Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
193/12.4TABRG.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CORRUPÇÃO PASSIVA PARA ACTO ILÍCITO
ELEMENTOS TÍPICOS DO CRIME
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:

I - A impugnação (ampla) da matéria de facto exige a especificação das “concretas provas”, ou seja, que o recorrente refira o conteúdo específico dos meios de prova por ele indicados que não sustenta a decisão de dar o facto por provado ou não provado, relacionando esse conteúdo específico com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, de forma a demonstrar que tal conteúdo impõe decisão diversa da recorrida – que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum ou uma patentemente errada utilização de presunções naturais – e não, meramente, a ventilar a possibilidade de uma outra convicção.

II - Progressivamente, tem-se enraizado na consciência colectiva a sensibilidade para a necessidade de a gestão da aplicação dos bens públicos ser cautelosa e sujeita a estritos critérios de legalidade, bem como a noção de que, num Estado de direito, social e democrático, a assunção da realização do bem-estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, legitima o combate ao desperdício dos meios necessários a garantir a todos uma existência em condições de dignidade, incluindo através do recurso mais extremo à tutela penal das violações dos deveres mais relevantes.

III - Daí que o crime de corrupção (própria) passiva para acto ilícito, prevista no art. 372º do C. Penal, em vigor à data dos factos assacados aos arguidos (entre Outubro de 2008 e Fevereiro de 2011), actualmente designado de crime de recebimento indevido de vantagem, tenha adquirido uma fortíssima ressonância negativa na consciência comunitária, devendo salientar-se que «a necessidade de salvaguardar a confiança dos cidadãos numa administração pública que sirva com neutralidade, objectividade e eficácia os interesses gerais reclama que a sanção penal dê um sinal claro de “intransigência” perante a corrupção e a venalidade, desta forma acompanhando os sentimentos de repúdio da comunidade pelo fenómeno da corrupção».

IV - A esse crime subjaz a preocupação de proteger o património do Estado, mas também, e até sobretudo, a de garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, a intangibilidade da legalidade material da administração pública, através da probidade e da fidelidade do funcionário, por ele violada se transaccionar com o cargo, se colocar os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados.

V - Assim se vê que o tipo objectivo desse ilícito depende da verificação dos seguintes elementos: i) relativamente ao círculo dos possíveis agentes, que este seja funcionário (no sentido definido pelo art. 386º do C. Penal); ii) quanto à acção, que esta se traduza num acto de solicitação ou de aceitação; iii) em relação ao objecto da acção, que se trate de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial ou da sua promessa indevidas; iv) e sobre a natureza do acto ou omissão, a sua contrariedade aos deveres do cargo.

VI - Trata-se, pois, de um crime específico, em que o agente reveste a qualidade de funcionário, tal como definida no art. 386º do C. Penal, segundo um conceito amplo – diferente do de funcionário para efeitos administrativos – que abrange, designadamente, todas as pessoas que desempenham funções em organismos de utilidade pública, como é o caso de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tenha obtido o registo dessa qualidade (pessoa colectiva de utilidade pública).

VII - E, uma vez que os crimes cometidos no exercício de funções públicas traduzem sempre um desvio no exercício dos poderes conferidos pela titularidade do cargo, ou seja, «em vez de usados na prossecução dos fins públicos a que se destinam, são deslocados para a satisfação de interesses particulares ou privados, do agente ou de terceiro», a aludida vantagem (patrimonial ou não) destina-se à satisfação de interesses particulares, embora possa ter como destinatário o próprio agente ou um terceiro.

VIII - No que concerne ao preenchimento do respectivo tipo subjectivo, há que considerar que o dolo se desdobra nos chamados elementos intelectual – representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime – e volitivo – vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo, a que acresce um elemento emocional, que é dado pela consciência da ilicitude: «quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal».

IX - Com tal, exige-se, nomeadamente, que o agente saiba que desempenha funções em organismo de utilidade pública, praticando o facto criminoso no seu exercício e na prossecução do interesse público que justificou o reconhecimento da utilidade pública, ou seja, que saiba que está atingir o resultado ilícito que a comunidade repele e censura e, apesar disso, o queira. Ora, para que a ciência pelo arguido e a respectiva vontade de ofender essa qualidade (utilidade pública) do organismo se pudessem ter demonstrado, careceriam de ser expressamente mencionados na acusação, enquanto elementos da componente subjectiva do ilícito imputado, quanto ao conceito de funcionário, integrante do tipo do crime específico em análise.

X - O direito penal é um remédio extremo que tutela os valores essenciais da vida em sociedade, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, intrínsecos ao estado de direito, assumindo a natureza «de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revele digna de pena», pelo que a relevância penal das ofensas cometidas a tais bens jurídicos deverá ser imediatamente reconhecível, para além de aferida em função do contexto em que as mesmas ocorram, pois apenas se mostra legitimada a actuação estatal com o direito penal se o autor da ofensa tiver o repúdio manifesto da maioria da sociedade, exigindo-se, ainda, um patamar mínimo de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo aqueles princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade.

XI - Na verdade, um facto que seja acomodável pela colectividade não pode, ao mesmo tempo, produzir dano relevante a essa mesma colectividade, e, por essa razão, não pode, adequadamente, enquadrar-se num ilícito típico, ainda que, formalmente, assim o pareça: só é considerável relevante para o direito penal a conduta socialmente danosa, que atinge o meio em que as pessoas vivem, ferindo em elevado grau o sentimento de justiça e o senso de adequação social de um povo, estando, pois, excluídas da incidência típica as condutas que, em determinado contexto histórico, são socialmente toleradas e praticadas pela sociedade, mesmo que pudessem justificar uma qualquer espécie de crítica à luz de padrões que, noutros planos, também orientam a vida em comunidade, ou, ainda, que não sejam inteiramente normativas, por desrespeitarem regras administrativas ou, p. ex., de âmbito civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

Por sentença proferida e depositada a 17/10/2017 no referenciado processo do Juízo Local Criminal de Fafe da Comarca de Braga, os arguidos Solidariedade - Grupo Cultural e Recreativo X, IPSS, José e Maria foram absolvidos da imputação de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e. p. pelo artigo 372º, nº 1, do C. Penal (na redacção conferida pela Lei 108/2001, de 28/11) e, actualmente, designado de crime de recebimento indevido de vantagem, p. e. p. pelos artigos 372º, nº 1, e 374º-A, nº 2 e 3, do C. Penal (na redacção conferida pela Lei 110/2015, de 26/08) e 11º, nº 2, al. a).

Inconformado com a referida decisão, o Ministério Público interpôs recurso, cujo objecto delimitou com as seguintes conclusões:

«a. Na decisão recorrida entendeu-se que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não permite afirmar a infracção pela qual se encontravam acusados os arguidos José e Maria, dando-se, entre o mais, como não provado que:

- Desde Junho de 2008 que a arguida Maria fosse também responsável pela gestão e administração da IPSS arguida, cabendo-lhe tomar decisões sobre a admissão de utentes para o referido lar de idosos.
- Os arguidos tenham actuado em comunhão de esforços, e de acordo com um plano previamente traçado por ambos;
- Tenha sido decisão da arguida Maria solicitar o pagamento de um determinado montante monetário como contrapartida necessária de admissão dos candidatos a utentes ao Lar X, bem sabendo que tal acto não estava dependente desse pagamento.
- A arguida Maria, em representação da instituição arguida, agiu de acordo com o plano prévio traçado em conjunto o arguido José, e em execução de um único projecto criminoso.
- Bem sabiam os arguidos Maria e José que ao solicitarem a entrega das aludidas verbas no acto de admissão dos utentes do lar e ao embolsarem as mesmas em proveito e benefício da instituição arguida, praticavam actos proibidos e punidos penalmente».
b. São estes concretos factos que o Ministério Público considera incorrectamente julgados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal.
c. E estão incorrectamente julgados porque a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impõe afirmar o que originalmente constava da acusação, devendo, por isso, ser considerados provados, sem qualquer sombra de dúvida.
d. As provas que permitem esta decisão, que impõem a valoração de tal factualidade no sentido de a considerar provada, são as seguintes:

- os documentos juntos autos, mais concretamente: - o relatório do departamento de fiscalização do Norte do ISS de fls. 108 a 134; - documentos e recibos de fls. 135 a 149; - Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade e Segurança Social de fls. 193 a 207; - Despacho normativo n.º 75/92 de fls. 208 a 214; - Protocolos de cooperação de fls. 215 a 297 de onde consta expressamente, uma cláusula que impõe que “como condição de acesso aos equipamentos não é lícita a exigência de comparticipações no acto de inscrição ou no acto de ocupação da vaga em Lar”; - recibo n.º 246 de fls. 306; - contrato de prestação de serviços para Lar de Idosos de fls. 307 a 309; - recibo n.º 235 e 236 de fls. 365; - recibos n.º 244, 250, 242, 244 e 250 de fls. 416 a 422; - Estatutos da “Solidariedade - Grupo Cultural e Recreativo X - IPSS” de fls. 477 a 493; - Actas de reunião de direcção de fls. 494 a 517;
- as declarações da arguida Maria (temporização 0m04s a 1h00m18s); - as declarações do arguido José (temporização 0m10s a 29m20s da primeira gravação, 0m05s a 09m15s e 31m28s a 38m33s da segunda gravação do dia 25 de Outubro de 2016); - o depoimento da testemunha F. F. (temporização 1m50s a 10m22s); - o depoimento da testemunha S. A., Inspectora da Segurança Social (temporização 2m15s a 22m15s); - o depoimento da testemunha M. E. (temporização 1m33s a 10m51s); - o depoimento da testemunha A. S. (temporização 1m30s a 10m01s); - o depoimento da testemunha M. J. (temporização 1m45s a 4m30s); - o depoimento da testemunha M. C. (temporização 4m10s a 22m15s); - o depoimento da testemunha e demandante F. M. (temporização 0m54s a 8m40s); - o depoimento da testemunha T. M. (temporização 1m50s a 11m45s); - o depoimento da testemunha R. G. (temporização 1m20s a 22m02s); - o depoimento da testemunha A. J. (temporização 2m40s a 15m30s); - o depoimento da testemunha C. A. (temporização 4m20s a 43m00s); - o depoimento escrito apresentado em sede de inquérito por parte da testemunha M. C., constante de fls. 381 a 383, cuja leitura foi requerida e autorizada ao abrigo do disposto no artigo 356º, n.º 2, alínea b) e n.º 5, do Código de Processo Penal.
e. Valorada esta prova, devem ser dados como provados os factos constantes da acusação que a sentença recorrida desconsiderou, a saber:
(…)
f. Tal factualidade e a demais dada como provada faz incorrer os arguidos José e Maria, na prática em co-autoria, de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, previsto e punível pelo artigo 372º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao artigo 386º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, actualmente, designado de crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punível pelos artigos 372º, n.º 1 e 374º-A, n.º 2 e n.º 3, com referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, alterado pela Lei n.º 110/2015, de 26 de Agosto.
g. O arguido José actuou sempre com culpa e com plena consciência da ilicitude das suas condutas.
h. O arguido José tinha perfeito conhecimento do teor dos protocolos de cooperação celebrados com a Segurança Social, nomeadamente quanto à proibição da instituição a que presidia de exigir ou aceitar qualquer contrapartida como condição de acesso aos equipamentos no acto de inscrição ou no acto de ocupação da vaga em Lar.
i. O mesmo actuou sempre de forma sub-reptícia, procurando ocultar a verdadeira natureza das entregas monetárias. Veja-se, aliás, a preocupação em fazer constar dos respectivos recibos a errónea menção de “donativo”.
j. A arguida Maria tinha o domínio do facto criminoso.
k. Não obstante se interpor entre os arguidos uma relação hierárquica, da prova produzida resulta demonstrado a existência de um acordo, ainda que tácito, com vista à realização da acção típica.
l. Dúvidas não restam também de que a arguida Maria tomou parte directa na execução da conduta criminosa.
m. Por outro lado, sendo a arguida o elemento de ligação entre a instituição e os utentes, a sua actividade delituosa era indispensável à obtenção da finalidade pretendida.
n. Constitui ainda uma exteriorização do domínio do facto a circunstância de ter estado sempre na mão da arguida por fim à actividade delituosa, nomeadamente recusando-se a exigir aos utentes a contrapartida pela admissão ao Lar.
o. Em todo o caso, ainda que assim não se entenda, a actuação da arguida Maria sempre seria reconduzível ao conceito de cumplicidade.
p. Isto porque a actuação da arguida Maria nos autos sempre se constituiria como um auxílio físico (material), sendo a prestação do seu auxílio claramente possibilitadora ou facilitadora do facto principal cometido pelo arguido José.
q. A arguida “Solidariedade - Grupo Cultural e Recreativo X - IPSS” é criminalmente responsável pela prática do crime que lhe vinha imputado.
r. A exclusão de responsabilidade prevista no artigo 11º do Código Penal relativa às pessoas colectivas que actuem no exercício de prorrogativas de poder público, refere-se às regiões autónomas, às autarquias locais, às empresas públicas e quaisquer outras pessoas colectivas de direito público e entidades concessionárias de serviços públicos, sempre e apenas nas situações em que tenham agido com “poderes de soberania” delegados pelo Estado, o que não é o caso da entidade aqui arguida.
s. Ao decidir como decidiu, absolvendo a arguida “Solidariedade – Grupo Cultural e Recreativo X – IPSS” da prática do crime que lhe vinha imputado, incorreu o Tribunal a quo na violação do artigo 11º do Código Penal.
t. Na procedência do recurso, entende-se que a decisão recorrida deve ser revogada, sendo substituída por outra que, dando como provado os factos supra elencados constantes da acusação que a sentença considerou não provados, condene os arguidos José, Maria e “Solidariedade – Grupo Cultural e Recreativo X – IPSS” pela prática do crime de corrupção passiva para acto ilícito, actualmente designado de crime de recebimento indevido de vantagem que lhes vinha imputado.».

O recurso foi regularmente admitido por despacho proferido a fls. 1077.

