Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
147/17.4T9BGC-B.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CAUÇÃO ECONÓMICA
REQUISITOS LEGAIS
PRINCÍPIOS DA ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE
INDEFERIMENTO
ARTº 227
Nº 3 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. A caução económica prevista no art. 227º, n.º 3, do CPP, distingue-se e é autónoma da caução como medida de coacção e consiste numa medida processual que visa a garantia patrimonial do pagamento da indemnização ou obrigação civil derivada do crime – qualquer tipo de crime, independentemente da sua gravidade ou da pena aplicável –, desde que se prove perfunctoriamente a probabilidade de um crédito sobre o requerido, previamente constituído como arguido, e se demonstre indiciariamente o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias daquele pagamento, ou seja, um receio justificado, objectivo e claro de que o requerido se prepara para diminuir ou fazer desaparecer os seus bens, por forma a subtrair-se ao pagamento da indemnização em que muito provavelmente virá a ser condenado.
II. A par de tais pressupostos, a jurisprudência tem ainda salientado que a prestação da caução está sujeita aos princípios da adequação e da proporcionalidade, devendo, por isso, adaptar-se tanto à capacidade económica do requerido como à realização da finalidade que a justifica – a obrigação que se destina garantir.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

1. Nos autos de inquérito (actos jurisdicionais) nº. 147/17.4T9BGC, a correr termos na Procuradoria da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, por decisão proferida a 29/6/2020, na sequência do requerimento apresentado pelo assistente F. J., foi determinado que a arguida R. M. prestasse caução económica, no valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), em qualquer uma das modalidades legalmente admissíveis, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão.

