Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
167/22.7T8AMR.G2
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
É da competência dos tribunais administrativos o julgamento da acção em que a autora, pessoa singular de direito privado, peticiona indemnização por danos decorrentes de acidente de viação provocado por buraco de saneamento existente na via pertencente ao município, ainda que apenas demande a seguradora para a qual aquele ente público havia transferido a sua responsabilidade.
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

PROCESSO 167/22.7T8AMR.G2

Relatora: Raquel Rego
1º Adjunto: Jorge Teixeira
2ª Adjunta: Maria Amália Santos

I – RELATÓRIO

E..., UNIPESSOAL, L.DA, sociedade comercial por quotas, com sede na Rua – ... – ..., propôs a presente ação declarativa comum contra G..., S.A., pedindo que seja a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €11.567, 44 (onze mil, quinhentos e sessenta e sete euros e quarenta e quatro cêntimos), acrescida dos juros que, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

A quantia é relativa a indemnização resultante de um sinistro que teve como causa a inexistência de uma “tampa de esgoto” na rua da cintura, em ... (sentido ... – ...).

Invoca que só a omissão, consubstanciada numa conduta grosseira, negligente e transgressional do Município ..., foi causa única e adequada à deflagração do acidente dos autos, já que, deveria ter diligenciado por tapar o buraco do saneamento e/ou sinalizar devidamente o mesmo, o que, desde logo, não fez.

A ré contestou dizendo que, na versão da autora, o aludido Município terá violado o seu dever de conservação e manutenção de uma via pública, que estava sob o seu domínio, o que terá gerado danos num veículo.

Sendo o Município ... um ente público e achando-se em causa o pagamento à autora de uma indemnização que será devida por causa de ato praticado pelo Município, é de concluir que o presente litígio se prende com a realização de tarefas de interesse público, emergindo de uma relação jurídico administrativa.

Assim, conclui, face ao que se estatui no artº 1º, nº 1 e 4.º n.º 1, f) do ETAF, a causa pertence à jurisdição administrativa e ocorre incompetência da incompetência material do tribunal.

No conhecimento desta excepção, o tribunal a quo proferiu a seguinte decisão:

« A competência em razão da matéria, enquanto pressuposto processual, é aferida pelo objeto do processo, o qual é conformado pela pretensão do autor, que, assim, delimita o “thema decidendum”.

E distribui-se por diferentes espécies de Tribunais, situados no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia, subordinação ou dependência entre eles.

Desta sorte, a competência afere-se pela estrutura da relação jurídica que se discute, nos termos em que é proposta pelo autor, considerando o pedido do autor e a causa de pedir em que o mesmo se baseia.

De acordo com o disposto no artigo 64.º do Código de Processo Civil são da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

E, nos termos do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Por sua vez, o artigo 212.º, n.º 3 da CRP, prescreve que compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

No caso em apreço, o autor reclama da ré seguradora o pagamento de uma indemnização resultante de um sinistro que teve como causa alegada a inexistência de uma “tampa de esgoto” na rua da cintura, em ... (sentido ... – ...).

Com efeito, conforme alega, “o condutor do veículo da Autora ainda tentou desviar-se, mas sem qualquer sucesso, sendo que, a roda traseira direita do seu veículo caiu num buraco do saneamento, em virtude de não ter a respetiva tampa e o mesmo não estar sinalizado; tendo provocado, no veículo da Autora, os danos constantes do relatório de peritagem e que ascenderam ao valor de €577, 43, …”

Ora, a este respeito o artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e h) do ETAF dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas de direito público …”.

Dito isto, e sabendo-se que é da competência da edilidade a responsabilidade pela manutenção do sistema de esgoto da ..., facilmente se concluir que o presente litígio só pode ocorrer nos tribunais de jurisdição administrativa.- cfr. neste sentido douto Ac. do V.T.R.G. datado de 25-09-2012, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/e5be933578e9253a80257a98005157fa?OpenDocument.; e douto Ac. do V.T.R.G., datado de 19-05-2011, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/158816D37395C8D2802578B7003AECD3.

Assim, em face do exposto, julga-se procedente a exceção de incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da matéria, para a apreciação do litígio e, em consequência, absolve-se a ré da instância - cfr. art.ºs 96.º, al. a), 98.º, 99.º, 278.º, n.º 1 al. a) e 577.º, n.º 1, al. a, do C.P.C.».

Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, onde conclui nos seguintes termos:

1. Vem o presente recurso de apelação do(a) douto(a) espacho/sentença proferido(a) em 23/01/2023 nos autos supra, que entendeu, mais uma vez e com os mesmos fundamentos, julgar procedente a exceção de incompetência absoluta do Juízo Local Cível ..., em razão da matéria, para apreciação do litígio e, em consequência, absolver a Ré da instância, com a fundamentação aí expressa (e que já havia sido utilizada no douto despacho/sentença proferido(a) em 13/09/2022, o qual foi objeto do recurso datado de 27/09/2022) e que supra reproduzimos.