Os arguidos responderam, pugnando pela improcedência do recurso quanto à alteração da matéria de facto, dizendo, em suma, que o Tribunal a quo valorou e ponderou adequadamente a prova produzida, respeitando os critérios legais e explicitando o processo de formação da convicção alcançada, devendo ser rejeitada a impugnação da matéria de facto porque o recorrente não cumpriu o ónus imposto nos termos do nºs 3, b), e 4 do art. 412º do CPP. Também concluíram que a qualificação jurídico-penal da factualidade dada como assente não merece qualquer censura, não se verificando todos os requisitos do crime, nomeadamente o seu elemento subjectivo. E, reportando-se à responsabilidade da primeira arguida, dizem que a mesma se encontra excluída em face do disposto no nº 2 do art. 11º do CP, por ser uma entidade colectiva no exercício de prerrogativas do poder público.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer defendeu a procedência total do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir em conferência as seguintes questões suscitadas no recurso, com o âmbito delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP):

– O erro de julgamento sobre os factos;
– O preenchimento dos elementos típicos do crime de corrupção passiva para acto ilícito, actualmente designado de crime de recebimento indevido de vantagem.
– A responsabilidade da pessoa colectiva.

Deve considerar-se como pertinente ao conhecimento do objecto do recurso a decisão recorrida sobre a matéria de facto, que a seguir se transcreve.

Factos provados:

«1) A arguida “Solidariedade - Grupo Cultural e Recreativo X” é uma Instituição Particular de Solidariedade Social – pessoa colectiva de utilidade pública – cujo registo foi lavrado na Direcção-Geral da Segurança Social pela inscrição n.º ..., a fls. 196 do Livro n.º 2 das Fundações de Solidariedade Social, efectuado a 13 de Maio de 1985, com o NISS ...0 e o NIF ...5.
2) A instituição arguida referida dispõe de acordos de cooperação celebrados com o Centro Distrital de Braga do I.S.S., I.P., para as respostas sociais que desenvolve, nomeadamente, Lar de Idosos.
3) Por sua vez, encontra-se adstrita à observância de normas legais e protocoladas para admissão de utentes ao seu lar de idosos, nomeadamente, o D.L. 119/83, de 25/02, que aprovou o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, o Despacho Normativo n.º 75/92, de 20/05, alterado pelo Despacho normativo n.º 31/2000, de 31.07, que veio estabelecer as normas reguladoras da cooperação entre os ex-Centros Regionais de Segurança Social e as IPSS, e, bem assim, os protocolos de cooperação de 2008 a 2012, celebrados entre o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social e Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, da qual é também membro a “Solidariedade – Grupo Cultural e Recreativo X”.
4) Na verdade, a instituição arguida celebrou em Junho de 2008, o Acordo de Cooperação com o Centro Distrital de Braga do I.S.S., I.P. para a resposta social de Lar de Idosos, sendo a capacidade do equipamento/serviço de 16 (dezasseis) utentes.
5) Por sua vez, a instituição arguida sempre celebrou e celebra, no Lar de Idosos, contratos de alojamento e prestação de serviços com os respectivos utentes/familiares.
6) Desde 05-11-2009, o arguido José exerce o cargo de Presidente da Direcção da instituição e a arguida Maria, pelo menos desde Junho de 2008 o cargo de Directora Técnica da instituição.
7) Desde 05-11-2009, o arguido José era o responsável pela gestão e administração daquela instituição e pela admissão de utentes para o referido lar de idosos, tendo delegado sob suas instruções em Maria o contacto pelos candidatos a utentes ao lar de idosos, bem como pelos familiares destes.
8) Sucede que o arguido, quando foi nomeado Presidente da Direcção da IPSS arguida, actuando em nome desta decidiu continuar a solicitar – como até ali feito pelo seu antecessor –, aquando da outorga dos sucessivos contratos com o utente e com os seus familiares, o pagamento de um determinado montante como contrapartida necessária de admissão do referido utente, bem sabendo que tal acto não estava da mesma dependente, inclusive atendendo ao constante dos pontos 13 do protocolo de 2008, ponto 14 do protocolo de 2009, ponto 15 do protocolo de 2010 e ponto 13 do protocolo de 2011 e 2012, protocolos referidos em 3).
9) A arguida Maria, em representação da instituição arguida, de acordo com prévias instruções dadas pela Direcção da IPSS arguida, na pessoa do arguido José, e em execução de ordens dadas por aquela, agiu do seguinte modo:
10) Em data não concretamente apurada do mês de Setembro ou Outubro de 2008, mas necessariamente anterior a 06.10.2008, data de admissão da utente R. F., a arguida Maria solicitou a F. F., filho da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia de €10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que foi paga em duas prestações, uma no valor de €5.000,00 (cinco mil euros) em 04.10.2008 e outra no valor de €5.000,00 (cinco mil euros) em 02.01.2009;
11) Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 12.01.2009, data da admissão do utente Francisco, a arguida Maria solicitou a F. M., neto do referido utente, além do mais, o pagamento da quantia de €12.500, quantia que lhe foi entregue;
12) Em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 01.06.2009, data da admissão do utente J. R., a arguida Maria solicitou a R. P. e a M. C., irmãs do utente referido, o pagamento de €15.000,00 (quinze mil euros), pagos em prestações, sendo uma paga em 01.06.2009 e outra paga em 30.12.2009, mediante transferência bancária em conta titulada pela instituição arguida;
13) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 03.02.2010, data da admissão dos utentes U. S. e F. R., a arguida Maria solicitou a T. M., sobrinha dos referidos utentes, além do mais, o pagamento da quantia de €22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros);
14) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 01.07.2010, data da admissão das utentes Ana e Rosa, a arguida Maria solicitou a A. J., filho e sobrinho das utentes referidas, respectivamente, além do mais, o pagamento da quantia de €12.000,00 (doze mil euros), por cada uma, sendo que o mesmo pagou €12.000,00 (doze mil euros) pela mãe, a qual tinha maiores problemas de saúde, e €10.000,00 (dez mil euros) pela tia, pagamentos que efectuou por cheque da sua conta n.º ...4, um datado de 07.07.2010 (cheque no valor de €10.000,00) n.º ...7 e outro de €12.000.00 n.º ...6, de 30.07.2010;
15) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 29.07.2010, data da admissão dos utentes Joaquim e Albina, a arguida Maria solicitou a R. G., filho dos utentes referidos, além do mais, a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), tendo este entregue a quantia de €27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentos euros), quantia que pagou por cheque, após o que lhe foi emitido o respectivo recibo;
16) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 06.10.2010, data da admissão da utente E. M., a arguida Maria solicitou a A. S. e a M. J., filho e genro da utente referida, respectivamente, além do mais, a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), o que, após solicitação do próprio, aceitou €12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), quantia essa que entregou por cheque, tendo sido emitido o recibo n.º 246, datado de 06.10.2009;
17) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 29.12.2010, data da admissão da utente E. C., a arguida Maria solicitou a Celeste, filha da utente referida, além do mais, a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), quantia que não chegou a ser entregue, dado que a utente faleceu dias depois da sua admissão;
18) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 24.02.2011, data da admissão da utente Lúcia, a arguida Maria solicitou a João, filho da utente referida, além do mais, a quantia de €4.000,00 (quatro mil euros);
19) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 27.02.2011, data da admissão do utente J. O., a arguida Maria solicitou a M. E., filha da utente referida, além do mais, a quantia de €15.000, tendo, após negociação, lhe ter sido solicitado pela referida arguida o valor de €10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que reputou como correspondente ao valor mínimo exigido.
20) Todas as quantias acima aludidas foram entregues à instituição arguida pelos familiares dos aludidos utentes, após terem sido solicitadas pela arguida Maria como condição de admissão dos mesmos na valência de Lar de Idosos, tendo aquelas integrado o património da referida instituição.
21) Por sua vez, os respectivos recibos foram emitidos e entregues aos aludidos familiares dos utentes constando na descrição dos mesmos a menção “donativo à instituição como contrapartida dos serviços prestados”, menção que não corresponde à realidade visto antes tratar-se de “donativo à instituição como contrapartida necessária ao ingresso no Lar de Idosos de X”.
22) Bem sabia o arguido José que ao ser solicitada a entrega das aludidas verbas no acto de admissão dos utentes do lar e ao embolsar as mesmas em proveito e benefício da instituição arguida, violava as cláusulas protocoladas nos acordos de cooperação.
23) Sabia, ainda, o arguido José que, ao actuar da forma descrita que se aproveitava das suas incumbências funcionais, para, em proveito da instituição que representava, obter, como obteve, as aludidas vantagens patrimoniais que bem sabia não serem devidas aquando da admissão dos utentes, agindo em violação ao despacho normativo identificado em 3).
24) Agiu o arguido José, na qualidade de representante legal da instituição arguida, bem sabendo que não podia solicitar donativos como contrapartida da prática de um acto que, estatutariamente, estava dependente da verificação de vários requisitos entre os quais, se não contava a doacção ou promessa de doacção.
25) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo o arguido José que a mencionada conduta violava o estatuto das IPSS e protocolos acima aludidos.
26) A arguida Maria actou sempre apenas no exercício das suas funções de Directora Técnica da IPSS arguida, da qual não era, nem nunca foi representante legal, sendo apenas uma trabalhadora administrativa com a categoria acima referida, sendo que a admissão de utentes e todas as condições dessas admissões, nomeadamente as referentes a donativos, pagamentos ou comparticipações sempre foram da exclusiva responsabilidade da Direcção, Presidida pelo Padre José, limitando-se a arguida Maria a comunicar as mesmas, seguindo, rigorosamente as instruções recebidas.
27) As decisões respeitantes à admissão ao Lar de Idosos da IPSS e o valor das contrapartidas pelas admissões de novos utentes exigidas a título de “donativo” cabiam, na prática, ao arguido Padre José, sendo do conhecimento dos restantes membros da Direcção, sendo esta um órgão colegial composto por Presidente (o aqui arguido José durante o período acima mencionado), Vice-Presidente, 1.º e 2.º secretários, tesoureiro e vogais.
28) Antes do arguido José quem exercia o cargo de Presidente da Direcção da instituição ora arguida era o Padre Ernesto.
29) As contrapartidas monetárias exigidas aquando do ingresso dos utentes acima referidos no Lar X reverteram a favor da IPSS arguida, contribuindo para o equilíbrio financeiro e sustentabilidade económica da mesma.
30) Ao longo do tempo, nem todos os utentes do Lar X ou seus familiares pagaram uma contrapartida pelo seu ingresso no mesmo.
31) A arguida Solidariedade - Grupo Cultural e Recreativo X - IPSS: - desde 24-09-2014 é presidida pelo Padre Carlos; - o balanço de 2016 deu um saldo negativo de €45.000,00; -actualmente acolhe 18 utentes no Lar de Idosos; - actualmente tem como receitas parte das reformas dos idosos acolhidos; donativos de fraca expressão e €130 mil euros anuais de apoios da Seg. Social, tendo como despesas anuais cerca de €400 mil euros; - emprega 25 pessoas; - tem como valências o Lar de Idosos; a creche; a Pré; ATL; apoio domiciliário e centro de dia; - É o único Lar de Idosos existente na comunidade de X; - do seu CRC nada consta averbado.
32) O arguido José: - é pároco há 44 anos e aufere um rendimento mensal de €600,00/€700,00; - é solteiro e não tem filhos; - vive em habitação particular, já paga; - como habilitações literárias possui o Curso de Teologia;- do seu CRC nada consta.
33) A arguida Maria: - é directora técnica e aufere mensalmente €900,00; - é solteira e não tem filhos; - mora sozinha, suportando a título de gastos com a habitação €140,00 mensais; - como habilitações literárias possui a licenciatura em Psicologia; - do seu CRC nada consta averbado.

Factos não provados:

(i) - Desde data não concretamente apurada, mas, pelo menos, desde Junho de 2008, que o arguido José exerce o cargo de Presidente da Direcção da instituição arguida.
(ii) - Desde Junho de 2008 que a arguida Maria fosse também responsável pela gestão e administração da IPSS arguida, cabendo-lhe tomar decisões sobre a admissão de utentes para o referido lar de idosos.
(iii) - Os arguidos tenham actuado em comunhão de esforços, e de acordo com um plano previamente traçado por ambos;
(iv) - Tenha sido decisão da arguida Maria solicitar o pagamento de um determinado montante monetário como contrapartida necessária de admissão dos candidatos a utentes ao Lar X, bem sabendo que tal acto não estava dependente desse pagamento.
(v) - A arguida Maria, em representação da instituição arguida, agiu de acordo com o plano prévio traçado em conjunto o arguido José, e em execução de um único projecto criminoso.
(vi) - Bem sabiam os arguidos Maria e José que ao solicitarem a entrega das aludidas verbas no acto de admissão dos utentes do lar e ao embolsarem as mesmas em proveito e benefício da instituição arguida, praticavam actos proibidos e punidos penalmente.
(vii) - Que a quantia entregue referida em 11) pertencesse ao demandante F. M., tendo a entrega mencionada lhe causado o respectivo prejuízo patrimonial.

Fundamentação da matéria de facto:

«A convicção do tribunal, no que concerne aos factos dados como provados, baseou-se, fundamentalmente, na apreciação crítica e conjugada da totalidade da prova produzida em sede de julgamento, à luz das regras da experiência comum e no confronto crítico das versões aqui apresentadas nos autos e respectiva consistência.

Vejamos.

1) Relatório do Departamento de Fiscalização do Norte do ISS (fls. 108 a 134);
2) Documentos e recibos (fls. 135 a 149);
3) Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade e Segurança Social (fls. 193 a 207);
4) Despacho normativo n.º 75/92 (fls. 208 a 214);
5) Protocolos de cooperação (fls. 215 a 297);
6) Recibo n.º 246 (fls. 306);
7) Contrato de Prestação de Serviços para Lar de Idosos (fls. 307 a 309);
8) Recibo n.º 235 e 236 (fls. 365);
9) Recibos n.º 244, 250, 242, 244, 250 (fls. 416 a 422);
10) Estatutos do “Solidariedade” ou Grupo Recreativo X (fls. 477 a 493);
11) Actas (fls. 494 a 517);
12) CRC´s dos arguidos;
13) Docs. juntos com a contestação e durante o decurso da audiência de discussão e julgamento;

A arguida Maria aceitou falar sobre os factos. Disse, em síntese, ser Directora Técnica do Solidariedade- Grupo Cultural e Recreativo X, tendo ingressado neste grupo ainda em finais de 2007 como estagiária, ainda no tempo em que era o Padre Ernesto o Presidente da Direcção do Grupo.

Mais disse que parte das suas funções passavam por atender interessados a ingressar no Lar ou seus familiares, entregando-lhe o formulário que ora se mostra junto aos autos (da lavra da sua orientadora de estágio), cumprindo apenas o que era decidido nas reuniões de Direcção em que não participava, não sendo os critérios de admissão de utentes da sua competência, nem dando qualquer parecer sobre a admissão ou não dos candidatos a utentes.