2. Inconformada, a arguida R. M. interpôs recurso, pugnando pela revogação da decisão, mediante a formulação das seguintes conclusões (1):
«A) Por despacho do Tribunal a quo foi ordenado que a Recorrente preste caução económica, no valor de 500.000,00€, não se conformando a mesma com tal despacho desde logo porque o valor que é completamente desproporcional, desajustado e impossível de realizar.
B) Diz a lei do nº 3 do art. 227º do C. P. Penal que “Havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização ou de outras obrigações civis derivadas do crime, o lesado pode requerer que o arguido ou o civilmente responsável prestem caução económica, nos termos do número anterior”.
C) Ora, diz o nº 2 do artigo 32º da C. R. Portuguesa que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”, ou seja, direito constitucionalmente consagrado e premissa sobre a qual assenta todo o direito processual Penal e bem assim todo o direito Penal.
D) Refira-se que o facto da aqui Recorrente ter sido constituída arguida apenas nos indica que sobre a mesma há indícios suficientes da prática do crime e do seu agente, não nos permite por si só, qualificar o grau de ilicitude, pois só é punível “o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.”, e até ao momento ainda não apurou o Tribunal a quo tal grau de ilicitude e bem assim a sua culpabilidade.
E) Fundamenta o Tribunal a quo que a Recorrente tem vindo a mostrar um comportamento menos correto para com a justiça na medida em que não se apresenta nas audiências de discussão e julgamento quando para tal é notificada para estar presente, dando inclusive o Tribunal a quo como provado que a Recorrente age em conluio com as mais variadas pessoas, porque tem amigos e irmão em França e desloca-se várias vezes e com frequência e facilidade a Espanha.
F) É sabido que a Recorrente não compareceu em audiência de julgamento quando se encontrava devidamente notificada para tal, sendo condenada pelo seu incumprimento enquanto sujeito processual.
G) Se faltou à audiência de julgamento que estava agendada, não é porque anda “fugida à ação da justiça”, pois que a Recorrente continua a receber todas as notificações enviadas pelos Tribunais e bem assim pelo Tribunal a quo.
H) Fundamentar a aplicação da medida de garantia patrimonial de que ora se recorre com o facto de a Recorrente se deslocar várias vezes para França/ Espanha e ter sido vista a entrar em dependências bancárias com base em depoimentos de testemunhas que nunca em França estiveram nenhum base fatual pode ter para o que no caso importa, apenas e denota uma tentativa malograda e irreal de fundamentação.
I) Tais depoimentos foram suficientes, contudo para que ao Tribunal a quo não restassem dúvidas de que a Recorrente está a dissipar o seu património.
J) Saliente-se que, ainda que a Recorrente se desloque a Paris para estar com a sua família, a mesma tem cumprido escrupulosamente o tipificado na lei no que respeita à medida de coação a que ficou sujeita aquando da sua constituição de Arguida.
K) E bem assim nos demais processos, à exceção no processo que respeita à ação de anulação do casamento celebrado com o pai do Assistente.
L) Mais, dar como provado que a Recorrente “é vista por várias pessoas a entrar em dependências bancárias”, é pouco ou se não mesmo nada, uma vez que, de tal não se extrai do depoimento das testemunhas, nem podia sequer de forma alguma constar porque além de se tratarem de pessoas que residem em Portugal, com grande certeza nunca foram a França, e o ouvir dizer não faz prova nem pode servir para a situação concreta dos autos.
M) Os depoimentos prestados não passaram de afirmações hipotéticas conjeturadas não só pelas testemunhas como pelo próprio Assistente.
N) É certo que termos o princípio da livre apreciação da prova do lado do julgador, mas também é certo que a mesma tem de ser olhada e analisada de forma igualitária, racional e imparcial.
O) Ainda, dizer e dar como provado que os irmãos da Recorrente têm dois carros de alta gama, designadamente Porsh e Jeep, é lamentável e denotam desde logo falta de factos para apoiar a fundamentação da decisão.
P) É assombroso ver que deu tal facto como provado e valorou o mesmo, pois que se assim não fosse nem ao mesmo se fazia referência, porque em nada tem a ver com a prática do ilícito.
Q) Ainda, deu-se como provado que a Recorrente tem pelo menos dois prédios urbanos e um automóvel, o que desde já indica que até ao momento a mesma não se desfez do seu património, pelo que não se depreende de onde advém o risco ou indícios de que a mesma se vai desfazer de tal património por forma a se imiscuir de pagar um eventual pedido de indemnização.
R) Continuando, sempre se diga que o fundado receio do Assistente de modo tal que o levaram a peticionar a aplicação de uma medida de garantia patrimonial como seja a aplicação de uma caução económica no valor de 500.000,00€ com base no receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias do pagamento da indemnização civil emergente do crime, não está como é visível preenchido pois que está fundamentando apenas e tão só com base em simples apreciações do comportamento perpetrado pela Recorrente no que toca à Justiça porque em termos patrimoniais nada se provou que a Recorrente está a dissipar/sonegar património.
S) Não podemos esquecer que estamos aqui a falar da prestação de uma garantia patrimonial no valor de 500.000.00€, e para que tal seja deferido necessário se torna uma fundamentação cuidada, o que, com o devido respeito não sucedeu.
T) Mais, para que seja exigido a caução económica necessário se torna, dar-se como provado que tenham diminuído as garantias patrimoniais, desde logo com a dissipação de património, e isso não se logrou provar.
U) Veja-se que sempre esteve na disponibilidade do Tribunal a quo averiguar de uma eventual dissipação de património, até porque estava e está a Recorrente à disposição do Tribunal a quo para toda a colaboração no que tange a essa matéria, mas quanto a isso o Tribunal considerou não ser necessário, bastando-se com uma prova testemunhal débil.
V) Não foi provado o concreto e razoável receio objetivo de dissipação de património e consequentemente o não pagamento do pedido de indemnização que virá o Assistente a formular nos autos, pois que não se sabe sequer se o formulará e qual o seu valor, uma vez que este apenas mostrou a sua intenção.
W) Ressalte-se que, a caução económica enquanto garantia patrimonial, e de acordo com o preceituado pelo nosso legislador no artigo 227º C. P. Penal, tem pressuposta a pendência de um pedido de indemnização que haverá de ser conhecido nos próprios autos de processo penal, onde aquele foi formulado por força do princípio de adesão.
X) A caução económica, a prestar, quando a mesma tem lugar deve ser fixada em função do valor da quantia a garantir, ou seja, do pedido de perda de vantagens. E essas são desconhecidas até ao momento nos presentes autos.
Y) Aos requisitos legais previstos no artigo 227º do C. P. Penal, jurisprudência recente tem ainda salientado, a capacidade económica do requerido, pois como se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa datado de 28.2.2015: "Contudo, é inerente à exigibilidade da prestação de caução a viabilidade da sua prestação, sob pena de prática de acto processual inconsequente e inútil, proibido por lei (artº 130º/CPC).”
Z) Chegados aqui, e depois de uma exaustiva análise da decisão e bem assim da fundamentação do Tribunal a quo, é forçoso concluir que inexiste qualquer acto ou prática de actos tendentes a diminuir, subtrair ou lapidar património por parte da Recorrente
AA) Mais, a caução económica tem de levar em conta a capacidade económica do devedor, pelo menos, a capacidade sumariamente indiciada, porque em causa está a exigência de prestação da garantia de valor que, se não existir no património do requerido, inviabiliza o resultado útil da providência.
BB) Isto para o Tribunal a quo passou completamente ao lado, talvez porque o que importa é obrigar a Recorrente a prestar uma caução económica e não cumprir os desígnios da lei. Até porque há ainda que ter presente, como salienta o Prof. Germano Marques, que a caução terá de ser adequada à realização da finalidade que a justifica e proporcional à obrigação que se destina garantir, estando pois sujeita aos princípios da adequação e da proporcionalidade.
CC) Importa reforçar que não há qualquer facto provado de forma clara e objectiva relativamente à capacidade ou não das garantais de pagamento por parte da Recorrente, logo não há de acordo com a letra da lei o porquê de aplicar tal medida de garantia patrimonial, até porque nem sequer se deu como provado qualquer acto atual, ou até mesmo passado, de qualquer lapidação ou diminuição de património por parte da Recorrente.
DD) Mais, alguma jurisprudência recente tem ainda evidenciado como requisito para a prestação da caução, a capacidade económica do arguido, e tal requisito não foi sequer acautelado.
EE) Em conclusão, é inerente à exigibilidade da prestação de caução a viabilidade da sua prestação, sob pena de prática de acto processual inconsequente e inútil, ademais, proibido por lei.
FF) Com todo o respeito que é muito e devido, mas de acordo com a prova produzida somos obrigados a concluir, porque outra conclusão de que não esta não se compagina, que mal andou o Tribunal a quo na apreciação da aplicação da garantia patrimonial.
GG) Perfilhando ainda o entendimento do Prof. Prof. Germano Marques, a caução terá sempre de “(…) ser adequada à realização da finalidade que a justifica e proporcional à obrigação que se destina garantir, estando, pois, sujeita aos princípios da adequação e da proporcionalidade.”
HH) Perante os factos, não se vê necessidade, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, da prestação de qualquer caução económica por parte da Recorrida, desde logo porque não há qualquer pedido de indemnização devidamente formulado, não há provas válidas de que a Recorrente está a dissipar património, nem tão pouco se averiguou da capacidade por parte da Recorrente de prestar tal garantia patrimonial.
II) Nada disto se constata, tanto mais que o próprio Assistente se baliza em hipóteses conjeturadas com base em suspeitas e insinuações infundadas.
JJ) A prestação de caução económica só pode ser decretada perante a ocorrência de receio objetivo, justificado e claro relativamente à capacidade das garantias da Recorrente e face a uma substancial e significativa diminuição daquelas, e nada, nada disso se verificou, nem sequer atendeu o Tribunal a quo quando da decisão.
KK) Era condição sine qua non o Assistente indicar os termos em que a caução devia ser prestada e provar a dissipação de património por parte da Recorrente, o que não se verificou, se não apenas histórias fantasiadas que conduzem ao desfecho que se pretende, pois que não é pelo facto de a Recorrente se deslocar a Paris que foi a domiciliações bancárias a depositar dinheiro que alegadamente não lhe pertencia.
LL) Veja-se a este respeito o que dizem os nossos Tribunais superiores, designadamente no Acórdão da Relação de Coimbra: “ No caso vertente verifica-se que o recorrente ao requerer que o arguido prestasse caução económica (...) limitou-se a manifestar o propósito de oportuna dedução de pedido de indemnização civil contra o arguido e a alegar a ocorrência de receio de que o mesmo dissipe os bens que possui, para além de asserção atinente à existência de indícios do crime objecto do processo e da sua autoria por parte daquele. Assim sendo, não tendo o recorrente indicado os termos em que a caução deveria ser prestada, (...) é evidente que bem andou o Mm.º Juiz a quo ao indeferir o pedido de prestação de caução.”.
MM) Refira-se ainda que em nenhum momento levou aqui o Tribunal a quo em linha de conta o princípio da adequação, proporcionalidade e necessidade, requisitos basilares para a aplicação de qualquer medida de coação e bem assim medida de garantia patrimonial, pois que nos termos do número 2 do artigo 18º da C. R. Portuguesa e bem assim do artigo 193º do C. P. Penal, a restrição legitima de direitos, liberdades e garantias deve observar o principio da proporcionalidade, significando de uma forma simplista que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa "justa medida", impedindo-se a adoção de medidas restritivas desproporcionadas ou excessivas em relação aos fins obtidos.
NN) A C. R. Portuguesa enquanto instrumento máximo de defesa e promoção do primado de Estado de Direito democrático, deve garantir o cumprimento dos princípios vitais nela inscritos, princípios esses que são transversais a todo o ordenamento jurídico.
OO) Daí que, as medidas de coação e as medidas de garantia patrimonial se regem por um conjunto de princípios fundamentais, chegando mesmo o Prof. Paulo de Sousa Mendes a dizer que os princípios consagrados no domínio do processo penal consubstanciam verdadeiros princípios jurídicos e não normas jurídicas.
PP) Apesar de uma medida de coação ou medida de garantia patrimonial não representarem um adiantamento da pena, nem qualquer previsão do que poderá vir a ser a pena aplicada na sentença condenatória, proferida no julgamento, as mesmas devem de algum modo refletir a prudência que deve conduzir todo o processo penal, dado que, a par da aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial a qualquer arguido coexiste a sua presunção de inocência, ou deveria existir, pois que não é deste raciocino que o Tribunal a quo parece perfilhar.
QQ) A medida não quebra o princípio quando é avaliada como não excessiva, desproporcionada ou desrazoável, o que in casu tal não se verifica, antes pelo contrário como facilmente se constata, pelo que está a decisão de que ora se recorre em clara violação à lei o que aqui e agora se reclama.
RR) Sempre se diga que, se é certo que o pressuposto da prestação da caução económica é naturalmente que a Recorrente tenha bens, ou meios que justifiquem o receio da perda dessa garantia, e nessa medida é inerente à exigibilidade da caução a viabilidade da sua prestação, o certo é que a mesma não é viável porque a Recorrente apesar de ser proprietária de dois prédios urbanos e um veiculo automóvel não tem como é natural a quantia de 500.000,00€.
SS) Qualquer caução económica a prestar nestes autos, como aquela que foi arbitrada é diametralmente estratosférica, e mais não pode sequer ser admitida pois que não pende ainda qualquer pedido de indemnização devidamente formulado.
TT) Não esqueçamos nunca que todo o processo penal, desde a aquisição da notícia do crime até à sentença, encontra-se vinculado à lei, não se coadunando com eventuais interesses políticos, económicos ou quaisquer outros.
UU) Por todo o alegado e sem mais delongas, nunca poderá a Recorrente prestar uma caução económica nos valores peticionados, desde logo porque não se cumpriu a lei no que concerne à aplicação da mesma, conforme infra referimos,
VV) Assim, e em conclusão, deve a douta decisão ser revogada não sendo a Recorrente obrigada a prestar qualquer garantia patrimonial, como seja a uma caução económica no valor de 500.000,00€.
WW) Caso assim se não entenda o que só por mera hipótese académica e dever de patrocínio se admite, estando a Recorrida, como está impossibilitada (não tem a disponibilidade financeira nem imobiliária para prestar uma caução no valor de 500,000.00€) de prestar caução económica nos termos do despacho de que ora se recorre, deve a mesma ser substituída por outra garantia patrimonial, nos termos e no estrito cumprimento da lei.

3. O assistente respondeu ao recurso, reiterando que existem fundadas suspeitas da prática pela arguida de quatro crimes de abuso de confiança qualificados, em concurso efectivo com um crime de desobediência qualificada, por esta se ter apropriado de uma quantia que ronda os € 500.000,00. Sustentou, ainda, que a arguida anda fugida à acção da justiça, agindo em conluio com várias pessoas, tem irmãos em França, desloca-se várias vezes e com frequência e facilidade a Espanha. Em Paris, foi vista por várias pessoas a entrar em dependências bancárias, não sendo difícil adivinhar que a mesma aí se deslocou para efectuar depósitos em dinheiro, produto dos abusos de confiança de que é suspeita. Termina dizendo que estão verificados todos os pressupostos para o decretamento da medida, devendo, pois, ser mantida a decisão recorrida.
4. O Ministério Público, em 1ª instância, também respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida, defendendo que se encontram verificados todos os pressupostos legais para o decretamento da medida cautelar de prestação económica.
5. E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sufragando o entendimento e considerações expendidas na resposta ao recurso do Ministério Público de 1ª instância, propugnando igualmente pela improcedência do recurso.

6. Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP e efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
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II – Fundamentação

Delimitação do objecto do recurso.

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, no presente, suscita-se apenas a questão de saber se estão verificados todos os pressupostos legais para o decretamento da medida cautelar (caução económica) a que a arguida foi sujeita.

Importa apreciar e decidir a enunciada questão. Para tanto, deve considerar-se como pertinente ao conhecimento do objecto o teor da decisão recorrida (transcrição):
«F. J., assistente nos presentes autos, veio, ao abrigo do disposto no artigo 227.º, n.º 2, do CPP, requerer que seja fixada caução económica a prestar pela arguida R. M..
Para tanto invocou existirem fundadas suspeitas da prática pela arguida dos crimes de abuso de confiança, qualificados, cujo tipo vem previsto no artigo 204.º, n.º 2 e 205.º, n.º4, alínea a), do CP, em concurso com um crime de desobediência qualificada. Sustentou que os valores de que a arguida se apropriou rondam os 500.000,00 €.
Alegou que a arguida, no decurso do inquérito, tem vindo a afirmar, em tom desafiante “a mim ninguém me apanha; ninguém me toca”; tem vindo a fugir à ação da justiça e não contacta com a sua advogada; tem família e amigos em França; desloca-se frequentemente a Espanha; é vista com um cidadão que tem “vida” no Brasil, de quem será íntima; no dia 26/08/2018 deslocou-se a Paris, onde foi vista a entrar em dependências bancárias, tendo regressado a 29/08/2018; afirma que se casou para se eximir ao cumprimento de decisões judiciais, apregoando “eu é que sei” “o que eles queriam sei eu, mas não lhe vão apanhar o rasto”; encontra-se a transportar dinheiro para França e a procurar compradores para os seus imóveis.
Mais sustenta que a arguida se apropriou de quantitativo superior a 500.000,00 € que se encontrava depositado em contas bancárias, pertença da herança aberta por óbito de sua mãe.
No sobredito contexto, pugna pelo fundado receio de que a arguida não venha a dispor de património suficiente para assegurar o pagamento da indemnização reparadora dos crimes em investigação.
Termina requerendo a prestação de caução económica de valor não inferior a 500.000,00 €, correspondente ao que pretende vir a reclamar em sede de pedido de indemnização civil.
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Pronunciando-se sobre a pretensão nos sobreditos termos enunciada, veio a arguida R. M. pugnar pelo seu indeferimento.
Para tanto sustentou que as faltas às diligências no processo 718/17.9T8BGC resultaram da sua ausência, em França, junto dos irmãos.
Invocou inexistirem provas da dissipação do seu património, tanto que é proprietária de dois prédios urbanos, um sito em Bragança e outro em Parada e, bem assim, de um veículo automóvel de marca Mercedes Benz, cujos valores são superiores a 500.00 € (valor que sustenta ser o do prejuízo reclamado pelo requerente – mas que, no contexto do requerimento inicial resulta vítreo tratar-se de mero lapso de escrita).
Mais alega que só após a prestação de contas a que está obrigada é que o assistente pode falar em valores concretos.
Admite ter ido a França, uma vez em junho de 2018 e outra umas semanas antes de 03/12/2018, para visitar os irmãos e sobrinhos.
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Por despacho de fls. 1242 foi indeferido o presente incidente, por manifesta inviabilidade, face à falta de alegação de factos concretizadores do fundado receio de dissipação do património e da redução da garantia patrimonial, bem como da caracterização do património da arguida ou sua (in)solvabilidade.
Interposto recurso dessa decisão, veio a ser proferido Acórdão que revogou o despacho recorrido, determinando a produção da prova oferecida quanto à eventual fixação de caução económica, após o que deverá ser proferida decisão em conformidade.
Nele se fez constar que: “Ao requerente da caução económica não é exigível que alegue e demonstre o património do requerido, a sua situação económico-financeira e a coteje com valor dos actos que a diminuam, até porque essa situação não é, por regra, do conhecimento público e antes se encontra quase sempre oculta e protegida.
Ao requerido é que cabe demonstrar que o receio de perda de garantia patrimonial não tem fundamento e que a diminuição do seu património não põe em causa essa garantia”.
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Em cumprimento do superiormente decidido, foi produzida a prova indicada pelo assistente.
O Ministério Público pugnou pelo acolhimento da pretensão do assistente, pelas razões aduzidas na promoção de fls. 1819-1820.
Em igual sentido se pronunciou o assistente, nos termos vertidos a fls. 1836-1841.
A requerida pronunciou-se nos termos constantes de fls. 1842-1844, pugnando pelo indeferimento da pretensão.
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II. Factos provados

Produzida a prova, resultam demonstrados os seguintes factos:
1. O requerente é filho de F. M. e de G. A..
2. G. A. faleceu em - de setembro de 1988.
3. Em 09 de junho de 2000 foi realizada partilha parcial dos bens que compõe a herança aberta por óbito de G. A..
4. O requerente instaurou contra a requerida, em 26 de dezembro de 2016, providência cautelar de arrolamento sob o n.º 1659/16.2T8BG.
5. Em 10 de janeiro de 2017 foi decretado o arrolamento dos bens que constituem a herança aberta por óbito de G. A..
6. Na execução de tal decisão foram arroladas:
- Em 12 de janeiro de 2017, as contas bancárias identificadas a fls. 524 e seguintes do anexo ao presente inquérito;
- Em 13 de janeiro de 2017, os bens móveis identificados a fls. 190 e seguintes do referido anexo, entre os quais um cofre em cujo interior se encontravam guardadas 81 libras em ouro;
- Em 17 de janeiro de 2017, os bens móveis identificados a fls. 521 e seguinte do mesmo anexo.
7. Em 29 de outubro de 2011 F. M. padecia de processo demencial com deterioração mental que lhe conferia uma incapacidade total para cuidar de si mesmo e dos seus bens.
8. Em 12 de fevereiro de 2016 F. M. outorgou, a favor da requerida, procuração para a livre movimentação, a débito e a crédito, de conta bancária n.º … do Banco ….
9. Após a data referida em 9 a conta ali aludida foi movimentada a débito e a crédito.
10. F. M. faleceu em - de julho de 2017.
11. Por sentença datada de 17 de novembro de 2017 foram verificados os pressupostos para a interdição definitiva de F. M., que não fora o seu falecimento, seria de decretar, e fixado o termo da incapacidade em 29 de outubro de 2011.
12. A requerida casou civilmente com F. M. em 04 de maio de 2017.
13. Em 19 de outubro de 2017 a requerida celebrou transação no processo 149/17.0T8BGC do Juízo Central Cível – J2 de Bragança, na qual reconheceu que a herança aberta por óbito de G. A. era dona de todos os bens identificados na petição inicial daqueles autos, exceção feita quanto aos depósitos bancários existentes no Banco, admitindo, porém, integrar aquela herança todo e qualquer saldo existente à data do óbito de G. A., ou seja, 8 de setembro de 1988.
14. A requerida foi constituída arguida no presente inquérito em 27 de abril de 2017.
15. Nos autos de processo comum n.º 718/17.9T8BGC, que correram termos pelo Juízo Local Cível de Bragança- J1, em audiência de discussão e julgamento, ocorrida em 03/12/2018, fez-se constar da ata respetiva:
“(…) AUSENTE: A Ré R. M., tendo a GNR de ... informado que a mesma não foi notificada por não ter sido localizada (…);
Após, interpelada a Ilustre Mandatária da Ré sobre o teor do Ofício da GNR de ..., pela mesma foi dito que há mais de uma semana que não consegue entrar em contacto com a sua constituinte, tendo a mesma fornecido ao Tribunal os dois contactos telefónicos daquela que são (…).
De imediato, por ordem da M.ma Juíza, foi tentado o contacto para os referidos dois números, encontrando-se os mesmos desligados. (…)
DESPACHO
Face às informações prestadas pela Ilustre Mandatária da Ré e pelo Autor F. J., mostrando-se claramente que a Ré está a furtar-se à obrigação de comparência no Tribunal para ser ouvida em declarações de parte ordenadas pelo Tribunal, encontrando-se aparentemente com paradeiro incerto, que a própria mandatária desconhece, e depois de ter faltado a duas sessões para a qual estava notificada, ao abrigo do disposto no artigo 417, n.º 2 e 508.º, n.º 4 (…) determino se oficie ao OPC para durante o dia de hoje e até às 16:00 horas, realizarem as devidas averiguações sobre o paradeiro da Ré (…), e caso seja encontrada, seja detida para comparência no dia de hoje até às 16:00 horas (…).
(…)
DESPACHO
Uma vez que a Ré R. M. não justificou no prazo legal a falta à última sessão de julgamento considere-se a condenação em multa processual no valor de 2 Ucs consignada na acta anterior.
Verificando que a Ré nunca compareceu em Tribunal quando para tal se encontrava notificada e colocou-se em parte incerta para obstar a que, através de meios coercitivos, fosse feita comparecer em Tribunal, do que estava previamente advertida, verifica-se uma ostensiva, inadmissível e intolerável falta de colaboração por parte da Ré. (…)”.
16. Nos mesmos autos foi emitida pela GNR certidão negativa de mandado de comparência sob custódia, datado de 03/12/2018, no qual se certificou que: “(…) após me ter deslocado à residência da mesma, bem como procurado a mesma na referida aldeia, e após interrogar vários residentes da aldeia pelo seu paradeiro, estes informaram não ter visto a visada [a arguida nestes autos] já há alguns dias.
Não foi possível apurar o paradeiro da mesma (…)”.
17. Nos mesmos autos foi emitida pela PSP certidão negativa de mandado de comparência sob custódia, datado de 03/12/2018, no qual se certificou que:”(…) não foi possível dar cumprimento ao Mandado de Comparência Sob Custódia de R. M., pelo seguintes factos:
No sentido de proceder à sua localização, deslocamo-nos à sua residência e ninguém abriu a porta ao chamamento. Foi contactado o Sr. A. J., o qual me informou que não sabia do paradeiro da mesma (…). Na minha presença o Sr. A. J. ligou para o número de telemóvel (…), pertencente à R. M. mas que esta não atendeu.(…)”.
18. Nos mesmos autos foi proferida sentença, datada de 05/02/2019, transitada em julgado, com o seguinte dispositivo:”
A) Julgo totalmente procedente, por provada, a presente ação e, em consequência:
a) Declaro a invalidade, por anulabilidade, com efeitos retroativos à data do mesmo, do casamento celebrado em 04.05.2017 entre F. M., já falecido, e R. M., registado no assento de casamento n.º 16 do ano de 2017 da Conservatória do Registo Civil de …;
b) Ordeno o averbamento da anulação ao assento de casamento e ao assento de nascimento de F. M. e da Ré.
B) Condeno a Ré, por litigância de má fé, numa multa de valor equivalente a 6 (seis) U.C.’s.”
19. A requerida tem irmãos em França.
20. Em finais de agosto de 2018 a requerida deslocou-se a França e, uma semana depois, regressou de autocarro.
21. Dias antes do Natal voltou a França e, 3 dias volvidos, regressou a Portugal.
22. Foi vista a entrar em dependências bancárias.
23. Após o regresso de França, a requerida anunciou “eu estou bem, o que eles queriam já não acham”.
24. Mais disse “eles não vão ter o que querem” e “o que eles queriam já não há”.
25. Os irmãos da requerida apresentam-se em Parada com carros de alta gama, designadamente de marca Porsche e Jeep.
26. A requerida tem, pelo menos, dois prédios urbanos e um veículo automóvel.
27. Não tem fontes de rendimento conhecidas.
28. Nos autos de prestação de contas sob o n.º 1581/17.5T8BGC foi proferida sentença, datada de 29 de dezembro de 2018, em cujo dispositivo consta:
“Pelo exposto, o Tribunal decide que a Ré [a aqui requerida] está obrigada a prestar contas da administração que fez, desde Outubro de 2011 a Janeiro de 2017, coincidente com o período de incapacidade de F. M.:
i) dos prédios rústicos pertencentes à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de G. A., melhor identificados na relação de bens de fls. 166v-182, incluindo todos os frutos nele percebidos e a lenha de árvores neles implantadas;
ii) das bombas de combustível existentes no armazém pertencente à referida herança;
iii) do lagar de azeite pertencente à referida herança;
iv) de todos os utensílios, equipamentos, veículos, tractores e máquinas utilizados na actividade da denominada “… Agrícola” e que são pertencentes à referida herança;
v) o ferro velho pertencente à referida herança; e
vi) de todas as contas bancárias (co)tituladas por F. M. onde estão depositados valores que são pertença da referida herança, incluindo o produto da sua rentabilização e da alienação de bens/frutos à mesma pertencentes;
E, em consequência, ordena a sua notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 942.º, n.º 5 do C.P.C.”
29. Nos aludidos autos, em 05 de julho de 2019, foi ordenado que a requerida corrigisse as contas apresentadas, completando-as e justificando-as documentalmente.
30. A requerida apresentou requerimento tendente a dar cumprimento à decisão vinda de referir.
31. Nos mesmos autos, o assistente reclama a favor dos autores um saldo de 989.357,13 €.
32. Naqueles autos foi proferido despacho, datado de 13 de janeiro de 2020, que indeferiu o pedido de rejeição das contas apresentadas pela requerida e, perante a contestação destas, designou tentativa de conciliação.

III. Factos não provados

i) A requerida tem vindo a afirmar “a mim ninguém me apanha; ninguém me toca”.
ii) Desloca-se várias vezes e com facilidade a Espanha.
iii) Nos últimos tempos é vista na companhia de um cidadão que tem “vida” no Brasil, e com o qual tem desenvolvido uma qualquer relação mais íntima.
iv) A requerida encontra-se a procurar compradores para os seus bens imóveis.

IV. Fundamentação de facto

A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e conjugada da prova por declarações, documental e testemunhal, reunida nos autos, tendo em consideração as regras deexperiência comum e os juízos de normalidade, à luz do princípio da livre convicção que, pari passu, guiou o Tribunal no suporte da decisão de facto.

Concretizando, e no que à prova documental concerne, atendeu-se:
- Ao assento de nascimento de fls. 15-16, quanto à prova do facto vertido em 1;
- Ao assento de óbito de fls. 18, quanto ao facto vertido em 2;
- À escritura de partilha de fls. 19-27, quanto aos factos mencionados em 3;
- Ao relatório psiquiátrico de fls. 30, do qual se retira o descrito em 7;
- Ao comprovativo de entrega de peça processual de fls. 31 e seguintes, quanto aos factos referidos em 4;
- Ao termo de constituição de arguido de fls. 106, do qual resulta o vertido em 14;
- À procuração de fls. 145, no que tange aos factos aludidos em 8;
- As extratos bancários combinados de fls. 153 e seguintes, quanto aos factos a que se alude em 9;
- Aos autos de arrolamento juntos ao anexo a estes autos, dos quais se retira o vertido em 6;
- Ao assento de óbito de fls. 680-681, quanto à prova do mencionado em 10;
- À sentença de fls. 632 e seguintes, quanto ao vertido em 11;
- À decisão de fls. 647 e seguintes, de cujo teor emerge o consignado em 5;
- Ao teor do assento de nascimento de fls. 675, quanto ao casamento a que se alude em 12;
- À ata de fls. 694, de cujo teor resulta o mencionado em 13;
- À certidão judicial de fls. 718 e seguintes, da qual se extrai o vertido em 13;
- Às atas, certidões negativas e sentença de fls. 1073-1083, 1085-1092 e 1295 e seguintes, quanto aos factos descritos em 15 a 18;
- À certidão judicial de fls. 1851 e seguintes, quanto aos factos mencionados em 28 a 32;
A prova dos factos vertidos em 19 a 27 estriba-se na conjugação das declarações prestadas pelas testemunhas C. A., A. C. e A. R., com as declarações prestadas pelo assistente F. J., sem descurar que a própria requerida, no articulado em que deduziu oposição ao incidente admitiu, embora com motivação distinta daquela que lhe imputa o assistente, as deslocações frequentes a França, tendo indicado o património a que se alude em 26. No mais, a factualidade a que nos reportamos foi relatada pelas referidas testemunhas, sem que nada nos respetivos depoimentos ou na forma como foram prestados abalasse a credibilidade que mereceram ao Tribunal, posto que nenhum vislumbre de dissimulação se lhes reconheceu, tendo, quanto à referida factualidade, as testemunhas deposto com adequada razão de ciência, reforçada - quanto às conclusões que extraíram das movimentações da requerida, da alteração do seu comportamento e da sua motivação – pelas regras da experiência comum e do normal devir da vida.
Tais declarações, conjugadas com a prova documental a que supra se aludiu, com o comportamento processual adotado pela requerida nos processos ali mencionados, permitem extrair uma imagem pouco colaborante e de algum entorpecimento na ação da justiça, permitindo, a par da grandeza das quantias em jogo nestes autos e do parco património que lhe é conhecido, fundar o receio objetivo e justificado quanto à capacidade das garantias de pagamento, caso se apurem os valores reclamados pelo assistente, evidenciando-se, pelo decorrer da ação de prestação de contas, que os mesmos podem ter sido indicados por defeito, aquando da instauração do incidente que ora se aprecia.

