendimentos que aufere são os da sua actividade de gerente, que em 2015 montaram a €9.485,20.

O recorrente foi notificado na pessoa do seu mandatário (ouvido sobre a situação de insolvência ex vi nº 4 do art.º 222ºG), com as formalidades adequadas (artºs 17º do CIRE e 247º do CPC), e nada disse.

Conhecido e comprovado nos autos o volume das suas obrigações vencidas, não veio alegar ter património – o que também não bastaria pois a insolvência de pessoas singulares não se funda num passivo superior ao activo, mas sim na impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas – nem veio comprovar possuir rendimentos que lhe permitam pagar as suas obrigações vencidas (que já do seu requerimento resultava não serem suficientes).

Não tendo o devedor logrado, através do PEAP, obter a almejada reestruturação da sua dívida, em face do que o mesmo alegara no requerimento inicial era forçoso concluir pela sua insolvência, conclusão que de forma alguma contrariou, pois se remeteu ao silêncio, quando para o efeito foi ouvido antes do Parecer/Requerimento de Insolvência apresentado pelo AJP.

Assim, nos presentes autos não foi violado o princípio do contraditório, nem negado ou restringido o direito do recorrente à defesa dos seus direitos.

O recorrente, nos termos das disposições que regulam o processo a que recorreu, foi ouvido sobre a sua situação de insolvência e optou por nada dizer, conformando-se com o Parecer que viesse a ser emitido pelo AJP.

Consequentemente, temos de considerar que o recorrente reconheceu a sua situação de insolvência, como já decorria do que alegou no requerimento inicial, prescindindo do direito legal e constitucional de pugnar pela sua solvência, no momento processualmente previsto para esse efeito.

Neste contexto a declaração de insolvência efectuada ao abrigo do disposto no art.º 222ºG do CIRE não viola os direitos de defesa do recorrente, plasmados no CIRE, no CPC e na Constituição.

Pelo exposto sucumbem na íntegra as conclusões do apelante.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Guimarães, 08-11-2018

Eva Almeida
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte