Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4397/19.0T8VCT.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
JUNTA MÉDICA DA ESPECIALIDADE
ESTUDO DO POSTO DE TRABALHO
INQUÉRITO PROFISSIONAL
IPATH
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Se na fase conciliatório dos autos foi solicitado parecer da especialidade de ortopedia, impõe-se em conformidade com o previsto no n.º 2 do art.º 139.º do CPT. a realização de uma junta da especialidade de ortopedia, ou seja, na junta médica deveriam ter participado pelo menos dois ortopedistas.
II - Não estando o laudo de junta médica elaborado em conformidade com o previsto no ponto 8 das instruções gerais a TNI, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro, padecendo de insuficiência de fundamentação e não estando os Srs. Peritos Médicos habilitados a proceder à realização da perícia, uma vez que no caso haveria lugar à realização de uma perícia da especialidade de ortopedia, impõe-se a anulação do exame por junta médica.
III – Estando em causa a atribuição ou não de IPATH, e não constando à data da realização da junta médica, qualquer estudo fundamentado e imparcial sobre o conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e as condições em que deve ser desempenhado, e não tendo sido oportunamente realizados, como se impunha, Inquérito Profissional e Análise do Posto de Trabalho que permitiriam um maior rigor na avaliação das incapacidades resultantes de acidente de trabalho e na apreciação jurisdicional, impunha-se ao tribunal a quo que antes de proferir decisão, tivesse lançado mão do mecanismo legal previsto no n.º 7 do art.º 139.º do CPT, que, pela sua finalidade, teria suprido a omissão cometida.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: COMPANHIA DE SEGUROS X, S.A.
APELADO: J. P.
Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo do Trabalho de Viana do Castelo – Juiz 1

I – RELATÓRIO

Na fase conciliatória dos presentes autos com processo especial emergentes de acidente de trabalho, em que é sinistrado J. P. e responsável COMPANHIA DE SEGUROS X, S.A., foi realizada a competente perícia médico-legal pelo Gabinete Médico Legal e Forense do Minho-Lima em 15/06/2020, tendo o Sr. Perito Médico concluído, depois de ter solicitado um parecer da especialidade de ortopedia, estar o sinistrado afectado de uma IPP de 16,3% e com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.
Teve lugar a realização de tentativa de conciliação, não tendo sido possível obter o acordo.

Por esse facto veio a entidade responsável requerer a realização de junta médica, nos termos do artigo 138.º n.º 2 do C.P.T., e formulou os seguintes quesitos:

1. Quais as sequelas das lesões sofridas no acidente de que o sinistrado é portador?
2. Qual o seu enquadramento na T.N.I.?
3. Encontra-se o sinistrado incapacitado, definitivamente, para a profissão de Técnico de Telecomunicações?
4. Qual a situação clínica no período de 28/11/2019 a 12/12/2019?
Teve lugar a realização de junta médica tendo os Srs. Peritos Médicos entendido, em 18/12/2020 e por unanimidade, que, para responder a estes quesitos o sinistrado devia “ser avaliado por uma junta de especialidade de Medicina do Trabalho”.
Seguidamente, o Mmº Juiz determinou que se deprecasse a realização de junta médica dessa especialidade. O Tribunal Judicial da Comarca de Braga, para onde fora expedida essa deprecada, após realizar diversas tentativas no sentido do respectivo cumprimento, não logrou reunir peritos médicos com essa especialidade que possibilitassem a realização da junta médica de medicina do trabalho, tendo devolvido essa deprecada sem a cumprir.
Recebida a deprecada não cumprida, o Mmº Juiz a quo determinou que os Srs. Peritos Médicos concluíssem o respectivo laudo com os elementos disponíveis ou outros que entendam necessário.
Os senhores peritos médicos que compunham a junta médica voltaram a reuniram em 30 de Abril de 2021, respondendo por maioria e da seguinte forma aos quesitos apresentados:
“1º) Rigidez acentuada do joelho direito com amiotrofia de 1 cm.
2º) Ver quadro anexo.
3º) É de admitir IPATH devido às sequelas presentes.
4º) Conforme relatório do GMLF, encontrava-se em ITA”.

