Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
108429/17.2YIPRT.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONCESSIONÁRIO
FORNECIMENTO DE ÁGUA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I - A competência material dos tribunais afere-se pela causa de pedir e pelo pedido concretamente formulados.

II – À luz da legislação vigente, a jurisdição comum é a competente para a apreciação de uma acção em que pela entidade que gere e explora o serviço público de fornecimento de água é exigido a um particular o pagamento de serviços que lhe prestou, no cumprimento de um contrato com ele para o efeito celebrado.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

Na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos que corre termos no Juízo Local Cível de Fafe, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sob n.º 108429/17.2YIPRT, em que é autora Águas X, S.A. e réu José, foi proferida decisão que julgou aquele Juízo Local Cível de Fafe do Tribunal Judicial de Braga materialmente incompetente para conhecer da presente acção e, em consequência, absolveu o réu da instância.

Nestes autos, a autora Águas X, S.A., pediu a condenação do réu José a pagar-lhe a quantia global de € 899,31, correspondendo a € 738,87 de capital, € 56,99 de juros de mora, € 52,45 de outras quantias e € 51,00 de taxa de justiça paga.

Invocou, para tanto e em síntese, que forneceu ao réu os serviços públicos essenciais de água e saneamento constantes das facturas que identifica cujo pagamento não foi efectuado pelo réu.

Suscitando-se a excepção da incompetência material desse Juízo Local Cível de Fafe para conhecer da presente acção, foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto a esta matéria, nada tendo as mesmas dito ou requerido.
Foi então proferida decisão, a 10.09.201818, com o seguinte teor:

“…Cumpre, assim, apreciar e decidir qual o Tribunal competente para conhecer da presente acção.
Os Tribunais Judiciais têm uma competência residual, porquanto são competentes para conhecer as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (cfr. artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, artigo 64.º do Código de Processo Civil e artigo 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário). Por sua vez, compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (cfr. artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa), mais concretamente, os litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (cfr. artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

A competência de um Tribunal afere-se em função da identidade das partes, do pedido e da causa de pedir tal como é configurada pelo autor na petição inicial, fixando-se no momento em que acção é proposta (cfr. artigo 38.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário e artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

Volvendo ao caso em apreço, verificamos que pretende a autora com a presente lide, cobrar quantias atinentes a serviços públicos de água e saneamento prestados ao réu. Ora, a sociedade autora ÁGUAS X, S.A. é concessionária do serviço público de saneamento, ademais, do Município Y e, nessa medida, actua em substituição deste Município, tratando-se, assim, inequivocamente, de uma entidade particular no exercício de um poder público e actuando com vista à realização de um interesse público (cfr. artigos 13.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro e 9.º do Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio). Com efeito, os municípios dispõem de atribuições, ademais, no domínio do saneamento básico, em conformidade com o disposto no artigo 23.º, n.º 2, alínea k), da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, sendo certo que a ligação dos utilizadores ao sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento é obrigatória (cfr. artigo 3.º, n.º 6, do citado Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio). Sem prejuízo das aludidas atribuições dos municípios, podem tais serviços de saneamento ser geridos por entidades privadas, através de contrato de concessão, como sucedeu, in casu, com a sociedade autora. Todavia, a circunstância de um serviço público passar a ser gerido por uma entidade privada, não faz com que perca a sua natureza de serviço público, continuando o concessionário a desempenhar uma função pública, implicando a concessão apenas uma transferência temporária do exercício dos direitos e poderes da pessoa colectiva de direito público necessários à gestão do serviço pelo concessionário, mas permanecendo, todavia, a titularidade desses direitos e poderes na entidade concedente (vide, Marcello Caetano in “Manual de Direito Administrativo”, 9.ª edição, vol. II, páginas 1099 e 1100). Acresce que se nos afigura que as quantias peticionadas pelos serviços de água e saneamento, consubstanciam verdadeiras tarifas unilateralmente fixadas e reguladas por normas de direito público (cfr. artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 93/2015, de 29 de Maio). Por conseguinte, considerando a concreta natureza da relação jurídica em crise nestes autos – pretendendo a autora, enquanto sociedade concessionária de serviços públicos essenciais de água e saneamento, cobrar a um utente a quem alega ter prestado esses serviços, tarifa relativa aos mesmos –, e na senda do entendimento jurisprudencial largamente maioritário e mais recente, afigura-se-nos que a matéria em causa nestes autos insere-se no âmbito dos litígios cuja apreciação compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais, mais concretamente, aos Tribunais Tributários, nos termos previstos nos artigos 1.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, alínea d), e 49.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (vide, em sentido idêntico, Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 19.06.2014, processo n.º 022/14, e de 30.10.2014, processo n.º 047/14, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 04.11.2015, processo n.º 0124/14, de 17.05.2017, processo n.º 01174/16 e de 31.05.2017, processo n.º 0441/17, Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 28.06.2013, processo n.º 02708/11.6BEPRT, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2014, processo n.º 1396/12.7TBFAF.G1, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2017, processo n.º 106973/15.5YIPRT.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt). Concluímos, assim, ser este Juízo Local Cível de Fafe do Tribunal Judicial da Comarca de Braga materialmente incompetente para conhecer da presente causa.
A incompetência absoluta em razão da matéria configura uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso e que tem por consequência a absolvição do réu da instância (cfr. artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea a), e 578.º, todos do Código de Processo Civil).
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se declarar este Juízo Local Cível de Fafe do Tribunal Judicial da Comarca de Braga materialmente incompetente para conhecer da presente acção e, em consequência, absolver o réu da instância.
Custas a cargo da autora, fixando-se o valor da causa em € 848,31 – cfr. artigos 297.º, n.ºs 1 e 2, 306.º, n.ºs 1 e 2, 527.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
*
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a autora, a qual, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:

A. A Recorrente assume a exploração e a gestão do sistema de águas da região do Noroeste, em resultado da celebração de um Contrato de Parceria entre o Estado Português (Administração Central) e os Municípios de (...).
B. A exploração e a gestão do sistema em “baixa” são realizadas em exclusividade pela Recorrida em regime de parceria, nos termos da na alínea c), do n.º 2 do Decreto-Lei n.º 90/2009, de 9 de abril e do Contrato de Parceria e do Contrato de Gestão.
C. Os Municípios, supra mencionados, delegaram no Estado, as respectivas competências municipais relativas à gestão e exploração dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de água residuais urbanas aos utilizadores finais.
D. O Recorrido outorgou, em 10 de agosto de 2012, com o Município Y, à data entidade gestora dos serviços de abastecimento de água para o consumo público e recolha de águas residuais urbanas, o contrato de recolha de águas residuais urbanas.
E. Ao abrigo deste contrato a Recorrente prestou os serviços de recolha de águas residuais urbanas no domicílio do Recorrido, que os aceitou e nunca os recusou.
F. O contrato de prestação de serviços de recolha de águas residuais se rege pela Lei n.º 23/96 – Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
G. O contrato de recolha de águas residuais é um contrato de consumo regulado no âmbito do direito privado, de uma relação de consumo, que não se celebra em substituição de qualquer ato administrativo.
H. A presente ação que tem por objeto a simples cobrança de divida civil, por uma empresa privada, regulada pelas regras do direito privado, no pagamento de valores constantes de faturas, acrescido de juros.
I. Tem, assim, a ação por base uma relação jurídica de direito privado, que se consubstancia numa situação de incumprimento das obrigações contratualmente assumidas pelo Recorrido.
J. Obrigações que tendo natureza civil, regem-se, pelas normas dos contratos civis, estando em causa a apreciação de pressupostos da responsabilidade e do incumprimento e mora contratuais nos termos da lei civil – artigo 762.º e seguintes, artigo 806 do código civil.
K. Pelo que, não se aplica o artigo 4.º, n.º 1, alínea d) do ETAF.
L. A alínea f), do n.º 1 do artigo 4.º, do supra mencionado diploma, apenas atribui competência à jurisdição administrativa para apreciar litígios sobre a interpretação, validade e execução de contratos objeto passível de ato administrativo, contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público.
M. A sujeição à jurisdição civil face do incumprimento contratual é similar à que resulta da falta de pagamentos de uma fatura de eletricidade ou de uma fatura emitida por operadora de telemóveis ou de comunicações eletrónicas – Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais.
N. Estabelece o n.º 1, do artigo 211.º, da Constituição da República Portuguesa, que “os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria cível e criminal que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
O. E por sua vez, o n.º 3, do seu artigo 212.º, que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contencioso que tenham por objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
P. Dispõe o artigo 64.º, do Código de Processo Civil que são “da competência dos tribunais administrativos as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Q. Foram, assim, violados os artigos 64.º, 96.º, 97.º n.º 2, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a) , 576.º n.º 2, 1.ª parte, 577.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, bem como o artigo 1.º, n.º 1 do ETAF, e ainda os artigos 211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3 da Constituição Portuguesa.
Pelo exposto, o Juízo Local Cível de Fafe da Comarca de Braga tem competência material para decidir a presente ação.
Assim, revogando V.ªs Ex.ªs, Venerandos Juízes Desembargadores, a decisão recorrida, julgando materialmente competente o Juízo Local Cível de Fafe, estarão a pugnar pela acostumada e merecida Justiça!”.
*
O réu não contra-alegou.
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O recurso foi admitido por despacho de 16 de Outubro de 2018 como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se o Juízo Local Cível de Fafe, do Tribunal Judicial da comarca de Braga, é materialmente competente para o conhecimento da presente acção.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
*
IV. Fundamentação de direito.