V. Fundamentação de Direito
Decorre do disposto no artigo 227.º do CPP que, havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização ou de outras obrigações civis derivadas do crime, o lesado pode requerer que o arguido ou o civilmente responsável prestem caução económica (cfr. n.ºs 3 e 2 da citada norma).
Conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1993, vol. II, págs. 270/271, a lei prevê apenas duas medidas de garantia patrimonial: a caução económica e o arresto preventivo. Ambas as medidas têm como finalidade processual garantir o pagamento da pena pecuniária, do imposto de justiça, das custas do processo ou do pagamento de qualquer indemnização ou obrigação civil derivada do crime (art. 227.º, n.ºs 1 e 2). A caução económica é aplicável relativamente a qualquer crime, independentemente da sua gravidade e da pena aplicável, desde que se verifique a probabilidade de um crédito sobre o requerido e o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento.
Seguindo de perto o Acórdão da Relação de Guimarães proferido nos presentes autos, as medidas de garantia patrimonial pressupõem a existência mínima de fundadas suspeitas da prática de um ilícito jurídico-criminal (cfr. artigo 1.º, alínea a) do CPP) e a existência de fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias patrimoniais (cfr. artigo 227.º, n.º 1 do CPP).
Outrossim, a caução terá de ser adequada à realização da finalidade que a justifica e proporcional à obrigação que se destina a garantir, estando, pois, sujeita aos princípios da adequação e proporcionalidade – princípios gerais previstos no artigo 193.º, n.º 1 do CPP, respeitantes à aplicação quer de medidas de coação, quer de garantia patrimonial (cfr. ob. citada, págs. 437-439).
A adequação e proporcionalidade da medida de garantia há-de ser aferida não em função da condição económica do arguido mas do valor a garantir, daí que não se exija a alegação e prova do património do arguido ou da sua (in)solvabilidade.
No caso, a arguida foi constituída nos autos nessa qualidade, o que revela a constatação em sede de inquérito da suspeita fundada que sobre ela recai da prática de crime (cfr. artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do CPP), suspeita essa que se retira quer das diligências probatórias realizadas nestes autos, quer da sua conjugação com as decisões proferidas nos processos 1659/16.2T8BGC (da qual flui ter sido, então, suficientemente indiciado que a requerida geria todo o património da herança aberta por óbito de G. A., fruindo-o como se coisa sua se tratasse, em seu próprio benefício e contra a vontade dos herdeiros que a ela concorrem), no processo 718/17.9T8BGC (da qual se retira ter a requerida assumido a gestão do património do falecido F. M. e, quando este já não conhecia as pessoas, designadamente os filhos, nem o dinheiro, nem conseguia orientar-se no tempo e no espaço e, por isso, tomar qualquer decisão sobre a sua vida, aproveitando-se da sua total incapacidade e vulnerabilidade, que bem conhecia, deslocou-o a Conservatória do Registo Civil para com ele contrair casamento, sem que F. M. tivesse qualquer consciência do ato celebrado) e no processo 1581/17.5T8BGC (do qual emerge a obrigatoriedade de a requerida prestar contas da administração que fez do património alheio desde outubro de 2017, dever jurídico que a mesma repudiou).
Outrossim, ainda que dos autos de prestação de contas não resulte, ainda, apurado o saldo resultante das receitas obtidas e das despesas realizadas, valorando as operações sustentadas pelo requerente, com apoio na prova documental junta a estes autos, resulta indiciada a existência de um crédito a favor das heranças, em quantia superior a 500.000,00 €.
Por outro lado, face à factualidade demonstrada, entendemos verificado o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias do pagamento da indemnização civil emergente do crime, que o requerente invoca. Para além da grandeza dos valores em foco, do parco património conhecido da requerida e, bem assim, a personalidade vertida na atuação indiciada, a inadimplência da obrigação legal de prestar voluntariamente contas, a alteração do seu padrão de comportamento após o óbito de F. M., o desconhecimento das fontes de rendimentos que lhe permitam manter o património imobiliário e mobiliário conhecidos, e a postura temerária que vem assumindo quanto à sua impunidade, convencem da seriedade do aludido receio.
Por conseguinte, verificados que se mostram indiciariamente os respetivos pressupostos, impõe-se deferir a pretensão do requerente.

VI. Dispositivo

Por tudo o exposto, deferindo integralmente o requerido, nos termos do disposto no art.º 227.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, ordena-se que a arguida/requerida R. M. preste caução económica, no valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), em qualquer uma das modalidades legalmente admissíveis (cfr. artigo 206.º, n.º 1, do CPP), no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado do presente despacho.
Custas a cargo da arguida/requerida, que no incidente saiu integralmente vencida (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, subsidiariamente aplicável, ex vi do artigo 4.º do CPP).
Valor do incidente: 500.000,00 € (quinhentos mil euros)
Notifique.».
*
III – A apreciação do recurso.

A recorrente, sem questionar a matéria de facto tida por provada (2), insurge-se apenas quanto à verificação dos pressupostos para o decretamento da medida cautelar que lhe foi aplicada, alegando, em síntese conclusiva, que decorre do n.º 2 do artigo 32º da Constituição da República que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação e que o facto de ter sido constituída arguida apenas indica que sobre si há indícios da prática do crime, não estando até ao momento apurado o grau de ilicitude e a sua culpabilidade.
Aduz, ainda, que os factos que foram dados como provados são insusceptíveis de preencher o justificado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização civil emergente do crime, pressuposto essencial para o decretamento da providência, uma vez que, apenas estão alicerçados em simples apreciações do seu comportamento, nada se tendo provado quanto à dissipação do património.
Também sustenta que aos requisitos legais previstos no art.º 227º, n.º 3 do Código de Processo Penal, a jurisprudência recente tem ainda salientado a capacidade económica do requerido, o que não foi indagado, assim como era condição essencial que o assistente indicasse os termos em que a caução deveria ser prestada.

Vejamos se lhe assiste razão.

Estabelece o artigo 227º, n.º 3, do Código de Processo Penal (3) que «havendo fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização ou de obrigações civis derivadas do crime, o lesado pode requerer que o arguido ou o civilmente responsável preste caução económica.»
Como imediatamente se retira do teor literal do normativo em análise, trata-se de uma medida de garantia patrimonial, cuja finalidade processual visa garantir o pagamento da indemnização ou obrigação civil derivada do crime, aplicando-se a qualquer tipo de crime, independentemente da sua gravidade e da pena aplicável, desde que se verifique a probabilidade de um crédito sobre o requerido e o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento (4).
E, conforme é mencionado por Paulo Pinto de Albuquerque (5), a caução económica depende apenas da prévia constituição de arguido e pode até ser requerida contra o responsável civil, se requerida pelo assistente.
Outrossim, a caução económica, enquanto medida de garantia patrimonial, distingue-se da caução como medida de coacção e dela permanece distinta e autónoma no decurso do processo, sendo também diferentes os critérios para a sua fixação e respectivos pressupostos (n.º 5 do art. 227º).
Do enunciado, resulta que basta a constituição de arguido, independentemente do tipo de crime e do grau de culpa, a par da existência de probabilidade de se vir a constituir um crédito e de que o arguido está a diminuir ou a fazer desaparecer – ou que há o receio justificado, objectivo e claro de que se prepara para diminuir ou fazer desaparecer – os seus bens, por forma a subtrair-se ao pagamento da indemnização em que muito provavelmente virá a ser condenado.
A estes pressupostos, alguma jurisprudência recente tem ainda salientado como requisito para a prestação da caução, a capacidade económica do requerido.
Realmente, salientou-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 28/1/2015 (sumário) (6): «I - Nos termos do artigo 227.°/2 do CPP, é requisito da caução económica o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias do pagamento da indemnização civil emergente do crime. II- A norma é omissa quanto à capacidade económica do requerido para a sua prestação. III -Contudo, é inerente à exigibilidade da prestação de caução a viabilidade da sua prestação, sob pena de prática de acto processual inconsequente e inútil, proibido por lei, artigo 130.º C P Civil. IV- A simples existência de um arresto da totalidade dos bens, à ordem de outro processo, é indício fortíssimo, ainda que por fundamentos distintos, de que ocorreram e se mantêm legítimas suspeitas da dissipação desses bens, ou seja, de periculum in mora para qualquer obrigação de que os arrestados sejam titulares, porque está em causa uma apreciação judicial sobre um dado objectivo e genérico - que abarca em si todos e quaisquer créditos sobre os requeridos – que é a suspeita da intenção de subtracção dos bens próprios ao pagamentos de créditos que lhes venham a ser exigidos.»
Todavia, há ainda que ter presente, como sublinha o Prof. Germano Marques (7), que «a caução terá de ser adequada à realização da finalidade que a justifica e proporcional à obrigação que se destina garantir, estando pois sujeita aos princípios da adequação e proporcionalidade».
Revertendo ao caso concreto, dúvidas não subsistem, que a recorrente foi constituída arguida no âmbito do inquérito de que emerge o presente incidente (8), por haver suspeitas/indícios da prática, entre outros, de crimes de abuso de confiança qualificada, por alegadamente ter acedido a contas bancárias e se ter apropriado de quantias monetárias que não lhe pertenciam.
Assim, independentemente do resultado final do inquérito em curso e da possibilidade de contra a recorrente vir a ser ou não deduzida uma acusação, o certo é que a lei se basta com a constituição de arguido [(art. 58º, n.º 1, alínea a) do CPP)] como um dos requisitos para o preenchimento da obrigação de prestar caução. Do que resulta a inadequação do apelo da recorrente à violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (9), com a ideia de que não ainda não se mostra condenada por sentença transitada em julgado e que não se pode ter por assente a sua culpabilidade e o grau de ilicitude e daí que não possa ser fixada a caução.
Mas, para que se ordene a um arguido que preste caução económica são ainda necessários, pelo menos, mais dois requisitos, sem os quais não poderá obter provimento o requerimento do Ministério Público, lesado ou assistente, como no caso sucede: (i) a probabilidade de constituição de um crédito sobre o arguido e (ii) o receio justificado, objectivo e sério de que o mesmo está a diminuir ou a fazer desaparecer os bens por forma a eximir-se ao pagamento da indemnização.
Vejamos, agora, da existência da probabilidade de se vir a constituir um crédito sobre a arguida, resultante da prática de crime, que, se provado em julgamento, imporia a restituição ao lesado das quantias que se venha a apurar terem sido obtidas por forma ilícita.
Ora, do cotejo dos factos provados, essa probabilidade é muito incipiente, nada há nos mesmos que reflicta a existência de um crédito sobre a arguida e qual o seu montante. Fica-se pela existência de meros indícios da prática pela arguida de crimes de abuso de confiança, por alegadamente se ter apropriado de quantias monetárias que não lhe pertenciam, obtendo vantagem patrimonial que, se viesse a apurar-se em julgamento ter sido obtida por forma ilícita, ficaria obrigada a restituir ao respectivo titular.
Não há acusação formulada contra a arguida a apontar para qualquer valor de que supostamente a mesma se tenha apropriado e também não consta dos autos qualquer elemento que sugira, ao menos provisoriamente, o montante da indemnização a acautelar por ser aquele a que, provavelmente, a requerida poderia vir a ficar adstrita.
Aliás, na decisão recorrida, apenas em sede de fundamentação de direito se considera estar genericamente indiciada a existência de um crédito em quantia superior a quinhentos mil euros, mas sem qualquer apoio na factualidade considerada indiciada e sem a respectiva fundamentação.
Nem o facto de ter sido judicialmente reconhecida a obrigação de a arguida prestar contas acerca da gestão dos bens permite concluir, por si só, o crédito a que o requerente se arroga: uma coisa é a obrigação de prestação de contas e a subsequente fase da sua verificação e outra, bem diferente, é saber se a requerida tem alguma coisa a restituir e qual montante, sendo certo que, por ora, apenas se encontra provado que «foi proferido despacho que indeferiu o pedido de rejeição das contas apresentadas pela requerida» (facto nº 32).
Além disso, nada nos factos provados permite sequer sondar a razão pela qual a caução apropriada deveria ser de € 500.000 (como requerido e decidido) e não de qualquer outro montante, sendo seguro que o facto de o assistente ter reclamado na prestação de contas um saldo de € 989.357,13 apenas demonstra que é essa a sua pretensão e nada mais.
Mesmo não olvidando a natureza cautelar e provisória da medida e que, por isso, bastaria uma prova perfunctória da probabilidade da existência do direito, é incontornável reconhecer que essa prova, sendo indispensável para que tal probabilidade se pudesse afirmar, não existe minimamente.
Não se pode supor que a necessidade da caução e do respectivo montante dependeriam do pleno arbítrio do requerente, antes tem de resultar da conjugação de um conjunto de factores que não estão demonstrados nos autos, sob pena de a caução redundar num intolerável meio de constrangimento da vida da requerida, nomeadamente paralisando-lhe a vida económica e pessoal até à decisão final, e de colocar em crise os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidades inerentes ao estado de direito.
Por outro lado, mesmo que se pudesse defender que a probabilidade da existência do crédito apenas dependeria da constituição de arguida e da mera existência de indícios da prática do crime, sempre se imporia complementarmente, como dissemos, a prova da existência de receio justificado, objectivo e sério de que aquela está a diminuir ou a fazer desaparecer os bens por forma a eximir-se ao pagamento da indemnização. Ou seja, da ocorrência de factos concretos, claros e precisos donde se pudesse extrair inequivocamente que a arguida está a desfazer-se dos bens que possui para obstar ao cumprimento das suas obrigações (pagamento da indemnização).