No quadro referido na resposta ao quesito 2º, os senhores peritos atribuíram ao sinistrado uma IPP de 12,6%, por maioria. Pelo perito médico da seguradora foi dito “que necessita dos registos clínicos anteriores ao evento do C. S. da A. (Guimarães) e do C. S. P. (Dr. E.) bem como dos registos clínicos do Departamento Médico do …. Refere também que o sinistrado não foi presente a Junta Médica de Medicina do Trabalho para se pronunciar quanto â IPATH, esta Junta deverá ser realizada na Ordem dos Médicos”.
A Seguradora/Apelante reclamou deste auto de Junta Médica, pugnando pela realização de nova junta médica após a junção aos autos dos elementos clínicos solicitados pelo seu perito médico, bem como pela necessidade de obtenção de parecer fundamentado, por parte dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral, quanto à eventual situação de IPATH do sinistrado.
O Tribunal a quo na sequência da pretensão da Apelante determinou que fossem solicitados os elementos clínicos pretendidos pelo perito médico da responsável.

No auto de continuação de Junta Médica, que teve lugar no dia15 de Outubro de 2021, os Peritos médicos exararam o seguinte:
“Uma vez que tudo o solicitado na Junta Médica prévia, em 30.04.2021, insiste-se no envio de: “1º) documentação clínica do centro A. (Guimarães); 2º) Centro de Saúde de P. Dr. E.; 3º) Registos clínicos do Departamento Desportivo Médico do CLUB …; 4º) Junta Médica de Medicina do Trabalho, que poderá ser realizada na Ordem dos Médicos”.
Por despacho de 20 de Outubro de 2021, o Mmº Juiz do processo decidiu: ”Os documentos solicitados pela Junta Médica já se encontram juntos ao processo, como consta da informação. Por outro lado, e como já ficou exarado no nosso anterior despacho, não é possível a realização de junta da especialidade de medicina do trabalho. Assim, deverá a junta concluir o seu laudo com os elementos disponíveis.”.
Em 18 de Fevereiro de 2022, teve lugar a junta médica que por maioria deu o seguinte parecer: “Em resposta ao quesito em falta por responder, os peritos do sinistrado e do GMLF (por maioria) consideram que ao sinistrado deveria atribuída IPATH pelas sequelas resultantes do evento em apreço, pelo que subscrevem o referido na Junta Médica do dia 30/04/2021. Pelo perito da seguradora foi dito que subscreve na íntegra o que está registado pelo perito médico da seguradora (Dr. F. D.), isto é, nas fls. 75, e a fls. 68, nas quais é referido que o sinistrado deveria ser submetido a uma Junta de Trabalho a realizar na Ordem dos Médicos.”

Por fim, foi pelo Mmº Juiz a quo proferida a seguinte decisão:
“Os presentes autos referem-se a um acidente de trabalho de que foi vitima J. P., ocorrido em 16/5/07, quando prestava a sua actividade de técnico de telecomunicações, mediante a retribuição anual de €10.833,34.
A entidade patronal havia transferido a sua responsabilidade para a Companhia de Seguros “X” pela totalidade daquela remuneração.
O G.M.L. considerou-o curado, atribuindo-lhe uma I.P.P. de 16,3%, com IPATH.
Foi requerida junta médica, a qual se pronunciou, porém, no sentido de ser apenas portador de uma IPP de 12,6%, com IPATH, tendo tido as incapacidades temporárias atribuídas pelo GML.
Cumpre decidir.
Não há razões para discordar do laudo maioritário dos senhores peritos médicos que constituíram a junta médica, bem como do laudo do GML quanto à IPATH, os quais se mostram de acordo com a T.N.I., pelo que se considera o sinistrado clinicamente curado das lesões resultantes do acidente dos autos, tendo ficado com a I.P.P. de 12,6% e IPATH, condenando a supra identificada companhia de seguros a pagar:
- a pensão anual e vitalícia de €5.689,67, com início no dia 13/12/2019;
- a quantia de €4.243,88 a título de subsídio de elevada incapacidade;
- a quantia de €249,32 de diferenças nas incapacidades temporárias;
- €30,00 de despesas de transportes;
- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%.
Custas pela seguradora, fixando-se à causa o valor de €101.321,55.
Honorários médicos de acordo com a tabela.
Notifique e registe.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a Seguradora responsável interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, no qual formula as seguintes conclusões:
“1. Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls. , que decidiu estar o sinistrado afectado de uma IPP de 12,6%, com IPATH, condenando a ora apelante a pagar-lhe a pensão anual e vitalícia de 5.689,67 €, a partir de 13 de Dezembro de 2019, acrescida de subsídio de elevada incapacidade permanente no montante de 4.243,88 € e ainda as quantias de 249,32 € de diferenças nas incapacidades temporárias e de 30,00 € de despesas de transportes.
2. Salvo o devido respeito, esta decisão deve ser revogada, por enfermar de erro de interpretação e aplicação da lei aos factos, ao considerar que o sinistrado se encontra afectado de uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.
3. Com efeito, na sequência da instauração de processo emergente do acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado em de acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado em 03/05/2019, foi realizada a competente perícia médico-legal pelo Gabinete Médico Legal e Forense do Minho-Lima.
4. Esse exame médico, realizado em 15/06/2020, concluiu estar o sinistrado afectado de uma IPP de 16,3% e – sem a realização de exames complementares de diagnóstico e apenas com base nas declarações do sinistrado – com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual
5. Não se conformando com esse resultado, a ora recorrente requereu exame por junta médica formulando os seguintes quesitos: “1. Quais as sequelas das lesões sofridas no acidente de que o sinistrado é portador? 2. Qual o seu enquadramento na T.N.I.? 3. Encontra-se o sinistrado incapacitado, definitivamente, para a profissão de Técnico de Telecomunicações? 4. Qual a situação clínica no período de 28/11/2019 a 12/12/2019?”
6. Esse requerimento foi aceite pelo Mtº Juiz recorrido, que ordenou a realização da junta médica requerida, que veio a concluir que o sinistrado se encontra afectado por IPATH, mas sem justificarem minimamente essa decisão, respondendo ao quesito em que se levantava tal questão com um singelo sim:
“… consideram que ao sinistrado deveria atribuída IPATH pelas sequelas resultantes do evento em apreço, pelo que subscrevem o referido na Junta Médica do dia 30/04/2021”, sendo que nessa reunião da Junta Médica de 30/04/2021 os médicos do sinistrado e do GMLF tinham respondido a esse quesito 3º (Encontra-se o sinistrado incapacitado, definitivamente, para a profissão de Técnico de Telecomunicações?) da seguinte forma “É de admitir IPATH devido às sequelas presentes“.
7. Ora, para decidir quanto ao grau de incapacidade a atribuir ao sinistrado e para decidir pela atribuição de IPATH, o Mtº Juiz recorrido aceitou o coeficiente de desvalorização proposto pela maioria dos senhores peritos médicos que realizaram a junta médica e para decidir pela IPATH apoiou-se também no resultado dessa mesma maioria que entendeu que o sinistrado está afectado de IPATH,