1. Delimitada que está, sob o n.º II, a questão essencial a decidir, é o momento de apreciá-la.
A competência do tribunal é um pressuposto para que o tribunal se ocupe da questão, a apreciar em concreto, perante cada acção, em ordem a determinar se entre esta e aquele existe a conexão considerada relevante e decisiva pela lei, atribuindo-lhe o poder para apreciar a causa.
Proposta a acção em tribunal diferente do que decorre das regras de competência, verifica-se a incompetência do tribunal que consiste na “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação” (Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 128).

A competência do tribunal, como pressuposto processual que é, fixa-se no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (art. 260º do CPC) («é o princípio chamado da “perpetuatio jurisdictionis: semel comptens semper competens”» (J. Castro Mendes, in Direito Processual Civil, vol. I, pág. 647/648, ed. 1980) com excepção, obviamente do estabelecido no art. 61º do CPC, e afere-se “de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos (“quid decidendum”) (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, ed. 1976, pág. 91.,), ou seja, de acordo com o pedido e com a causa de pedir.

A competência é regulada pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas normas processuais respectivas (art. 60º do CPC).
Na ordem interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território, fixando a lei de processo os factores que determinam, em cada caso, o tribunal territorialmente competente.

No caso vertente só releva a divisão interna do poder jurisdicional pelas diferentes categorias de tribunais segundo o critério da natureza dos litígios, isto é, a vertente da competência material.

Nos termos do art.. 96º do CPC a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, traduzindo-se numa excepção dilatória (art. 577º do CPC), de conhecimento oficioso do tribunal (art. 578º do CPC), que, consoante o tipo de processo e a fase processual em curso, acarreta a absolvição da instância ou o indeferimento liminar da petição inicial (arts. 99º, n.º 1, 278º, n.º 1, al. a) e 577º, al. a), do CPC).

Nos termos dos artigos 211º da Constituição da República Portuguesa, 64º e 65º do CPC e artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, os Tribunais Judiciais têm uma competência residual, porquanto são competentes para conhecer as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, sendo que a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos Tribunais de Comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos Tribunais de competência territorial alargada.

Por sua vez, estipula o artigo 80.º, n.º 1, da citada Lei da Organização do Sistema Judiciário que “compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”, sendo que os Tribunais de Comarca são de competência genérica e de competência especializada (cfr. n.º 2 do citado artigo 80.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário), desdobrando-se em juízos que podem ser de competência especializada (nos quais se incluem, ademais, os Juízos Locais Cíveis), de competência genérica e de proximidade (cfr. artigo 81.º, n.ºs 1 e 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Quanto aos Juízos Locais para o que ao caso dos autos importa, dispõe ainda o artigo 130.º, n.º 1, da citada Lei da Organização do Sistema Judiciário que “os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respectiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”.

Constitucionalmente a competência dos tribunais administrativos e fiscais encontra-se prevista para o “julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” - cfr. art.º 212º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) -, sendo os tribunais judiciais definidos como “os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” - cfr. art.º 211º nº 1 da CRP.

A concretização destes comandos constitucionais vem sendo feita pelo legislador ordinário através das leis de organização e competência dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos e fiscais.

Quanto a estes, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) de 1984 balizou a sua competência atribuindo-lhes a incumbência de “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais” (cfr. art.º 3º do DL 129/84 de 27.04) e excluindo expressamente daquela jurisdição as acções que tivessem por objecto “Questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público” (cfr. art.º 4º nº 1 al. f) do citado DL 129/84).

Mas o ETAF, aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 13/2002 de 19.02, bem como o actualmente em vigor resultante do DL 214-G/2015 de 02 de Outubro, vieram ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.