Mais disse que a entrega de dinheiro por parte de alguns utentes ou seus familiares ocorria a título de donativo, tendo pelo menos 4 utentes sido admitidos sem que qualquer donativo fosse entregue, sendo que a Seg. Social ia à instituição anualmente inspeccionar o grupo e nunca suscitou qualquer questão ligada a tais recebimentos até final de 2011 altura em que o grupo cultural recebeu instruções para retirar a questão dos donativos do formulário, sendo seu conhecimento que idênticos donativos ocorriam em outros Lares de Idosos como T e F, ignorando os seus exactos moldes.

Segundo a mesma os donativos não eram critérios de admissão pois a Direcção dava prioridade a pessoas com grande dependência e nunca tais montantes entregues e recebidos foram exigidos, sendo que se as pessoas assim falsamente o pensavam incorriam em erro delas próprias.

Mais soube dizer que a obra nova de construção da IPSS exigiu um grande investimento, passando a mesma algumas dificuldades, sendo que até 2009 quem à mesma presidia era o Padre Ernesto.

Disse ainda que eram os familiares dos utentes quem logo falavam de donativos pois sabiam as reformas do candidato a utente serem baixas, acrescentando a arguida que os seus familiares não eram carenciados, sentindo-se satisfeitos por estarem a contribuir de livre e espontânea vontade para a sobrevivência da instituição.
Também o arguido Padre José disse que quantos mais cuidados um utente precisava mais depressa entrava, existindo utentes que ingressaram e que nunca efectuaram qualquer donativo.
Disse que, sendo os donativos sempre bem-vindos e que remontavam já à Presidência do Padre Ernesto, não eram contudo condição de entrada, reconhecendo que a Seg. Social, na pessoa do Dr. R. B., a partir de certa altura exigiu que terminassem com esta prática pois poderia retirar os apoios protocolados caso tal situação continuasse, o que fizeram aumentando consequentemente a prestação mensal do lar, sendo que também nunca ninguém se dirigiu à Instituição a pedir o dinheiro entregue de volta.

Reconheceu conhecer as cláusulas dos Protocolos, tendo participado no de 2010, 2011 e 2012, sabendo que as contrapartidas não eram admitidas, sendo que quando ingressou na Presidência do Grupo Cultural não se apercebeu logo disso, nunca lhe tendo passado pela cabeça que tal era um ilícito, quanto mais crime, pensando ser legal a prática seguida.

Terminou dizendo que se as pessoas interpretam a entrega de dinheiro/donativos como requisito para entrar interpretam mal pois tal nunca foi critério de admissão.
Foi também ouvida S. A., inspectora a exercer funções no Núcleo de Fiscalização do Norte, a qual efectuou a Inspecção à presente IPSS em Set/Out 2011.

A mesma, em síntese, disse recordar-se de ter detectado a existência de indícios de entregas avultadas no ingresso de utentes no Lar de Idosos, contrariamente ao regime vigente para as IPSS, tenham ou não protocolo com a Seg. Social, o que verificou na contabilidade na “conta de proveitos” onde constam recibos de donativos, tendo então convocado familiares dos utentes para averiguar se se tratavam efectivamente de verdadeiras doações ou não, tendo ouvido 3 famílias, uma presencialmente e duas via telefónica, os quais terão confirmado que para entrar tinham pago €10.000,00, depois de inicialmente lhe terem exigido €15.000,00 que regatearam, sendo esse pagamento condição para os utentes serem admitidos.

Mais remeteu para o teor do relatório de fls. 5 e ss então elaborado, onde se conclui que apenas 3 utentes entraram sem “donativo”.

Disse ainda que mais de metade das receitas da IPSS vem de Acordos de Cooperação e que sem estes acordos a mesma não tem viabilidade financeira.
Reconheceu que noutras IPSS também se utilizaram estes “donativos” e que, tal como no presente caso, os utentes ou seus familiares ficaram convencidos que se não pagassem a admissão não seria aceite.
Ouvida M. E., filha do utente J. O., falecido há cerca de 2 anos, a mesma de forma isenta explicou ter tratado do acolhimento do seu pai no Lar de Idosos de X, tendo falado com a arguida Maria, a qual lhe terá dito que era preciso €15.000,00 para o pai ir para o lar, tendo a testemunha achado ser muito dinheiro, pois nem o pai, nem a testemunha tinham esse dinheiro, tendo falado com os irmãos, pelo que ofereceu €7000,00, tendo acabado por aceitar pagar €10.000,00 pois não tinham outra opção. Mais disse ter a ideia que a conversa se passou nos finais de 2010, tendo o pai ingressado em Fevereiro de 2011, já com o pagamento feito, o qual foi suportado entre os filhos entre si.
Referiu ainda que a arguida Maria lhe disse que se não pagassem o pai não entrava, tendo “feito um preço”, dizendo-lhe que “se quiser que vá para lá tem de dar de entrada €15.000”, o que encararam como condição de entrada, além da mensalidade devida, que aceitaram.
Ouvido A. S., filho da utente E. M. (já falecida), o mesmo explicou ter tratado da admissão da mãe no Lar de Idosos com a arguida Maria, a qual lhe disse que para a mãe entrar no mesmo teria de pagar €15.000,00 mais parte da reforma, tendo percebido que “se não desse, não entrava”, tendo conseguido que tal montante descesse para €12.500,00, após falar com os cunhados no Luxemburgo, o que foi aceite e pago com dinheiro da mãe, através de cheque pela altura da admissão.
Mais disse que ninguém lhe falou em donativo, que na realidade não era, pois se não fosse entregue a mãe não entrava.
Relatou ainda já ter ouvido falar que se dava dinheiro para entrar no Lar, que era prática darem dinheiro para esse efeito.
Ouvido M. J., genro da utente E. M. (já falecida), o mesmo veio globalmente corroborar o depoimento imediatamente anterior prestado pelo filho da utente, acrescentando que se ouvia dizer que naquele lar “era mais ou menos assim que estavam a pedir” e que por a sogra ter lá pessoas conhecidas é que terão descido para €12.500,00, só tendo falado com a arguida, sendo que o pagamento referido era condição para entrar, senão não entrava.
Ouvida R. P., irmã do utente J. R. (que ainda permanece no Lar de Idosos), a qual relatou que quem tratou da admissão do irmão ao Lar de Idosos foi a sua irmã M. C., a qual disse que apenas foi exigida a reforma do irmão para a entrada no Lar, tendo a testemunha em causa tido a iniciativa de dar um donativo para o Lar, o que a irmã também quis fazer, cada uma de €5000,00 por o seu irmão estar a ser bem cuidado no Lar, tendo pago do próprio dinheiro, tendo esta testemunha sido a primeira a efectuar o donativo.
Ouvida M. C., irmã do utente J. R. (que ainda permanece no Lar de Idosos), a mesma veio a revelar já algum esquecimento, fruto da sua avançada idade, achando que pagou €5000,00 por lho pedirem e não por ser donativo, pois não iria dar este montante como donativo, pois terá ficado com a ideia que se não pagasse este montante o irmão não seria recebido. Disse não ter tratado do assunto com a arguida Maria mas antes com a D. Berta, que ao que julga era Directora, que conhecia já do apoio domiciliário.
Foi autorizada em acta a requerida leitura das declarações da testemunha constantes de fls.381-383, para cujo teor integral se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido.
Ouvida T. M., sobrinha dos utentes U. S. e F. R. (já falecidos), a mesma explicou ter tratado da admissão ao Lar dos seus tios, pois já não havia vaga na SCM, tendo falado com a arguida Maria tendo a mesma lhe pedido uma doacção de €25.000,00 pela admissão dos tios no início, valor este que viria a descer para €22.500,00 após contra-proposta. Segundo a testemunha esta entrega não era uma obrigação expressa mas ficava subentendido que com a mesma os seus tios seriam acolhidos, o que veio a suceder, não sendo assim um verdadeiro donativo pois foi-lhe dado a entender que ou faziam um donativo ou os tios não entravam.
Foi autorizada em acta a requerida leitura das declarações da testemunha constantes de fls.345-347, para cujo teor integral se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido, declarações estas que foram prestadas ainda os tios estavam vivos, o que condicionou o que então disse com receio de que os seus tios pudessem sofrer represálias.
Ouvida a testemunha R. G., filho dos utentes Joaquim (já falecido) e Albina (ainda utente do Lar), o mesmo explicou que ele e o irmão trataram do acolhimento dos pais no Lar X (onde já se encontravam acolhidos os seus tios), tendo falado com a Drª Maria, tendo-lhes sido dito que teriam de pagar €30.000,00, que acabou reduzido para €27.500,00 por sua mãe ser uma pessoa com maior autonomia, sendo esse pagamento verdadeiramente imposto, era uma condição de entrada (“donativo forçado”), como nos tios, valor este que foi suportado pela família.
Ouvido F. F., filho da utente R. F. (já falecida), o qual tratou da admissão da mãe no Lar X com a arguida Maria, a qual lhe disse que para a mãe poder entrar tinha de dar uma entrada como donativo de €10.000,00, o que aconteceu, sendo esse dinheiro proveniente da conta do património da partilha do falecido pai.
Reafirmou que o pagamento era uma condição, senão a mãe não seria admitida pois o Lar tinha dificuldades financeiras, julgando que a arguida tinha ordens da Direcção do Lar para fazer tal exigência, tendo-lhe garantido que com o pagamento a mãe era admitida, não se recordando se lhe chegou inicialmente a ser exigida uma verba superior à depois paga, não tendo chegado a falar com o Padre.
Ouvido A. J., filho e sobrinho das utentes Ana e Rosa (já falecida), o mesmo explicou que a mãe e sua tia foram acolhidas em simultâneo no Lar X em Junho/Julho de 2010, tendo falado com a arguida para aquela admissão, sendo que lhe foi exigida a entrega de uma “jóia”, uma contrapartida pela admissão de cada uma, em valores diferentes de €12.000,00 e €10.000, respectivamente para a mãe e para a tia, tendo os pagamentos sido feitos através da emissão de 2 cheques, sendo o valor mais elevado para a mãe em virtude da demência e alzheimer que padecia.
Mais disse que inicialmente lhe disseram que só havia 1 vaga no Lar, mas que passado pouco tempo arranjaram vaga para as duas, pois lhe foi dito que com a entrega do dinheiro as duas seriam admitidas pelo que teve de fazer o “donativo” , até por o Lar da SCM não ter então vagas.
Acrescentou que a sua mãe, ainda viva, é muito bem tratada no Lar, tendo a sua tia falecido cerca de um mês e meio depois de entrar no mesmo.
Ouvido F. M., neto do utente Francisco, e aqui demandante civil, o mesmo explicou que todos os Lares onde foi (4) pediam um “donativo de admissão”, que se situava entre os €15.000,00 e os €18.000,00, a que chamavam de donativo mas que se tratava de verdadeira condição de acesso, sendo que também no Lar X tal sucedeu, tendo a arguida lhe solicitado um “donativo” de €15.000,00, tendo a testemunha pago €12.500,00 do seu bolso, pois alegadamente o seu avô não tinha condições de o pagar, e pedido ao pai para pagar o restante.
Mais disse que se tal pagamento não fosse feito, o seu avô, com quem tinha vivido, não seria acolhido ficando em lista de espera, sem pagamento, sendo verdadeira condição de admissão, a que teve de se render pois era prática corrente nos Lares de Idosos.
Mais disse que o seu avô tinha 2 filhos: o seu tio, sem posses e a sua mãe, que apenas contribuiu para a entrada com o que pode, neste caso €2500,00, tendo o seu avô ficado acolhido cerca de 7 meses.
A pergunta feita esclareceu ainda que o seu avô tinha na totalidade 4 netos, sendo o demandante o único que com ele vivia.
Foi autorizada em acta a requerida leitura das declarações da testemunha constantes de fls.412-414, para cujo teor integral se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido e confrontado com o teor do cheque de fls.141 e recibo de fls.238.
Ouvido Artur, tio do demandante e filho do utente Francisco o mesmo veio dizer ter sido aquele quem tratou da admissão ao Lar do pai da testemunha, sendo que segundo o mesmo “para ir para lá era preciso pagar”.
Disse ainda que o demandante vivia com o avô e era quem, juntamente com a irmã da testemunha tratavam do mesmo, o qual anteriormente ao Lar X já tinha estado acolhido no Lar de Y, onde também pagou o ingresso e de onde voluntariamente saiu, regressando a casa por falta de adaptação.
Disse ter sido o sobrinho quem no caso de X pagou tudo ou quase tudo pois os outros irmãos do demandante, também netos daquele, não teriam condições para o fazer, acabando o idoso por apenas permanecer no Lar cerca de 8 meses, tendo falecido.
Disse ainda que a irmã ajudou com €2500,00 no pagamento da entrada do pai no Lar X e não mais por não ter possibilidades económicas, achando que no anterior Lar quem terá suportado a despesa de entrada terá sido o seu cunhado, achando que foram entregues €10.000,00.
Questionado sobre as possibilidades económicas do demandante para arcar praticamente sozinho com este pagamento de entrada no segundo Lar, o mesmo esclareceu que o demandante, à data, trabalhava no restaurante do pai, onde ajudava em troca de um salário de €1000,00, sendo solteiro e sem filhos.
A pergunta feita respondeu que o seu pai chegou a ter uma conta solidária com a sua irmã, a pedido daquele pois receava morrer mas que nunca lá terá colocado dinheiro, pois seria perdulário, distribuindo o dinheiro que tinha por terceiros quase desconhecidos, que se aproveitavam daquele, sem que a família fizesse alguma coisa para o impedir.
Ouvido João, filho da utente Lúcia, ainda acolhida no Lar de Idosos de X, o mesmo explicou que sabendo da reforma muito baixa da sua mãe teve a ideia de dar alguma coisa ao Lar, falando com o seu irmão sobre isso e que terá perguntado que caso não tivesse dinheiro para dar se a mãe entraria na mesma, tendo-lhe então sido dito que a mãe teria o direito na mesma, tendo ainda assim dado €4000,00 de livre vontade e que se mais não deu foi por agora não ter possibilidades de o fazer, nunca nada tendo sido insinuado sobre obrigação de efectuar um donativo como condição de admissão da mãe no Lar. Esclareceu que vive de uma reforma de €750 e a sua esposa de uma reforma de €400, tendo dois filhos.
Foi autorizada em acta a requerida leitura das declarações da testemunha constantes de fls.423-424, para cujo teor integral se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido.
Ouvida Celeste, filha de E. C., utente do Lar já falecida, hesitando a mesma se os €10.000,00 que lhe foram solicitados aquando da admissão da sua mãe ao Lar, tinham consistido numa condição de entrada no mesmo ou se eram uma verdadeira doacção, reconhecendo ter pedido para pagar esse montante em duas prestações, tendo entregue um cheque que lhe foi devolvido pelo arguido atendendo às circunstâncias, pois a sua mãe faleceu pouco tempo depois de ingressar no Lar.
Foi ainda autorizada em acta as declarações da testemunha constantes de fls.425-426, para cujo teor integral se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido.