2. E, mais uma vez, não se conforma, a ora Recorrente, com tal decisão que, considera ser incongruente, contraditória, infundamentada e, acima de tudo, ilegal, salvo o devido respeito, entendendo que foram violadas as seguintes disposições legais: (1) artigos 4.º, n.º 1, alíneas g) e h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, artigos 64.º e 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, artigos 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

3. De facto, a própria decisão recorrida fundamenta desde logo a sua decisão na premissa que “A competência em razão da matéria, enquanto pressuposto processual, é aferida pelo objeto do processo, o qual é conformado pela pretensão do autor, que, assim, delimita o “thema decidendum”, acrescentando que, “Desta sorte, a competência afere-se pela estrutura da relação jurídica que se discute, nos termos em que é proposta pelo autor, considerando o pedido do autor e a causa de pedir em que o mesmo se baseia.”

4. E, apesar de todo o argumentado na petição inicial, devidamente documentado com os documentos aí anexos, a decisão recorrida, mesmo assim, veio erradamente (salvo o devido respeito) considerar que, o objeto do processo era a responsabilidade dos intervenientes na produção do acidente e, inclusive, a dinâmica do acidente. Note-se, a tal respeito, o que refere expressamente a douta decisão recorrida: “No caso em apreço, o autor reclama da ré seguradora o pagamento de uma indemnização resultante de um sinistro que teve como causa alegada a inexistência de uma “tampa de esgoto” na rua da cintura, em ... (sentido ... – ...). Com efeito, conforme alega, “o condutor do veículo da Autora ainda tentou desviar-se, mas sem qualquer sucesso, sendo que, a roda traseira direita do seu veículo caiu num buraco do saneamento, em virtude de não ter a respetiva tampa e o mesmo não estar sinalizado; tendo provocado, no veículo da Autora, os danos constantes do relatório de peritagem e que ascenderam ao valor de €577, 43, …”

5. Ora, a Recorrente alegou (artigo 6.º e 7.º da petição inicial), além do mais, na presente ação, que a Ré assumiu liquidar os danos da reparação do veículo e constantes do relatório de peritagem, conforme documentou através da junção do Doc. ... que, desde logo, anexou àquela PI. Alegou, ainda, no artigo 13.º daquela PI que, a Ré assumiu, de resto, a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente, conforme se apura do cheque emitido e supra referenciado como Doc. ..., das comunicações eletrónicas trocadas com o gestor de sinistros e que aí se juntaram como Doc. ..., ... e ....

«6. E, de facto, o Doc. ... supra citado e emitido pela Ré em 20/08/2020, vem expressamente referir que o pagamento aí referenciado diz respeito à reparação da viatura da Recorrente, sendo que, tal pagamento seria “…uma completa indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes do sinistro supra referenciado, pelo que quer o Segurador quer quaisquer outras pessoas cuja responsabilidade esteja a coberto do contrato de seguro titulado pela apólice em referência ficam exonerados do cumprimento de toda e qualquer obrigação com o mesmo sinistro relacionada.”, dizeres que, entretanto e porque estavam em causa a liquidação de outros danos (nomeadamente, a paralisação do veículo), a Recorrente não aceitou, conforme alegou na sua PI (cfr. artigo 7.º da PI).

7. De resto, tal assunção da responsabilidade pelo sinistro, depreende-se também e é, aliás, expressa, das comunicações eletrónicas trocadas entre as partes, nomeadamente, a correspondente ao Doc. ..., email datado de 15/09/2020, pelas 15.18h.

8. Aliás, a Ré, na sua contestação, assume a responsabilidade pelo pagamento e reparação dos danos do veículo (cfr. artigo 12.º daquela contestação) e não impugna sequer o Doc. ... supra citado (e/ou o seu teor) e junto pela Respondente na sua PI.

9. A menção, pelo Recorrente, à descrição do acidente na sua PI foi feita por mera estrutura e/ou organização do próprio articulado e com vista à junção de todos os documentos que sustentariam o pedido da Recorrente e, nomeadamente, o citado Doc. .... De facto, por mera cautela (e estrutura/organização do articulado, reitere-se) fez-se menção à descrição do acidente que, conforme se documenta, está já assumido pela Ré, não sendo, por isso, objeto do presente litígio ou sequer matéria para levar aos temas da prova e a qualquer discussão da matéria de facto, o que sempre determinaria a clara desnecessidade de se aferir da dinâmica do acidente.