8. Mas não justificou o Mtº Juiz, por qualquer forma, essa atribuição, sendo certo que em momento algum do processo foi trazida a descrição de todos os actos que integram a profissão de técnico de telecomunicações e quais aqueles que o sinistrado efectivamente realizava no exercício da sua profissão habitual e quais aqueles que se mostrava impedido de realizar face às sequelas consideradas e quais aqueles que conseguia realizar, embora com as dificuldades acrescidas e inerentes à IPP que lhe foi atribuída.
9. Da falta de alegação de tais factos resulta, naturalmente, a impossibilidade de os provar ou dar como provados e de requisitar prévio parecer de peritos especializados quanto à existência de IPATH.
10. Com efeito, para fundamentar a sua decisão o Mtº Juiz a quo limita-se a escrever: “Não há razões para discordar do laudo maioritário dos senhores peritos médicos que constituíram a junta médica, bem como do laudo do GML quanto à IPATH, os quais se mostram de acordo com a T.N.I., pelo que se considera o sinistrado clinicamente curado das lesões resultantes do acidente dos autos, tendo ficado com a I.P.P. de 12,6% e IPATH.”
11. Não tinha, pois, o Mtº Juiz recorrido os elementos necessários e obrigatórios para poder determinar se o sinistrado se encontra afectado de IPATH, assim como não fundamentou minimamente a sua adesão à opinião neste sentido da maioria dos médicos que integraram a junta médica, sendo certo que estes também não fundamentaram essa sua opinião, pelo que a remessa para esse auto de junta médica implica, necessariamente, falta de fundamentação daquela decisão quanto à matéria de facto.
12. Acresce que, como já se aflorou, nos termos do artigo 21.º nº 4 da LAT, “a convicção da atribuição de IPATH passa também, sob pena de insuficiência probatória, pela caracterização do trabalho habitual do sinistrado, da actividade exigida e no confronto com as reais sequelas advindas ao sinistrado em consequência do acidente” (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 16/11/2018, in www.dgsi.pt), sendo “que é aconselhável a requisição de parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério pela área laboral. O que também resulta da instrução geral 13-b) da T.N.I.”
13. No presente processo, não existem quaisquer pareceres prévios de peritos especializados, nomeadamente, dos serviços competentes do Ministério responsável pela área laboral,
14. E não foi feita a caracterização do trabalho habitual do sinistrado e da actividade exigida para a sua realização,
15. Nem foi feito o indispensável confronto com as reais sequelas advindas ao sinistrado em consequência do acidente.
16. Assim, ao decidir que o sinistrado está afectado de uma incapacidade permanente parcial de 12,6%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), desde 13 de Dezembro de 2019, e ao decidir, consequentemente, que o sinistrado tem direito a uma pensão anual e vitalícia de 5.689,67 € desde essa data, acrescida de subsídio de elevada incapacidade permanente no montante de 4.243,88 €, a douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 21º-4, 48º-3-b) e c), 67º-3 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, e a instrução geral 13-b) da T.N.I. aprovada pelo Decreto-Lei 352/2007, de 23 de Outubro,
17. Pelo que essas decisões devem ser revogadas e substituídas por outra que julgue que as sequelas que afectam o sinistrado em consequência do acidente dos autos o desvalorizam em 12,6%, sem IPATH, a que corresponde a pensão anual de 955,50 €, com base na retribuição anual de 10.833,34 €, com a correspondente absolvição parcial da recorrente dos pedidos formulados neste processo.
Assim se fazendo J U S T I Ç A !”
O sinistrado com o patrocínio do Ministério Público veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência
*
Admitido este recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – DO OBJECTO DOS RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 608º n.º 2, 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam, a única questão que se coloca à apreciação do Tribunal é de saber se a sentença recorrida se encontra desprovida de fundamentação relativamente à atribuição de IPATH ao sinistrado.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade apurada é a que consta do relatório supra, acrescida da seguinte:
1 – O sinistrado J. P. foi vitima de acidente no dia ..-05-2007, quando prestava a sua actividade de técnico de telecomunicações, mediante a retribuição anual de €10.833,34.
2 - A entidade patronal havia transferido a sua responsabilidade para a Companhia de Seguros “X” pela totalidade daquela remuneração.
3 - O G.M.L. considerou-o curado, atribuindo-lhe uma I.P.P. de 16,3%, com IPATH.
4- Foi requerida junta médica, a qual se pronunciou, porém, no sentido de ser apenas portador de uma IPP de 12,6%, com IPATH, tendo tido as incapacidades temporárias atribuídas pelo GML.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Da falta de fundamentação da sentença recorrida referente à atribuição de IPATH