Esse alargamento é facilmente constatável pela leitura das quinze alíneas do nº 1 do seu art.º 4º, onde é enumerada a competência daqueles tribunais.
Por outro lado, os litígios e acções agora expressamente excluídos da competência da jurisdição dos tribunais administrativos foi restringido, como também facilmente se conclui pelo confronto dos nºs 3 e 4 do art.º 4º do actual ETAF com o art.º 4º do ETAF de 1984.
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (bem como o actualmente em vigor resultante do DL 214-G/2015 de 02 de Outubro), estipula que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.”(cf. art.º 1.º), sendo que o artigo 4.º concretiza este princípio através de sucessivas enumerações, definindo os litígios nela incluídos, pela positiva.

Por seu turno, o art.º 200.º do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo D.L. n.º 4/2015, de 07 de Janeiro, dispõe que:

“1 - Os órgãos da Administração Pública podem celebrar contratos administrativos, sujeitos a um regime substantivo de direito administrativo, ou contratos submetidos a um regime de direito privado.
2 - São contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial.”

Ou seja, em face destas directrizes legais, a relação jurídica administrativa deve considerar-se como aquela que tem por objecto a prossecução do interesse público e/ou a sujeição a uma disciplina administrativa.

Em contrapartida, sempre que os órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas intervenham sem poder soberano e celebrando meros contratos civis, ficam sujeitos às mesmas regras dos particulares.

Como se escreve no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 21.02.2013, in www.dgsi.pt, “o conceito de relação jurídica administrativa é, pois, erigido, tanto na Constituição como na lei ordinária, em pedra angular para a repartição da jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais. À míngua de definição legislativa do conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica regulada pelo direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração”.

Como tem sido entendido pela jurisprudência (neste sentido: Acs. do Tribunal dos Conflitos, de 5.6.2008, de 4.11.2008, de 4.11.09, de 20.1.2010, de 9.9.2010 e de 28.9. 2010), e em conformidade com a doutrina, podemos dizer que são relações jurídicas administrativas «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., 57/58).

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial.

Por isso, para se aferir da competência material do tribunal importa apenas atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.

No caso dos autos, está em causa saber se uma empresa privada que gere um sistema de fornecimento de água e saneamento, mediante contrato celebrado com a entidade que os municípios abrangidos e o Estado, reunidos em parceria pública, constituíram para a exploração conjunta desse serviço na sua área territorial, deve recorrer aos tribunais administrativos ou antes nos tribunais judiciais ou comuns para obter o pagamento do valor das facturas desse serviço prestado a um particular.

Sobre esta matéria, não se desconhece a existência de duas posições antagónicas na nossa jurisprudência.

De facto, uns entendem que a competência se encontra legalmente atribuída aos tribunais administrativos (neste sentido, vide entre outros, Acs. deste Tribunal da Relação de Guimarães de 04/04/2013; de 02/05/2013; de 30/05/2013; de 13/06/2013; de 23/01/2014; de 10/07/2014; Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 19.06.2014 e de 30.10.2014; Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 04.11.2015, de 17.05.2017, e de 31.05.2017; Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 28.06.2013, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2017); e outros, defendem que a competência deve ser atribuída aos tribunais comuns (vide, entre outros, os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 16/04/2013; de 14/05/2013; de 10/07/2013; de 07/11/2013; de 06/02/2014, de 04/05/2015, de 21/05/2015, de 15/12/2016, de 15/05/2018 e de 13/09/2018, e ainda o Ac. do Tribunal de Conflitos de 21/01/2014, todos consultáveis em www.dgsi.pt).

No caso, repete-se, está em causa saber se uma empresa privada que gere um sistema de fornecimento de água e saneamento, mediante contrato celebrado com a entidade que os municípios abrangidos e o Estado, reunidos em parceria pública, constituíram para a exploração conjunta desse serviço na sua área territorial, deve recorrer aos tribunais administrativos ou antes nos tribunais judiciais ou comuns para obter o pagamento do valor das facturas desse serviço prestado a um particular.

O artigo 4.º da Lei n.º 13/2002, de 19.02 (ETAF), na redacção actualmente em vigor resultante do DL 214-G/2015 de 02 de Outubro, estabelece, e no que interessa para os autos, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.

Na decisão sob recurso, entendeu-se que a presente acção se integra na previsão da al. d) supra citada.

Contudo, salvo todo o devido respeito, discordamos deste enquadramento.

Com efeito, o objecto da previsão desta norma é somente a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos.
Ora, a presente não tem por objecto essa fiscalização, pois que ao pedir o pagamento da contraprestação do serviço que prestou, a autora não está a questionar a legalidade da fixação da contraprestação ou de algum componente desta.