10. Por tais factos, devidamente alegados e documentados pela Recorrente na sua PI e não contraditados pela Ré na sua contestação, é notório que, o objeto do processo – o qual é, como muito bem refere a douta decisão recorrida, conformado pela pretensão do autor, que, assim, delimita o “thema decidendum” – consiste apenas em aferir o valor da paralisação e desvalorização do veículo e, bem assim, outros danos que, entretanto, a Ré não liquidou, muito embora, reitere-se, tenha assumido a responsabilidade do acidente e tenha assumido a reparação do veículo. Assim, o objeto do processo é o valor da indemnização e jamais será a responsabilidade dos intervenientes na produção

do acidente ou até a dinâmica do acidente.

11. De facto, nos presentes autos, não se discute o acidente, os factos desse acidente ou a sua dinâmica. De facto, nos presentes autos, não se discute os responsáveis pela produção do acidente que, conforme se depreende dos documentos já juntos à PI, estão já definidos e vieram já assumir a responsabilidade daquele acidente.

12. Nesse sentido, veja-se toda a jurisprudência que vem decidindo sobre tal matéria e, nomeadamente, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos datado de 03/11/2020, disponível em http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/965ee8399a7e583a80258625004e4be4?OpenDocument) e que, muito bem, refere: “Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. ...4 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.

13. Assim, dúvidas não restam que, a douta decisão recorrida, apesar de fundamentar que, a competência em razão da matéria, enquanto pressuposto processual, é aferida pelo objeto do processo – o qual é conformado pela pretensão do autor, que, assim, delimita o “thema decidendum”, aferindo-se, tal competência, pela estrutura da relação jurídica que se discute, nos termos em que é proposta pelo autor, considerando o pedido do autor e a causa de pedir em que o mesmo se baseia –, veio, erradamente, considerar competente em razão da matéria os Tribunais Administrativos, em contradição com as premissas com que fundamenta a sua decisão.

14. É certo que, uma apreciação mais atenta da petição inicial do Recorrente, permitiria concluir que, o objeto do processo não é o acidente ou a sua discussão, não sendo, por isso, competente, em razão da matéria, o Tribunal Administrativo que, obviamente, seria chamado a discutir o acidente (se o mesmo estivesse a ser discutido), porque estaria em causa o Município .... Note-se e acresce que, a presente ação não foi sequer interposta contra o Município ..., já que, a Ré veio, de imediato e em sede extrajudicial, assumir a responsabilidade por aquele acidente. Aliás, entende até a Recorrente que, o douto despacho recorrido falha, inclusive, na pronúncia da própria legitimidade, já que, a entender-se que seriam os Tribunais Administrativos a discutir os presentes autos (o que não se concebe), sempre deveria haver pronúncia sobre a ilegitimidade, pois que, a ação não foi interposta contra o Município ... e apenas contra a Ré, quando, nesse caso, deveria ter sido interposta contra ambos.

15. Por todo o supra exposto, entende a Recorrente que a douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 4.º, n.º 1, alíneas g) e h) do ETAF, artigo 64.º do CPC e artigos 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da CRP.

16. Há, inclusive, uma manifesta contradição entre os fundamentos e a decisão recorrida, a qual determina, sem mais, a sua nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, nulidade essa que, desde já, se invoca e se pretende seja declarada.

17. Nestes termos, deverá, a douta decisão recorrida, ser revogada e declarada nula, pois violou o disposto nos artigos 64.º e 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, artigos 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da CRP e artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e h) do ETAF».

Termina pela procedência do recurso, declarando-se competente o Juízo Local Cível ....

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.

O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do C. P. Civil).

Nos recursos apreciam-se questões e não razões.
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II – FUNDAMENTAÇÃO

Submete-se a este tribunal a questão da competência material do tribunal para a presente demanda, que acima se delineou, curando-se, assim, de saber se a decisão que conclui pela procedência da excepção e pela incompetência material dos tribunais comuns é, ou não, de manter.

Como questão preliminar, cumpre também apreciar a invocada nulidade da decisão, por contradição entre os fundamentos e a decisão recorrida.

As causas de nulidade das sentenças e dos despachos, (ex vi artº 613º, nº3, do CPC) estão previstas no artº 615º do CPC. Assim:

1 - É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.

3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.

4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.

Como pode ler-se no Acórdão do Tribunal desta Relação de Guimarães, de 17/12/2018, Procº 1867/14.0TBBCL-F.G1, disponível em www.dgsi.pt:

“Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.

Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum.

Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.).

No que releva quanto à invocada contradição entre os fundamentos e a decisão, tem total pertinência o que, em acertadas palavras, se fez constar no acórdão da Relação do Porto de 24.04.2013, Procº RP201304241800/10.9TAVLG.P1 (dgsi), onde se disse que «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão. Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão».