DEFESA

P. N., tesoureiro da IPSS arguida desde Setembro de 2014, o qual veio reafirmar que a aqui arguida é uma mera funcionária assalariada da Instituição, sendo a admissão de utentes decidida pela Direcção, não tendo aquela qualquer poder de decisão nesta matéria, não sabendo dizer o que sucedia no período anterior aqui em discussão.
Mais disse que nas reuniões da Direcção a arguida não está presente, excepto se num ponto ou outro solicitarem a sua comparência, tendo uma opinião profissional muito favorável da arguida, que considera empenhada e dedicada ao que faz.
Falou ainda da actual situação financeira vivida pela IPSS que considera frágil, passando por algumas dificuldades financeiras.
Abílio, Vice-Presidente da IPSS desde Novembro de 2014, o qual, em síntese veio corroborar que a arguida é uma mera funcionária da IPSS, subordinada à Direcção no exercício das suas funções, sendo aquele órgão colegial quem delibera os destinos da IPSS.
Mais relatou a vocação e o bom serviço prestado por ambos os arguidos à Instituição, a quem se dedicam com empenho.
Actualmente segundo o mesmo a IPSS vive com dificuldades e em termos gerais dá prejuízo.
M. A., voluntária na IPSS, a qual veio atestar que o arguido é bom sacerdote, humano e simples, estando ao lado dos que mais necessitam, assim como a arguida é boa funcionária e boa pessoa, vivendo a IPSS com algumas dificuldades financeiras.
Mais explicou que o aqui arguido assumiu funções de Presidente da Direcção da IPSS por inerência ao cargo de Pároco de X, não tendo sido eleito.
A. R., Secretário da Direcção desde Janeiro de 2014, o qual veio também dizer que a arguida não tem poder decisório designadamente no que concerne à admissão de utentes e definição de critérios de admissão, o qual cabe à Direcção, órgão colegial, presidido pelo arguido por inerência ao seu cargo de pároco, limitando-se aquela a receber os utentes ou seus familiares e fazer a ligação/ponte com a Direcção, sendo que existindo vagas e cumprindo os requisitos o candidato entra.
Disse ainda que actualmente a instituição tem mais despesas que receitas. Mais disse ter ocorrido uma reunião na qual a Seg. Social terá falado na alteração do que estava a suceder na Instituição pois poderia ser mal interpretado, não existindo actualmente quaisquer donativos.
Mais disse que quando surge uma candidatura ao Lar de Idosos se não há vaga, não há decisão e que se há vaga apenas se verifica se estão reunidos os requisitos de entrada, sendo a mesma admissão mais do que uma verdadeira decisão mais uma espécie de validação.
Ouvido Filipe, Vice-Presidente da IPSS desde a sua criação até 2011, o mesmo em síntese disse que o formulário utilizado pelos candidatos à admissão no Lar já existia ao que julga desde os tempos da Drª Patrícia, achando que o mesmo foi até aprovado pela Seg. Social, não merecendo durante muito tempo nenhum reparo, formulário este que já era utilizado ainda o Padre Ernesto, que faleceu em Outubro de 2009, era Presidente.
Mais disse que à data existiriam cerca de 500 habitantes em X e que nunca foi recusada a admissão a ninguém por não efectuar um donativo, pois isso não era condição de entrada, ninguém sendo obrigado a dar dinheiro para entrar, o que faziam de livre e espontânea vontade, sendo que desde que houvesse vaga entrava.
Quanto ao papel da arguida Maria o mesmo disse que aquela não decidia quem era admitido ou não, nem sequer dava o seu parecer, pois como mera administrativa limitava-se a apresentar o formulário ao candidato para ser preenchido numa entrevista e depois ser apresentado à IPSS.
A pergunta feita respondeu que estes donativos já remontavam ao tempo do Padre Ernesto, nunca tendo passado na cabeça de ninguém algum dia que esta prática fosse crime, estando convencidos que esta prática era legal, até por serem sujeitos periodicamente à fiscalização da Seg. Social e nunca ter sido suscitada qualquer questão durante muito tempo e quando o fizeram tal prática foi logo alterada.
Mais disse que pessoas foram aceites na Instituição no Lar de Idosos e que jamais efectuaram qualquer donativo, sendo a Direcção como um colectivo que resolver devolver um donativo efectuado perante o falecimento pouco após a admissão de um dos utentes.
Inquirido sobre a matéria disse ter a ideia que o Lar de Idosos era financeiramente sustentável só com a comparticipação do utente e da Seg. Social, sendo a valência da IPSS ligada às crianças quem apresentava prejuízos.
Ouvido Fernando, o qual pertence ao Conselho Fiscal da IPSS arguida desde 2015, o qual tem também a sua mãe acolhida no Lar X, o mesmo disse que para admissão da mesma (actualmente com 101 anos) falou com o Padre Ernesto, o qual faleceu em Outubro de 2009 sendo então chamado ao cargo o Sr. Padre José e desde 2014 o Sr. Padre Carlos.
Mais disse que a arguida Maria é uma mera técnica coordenadora, não estando presente nas reuniões da Direcção pois é uma mera funcionária.
Mais disse que não lhe exigiram nenhum dinheiro para a entrada da mãe no Lar de Idosos e ao que saiba a mãe também não terá feito nenhuma entrega de dinheiro, como entrada, sendo que se recorda que o Padre Ernesto fazia apelos na freguesia para auxiliarem no pagamento de empréstimos contraídos, tendo até a sua mãe ainda muito antes de entrar no Lar entregue €5000,00 àquele, que o Padre Ernesto quis devolver aquando da admissão no Lar da mãe da testemunha e que este não aceitou, transformando-se assim um empréstimo inicial numa doacção.

Quanto aos arguidos tem os mesmos em grande consideração, considerando-os de excelência, bom coração e muito competentes.
Ouvido A. D., tesoureiro da IPSS arguida de 2008-2013, o mesmo que conhece a IPSS arguida desde a sua criação disse em síntese que, a arguida Maria nesta matéria recebia Instruções da Direcção, tendo iniciado funções na Instituição como estagiária, lá acabando por ficar, nunca tendo feito parte da Direcção ou tomado quaisquer decisões, limitando-se a canalizar as candidaturas, cumprindo as ordens que lhe eram dadas, sendo que anualmente técnicas da Seg. Social se deslocavam à IPSS para fiscalização, acedendo a todos os elementos da IPSS, não tendo sido nem a Direcção, nem a arguida Maria os autores do formulário usado, nem nunca tendo sido apresentada qualquer queixa junto da IPSS por qualquer cidadão.

Não se recorda de alguma vez ter existido em simultâneo a apresentação de mais que uma candidatura e qual o critério de desempate usado, nem tem memória também de existir qualquer lista de espera, entendendo que o critério usado era a protecção dos mais desfavorecidos, aliás estão sempre permanentemente cativas duas vagas para situações extremas, que não podem ser preenchidas sem autorização da Seg. Social.

Disse também que muitas pessoas efectuaram donativo e não estão acolhidas no Lar, sendo que as pessoas que o fizeram e foram acolhidas sempre o seriam, tivessem efectuado o donativo ou não.
Avançou também que a expressão usada no recibo dos donativos seria orientação da própria Seg. Social, tendo numa reunião com o Presidente da Seg. Social o mesmo lhe dito que ele próprio teria efectuado um donativo para que um parente entrasse num Lar em Guimarães.

Mais disse que já no tempo do Padre Ernesto se procedia assim, sendo que de todas as quantias doadas se passava recibo, nunca tendo passado na cabeça de ninguém que esta prática corrente consistisse num crime até por ser puro voluntariado, não recebendo a Direcção nenhum dinheiro, empenhando-se os seus membros nos seus cargos por pura carolice, sendo que quando foi exigida pela Seg. Social a retirada da menção a eventual disponibilidade para donativos à Instituição tal foi imediatamente acatado, não devendo ser recebidos quaisquer donativos aquando da admissão mas antes ser efectuada uma revalidação das mensalidades em função das orientações da Seg. Social, o que também foi acatado.

Mais reconheceu ter existido um caso em que o dinheiro entregue como “donativo” na admissão foi devolvido pouco depois por a familiar da utente pouco tempo depois falecida o ter exigido.
Ouvido S. M., Vice- Presidente da IPSS arguida de 2011 a 2014, pai de Z. O., contabilista da IPSS desde 2010 até aos dias de hoje, o mesmo disse que a arguida Maria apenas cumpria decisões tomadas pelo órgão colegial, sendo uma mera Directora Técnica, pois a Direcção era quem dava ordens e a função dela era cumpri-las e fazê-las cumprir.

Declaro ainda que o formulário junto aos autos era utilizado na IPSS desde 2007/2008, ficando a constar dos processos de cada candidato, não tendo a Seg. Social em 2009 no relatório de fiscalização à instituição feito qualquer reparo.

Segundo o mesmo na cabeça da Direcção o critério do donativo nunca foi considerado embora as futuros utentes talvez pensassem isso, pois era prática generalizada estes donativos em todas as instituições, sendo vulgaríssimo, quer noutras IPSS, quer na própria SCM, sendo que lhe terá sido pelo Dr. R. B., alto responsável na Seg. Social que seriam das poucas instituições a não ter uma tabela, bem sabendo a Seg. Social o que ficava a constar do recibo, nunca tendo feito durante muito tempo qualquer reparo.

Mais sublinhou nunca lhe ter passado pela cabeça que estariam a violar a Lei, nem o Protocolo, nem o C.Penal, pois se assim fosse não o fariam, apenas tendo ficado sensibilizados para tal quando ocorreu a reunião com o Dr. R. B., tendo então deixado de aceitar os donativos.

Quanto ao donativo ser condição de entrada negou que assim fosse e que se as pessoas assim o pensavam era uma interpretação errónea da sua parte, até por terem sido acolhidas no Lar pessoas que não efectuaram qualquer donativo.
Ouvido Tiago, contabilista certificado, na impossibilidade de ouvir a contabilista da IPSS arguida, o mesmo, em síntese, auxiliou na interpretação dos elementos contabilísticos junto aos autos, fazendo como reparo que a classificação aí adoptada era muito genérica, bem como a demonstração de resultados, sendo que enquanto profissional se confrontado com um recibo com um descritivo ambíguo como os juntos aos autos falaria com a Direcção para agir em segurança e clarificar a situação.
Mais disse estarmos perante uma IPSS de média dimensão, a qual deve prestar contas anualmente junto da Seg. Social para efeitos de renovação do Estatuto de IPSS:
Foram ainda relevantes as declarações dos arguidos quanto às respectivas condições sócio-económicas.
Dito isto que apreciação crítica nos merece a globalidade da prova oferecida?
Pensamos que cabe deixar claro o raciocínio que nos merecem certos pontos centrais da matéria em discussão, a saber:

1. as entregas monetárias efectuadas melhor referidas na acusação, concernentes aos utentes/familiares aí mencionados foram ou não condição de entrada/admissão daqueles no Lar de Idosos?
2. os arguidos actuaram ou não com consciência da ilicitude da sua conduta, designadamente sabendo que incumpriam a lei estatutária das IPSS e os Protocolos celebrados e que eventualmente estariam em incorrer em responsabilidade criminal, conformando-se com esse facto?
3. o dinheiro entregue pelo aqui demandante era da sua propriedade?

Vejamos.

Questão

Nesta matéria, quanto a nós, procurou-se “tapar o Sol com a peneira” pois como se nos surge por demais evidente, caso os montantes referidos na acusação pública não tivessem sido entregues aqueles candidatos, em princípio, não seriam admitidos no Lar de Idosos excepto se ocorresse uma alteração inexpectável de circunstâncias, sendo que a entrega efectuada nada tinha de verdadeiro “donativo”, o qual deve ser feito de forma livre, espontânea e incondicionada, apenas se assemelhando a tal no facto desse montante reverter não para os bolsos particulares de alguém mas antes revertendo para a causa social desenvolvida pela IPSS.
Para se retirar tal conclusão, e mais do que um jogo de palavras que se possa fazer em torno dessas entregas monetárias (“donativo”, “condição”, “condição donatória”, “jóia”, “entrada”), o certo é que nestes casos aqui analisados (já que outras admissões ocorreram na IPSS, ainda que comparativamente poucas em relação às presentes, sem a entrega de qualquer contrapartida), estas entregas monetárias eram efectivamente uma condição de admissão no Lar de Idosos, pondera-se que:

- normalmente verdadeiros donativos (aqueles que não pressupõem a entrega de qualquer contrapartida) não assumem valores tão avultados, como €10.000 ou mesmo €20.000 ou mais, como ocorreu no caso dos autos, antes sendo mais conforme às regras da experiência comum e do normal acontecer, que mesmo que se entenda ser de auxiliar uma causa os valores entregues para a apoiar, por pessoas muitas vezes com salários medianos e em plena vida activa com o sustento de dependentes (designadamente os familiares do utentes ou mesmo os utentes e suas baixas reformas), ainda que sensibilizados para o apoio da causa o fizessem em montantes bem mais baixos e simbólicos e não tão excêntricos para meros actos de boa vontade;
-a oportunidade temporal em que foram efectuados, aquando da admissão do utente ou pouco depois, e muitas vezes depois de negociados pelo doador para um valor mais baixo e com pedido de pagamento em prestações também outra conclusão não deixa retirar que efectivamente os mesmos eram devidos pela entrada, sendo condição de preenchimento obrigatório e não facultativo, como bem percebiam as pessoas que os efectuavam, que melhor do que ninguém souberam interpretar o que lhes estava a ser pedido, quando eram abordadas nesse sentido, nem a interpretação podia ser outra, como bem deveriam saber os responsáveis pela gestão da IPSS;
- é certo que alguns dos familiares ouvidos em sede de julgamento apresentaram uma versão algo diferente da que prestaram no inquérito e cuja leitura de declarações foi autorizada em acta, contudo também facilmente encontra a explicação: muitos deles, à data em que foram ouvidos no inquérito ainda tinham familiares acolhidos no Lar X, que entretanto faleceram, sentindo agora maior liberdade para falarem sobre o sucedido por já não necessitarem dos serviços do Lar, nem temerem represálias por parte do mesmo, sendo que os que continuam com os seus familiares aí acolhidos sentem natural maior constrangimento em prestar esclarecimentos nessa matéria; por outro lado, a fase em que nos encontramos é outra pois existem já arguidos acusados, podendo as testemunhas ouvidas em sede de inquérito, tendo efectuado entregas de dinheiro avultadas aquando da admissão dos seus familiares no Lar ter tido eventual receio que pudessem também vir de alguma forma a ser responsabilizadas pelo efeito.
- não é co-natural às doações, uma vez efectuadas a sua devolução se de verdadeiras doações se tratarem, antes se percebendo que antes sendo uma contrapartida exigida para a entrada no Lar de Idosos, se o idoso pouco tempo depois de admitido faleça, como ocorreu num dos casos, tal montante seja devolvido ou não cobrado, pois é elevado e quem o entregou não recebeu contrapartida proporcional;
-depois a referência no próprio formulário de candidatura do candidato à admissão no Lar sobre a sua disponibilidade de efectuar um donativo em favor da instituição também não nos parece correcta ou feliz pois inegavelmente parece fazer a relação entre uma matéria e a outra, o que os responsáveis pela sua elaboração e utilização não podiam ignorar;
- antes se nos afigurou que sendo o utente carenciado mas os familiares nem tanto se entendeu por bem que os mesmos fossem obrigados a comparticipar na obra social que tinha sido erigida em favor de todos, à luz de uma espécie de “P. de utilizador pagador”, aproveitando-se da necessidade sentida pelos familiares para resolverem o acolhimento de um seu parente fragilizado para os obrigar a contribuir para uma causa que também os servia.
-depois pareceu ao Tribunal que a certa altura a discussão da causa passou a ser tratada como uma dualidade incompatível condição vs doação, quando não é tanto assim, antes se afigurando existir quase um tertuim genus: uma condição-doação. Com efeito, nestes casos foi sim uma condição de entrada do utente no Lar X a entrega de uma quantia monetária, a qual enquanto não fosse aceite entregar impediria a admissão do utente, fazendo recair assim maioritariamente sobre os seus familiares, numa situação menos carenciada em geral que o próprio utente, com reformas habitualmente baixas, o seu suportar e nessa medida era uma condição ou contrapartida exigida com a admissão mas tendo em conta que a mesma revertia para a própria IPSS, onde o idoso seria acolhido e não para o bolso particular de quem quer que fosse, acabava também por ser uma doacção a favor da causa social, ainda que lhe faltasse o carácter verdadeiramente livre e não condicional que caracteriza uma verdadeira doacção, mantendo apenas a bondade do destino social que lhe era dado.
Na verdade, sempre que à luz dos critérios da experiência comum as simples dádiva - considerados, de forma cumulativa, o seu exagerado valor e, por outro lado, as circunstâncias em que ocorreram ou as pessoas de que provieram - não se mostra justificável de outro modo, assumindo, inequivocamente, o significado de criar um clima de «permeabilidade» ou de «simpatia» para a admissão no Lar X e nestes casos condição sine quan non da mesma, pois os utentes, em geral com reformas baixas tinham uma rectaguarda familiar com algum conforto financeiro.

Questão:

Os arguidos actuaram ou não com consciência da ilicitude da sua conduta, designadamente sabendo que incumpriam a lei estatutária das IPSS e os Protocolos celebrados e que eventualmente estariam em incorrer em responsabilidade criminal, conformando-se com esse facto?
Quanto aos Estatuto das IPSS e Protolocos celebrados sendo actos escritos e até atenta a descrição aposta nos recibos das contrapartidas temos para nós como certa que o arguido tinham conhecimento das respectivas cláusulas que se encontravam ínsitas nos mesmos e a ser contornadas com o modus operandi descrito e algo generalizado no meio.
Já o mesmo não se pensa quanto ao facto de o arguido ou mesmo a sua funcionária arguida Maria terem noção que tal conduta, apesar de beneficiar a causa social e não ter aproveitamento patrimonial pessoal, ainda assim assumisse os foros de ilícito criminal.
Com efeito, não podemos olvidar o facto de estarmos perante um Presidente que é Padre de Vocação e que assumiu o cargo por inerência a estas funções, não sendo um gestor profissional, nem tendo um conhecimento profissional destas matérias. Quanto ao Protocolos os mesmos foram assinados pela Confederação das IPSS e embora o arguido José tenha dito conhecê-los apenas por alto e não de cor temos dúvidas que algum dia se tenha detido a lê-los ou que tenha feito a leitura mais correcta dos mesmos, pois parece-nos que acima de tudo seguiu uma linha de acção/modus operandi que já vinha sendo seguida pelo anterior Padre Ernesto, que ninguém terá posto em causa, nem o próprio arguido terá reflectido muito sobre essa matéria, sendo que quando foi alertado para a incorrecção dessa prática logo a corrigiu, antes se afigurando que o mesmo terá entendido que desde que as quantias recebidas fossem aplicadas na própria causa social da IPSS e não particularmente apropriadas sempre estaríamos perante uma doação atento o fim social que lhe era dado, subestimando o carácter livre e espontâneo desse acto, afigurando-se-nos assim que mercê de tal, ainda que mal, pensaria estar apenas a incumprir administrativamente a Lei Estatutária e os Protocolos de Cooperação, contornando as suas cláusulas em benefício do equilíbrio financeiro da IPSS mas que jamais terá-como pelo mesmo dito várias vezes em julgamento-imaginado que com esta conduta praticava actos com censura criminal, nos termos também infra melhor explicitados.

questão: Da propriedade do dinheiro entregue e peticionado no pedido de indemnização civil
Neste caso o Tribunal considera não ter o demandante feito prova cabal e suficiente de ser ele próprio o dono e proprietário da referida quantia entregue no Lar X, pois como bem se sabe normalmente os idosos sempre acumulam algum pecúlio monetário ao longo da vida para acorrer a despesas vindas na 3ª idade, e neste caso, o utente até chegou a ter a preocupação de também abrir uma conta em seu nome, não se afigurando assim credível quando a testemunha Francisco disse que apesar disso nunca dinheiro daquele ali foi colocado. Pergunta-se então porque se preocupou em abrir uma conta? Depois segundo o mesmo os rendimentos daquele utente foram alegadamente “desbaratados” com 3.ºs perante a passividade familiar, o que também dificilmente é compaginável. Mais difícil ainda se torna acreditar que o demandante, à data com um baixo salário, pese embora fosse empregado do restaurante/café dos seus pais, alegadamente tenha contribuído mais do que os mesmos no pagamento desta contraprestação, sendo certo que nem sequer era o único neto e familiar do utente, à data com dois filhos e vários netos vivos.
Assim sendo, pese embora o dinheiro entregue tenha saído de uma conta bancária do aqui demandante, tal não se nos afigura suficiente para afirmar que o mesmo, apesar de ser o titular daquela, fosse o proprietário do montante entregue, aí anteriormente depositado, montante este que poderia até porvir do próprio utente, seu avô ou de outros familiares deste e aí eventualmente depositados para o mesmo tratar com o Lar o seu pagamento (sendo certo que o mesmo não juntou o histórico do extracto bancário como solicitado pelos demandados a fim de melhor se aferir a origem do dinheiro aí depositado). Se assim o fez, sibi imputet.

Assim sendo, os factos não provados ficaram a dever-se a ter ficado demonstrado o contrário (vg início de funções de Presidência da Direcção pelo arguido Padre José) ou não se ter feito prova suficiente e cabal dos mesmos nos termos supra e infra melhor referidos.
Quanto à situação pessoal e financeira dos arguidos o Tribunal baseou-se basicamente nas declarações dos mesmos, as quais se afiguraram credíveis.».
*
1. O erro de julgamento.

O recorrente insurge-se contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, defendendo que ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto tida por não provada e que enuncia, porquanto, em seu entender, os elementos documentais juntos aos autos e a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento impunham que se considerasse tal matéria como provada e levaria à condenação dos arguidos.

Vejamos.

A par dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do CPP, o regime processual penal consagra uma segunda forma de impugnar a matéria de facto, através da invocação de erro de julgamento, a chamada impugnação ampla, nos termos previstos no art. 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), do mesmo código.

Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.

É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (1). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP (2). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (3).

O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.

Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objecto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo. Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº 3 do citado art. 412º.

A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado.
Note-se que, o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do nº 4 do citado art. 412º.

E daí que se reconheça não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (4).

E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.

Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.

É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (5). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (6).

É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (7), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».

Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (8).
E, como é evidente, é segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida.

É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto, como já se salientou, se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência, tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.

Com efeito, não podemos olvidar que de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta. Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (9).

Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, antes é livremente apreciada, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha (10), seja ou não vítima, de maior ou menor idade, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao depoimento do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

Por fim, sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se disse, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.

Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos da impugnação deduzida.

À luz do que acima expendemos, o recorrente não cumpriu, devidamente, o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulou. Basta atentar em que o recorrente, tendo identificado os concretos pontos de facto que impugnou – dizendo que os mesmos deveriam ter sido considerados como provados –, para tanto, apenas remeteu, genericamente, para documentos juntos aos autos e para depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, sem indicar as respectivas passagens concretas da gravação (11) e, sobretudo, sem cumprir a exigência legal de especificação das “concretas” provas, a qual só se satisfaria com a indicação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, ou seja, do conteúdo específico do meio de prova em que pretendeu basear a impugnação, bem como com o estabelecimento da necessária correlação entre o concreto meio de prova e o concreto ponto de facto que almejou contrariar. Com efeito, o recorrente, ao invés, distanciando-se do grau de exigência do recurso sobre a matéria de facto à luz do art. 412º do CPP, quedou-se por um mero arrazoado composto de comentários e considerações genéricas sobre o que suporia ser razoável o tribunal ter por provado.

Visando uma valoração autónoma das provas que o recorrente identificou, não obstante a registada deficiência da sua correlação com os concretos pontos de facto impugnados, confrontámos o juízo que foi realizado pelo tribunal a quo para formar a sua própria convicção sobre tais pontos com o resultado do exame a que procedemos dos meios probatórios aludidos no recurso bem como da audição dos demais depoimentos produzidos, conjugada com os elementos documentais juntos aos autos.

Esses exame e confronto crítico das versões aqui apresentadas permite, desde já, afirmar que a prova produzida sustenta, a plausibilidade do essencial do sentido obtido na decisão criticada no recurso, como passamos a concretizar, muito sumariamente.

A arguida Maria declarou que: enquanto directora técnica da instituição, não tinha qualquer poder de decisão sobre a admissibilidade dos utentes na valência do lar, cumprindo apenas o que era decidido pela direcção; apenas fazia o atendimento, âmbito em que entregava um formulário cujo teor não tinha sido da sua lavra, pois já antes de assumir tais funções o mesmo era adoptado na rotina para a admissão dos utentes; a prática era fazer um apelo à solidariedade – que as pessoas já tinham em mente por saberem que as pensões de reforma dos candidatos a utente serem baixas –, fazendo a entrega do que podiam, mas sem nunca lho ter exigido e, muito menos, como condição de entrada na instituição. Questionada sobre se não considerava elevados os montantes com que as pessoas supostamente queriam contribuir para a instituição, respondeu que lhe pareciam normais, mas sem deixar de admitir que, havendo vaga, os utentes cujos familiares ofereciam dinheiro acabavam por entrar de imediato na instituição. Referiu, ainda, que: ocorreu a admissão de alguns utentes no lar sem que qualquer “donativo” fosse entregue; tinha conhecimento de que idênticos “donativos” ocorriam em outros lares; e a S.Social regularmente inspecionava a instituição sem que alguma vez tivesse suscitado qualquer questão ligada a tais recebimentos até que (no final de 2011) deu instruções para que fosse posto termo a tal prática, altura em que as pessoas deixaram de contribuir com tais montantes.

Finalmente, a arguida também reconheceu que conhecia o teor dos protocolos, que enunciou, e, ainda, que indicava às pessoas valores para os “donativos”, dizendo-lhes que havia quem desse € 5.000, € 10.000 ou € 15.000.