De igual modo, quando estabelece a contraprestação, a autora está vinculada a normas legais, mas não está a exercer poderes administrativos, isto é, poderes dotados de ius imperi, está apenas a dar cumprimento ao estabelecido no contrato que lhe atribuiu a gestão e exploração do serviço de fornecimento de águas, no que, como qualquer entidade pública ou privada e em qualquer circunstância, está subordinada à lei e, no caso, ao contrato.
O que está em causa nos autos é apenas o pagamento do valor das facturas relativas ao fornecimento do serviço de águas.
Desse modo, julgamos que no caso o que se pode equacionar é apenas a aplicação do disposto na alínea e) do artigo 4.º do ETAF.
Esta norma atribui competência aos tribunais administrativos para julgar as acções que tenham por objecto questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
O que se discute nos autos é o contrato de fornecimento de água e saneamento ao utilizador, o qual foi celebrado entre a entidade prestadora desse serviço e um particular que é o consumidor desse serviço.
Na celebração deste contrato não intervieram quaisquer normas de direito administrativo.
Acresce que, o próprio regime substantivo do contrato em causa leva à sua caracterização como contrato de direito privado.

Com efeito, nos últimos anos, tem-se assistido à transição de um Estado intervencionista para um Estado meramente regulador, designadamente com a crescente atribuição a privados da gestão de serviços públicos ou mesmo com a privatização definitiva deste tipo de serviços (vide Juliana Ferraz Coutinho, O Público e o Privado na Organização Administrativa (da relevância do sujeito à especialidade da função), Colecção TESES, 2017, Almedina, pág. 667).

Neste contexto, surgiu a Lei n.º 23/96, de 26/07 (dos Serviços Públicos Essenciais) sendo a redacção actual a resultante da Lei n.º 10/2013, de 28/01, destinada a proteger o utente de serviços públicos essenciais, contemplando-se na mesma o direito do consumidor à protecção dos seus interesses económicos, impondo-se nas relações jurídicas de consumo a igualdade material dos intervenientes, a lealdade e a boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos (cfr. Fernando Dias Simões e Mariana Pinheiro Almeida, Lei dos Serviços Públicos Essenciais Anotada e Comentada, 2012, Almedina, pág. 8)
Um dos serviços públicos aí abrangidos é precisamente o “Serviço de fornecimento de água” (cf. art.º 1.º, n.º 2, alínea a)).

Com efeito, a água e o saneamento são bens essenciais pelo que o seu fornecimento é de interesse público, e por assim ser, esse fornecimento encontra-se abrangido por diversas disposições legais que o regulamentam, daí que esse seja um dos serviços previstos na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, que estabelece as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem, no seu próprio dizer, “à protecção do utente”.

Por outro lado, considera-se em tal diploma legal, prestador dos serviços, para além das entidades privadas, igualmente toda a entidade pública que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2 “independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.” (n.º 4).
Daqui resulta que, todas as entidades, públicas ou privadas, ficam sujeitas ao mesmo regime jurídico.
É assim manifesto que as disposições deste diploma, mais do que serem imperativas, têm em vista a protecção do utente ou consumidor e são aplicáveis independentemente da natureza e da qualidade jurídicas de quem presta o serviço, da qualificação jurídica do contrato no âmbito do qual o serviço é prestado.

Assim, o regime substantivo previsto nesta Lei n.º 23/96, de 26/07 é manifestamente um regime de direito privado, voltado para a protecção do consumidor, submetendo todos os contratos dessa categoria a um mesmo regime comum, de direito civil.
Não estamos, portanto, perante normas que regulem a relação entre a administração e os cidadãos, mas antes perante normas legais imperativas que regulam o consumo de um determinado bem ou serviço e definem determinados conteúdos mínimos para a sua prestação, não em ordem a definir colectivamente o modo como esse serviço chega à comunidade, mas em definir como cada consumidor em particular dele acaba por beneficiar.

Como se afirma no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 21/05/2015, disponível em www.dgsi.pt, que temos vindo a seguir, tal resulta desde logo da circunstância de as mesmas disposições da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, se aplicarem ao fornecimento de outros bens cuja essencialidade ninguém questiona, como o gás e as telecomunicações, mas relativamente aos quais ninguém defende que os respectivos contratos se rejam pelo direito administrativo ou público.