Não é, manifestamente o caso dos autos, posto que toda a fundamentação exarada conduz, num percurso lógico-jurídico, à decisão, não se vislumbrando qualquer relação de incompatibilidade.

Improcede, por isso, a nulidade invocada.

Quanto ao mérito:

De acordo com a doutrina, a competência em razão da matéria determina-se pelo conteúdo da lide, tendo em conta o pedido e a causa de pedir – veja-se, por todos, Alberto dos Reis, no Comentário ao Código de Processo Civil, vol.I, pag.10 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag.88.

Também a jurisprudência se tem orientado no mesmo sentido, sendo exemplo disso o acórdão da RP de 08.04.02, publicado no respectivo “site”, onde se decidiu que “para responder a esta questão importa ter presente a pretensão formulada pela autora e os fundamentos em que a mesma se baseia...e deve olhar-se aos termos em que a acção foi posta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou direito para o qual se pretende a tutela jurídica, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)”.

Ou, mais recentemente mas sempre na linha que se tem como unitária, o acórdão do STJ de 22.10.2015, Procº 678/11.0TBABT.E1.S1, (dgsi), do qual consta que «o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da acção, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor» .

Nos termos do artº 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 20/2012, de 14/05, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.

Este normativo consubstancia-se numa transcrição dos artºs 202º, nº1 e 212º, nº3, da Constituição, o que implica que o artº 64º do Código de Processo Civil segundo o qual «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» “seja lido em conformidade com o citado artº 212º, n3º”, isto é, “de que a jurisdição comum do direito administrativo é a administrativa e que as causas juridico-administrativas só saem da esfera dos tribunais administrativos se uma lei dispuser (validamente) em sentido contrário” – Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol.I, pag.21, de Mário Esteves de Oliveira.

Nas palavras do Tribunal dos Conflitos, por acórdão datado de 07 de Outubro de 2010, este artº 212º, nº3, «consagra uma reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos. E o primeiro problema que a sua interpretação suscita é o de saber se a reserva é absoluta, quer no sentido negativo, quer no sentido positivo, implicando, por um lado, que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, por outro lado, que só eles poderão julgar tais questões. (...) é dominante a interpretação com o sentido de que a cláusula consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.

(…)Esta última linha de leitura, que não é repelida pelo texto (que não diz explicita e inequivocamente que aos tribunais administrativos competem apenas questões administrativas e que estas só a eles estão atribuídas) assenta na ideia de que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do nº3 do artº 214º foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos, tem sido acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional [vide, entre outros, os acórdãos n.º 372/94 (in DR II Série, n.º 204, de 3 de Setembro de 1994), 347/97 (in DR II Série, n.º 170, de 25 de Julho de 1997) e 284/2003, de 29 de Maio de 2003].

Não se vê razão para divergir desta interpretação.

Consideramos, pois, que o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas».

Portanto, não é pela mera circunstância de ser demandado um ente público que, por si só, afasta a competência da jurisdição comum, pelo que se impõe verificar se a causa, em concreto considerada, se subsume às normas especiais relativas à competência material da jurisdição administrativa.

Veja-se, pois, o que se dispõe no artº 4º do ETAF, relativo ao âmbito da sua jurisdição; dele se recolhe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;

k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;

l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade – sublinhado nosso

Volvendo ao caso concreto, verificamos que a situação dos autos é subsumível ao estatuído na alínea f) do artº 4º (Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público), sendo que a circunstância de tal entidade ter transferido a sua responsabilidade para a seguradora não afasta a competência dos tribunais administrativos, como ressalva o nº2 do preceito.

A decisão em crise, ao contrário do afirmado em sede de alegações, não se afastou da posição segundo a qual a competência do tribunal é aferida pelo objeto do processo, o qual é conformado pela pretensão do autor, que, assim, delimita o “thema decidendum”.

Foi justamente a partir dela que laborou juridicamente, como também agora se faz em sede de recurso.

Ora, o facto de a seguradora aceitar o evento e aceitar ressarcir (a medida da indemnização parece controvertida) e o facto de não ter sido directamente demandado o município não afastam, nem podem afastar, que a fonte da responsabilidade é a de um ente público enquanto tal e que essa responsabilidade, embora de natureza civil e extracontratual, vai alicerçar uma indemnização por danos decorrentes da sua actuação, enquanto ente público, no caso por omissão de conduta.

Não podem suscitar-se dúvidas que a manutenção das vias é um acto de gestão pública e que os danos decorrentes dessa actividade, ou ausência dela, constituem consequência, ainda, dessa prossecução de um fim público.

Tem razão, pois, o tribunal recorrido quando assim decidiu.

III – DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.

Custas pela apelante.