O arguido José, não obstante ter reconhecido que conhecia os protocolos e que estes não consentiam a existência de contrapartidas para a admissão em lares das IPSS, disse que não se apercebeu logo disso quando assumiu a presidência da instituição e que pensava ser legal a prática que vinha sendo seguida, nunca lhe tendo passado pela cabeça que fosse crime. Confirmou que lhe cabia a ele a última palavra sobre a entrada ou não dos utentes no lar. E, sobre o mencionado “donativo”, disse que: apesar de se tratar de mera liberalidade, não era critério ou condição de entrada, embora admitindo que entraria o utente que tivesse entregado a maior quantia; nunca alguém pediu a sua devolução à instituição; a certa altura, terminaram com essa prática – e, na sequência, aumentaram a prestação mensal no lar – porque a S. Social (através do Dr. R. B.) o exigiu, pois poderiam ser retirados os apoios protocolados caso a mesma continuasse, tendo aludido ao risco em que incorreu o protocolo celebrado com a S. Social por causa das ditas práticas e de uma denúncia que entretanto fora feita.
Registe-se que este arguido não ofereceu qualquer explicação compatível com a configuração com que o dinheiro assim recebido emergiu nas suas declarações sobre a razão pela qual a instituição, tendo ocorrido a morte de um utente, procedeu à devolução do dito “donativo”.
A testemunha S. A., inspectora da S. Social que, em Set/Out 2011, efectuou uma inspecção à IPSS em questão – desencadeada na sequência de uma denúncia anónima sobre a actuação do tesoureiro desta –, em cuja contabilidade disse ter detectado recibos descritos como “donativos como contrapartidas de serviços prestados”, que eram constituídos por entregas, que classificou de avultadas, para o ingresso de utentes no lar de idosos, inscritas na conta de proveitos, o que contrariava o regime vigente para as IPSS – com ou sem protocolo com a S. Social –, tendo então ficado convencida, através da audição que fez de três familiares de utentes para averiguar se se tratavam efectivamente de verdadeiras doações, que os mesmos, depois de inicialmente lhes ter sido exigida a quantia de € 15.000 – que regatearam –, tinham realmente pago € 10.000, como condição para os utentes serem admitidos. Dessa averiguação, concluiu que as pessoas estavam convencidas de que teriam de pagar tal “donativo” para o utente ser admitido, sendo que apenas três o haviam sido sem o seu pagamento, e que mais de metade (cerca 66%) das receitas da IPSS provinha dos subsídios da S. Social, sem os quais a mesma não teria viabilidade financeira.
A testemunha informou, igualmente, que, naquela época, também outras IPSS – não todas – socorriam-se de tais “donativos”, sendo “convicção popular” que tal “entrada” era uma contribuição extra para as despesas de funcionamento dos lares de idosos e condição para a admissão dos utentes.
E da conjugação dos depoimentos das testemunhas F. F., M. E., A. S., M. J., M. C., F. M., T. M., R. G., A. J. e C. A., todos familiares dos utentes do lar e que trataram dos termos da sua admissão na instituição, resultou, com segurança, que os mesmos, com base nos contactos que então mantiveram com a arguida Maria, a pessoa que lhes transmitiu tais termos, perante o modo como estes lhes foram apresentados, formaram a percepção de que o dito “donativo” era uma contrapartida sem a qual não lograriam a admissão pretendida e que esta seria imediata, uma vez observada tal condição. Duas dessas testemunhas (A. S. e F. M.) afiançaram que era então prática corrente dos lares de idosos o pedido de um “donativo”, como condição de acesso, de montante próximo do que era inicialmente solicitado na instituição em apreço (€15.000).
Por sua vez, da generalidade dos depoimentos das testemunhas ouvidas e que tinham sido arroladas pela defesa extrai-se que: a arguida Maria era uma mera assalariada, sem qualquer interferência decisória em matéria de admissão de utentes; a associação tinha uma situação financeira frágil, – com mais despesas do que receitas; a aludida prática de admissão de utentes vinha já sendo seguida desde (2007/2008) antes de os ora arguidos assumirem funções na instituição, segundo um formulário já existente e utilizado para apresentar aos candidatos à admissão no lar, ficando a constar dos respectivos processos; nunca os responsáveis da associação admitiram que essa prática – seguida, em geral, nas demais IPSS – constituísse crime; passava-se recibo de todas as quantias doadas, para efeitos de renovação do estatuto de IPSS, a associação devia prestar contas anualmente junto da S. Social que efectuava a sua fiscalização periódica e, durante muito tempo, designadamente no relatório da fiscalização de 2009, não fez reparos a tal prática; quando tal sucedeu, a mesma logo foi alterada, procedendo-se a uma revalidação das mensalidades em função do acatamento das orientações da S. Social.

Perante tais elementos, parece-nos que apenas não são fundadas as afirmações, contidas na decisão impugnada, de não se ter provado que ambos os arguidos sabiam que a admissão de utentes não estava dependente da entrega das aludidas verbas à instituição e que a solicitação destas era proibida, por contrariar o estatuto das IPSS e os protocolos celebrados. Realmente, foi a própria arguida Maria quem, em consonância com os demais elementos colhidos, admitiu essa realidade, a qual, por assim ser, deve ser incluída na factualidade provada, para o que se decide alterar o respectivo item 25), que passará a ter a seguinte redacção:

«25) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a admissão de utentes não estava dependente da entrega das aludidas contrapartidas à instituição e que a solicitação destas era proibida, por contrariar o estatuto das IPSS e os protocolos celebrados e acima aludidos».

No demais, perante os aduzidos elementos, analisados criticamente e conjugados entre si e com o que já consta dos factos tidos por provados e não impugnados no recurso, com particular realce para os inseridos nos itens 7), 8), 9), 26) e 27) da concernente matéria, não vislumbramos qualquer fundamento para a discordância do recorrente quanto à decisão de ter por não provada a seguinte matéria de facto:

(ii) - Desde Junho de 2008 que a arguida Maria fosse também responsável pela gestão e administração da IPSS arguida, cabendo-lhe tomar decisões sobre a admissão de utentes para o referido lar de idosos.
(iii) - Os arguidos tenham actuado em comunhão de esforços, e de acordo com um plano previamente traçado por ambos;
(iv) - Tenha sido decisão da arguida Maria solicitar o pagamento de um determinado montante monetário como contrapartida necessária de admissão dos candidatos a utentes ao Lar X.
(v) - A arguida Maria, em representação da instituição arguida, agiu de acordo com o plano prévio traçado em conjunto o arguido José, e em execução de um único projecto criminoso.
(vi) - Bem sabiam os arguidos Maria e José que praticavam actos punidos penalmente, ao solicitarem a entrega das aludidas verbas à instituição arguida.

Com efeito, a decisão censurada, circunscrita à descrita materialidade mostra-se inteiramente congruente com a prova produzida quanto à natureza e grau de participação da arguida Maria nos factos atinentes à obtenção de contrapartidas para a admissão de utentes no lar, bem como à ausência do seu envolvimento no processo decisório à mesma conducente.

É verdade que esta arguida sempre foi o rosto da instituição, porquanto, como sua directora técnica, atendia os utentes, fornecia-lhes todas as informações, solicitava as quantias, sendo, até o elemento de ligação entre os utentes e o presidente e quem estava em melhores condições para conhecer os protocolos existentes. Tinha, em suma, um papel fundamental na concretização dos procedimentos até então mantidos pela associação e até pode ainda inferir-se que as habilitações de que dispunha para o exercício da sua profissão lhe imporiam que alertasse a direcção da instituição, em especial, o seu presidente para que fosse adoptada uma outra prática.

Porém, diferente questão é a do reconhecimento de que à arguida coube, por si só ou no quadro de um plano previamente traçado com o coarguido sacerdote José, tomar quaisquer decisões em matéria de admissão de utentes para o referido lar de idosos, designadamente a de solicitar o pagamento das aludidas contrapartidas. Tal como se apurou, as decisões respeitantes à admissão e ao valor dessas contrapartidas sempre foram da exclusiva responsabilidade da direcção, embora coubessem, na prática, ao seu referido presidente, actuando a arguida Maria sempre apenas no exercício das suas funções de trabalhadora administrativa (directora técnica) da IPSS, sob as prévias instruções e em execução de ordens dadas por aquele responsável pela gestão e administração da associação (cf. itens já mencionados).

Sendo esse o contexto da conduta da arguida Maria, teremos de concluir que a decisão impugnada não merece censura quanto a tal vertente dos pontos supra enunciados, por ser a que melhor se coaduna com o conjunto de todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente. E uma coisa é ventilar argumentos que sugiram a possibilidade de uma outra convicção, outra é demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, demonstrar que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum ou uma patentemente errada utilização de presunções naturais.

Mesmo que tais elementos não facultassem as expostas ilações quanto à matéria em apreço e existisse a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, sempre diríamos que seria de manter a decisão censurada por ser a que se mostraria mais favorável à arguida, por apelo ao aludido princípio in dubio pro reo, porquanto a proposta formulada pelo recorrente, fundamentalmente como corolário da apreciação que fez da prova, não colheria no caso em apreço mais do que uma dúvida na formação da convicção.

É o que pensamos suceder, igualmente, em relação ao facto, que vinha imputado a ambos os arguidos e que o recorrente pretenderia ver positivamente plasmado, respeitante à consciência de que a solicitação da entrega das aludidas verbas à instituição constituía acto punido penalmente.

É claro que, como se disse, o tribunal não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta e que, sendo o dolo da vida interior, ou, dito de outro modo, um facto do foro psicológico do agente – por isso, impossível de apreender directamente e indemonstrável de forma naturalística – o tribunal pode considerar provados os elementos que o integram por os deduzir ou inferir, fazendo uso das regras da experiência comum, de dados que, com muita probabilidade, os revelem, ou seja, de outros factos que com eles normalmente se ligam.

Porém, também neste âmbito, o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo à livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida: perante a persistência de uma dúvida razoável após a produção da prova, quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos relevantes para a solução da causa, exige-se uma pronúncia favorável ao arguido.
Na verdade, estamos em crer que a explicação avançada pelos arguidos, quanto a este particular aspecto, não poderia ser desconsiderada pelo tribunal, como acabou por não o ser, não só porque inexistem elementos de prova seguros que a contrariassem e os que, realmente, existem apontam no seu exacto sentido, como, subsistindo dúvidas, teriam que ser ultrapassadas com apelo a esse princípio basilar do direito penal e corolário da apreciação da prova: existindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, a decisão deve assentar na que se mostre mais favorável ao arguido.

Ora, como se viu, os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, não facultam, com solidez, as ilações expostas no recurso quanto este concreto ponto da matéria em apreço.

Não olvidamos que os arguidos tentaram fazer crer que as quantias entregues à associação eram verdadeiras liberalidades e não uma condição de entrada, patética estratégia ensaiada pela defesa, completamente em vão, perante a evidência dos factos, como a Sra. Juíza mostrou. Realmente, sendo ambos os arguidos dotados de habilitações de nível superior, que sentido fez que tenham tentado, na audiência, ocultar a verdadeira situação?

Todavia, emergem da prova produzida diversos dados que, lidos no contexto em que os factos ocorreram, se nos afiguram ser incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou o recorrente, não tanto por os próprios arguidos ou as testemunhas arroladas pela defesa terem afiançado que nunca os responsáveis da associação admitiram que a prática objecto dos autos constituísse crime ou que tal lhes tenha “passado pela cabeça”, mas porque entendemos que vários indícios apontam, com alguma segurança, para a possibilidade razoável de a explicação por aqueles avançada ser racional ou, enfim, uma solução alternativa plausível, diferente da sugerida no recurso.

Com esse sentido, registamos as seguintes ponderações:

Do procedimento adoptado na associação e do facto de os arguidos terem (ou deverem ter) conhecimento do teor dos estatutos, dos protocolos e dos acordos celebrados com a S. Social e de que, por isso, tal procedimento incumpria as regras administrativas consagradas nesses instrumentos não decorre, necessariamente, a ilação de que os mesmos tinham a consciência de que a solicitação da entrega das aludidas verbas à associação constituía acto punido penalmente. Assim é, particularmente, se era o equilíbrio financeiro da IPSS o desiderato prosseguido por aquele incumprimento, o que no caso sucedeu, tal como ressuma da prova produzida.

Se é certo que os arguidos designavam de “donativos” as quantias recebidas, contra a realidade, não o é menos que os mesmos não se procuraram rodear de quaisquer outras cautelas em tal procedimento e, sobretudo, não o dissimulavam, pois até o vertiam na contabilidade da associação, de modo transparente. Portanto, não pode afirmar-se, com propriedade, que os arguidos tivessem procurado ocultar, sub-repticiamente, as entregas monetárias.

As quantias monetárias em questão, enquanto contrapartidas exigidas aquando do ingresso dos utentes no lar, reverteram a favor da IPSS arguida, contribuindo para o equilíbrio financeiro e sustentabilidade económica da mesma (cf. item 29 dos factos), inferindo-se do conjunto da prova produzida que o suprimento das despesas de funcionamento do lar não era alcançado apenas com os subsídios da S. Social – pese embora o seu relevantíssimo alcance – e os contributos dos próprios utentes (percentagem da respectiva pensão de reforma).
Na época em que ocorreram os factos estava arreigada na consciência colectiva a ideia de que: idênticos “donativos” ocorriam em outros lares, sendo “convicção popular” que tais “entradas” eram uma contribuição extra para as despesas de funcionamento dos lares de idosos e condição para a admissão dos utentes; a aludida prática de admissão de utentes vinha sendo seguida há algum tempo tanto pela IPSS em causa como por outras; e até determinada altura, essa prática foi, objectivamente, consentida pela S. Social, pois não lhe fez reparos, não obstante a sua competência para fiscalizar periodicamente tais entidades.
Nesse contexto, pelo menos até ao momento em que se verificou a mencionada intervenção da S. Social, com vista a erradicar a prática violadora das regras administrativas consagradas nos referidos instrumentos, parece-nos muito duvidoso que os aqui arguidos, tal como quaisquer outras “normais” pessoas dotadas de uma recta consciência ética e social, tivessem concretizado a sua apurada conduta com a consciência da respectiva punibilidade penal, ou seja, com a noção da carga de censura ético-social imanente à proteção dos bens jurídicos mais relevantes, cuja violação justifica a resposta mais drástica do Estado: a imposição de uma sanção penal, determinada pela lógica coerciva mais forte de todos os ramos do Direito, aquele que tem sempre, ou quase sempre, no seu horizonte a privação da liberdade (12).

Assim, com a apontada ressalva, resulta da motivação, acima transcrita, da decisão sobre os factos constantes da decisão recorrida, uma indicação cabal dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção da Sra. Juíza e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. Para tanto, não se limitando a indicar os concretos meios de prova geradores do seu convencimento, revelou as razões pelas quais, apoiando-se nas regras de experiência comum, adquiriu, com apoio na imediação e na oralidade da produção de tais meios, a convicção sobre a realidade dos factos.
Dito por outras palavras, a Senhora Juíza fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeram em detrimento de outros.
E, conforme já exposto, concluímos que foi acertada a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência, pelo que, entendemos que a decisão impugnada apenas merece censura quanto ao ponto supra enunciado, pois nela se procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos, não se detectando qualquer outro pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pela Julgadora (com imediação (13)).

2. O crime de corrupção passiva para acto ilícito (actualmente, recebimento indevido de vantagem).

O recurso interposto pelo recorrente, para além de visar a decisão sobre a matéria de facto, tem ainda como escopo o reexame da matéria de direito, nele se sustentando a prática pelos arguidos do crime – de cuja imputação foram absolvidos – de corrupção passiva para acto ilícito, p. e. p. pelo art. 372º, nº 1, com referência ao artigo 386º, nº 1, al. c), do C. Penal (na redacção conferida pela Lei 108/2001, de 28/11), actualmente, designado de crime de recebimento indevido de vantagem, p. e. p. pelos arts. 372º, nº 1 (na redacção da Lei 4/2011, de 16/02) e 374º-A, nº 2 e nº 3 (na redacção da Lei 30/2015, de 22/04), com referência ao artigo 386º, nº 1, al. d) (na redacção da Lei 30/2015), e ao art. 11º, nº 2, al. a), do mesmo código.
É inegável a muito acentuada danosidade social da corrupção, por questionar e debilitar a autoridade estadual, minando as instituições e a democracia (14): «Ao transacionar com o cargo, o empregado público corrupto coloca os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da posição que ocupa, se “sub-roga” ou “substitui” ao Estado, invadindo a respectiva esfera de actividade. A corrupção (própria ou imprópria) traduz-se, por isso, numa manipulação do aparelho de Estado pelo funcionário que, assim, viola a autonomia intencional do último, ou seja, em sentido material, infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de direito, sempre têm de presidir ao desempenho de funções públicas”. Daí que a corrupção se reconduza a um crime de dano, já que “importa uma efectiva violação da esfera de actividade do “Estado”, traduzida numa ofensa à sua “autonomia intencional”.» (15).