Esta posição é defendida por Carlos Ferreira de Almeida, in Serviços Públicos. Contratos Privados, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, volume II, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 122 e123, o qual sustenta que o contrato entre os utentes e os prestadores de serviços públicos essenciais não são contratos administrativos, desde logo, porque a Lei n.º 23/96 “eliminou todos os vestígios de poderes autoritários do fornecedor, substituindo-os por regras de protecção do utente”. Acrescenta que “a natureza administrativa dos contratos não seria compatível com o princípio da neutralidade, que, admitindo embora a natureza pública de alguns fornecedores, não pode conviver com certos princípios da actividade administrativa,.... Se alguns contratos de prestação de serviços públicos não podem deixar de ter natureza privada, o princípio da neutralidade impõe que a natureza privada do contrato não seja afectada pela natureza pública da entidade prestadora.” Mais adiante afirma que “(...) todas as entidades prestadoras dos serviços públicos regulados pela Lei nº 23/96 são fornecedores para o efeito de tais serviços serem considerados de consumo (…)quando o utente deles faça uso não profissional” e conclui que “os contratos de fornecimento a consumidores de serviços públicos essenciais são contratos de consumo”.
Assim sendo, a presente acção não se insere em nenhuma das situações previstas na alínea e) do artigo 4.º do ETAF.

Por outro lado, como se refere no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 15/05/2018, disponível em www.dgsi.pt, que também vimos seguindo, a Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, integra expressamente no âmbito da protecção dos consumidores os serviços prestados “pelos organismos da Administração Pública, por pessoas colectivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidas maioritariamente pelo Estado, pelas Regiões Autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos.” (cf. art.º 2.º, n.º 2).

Ora, nesta Lei existe – da mesma forma – um conjunto de normas de índole privatística incompatíveis com uma relação jurídica administrativa, tais como a inserção contratual de mensagens publicitárias (art.º 7.º, n.º 5), o direito de retractação (art.º 8.º, n.º4) e a submissão ao regime das cláusulas contratuais gerais (art.º 9.º, n.º 3).
Deve, pois, da mesma forma considerar-se um regime de direito privado, da mesma forma voltado para a protecção do consumidor.
Donde se conclui que, os contratos de fornecimento de água são de índole estruturalmente civil, sendo actualmente qualificáveis como contratos de consumo e regulados por regimes especificamente dirigidos à protecção dos consumidores, tais como a Lei dos Serviços Públicos Essenciais ou a Lei de Defesa do Consumidor.

Assim, pese embora se reconheça mérito nos argumentos utilizados na posição contrária, entendemos que, no caso concreto da acção que foi submetida a juízo, não possui esta nenhuma das características que justifique a especialização da competência dos tribunais administrativos em razão da matéria, pelo que cabe na competência dos tribunais judiciais ou comuns.
Nesta medida, procedem os fundamentos do recurso, devendo ser revogada a decisão recorrida.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, atribuindo a competência para a presente acção ao Tribunal recorrido, revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos.
Custas do recurso pela parte vencida a final.

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Guimarães, 15 de Novembro de 2018

Fernanda Proença Fernandes
Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade (votou vencido conforme declaração que segue)

Declaração de Voto

Votei vencido pois a solução a que se chegou é contrária à que foi adoptada em vários acórdãos de que fui Relator, nomeadamente, no processo nº 12698209.2YIPRT.G1, de 22.02.2011, (acessível em dgsi.Net) e é contrária à que tem sido adoptada no Tribunal dos Conflitos sobre diversos casos com os mesmos essenciais contornos, como se pode ver pelos seguintes acórdãos:

Processo nº 033/13, de 25.06.2013
Processo nº 030/13, de 5.11.2013
Processo nº 039/13, de 18.12.2013
Processo nº 038/13, de 18.12.2013
Processo nº 053/13, de 18.12.2013
Processo nº 01/14, de 27.03.2014
Processo nº 023/14 de 8.04.2014
Processo nº 022/14 de 19.06.2014
Processo nº 031/13 de 15.05.2014
Processo nº 047/14 de 30.10.2014
Processo nº 043/14 de 13.11.2014
Processo nº 044/14 de 13.11.2014
Processo nº 040/14 de 25.11.2014
Processo nº 026/14 de 29.1.2015.

Em todos eles se decidiu no sentido de que compete aos tribunais tributários (artº 49º, nº1 al. c) do ETAF) apreciar os litígios relativos a contratos celebrados entre uma empresa concessionária de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos utilizadores finais.
Mantenho-me na linha do julgado e fundado naqueles processos.

Guimarães, 15 de Novembro de 2018

Amilcar José Marques Andrade