Simas Santos/Leal Henriques (10), elucidam que «A caução económica só pode ser decretada perante a ocorrência de receio objectivo, justificado e claro relativamente à capacidade das garantias e face a uma substancial e significativa diminuição daquelas».
Na mesma senda, afirma-se no acórdão da Relação de Coimbra de 5/3/2000 (11): «A caução económica, apresentando-se como medida cautelar que visa assegurar a satisfação de um direito de crédito, pressupõe que entre a constituição deste e o seu reconhecimento ocorram factos concretos, promovidos pelo devedor, que se traduzam na dissipação do seu património, de modo a fazer prever que o credor perderá, ou pelo menos, verá seriamente diminuída a garantia do seu crédito.».
Em sentido idêntico, pronunciou-se o acórdão da Relação de Lisboa de 5/2/92 (12), asseverando que «Se o "modus operandi" do arguido criar fundadamente o receio de que faça diminuir ou desaparecer os seus haveres para se subtrair ao pagamento de qualquer indemnização, pela qual provavelmente virá a ser condenado, deve fixar-se uma caução económica correspondente a essa indemnização».
Ou, ainda, o acórdão da Relação do Porto de 20/11/96 (13), no qual se escreveu: «II - A exigência contida no n. 2 deste último preceito (o art.º 227.º, do Código de Processo Penal), quando alude a «fundado receio de falta ou substancial diminuição das garantias de pagamento, supõe a verificação, em concreto, desse fundado receio – a acrescer ao juízo sobre a culpabilidade do arguido relativamente aos factos objecto do processo –, e não como « ilação automática ou presuntiva extraída da mera imputação desses factos».
A mesma Relação do Porto, por acórdão de 19/02/1997 (14), decidiu: « I - O requerente da caução económica tem de provar, em especial: a) o chamado " fumus boni juris ", isto é, a aparência do seu direito consubstanciado na probabilidade de um crédito sobre o requerido; b) o " periculum in mora ", traduzido no " fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento ", devendo tal receio ser objectivo, concretamente justificado. O requerimento há-de fundamentar-se na incapacidade grave de o património activo do requerido cobrir as suas dívidas, ou no receio de esbanjamento dos seus bens.»
E, mais recentemente, o acórdão da Relação de Évora de 15-03-2005 (15) obteve o seguinte sumário: «Para que se ordene a um arguido que preste caução económica são necessários dois motivos: Primeiro, que exista a probabilidade de se vir a constituir um crédito sobre o arguido. Segundo, que haja o receio justificado de que o arguido se prepara para diminuir ou fazer desaparecer ou já anda a diminuir e a fazer desaparecer o seu património com a intenção maldosa de se subtrair ao pagamento das quantias em que provavelmente virá a ser condenado».
Exige-se o receio justificado de que o arguido já anda a diminuir e a fazer desaparecer o seu património, ou prepara-se para o fazer, com a intenção maléfica de se subtrair ao pagamento das quantias em que provavelmente virá a ser condenado.
No caso vertente, a Sra. Juíza justificou o receio do seguinte modo: «(..) Por outro lado, face à factualidade demonstrada, entendemos verificado o fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias do pagamento da indemnização civil emergente do crime, que o requerente invoca. Para além da grandeza dos valores em foco, do parco património conhecido da requerida e, bem assim, a personalidade vertida na atuação indiciada, a inadimplência da obrigação legal de prestar voluntariamente contas, a alteração do seu padrão de comportamento após o óbito de F. M., o desconhecimento das fontes de rendimentos que lhe permitam manter o património imobiliário e mobiliário conhecidos, e a postura temerária que vem assumindo quanto à sua impunidade, convencem da seriedade do aludido receio.».
Desde já adiantamos que não é convincente a argumentação avançada pela Sra. Juíza para justificar o justo receio, na medida em que se limita a aludir ao comportamento, à personalidade, à inadimplência da obrigação legal de prestar contas e à alteração do padrão de comportamento da arguida após o óbito de F. M., extraindo ilações que também não têm sustentação nos factos provados.
Com efeito, de tais factos não se descortina qualquer esteio para esse receio de que a arguida procura dissipar os bens para não pagar a indemnização a que eventualmente venha a ser condenada, que não tenha prestado contas e, muito menos, tenha mudado o seu comportamento após o falecimento de F. M..
Pelo contrário, retira-se que, na acção de prestação de contas, como já se disse, a arguida prestou contas da sua gestão, abarcando o período de Outubro de 2011 a Janeiro de 2017, tendo sido indeferido o pedido de rejeição das mesmas formulado pelo assistente e após contestação foi designada data para uma tentativa de conciliação.
Mais se obtém que a arguida não compareceu à audiência de julgamento no âmbito do processo com o n.º 718/17.9T8BGC para a qual se encontrava devidamente notificada, mas daqui não se pode concluir, sem mais, que anda fugida à justiça.
Igualmente, não é pelo facto de a arguida ter ido a dependências bancárias em França que se pode retirar a ilação de que anda a dissipar o dinheiro. O mesmo se diga, quanto ao facto de os seus irmãos serem proprietários de veículos automóveis de alta cilindrada, como alegava o assistente, mas sem extrair dessa alegação qualquer consequência para o que nos ocupa.
Também as expressões que a arguida anunciou e que ficaram a constar dos factos, desacompanhadas de qualquer outro comportamento concreto, não podem assumir, por si só, qualquer relevo.
Na verdade, o fundado receio a que alude o preceito tem que ser alicerçado em factos concretos que o legitimem, à luz das regras da experiência e da normalidade comum.
É por demais evidente que tais factos, lidos à luz das regras da experiência e normalidade da vida, não significam que a arguida ande a querer dissipar os seus bens. Não existe nos mesmos qualquer acto concludente, objectivo, que permita inferir que aquela tem intenção de dissipar o seu património por forma a não ser responsabilizada pelo eventual pagamento de qualquer indemnização.
E, com segurança, até foi dado como não provado que a arguida se encontrasse a procurar compradores para os seus bens imóveis, este sim, o único facto que, sobre o que é fulcral, poderia revelar a intenção de a mesma se furtar ao cumprimento de qualquer obrigação de índole patrimonial.
Em suma, os factos não demonstram que a arguida/recorrente adoptou, ou tenha o propósito de adoptar, ou seja de presumir que venha a adoptar condutas relativamente ao seu património susceptível de fazer recear pela sua dissipação com o propósito de não satisfazer o pagamento de qualquer indemnização a que venha a ser condenada.
Neste contexto, entendemos que também não se encontram demonstrados factos integradores do fundado receio de diminuição da garantia patrimonial, com objectividade, seriedade e actualidade do perigo de perda dessa garantia e com a necessidade de ser acautelado com a pretendida medida.
Razão pela qual não acompanhamos a douta decisão recorrida: a invocação nela feita do “justo receio” não encontra fundamento em qualquer facto concreto e palpável, apenas é alicerçada em conjecturas, dúvidas e nos receios meramente subjectivos do requerente.

Assim, procede o recurso, ficando prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos deste.
*
Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, em julgar procedente o recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida e indeferir a requerida prestação de caução.

Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC´s.
Guimarães, 17/12/2020

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 Corrigidas de lapsos de escrita.
2 Com efeito, a requerida não a impugna nos termos legais [art. 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c)], tal como os demais sujeitos processuais, incluindo o assistente, pelo que são completamente despiciendas todas as considerações de cariz fáctico que não tenham suporte na matéria definitivamente fixada.
3 Na redacção que lhe foi conferida pela Lei 30/2017 de 30/5.
4 Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol II, pag. 437.
5 In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, pág. 626.
6 Proferido no proc. 478/10.4TDLSB-D.L1.-3.
7 Ob. cit. pág. 439.
8 Em 27 de abril de 2017.
9 Que prescreve que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação».
10 In Código de Processo Penal (1999), I, 1096.
11 Proferido no proc. 627/00.
12 Proferido no proc. 0271893.
13 Proferido no proc. 9610566.
14 Proferido no proc. 9610831
15 Proferido no proc. 1593/04.