Com efeito, progressivamente, tem-se enraizado na consciência colectiva a sensibilidade para a necessidade de a gestão da aplicação dos bens públicos ser cautelosa e sujeita a estritos critérios de legalidade. Cada vez é mais cabal a noção de que, num Estado de direito, social e democrático, a assunção da realização do bem-estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, legitima o combate ao desperdício dos meios necessários a garantir a todos uma existência em condições de dignidade, incluindo através do recurso mais extremo à tutela penal das violações dos deveres mais relevantes, que, assim se compreende que possam ser assegurados através da cominação de sanções criminais.
E, actualmente, também cada vez menos se ignora que a ninguém pode ser imposto, como condição de aceder a um serviço proporcionado pelo Estado – ainda que em parte e indirectamente – que efectue prestações não previstas na lei nem regulamentadas ou que resultem de decisão mais ou menos arbitrária de quem tem o poder de decidir sobre o acesso ao serviço.
Também se viu que os arguidos conheciam os requisitos estabelecidos pelo Estado (em sentido amplo) para que os particulares pudessem ter acesso aos bens proporcionados pela comparticipação dos dinheiros públicos e que, em tais termos, não era por estes devida qualquer contrapartida monetária para o efeito e muito menos se não tivessem possibilidades para o fazerem.
Todavia, do que aqui se trata é saber se a factualidade assente integra a tipicidade do referido crime de corrupção passiva para acto ilícito, que «adquiriu uma fortíssima ressonância negativa na consciência comunitária», como lembrou, o Ac. do STJ de 18-04-2013 (16): «A necessidade de salvaguardar a confiança dos cidadãos numa administração pública que sirva com neutralidade, objectividade e eficácia os interesses gerais reclama que a sanção penal dê um sinal claro de “intransigência” perante a corrupção e a venalidade, desta forma acompanhando os sentimentos de repúdio da comunidade pelo fenómeno da corrupção… dos “sentimentos difusos” do domínio da corrupção na vida pública que se instalaram na comunidade e, por outro lado, da acrescida “consciência” e exigência, por parte da comunidade, de que as funções públicas estejam ao serviço do “bem comum”.».
Na interpretação de qualquer norma incriminadora é essencial descortinar, para além do bem jurídico protegido, o valor ou conjunto de valores, mas também as realidades ontológicas que o legislador pretendeu tutelar ao fazer corresponder a um comportamento uma sanção penal (17). O que implica, desde logo, atentar na inserção sistemática no C. Penal do referido tipo legal e no modo como este é aí descrito.

Por essa via se constata, liminarmente, que o ilícito em causa, cometido no exercício de funções públicas, tutela interesses públicos: o crime de corrupção é um ilícito contra tais interesses, cometido por funcionário e no exercício das respectivas funções. Ao que acresce resultar daquela descrição, não apenas a preocupação de proteger o património do Estado, mas também, e até sobretudo, a de garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou, por outras palavras a intangibilidade da legalidade material da administração pública, através da probidade e da fidelidade dos funcionários.
O concreto bem jurídico protegido no crime de corrupção aqui em causa é a autonomia intencional do Estado, sendo que num Estado de Direito o desempenho de funções públicas tem de se pautar por exigências de legalidade, objectividade e independência, que o funcionário infringe ao colocar os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados quando transaccionar com o cargo» (18), normalmente, segundo a percepção comunitária do crime, movido pela «ganância» dirigida ao enriquecimento, seu ou de outra pessoa. «Consistindo o bem jurídico na autonomia intencional do Estado, a correspondente violação ocorre logo que se depare com uma declaração de vontade do empregado público que evidencie a inequívoca intenção de mercadejar com o cargo, i. e., de “vender” o exercício de uma actividade (lícita ou ilícita, passada ou futura) compreendida nas suas funções ou, pelo menos, nos seus “poderes de facto”.» (19).

2. 1. O tipo objectivo.

De entre as (três) modalidades de corrupção passiva do regime em vigor à data dos factos assacados aos arguidos (cf. arts. 1º e 2º do C. Penal), fora a estes imputada a designada por corrupção própria, prevista no citado art. 372º que, sob a epígrafe «Corrupção passiva para acto ilícito», dispunha:

«1 - O funcionário que por si, ou por interposta pessoal, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos».

Assim se vê que o tipo objectivo deste ilícito depende da verificação dos seguintes elementos: relativamente ao círculo dos possíveis agentes, que este seja funcionário (no sentido definido pelo art. 386º do C. Penal); quanto à acção, que esta se traduza num acto de solicitação ou de aceitação; em relação ao objecto da acção, que se trate de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial ou da sua promessa indevidas; e sobre a natureza do acto ou omissão, a sua contrariedade aos deveres do cargo.
E, como se constata, em tal modalidade, exige-se a prova do acto ilícito com o qual o agente público pretende mercadejar com o cargo, i. é, a demonstração da contrariedade do acto ou omissão aos deveres do cargo, não se prescindindo de um certo grau de prova do concreto acto ilícito que a vantagem visaria compensar (20). É certo que, com a alteração introduzida ao referido art. 372º pela citada Lei 108/2001, «foi eliminada a referência à “contrapartida” do acto em face da vantagem solicitada ou aceite pelo funcionário, com o que o legislador pretendeu afastar a indispensabilidade do sinalagma entre a conduta do funcionário e a do corruptor», conforme concluiu o acórdão da RL de 15-11-2011 (21), que acrescentou:

«Para que se verifique a consumação do crime não se mostra necessário que o acto seja praticado, não se exige a proporcionalidade entre o valor do suborno e o valor ou importância do acto e não é elemento essencial a existência de um acordo expresso para a adopção de uma conduta já perfeitamente determinada de forma precisa em todos os seus aspectos, até porque é também incriminada a corrupção subsequente, em que o funcionário no momento da prática do acto não perspectivava pedir ou aceitar uma vantagem, nem esta lhe tinha sido oferecida, pelo que afastada está também a concepção que reporta o suborno a critérios de causalidade adequada. Aquele preceito incriminador continua a exigir a demonstração de uma qualquer relação entre o contributo do corruptor (a vantagem) e o do funcionário, a prática de um acto conexionado, implícita ou explicitamente, com as suas funções (já praticado ou a praticar».
Ademais, como esclareceu o supracitado acórdão do STJ, «A vantagem ganha relevância típica desde que motive ou seja idónea a motivar a actuação do funcionário; o que conta é que o funcionário, motivado por essa vantagem, ponha à disposição de um concreto particular as atribuições que lhe foram conferidas para servir os interesses gerais. Em vez de actuar com uma substancial neutralidade e objectividade na prestação do serviço público o funcionário, motivado pela vantagem, fomenta os fins privados.».
Há, em qualquer caso, interesse lucrativo do funcionário nos actos em que, por virtude da função, intervém (negócios com a função pública em que o titular, por força do seu cargo, tem poderes decisórios). Mas, a vantagem (patrimonial ou não) poderá ter como destinatário o próprio agente ou um terceiro e destina-se à satisfação de interesses particulares (os crimes cometidos no exercício de funções públicas traduzem sempre um desvio no exercício dos poderes conferidos pela titularidade do cargo, ou seja, «em vez de usados na prossecução dos fins públicos a que se destinam, são deslocados para a satisfação de interesses particulares ou privados, do agente ou de terceiro» (22)).

Por fim, ao contrário do que sucede com a generalidade das normas incriminadoras, que não exigem qualquer elemento típico referente ao agente, podendo ser sujeito activo do crime qualquer pessoa, a ora em apreço, como já se disse, dá origem a um tipo (de ilícito) especial, em que se verifica uma restrição do círculo dos possíveis agentes, porquanto o dever específico que constitui o núcleo definidor do crime «só vincula certas pessoas e cuja violação é sancionada plenamente no tipo respectivo» (23).
Trata-se, pois, de um crime específico, em que o agente reveste uma determinada qualidade, qual seja a de funcionário, tal como definida no art. 386º do C. Penal, segundo um conceito amplo – diferente do de funcionário para efeitos administrativos – «e, cada vez mais amplo como resulta das sucessivas alterações legislativas» (24), que abrange, designadamente, todas as pessoas que desempenham funções em organismos de utilidade pública (25). Qualidade que a arguida pessoa colectiva – Instituição Particular de Solidariedade Social – dispunha por ter sido obtido o respectivo registo.

Com efeito, a expressão “funcionário” abarca quem desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar, sem que a natureza privada ou pública do ente colectivo constitua, de modo algum, critério para a delimitação pelo legislador do conceito penal de funcionário, dado que o citado artigo – nomeadamente no segmento referente aos «organismos de utilidade pública» – não exclui do seu âmbito as pessoas colectivas de direito privado.
A garantia que a lei fundamental confere à propriedade dos meios de produção cobre – a par dos sectores público e privado – o sector cooperativo e social, que compreende, além do mais, especificamente, os meios de produção possuídos e geridos por pessoas colectivas, sem carácter lucrativo, que tenham como principal objectivo a solidariedade social, designadamente entidades de natureza mutualista (26). E também é sabido que o Estado, na prossecução de interesses públicos fundamentais, cada vez mais e mediante variados esquemas, recorre à cooperação com estas pessoas de direito privado, nas quais delega a gestão dos fundos públicos que lhes vai transferindo para tal prossecução.
Esses organismos de utilidade pública, embora possuindo natureza privada, prosseguem fins não lucrativos de interesse geral, cooperando naquela prossecução de forma relevante com o Estado – em sentido amplo – ao ponto de merecerem deste o reconhecimento (declaração) de utilidade pública.
Por conseguinte, salvo o devido respeito, dir-se-á que a razão fundamental para a noção (cada vez menos) restrita consagrada pelo legislador na definição penal de funcionário está intimamente ligada às utilidades desempenhadas por tais organismos e à preocupação em evitar que os bens afectos à prossecução de fins públicos não sejam destes alienados, para satisfação de interesses de quem tem domínio sobre eles (27).

2. 2. O tipo subjectivo.

No que concerne ao tipo subjectivo, na verificação do respectivo preenchimento, há que ter em consideração que o dolo se desdobra nos chamados elementos intelectual – representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime – e volitivo – vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo (28). Aos elementos intelectual e volitivo acresce um elemento emocional, que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude (29): «uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas (…) quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal» (30).
Nesta vertente, como refere Almeida Costa, (ob. cit, p. 672), «o dolo esgota-se no conhecimento e vontade de obtenção de uma vantagem ilegítima (patrimonial ou não patrimonial) como contrapartida de um comportamento violador dos deveres do cargo. Em conformidade, desde que o agente solicite ou aceite um tal suborno (ou a respectiva promessa), verifica-se o preenchimento do tipo subjectivo, mesmo que não esteja nas suas intenções praticar o “acto de serviço” que a peita visa remunerar.».
«No que respeita ao tipo subjectivo, o dolo esgota-se no conhecimento e vontade de obtenção de uma vantagem conexionada com um comportamento violador dos deveres do cargo. Em conformidade, desde que o agente solicite ou aceite um tal suborno (ou a sua promessa), verifica-se o preenchimento do tipo subjectivo, mesmo que não esteja nas suas intenções praticar o “acto de serviço” que se visa remunerar, pois a consumação não requer nem o efectivo recebimento do suborno nem, muito menos, a realização do acto.» (31).
Concordamos com o entendimento de André Ferreira de Oliveira: «Essencial para que possamos afirmar (pelo menos) formalmente possível a punição de um comportamento ex vi art. 372.º CP é que esteja em causa a pretensão de introduzir uma indevida influência no processo decisional do “funcionário” ou um aproveitamento por este do estatuto de suas funções para a obtenção de uma vantagem que, à luz de critérios de normalidade (que não apenas jurídica), não seria devida» (32).
Acresce que o ilícito «pressupõe a existência, para além do dolo, que tem por referência todos os elementos do tipo objectivo, de um elemento subjectivo especial que se traduz numa determinada conexão do comportamento objectivo do agente com a prática de um acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, compreendidos na sua competência funcional ou nos poderes de facto dela decorrentes» (33).

2. 3. O preenchimento de tais elementos típicos.

À luz de tudo o que expusemos, consideramos que não se retira da factualidade assente a integralidade dos acima enunciados elementos típicos do ilícito, tanto os objectivos – quanto à natureza do acto (a sua contrariedade aos deveres do cargo) e ao objecto da acção (vantagem, patrimonial ou não, indevida) –, como o subjectivo. É o que passamos a concretizar.
A única contrariedade aos deveres do cargo que, segundo a factualidade apurada, inquinou as admissões de utentes que naquela vêm concretizadas foi a que se prendeu com a solicitação dos designados “donativos”: o arguido padre José sabia que violava as cláusulas protocoladas nos acordos de cooperação, ao ser solicitada a entrega das aludidas verbas no acto de admissão dos utentes, e que não as podia solicitar como contrapartida da prática de um acto que, estatutariamente, estava dependente da verificação de vários requisitos entre os quais, se não contava a doação ou promessa de doação (itens 22 a 24).

Porém, não se retira daí – como já se não retirava da factualidade imputada na acusação – a afirmação de que aquela solicitação foi feita para decidir o internamento no lar de candidatos que não preenchiam os requisitos para serem admitidos, ou seja, de que, se não se colocasse a questão do “donativo”, os utentes não teriam sido, realmente, admitidos, por não reunirem os requisitos para tal impostos. Ora, para a integração da dita tipicidade, não podem os motivos de tal “contrariedade” repousar apenas na “solicitação ou aceitação de vantagem” pela óbvia razão de esta constituir também um outro elemento da mesma tipicidade.

É claro que, perante tal constatação, poderia suscitar-se a indagação sobre se não se justificaria o desencadeamento do mecanismo previsto no art. 358º nºs 1 e 3 do CPP, com vista a apurar se a conduta em questão não seria idónea a integrar a tipicidade do ilícito p. e p. pelo art. 373º vigente na data dos factos (crime de corrupção passiva para acto lícito) e do actualmente p. e. p. pelo art. 372º nº 1 (na redacção da Lei 4/2011, de 16/02), designado crime de recebimento indevido de vantagem, com a subsequente actuação do disposto no art. 2º, nº 4 do C. Penal.
Entendemos que assim não é, não se justificando o recurso a tal mecanismo porque, de todo o modo, como já referimos, também se não verificaria o elemento típico do ilícito atinente ao objecto da acção, pelas razões que agora sintetizaremos.

Por vezes, assomam entre nós umas conhecidas pulsões para vislumbrar a existência de crime em todo o lado, bem como para a expansão do direito penal, sugerindo o uso da sua “artilharia pesada” contra toda e qualquer conduta que atice alguma censura ético-social, seja esta de que tipo for. Não obstante, continua a ser largamente consensual que este ramo do direito é um remédio extremo que tutela os valores essenciais da vida em sociedade, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, intrínsecos ao estado de direito, assumindo a natureza «de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revele digna de pena» (34).

Por isso, a relevância penal das ofensas cometidas a tais bens jurídicos deverá ser imediatamente reconhecível, para além de aferida em função do contexto em que as mesmas ocorram, pois apenas se mostra legitimada a actuação estatal com o direito penal se o autor da ofensa tiver o repúdio manifesto da maioria da sociedade, exigindo-se, ainda, um patamar mínimo de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo aqueles princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade.

Na verdade, um facto que seja acomodável pela colectividade não pode, ao mesmo tempo, produzir dano relevante a essa mesma colectividade, e, por essa razão, não pode, adequadamente, enquadrar-se num ilícito típico, ainda que, formalmente, assim o pareça: só é considerável relevante para o direito penal a conduta socialmente danosa, que atinge o meio em que as pessoas vivem, ferindo em elevado grau o sentimento de justiça e o senso de adequação social de um povo, estando, pois, excluídas da incidência típica as condutas que, em determinado contexto histórico, são socialmente toleradas e praticadas pela sociedade, mesmo que, desrespeitando regras administrativas ou, p. ex., de âmbito civil, não sejam inteiramente normativas.

Ora, como já acima lembrámos, os questionados “donativos”, solicitados aquando do ingresso dos utentes no lar, revertiam a favor do equilíbrio financeiro e sustentabilidade económica da IPSS arguida, ressumando do conjunto da prova produzida que se destinavam apenas ao suprimento das despesas de funcionamento do lar, porque este era escassamente alcançado com os subsídios da S. Social somados aos contributos advindos da percentagem da pensão de reforma dos utentes.

Assim, entendemos que tais “donativos” não se harmonizam com a realidade ontológica visada pelo legislador, ao tutelar o bem jurídico subjacente ao ilícito em questão com a imposição de uma sanção penal ao agente que o viole, o qual, como vimos, segundo a percepção comunitária do crime, normalmente, é movido pela «ganância» – não necessariamente de cariz imediatamente patrimonial – dirigida ao enriquecimento, seu ou de outra pessoa, que o leva a «mercadejar com o cargo», em detrimento da imparcialidade da administração e da autonomia intencional do Estado.

Por outro lado, retomemos aqui o raciocínio já exposto quanto à acomodação pela colectividade da conduta em apreço neste processo: na época em que ocorreram os factos, estava arreigada na consciência colectiva, ou na generalidade das pessoas “normais” dotadas de uma recta consciência ética e social, a ideia de que idênticos “donativos” ocorriam noutros lares, sendo “convicção popular” que os mesmos constituíam uma contribuição extra para as despesas de funcionamento dos lares de idosos e essa prática, até determinada altura, foi, objectivamente, consentida pela própria S. Social.

Nesse contexto, se fosse acolhida a tese do recurso, teríamos um crime de corrupção sem “vantagem” – com os contornos que, segundo pensamos, o ilícito lhe oferece – e com “corrompidos” que não dissimulavam (na contabilidade) a sua conduta nem tinham corruptores. Na verdade, a acusação nem sequer ensaiou a responsabilização também dos familiares dos candidatos à admissão no lar – e bem –, os quais, ainda que entrando, alguns, numa espécie de barganha sobre os montantes das quantias que para o efeito lhes eram sugeridos, se conformavam com o seu pagamento e, segundo tudo indica, com a justificação que para o mesmo lhes era apresentada, não havendo notícia de que alguma vez tenha sido denunciada a sua solicitação (35).

Por conseguinte, terá de se concluir que as apuradas condutas, independentemente do juízo sobre a respectiva similitude formal com o tipo em análise – cuja perfeição, como dissemos, está excluída –, sempre disporiam de densidade jurídico-penal e de potencial ofensivo do bem jurídico específico tutelado insubsistentes para o integrar: ante a última ratio constituída pelo direito penal, as mesmas não poderiam fundamentar um juízo de reprovação jurídico-penal, por não integrarem apropriadamente a tipicidade do ilícito imputado ou a de algum outro, ainda que pudessem justificar uma qualquer espécie de crítica à luz de padrões que, noutros planos, também orientam a vida em comunidade.

E mesmo que assim não fosse, também faltaria o elemento subjectivo da infracção, como já anotámos.
É certo que, no caso em apreço, para efeito da lei penal, no plano objectivo, é incontestável a qualidade de funcionário em que interveio nos factos o arguido José, enquanto presidente da direcção de uma IPSS reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, à luz da alínea c) do nº 1 do art. 386º do C. Penal (36). Segundo alvitramos, se tivesse sido cometida a solicitação ou aceitação da mencionada vantagem privada, em detrimento da imparcialidade da administração e da autonomia intencional do Estado, a mesma não poderia deixar de considerar-se como tendo sido feita pelo arguido na qua­lidade de funcionário, com a noção literal fornecida pelo citado preceito, ou seja, no seu desempenho de funções ou participação em funções de organismo de utilidade pública, pois fora designado como presidente da direcção de uma instituição particular de solidariedade social que mereceu a declaração de utilidade pública, para, nessa qualidade, participar na actividade da mesma.
É claro que um agente, para cometer um crime cuja ilicitude dependa da aludida qualidade especial de funcionário para efeitos penais – na noção de desempenho de funções ou participação em funções de organismo de utilidade pública – não tem de conhecer esse conceito, como não tem de saber o que é a tipicidade, a consciência da ilicitude, o enriquecimento ilegítimo ou dominar a teoria da causalidade adequada ou outros princípios jurídicos.
Todavia, exige-se que saiba que desempenha funções em organismo de utilidade pública, praticando o facto criminoso no seu exercício e na prossecução do interesse público que justificou o reconhecimento da utilidade pública, ou seja, que saiba que está atingir o resultado ilícito que a comunidade repele e censura e, apesar disso, o queira.
E, como é imposto pelo art. 283º do CPP, a acusação deve conter, para além da indicação das disposições legais aplicáveis, a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
Ora, embora se admita que o Ministério Público tenha pretendido alegar implicitamente tais elementos fácticos, porque inerentes à lógica da incriminação, o certo é que na acusação não vêm mencionadas, expressamente, a ciência pelo arguido dessa qualidade (utilidade pública) do organismo nem a respectiva vontade de a ofender, de que, como acabámos de concluir, dependeria, no caso, o preenchimento de um dos elementos da componente subjectiva do ilícito imputado, quanto ao conceito de funcionário, integrante do tipo do crime específico em análise.
Como é pacífico, o nosso processo penal, de estrutura acusatória, impõe, para assegurar as garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença: os factos essenciais descritos na acusação, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática (também obrigatoriamente indicadas), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (37).
Por tal razão, os referidos elementos não descritos ou não discriminados na acusação não seriam, simplesmente, novos factos não substanciais, isto é, factos que traduzissem uma mera alteração dos anteriormente descritos e que, apesar de não constarem da acusação, o Tribunal pudesse integrar no processo: afinal, os mesmos determinariam uma alteração do objecto do processo e, por isso, a sua atendibilidade até acarretaria a nulidade da decisão (cf. art. 379º nº1 b) do CPP): «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal» (AUJ do STJ nº 1/2015, in DR I, nº 18, de 27/1/2015).

Por conseguinte, não se mostram preenchidos os analisados elementos típicos do crime imputado aos arguidos, o que prejudica o conhecimento dos demais temas e questões suscitados no recurso, nomeadamente o da consciência da ilicitude ou o da responsabilidade da arguida pessoa colectiva.
*
Decisão:

Pelo exposto, pese embora se proceda à alteração da matéria de facto nos termos sobreditos, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Guimarães, 5/03/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado



1 O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
2 Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
3 Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
4 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
5 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
6 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
7 Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, pág. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
8 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
9 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionariedade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
10 O provérbio “testis unus testis nullus” não tem, pois, definitiva relevância, apesar de muito ancestral. É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187).
11 Na sequência do já referido supra na nota 4, não se olvida, porém, a doutrina fixada no AUJ do STJ nº 3/12, de 8/03/2012, publicado no DR, 1ª Série, de 18/04/2012: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Também perfilhamos o doutamente decidido no Ac. STJ de 1-07-2010, CJ, 2010, T2, pág.219 onde se asseverou se o recorrente, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa com indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou, só lhe faltando indicar as «concretas passagens das gravações em que se fundamenta a impugnação e imporia decisão diversa», não se pode dizer que há uma tal falta de especificação, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar».
12 É evidente que a não demonstração de que o agente actuou com consciência da ilicitude equivale à falta desta, mas em sede de apreciação da matéria de facto, em que ora nos encontramos, não releva a indagação sobre se o correspondente erro é ou não censurável.
13 Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre imporia a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
14 Neste sentido, Cláudia Santos, “Liber Discipulorum”, Coimbra Editora, p. 964.
15 Almeida Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, III, Coimbra Editora, 2001, p. 661.
16 P. 180/05.9JACBR.C1.S1 - Cons. Isabel Pais Martins.
17 Como refere Jescheck (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª Edição, p. 6): «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do Estado através da pena pública. (...) Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) que o preceito penal deseja assegurar, do titular do bem jurídico protegido».
18 Conforme entendimento expresso por Almeida Costa, in , ob cit., p. 661.
19 Citado acórdão do STJ.
20 «As modalidades previstas nos n.ºs 1 dos arts. 372.º e 373.° do CP não prescindem de um certo grau de prova quanto ao acto concreto pretendido, um certo grau de prova do acto concreto, lícito ou ilícito, que a vantagem visaria compensar. Na falta dessa prova, sempre se preencherá a modalidade do n.º 2 do art. 372.° do CP quando a vantagem só lograr compreensão no plano da funcionalidade. Aqui, do que se trata é de uma vantagem solicitada ou aceite sem conexão com a prática de uma concreta acção ou omissão pelo funcionário.» (citado acórdão do STJ).
21 P. 504/04.6JFLSB.L1-5-Artur Vargues.
22 Figueiredo Dias, RLJ 121º-380.
23 Cf. Henrique Monteiro “A comparticipação em crimes especiais no Código Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, p. 16.
24 Ac. da RC de 20/6/2012 (591/02.1JACBR.C1- Jorge Dias).
25 Damião Cunha (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, III, 2001, 815) define o conceito como correspondendo às «pessoas colectivas de utilidade pública, isto é, pessoas colectivas de direito privado que mereçam a qualificação de interesse público, ou seja, a declaração de utilidade pública, independentemente do substrato que lhes presida. Podem ser de pessoas colectivas de mera utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social ou pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.». E para P.P. Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 914) «é a pessoa colectiva de direito privado que é objecto de declaração de utilidade pública, precisamente porque a declaração de utilidade pública reconhece a “cooperação” desta pessoa colectiva no exercício da função da Administração pública, nos termos do artigo 1º, nº 1, do Decreto Lei nº 460/77, de 7/11».
26 Cf. art. 82º da CRP.
27 Como originariamente defendeu o Prof. Damião da Cunha (“ob. cit., p. 815), como se disse. O que serve para significar que não concordamos com o entendimento muito mais restritivo que esse Ilustre Professor, contra a maré e a letra da lei, passou posteriormente a sustentar, na sequência das reflexões suscitadas pela elaboração de um Parecer (como ele próprio dá notícia no estudo “O Conceito de Funcionário para Efeito de Lei Penal e a Privatização da Administração Pública”, Coimbra Editora, 2008, p. 56, nota 69), circunscrevendo o âmbito do conceito às pessoas colectivas de direito público: «não podem nele ser integradas as pessoas colectivas de mera utilidade pública e as denominadas instituições particulares de solidariedade social (…). De facto, pressuposto essencial para a afirmação do exercício de tarefas administrativas era a base legal da sua atribuição. Nestes casos (de mera “utilidade pública”), do que se trata é de “distinguir” pessoas colectivas sem escopo lucrativo, cujos fins estatutários correspondem a interesses sociais.»..
28 Em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal (directo, necessário e eventual): intenção de realizar o facto típico, aceitação como consequência necessária da conduta, conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível.
29 Cfr. Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 71-72 e Rev. Port. de Ciência Criminal, ANO 2, 1º, p. 18-19.
30 Ainda Figueiredo Dias, em “Direito Penal, Parte Geral”, I, Coimbra Editora, 2004, p. 333.
31 Acórdão do STJ já citado.
32 V. estudo “Da corrupção: Recebimento e Oferta Indevidos de Vantagem” p. 503.
33 Acórdão da RL 28-09-2011 (P. 76/10.2GTEVR-3-Carlos Almeida).
34 Figueiredo Dias, “Temas Básicos da Doutrina Penal”, 2001, p. 43.
35 Registe-se, num parêntesis, que a denúncia anónima que, mediatamente, desencadeou a investigação dos factos em causa tinha em mira putativos actos de nepotismo dum dirigente da associação e não os falados “donativos” (cf. fls. 5).
36 Resulta dos autos que a associação (IPSS) mereceu o reconhecimento do atributo (utilidade pública) de que vimos falando. E preceituava o DL nº 119/83 de 25/02, com a redacção vigente na data dos factos (esse regime foi, entretanto, alterado pelo DL nº 172-A/2014 de 14/11), que podiam os ministérios da tutela organizar um registo das instituições particulares de solidariedade social do respectivo âmbito (art. 7º) e que as instituições particulares de solidariedade social registadas nos termos da lei adquiriam automaticamente a natureza de pessoas colectivas de utilidade pública, com dispensa do registo e demais obrigações previstos no respectivo regime (art. 8º).
37 O que o T. Constitucional, aliás, por diversas vezes, salientou, como sucedeu, p. ex., no Ac. nº 674/99 de 15/12/99, in DR II de 25/2/2000, em que julgou «inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretadas no sentido de se não entender como alteração dos factos - substancial ou não substancial - a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República» (o realce é nosso).