Importa apurar se ocorreu ou não uma errada valoração do exame por junta médica no que respeita à atribuição de IPATH, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 21º n.º 4, 48º n.º 3-b) e c), 67º n.º 3 da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (doravante NLAT) e a instrução geral 13-b) da T.N.I. aprovada pelo Decreto-Lei 352/2007, de 23 de Outubro, cometido pelo Tribunal a quo.
Como é sobejamente sabido o exame por junta médica constitui uma modalidade de prova pericial, que se rege não só pelo disposto no art.º 139.º do CPT., mas também pelas normas do Código do Processo Civil que disciplinam este meio de prova, relativamente ao qual o CPT é omisso (cfr. art.º 1.º n.º 2, al. a) do CPT e arts. 467.º e seguintes do CPC) estando assim sujeita à regra da livre apreciação pelo juiz (cfr. art.º 389º do Código Civil e arts. 489º e 607º, nº 5 do CPC).
A prova pericial tem por objecto, tal como resulta do prescrito no art.º 388.º doo Código Civil “(…) a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem” ou quando os factos “relativos a pessoas, não devem ser objecto de inspecção judicial”.
Assim, como refere Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, no Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 578, a função do perito é a de “auxiliar do tribunal no julgamento da causa, facilitando a aplicação do direito aos factos”, sendo “um agente de prova e que a perícia constitua um verdadeiro meio de prova”.
Contudo, sem deixar de salientar a função preponderante deste meio de prova, designadamente da colegial, tal não significa que o julgador esteja vinculado ao parecer dos peritos, pois o princípio da livre apreciação da prova permite-lhe que se desvie do parecer maioritário ou unanime daqueles.
Como bem refere a este propósito o Prof.º Alberto dos Reis, no Código do Processo Civil Anotado Vol. IV, Coimbra Editora, 1962, pág. 186 “(…) É dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe em atenção à análise crítica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas
Pode realmente num ou noutro caso concreto, o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo, como adverte Mortara; mas isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra elas quaisquer outras provas; pode significar também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante.”
Do acima referido fica claro que não são os peritos quem decidem, mas sim cabe ao juiz a decisão que para tanto deve tomar em consideração a posição assumida pelos peritos, e para que tal suceda é fulcral que as respostas aos quesitos e/ou a fundamentação do laudo pericial permitam com segurança e habilitar o julgador a analisar e ponderar o grau de incapacidade a atribuir.
O laudo de junta médica não é vinculativo, devendo por isso ser apreciado como qualquer outro meio de prova. Contudo, estando em causa um juízo técnico-jurídico, para dele divergir o julgador tem de fundamentar essa divergência, impondo-se uma especial exigência da fundamentação, assente preferencialmente em opinião ou parecer científico ou técnico, de sinal contrário. Porém, para que o juiz possa fundamentar circunstanciadamente a sua decisão é indispensável que a prova pericial se apresente também devidamente fundamentada.
Assim, embora o tribunal aprecie livremente os elementos médicos constantes do processo, designadamente perícia singular, relatórios clínicos e exames complementares de diagnóstico, a par da própria observação do sinistrado, essa livre apreciação não é, todavia, sinónimo de arbitrariedade, razão pela qual aos peritos médicos que intervêm na junta médica impõem-se que indiquem os elementos em que basearam o seu juízo e que o fundamentem, para que o Tribunal, o sinistrado e a entidade responsável pela reparação do acidente o possam sindicar.
Resumindo, as perícias médicas não constituem decisão sob o grau de incapacidade a fixar, mas são somente um elemento de prova, com exigências especiais de conhecimentos na matéria, por isso o laudo pericial tem de conter os factos que serviram de base à atribuição de determinada incapacidade de modo a que o tribunal possa interpretar e compreender o raciocínio lógico realizado pelos Srs. Peritos Médicos de forma a poder valorá-lo.
Apesar do juiz não estar adstrito às conclusões das perícias médicas, certo é que, por falta de habilitação técnica, apenas delas deverá discordar em casos devidamente fundamentados e, daí também, a necessidade da cabal fundamentação do laudo pericial pois que, só assim, poderá o mesmo ser sindicado.
Competindo à perícia médica (exame singular ou exame por junta médica), a apreciação e determinação das lesões/sequelas que o sinistrado apresenta, bem como proceder à fixação da incapacidade para o trabalho decorrente das mesmas, não existindo razões objectivas para se discordar do laudo médico ou para formular pedidos de esclarecimentos aos peritos médicos, ou solicitar a realização de exames e de outros pareceres complementares, caso estes tenham respondido com precisão a todos os quesitos de forma lógica sem deficiência, obscuridade ou contradição, não se verificará qualquer razão para que o julgador divirja do laudo, fixando incapacidade distinta ou não atribuindo incapacidade.
Contudo, a perícia por junta médica tem algumas particularidades que podem por em causa a sua validade, já que conformidade com o prescrito no art.º 139.º n.º 2 do CPT, “se na fase conciliatória a perícia tiver exigido pareceres da especialidade, intervêm na junta médica, pelo menos, dois médicos das mesmas especialidades
Por outro lado, estabelece o n.º 8 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades, anexa ao DL n.º 352/2007, de 23 de Outubro, que o resultado dos exames é expresso em ficha apropriada, devendo os peritos fundamentar todas as suas conclusões.

E estabelece o n.º 13 das mesmas Instruções Gerais o seguinte:

A fim de permitir o maior rigor na avaliação das incapacidades resultantes de acidente de trabalho e doença profissional, a garantia dos direitos das vítimas e a apreciação jurisdicional, o processo constituído para esse efeito deve conter obrigatoriamente os seguintes elementos:

a) Inquérito profissional, nomeadamente para efeito de história profissional;
b) Análise do posto de trabalho, com caracterização dos riscos profissionais e sua quantificação, sempre que tecnicamente possível (para concretizar e quantificar o agente causal de AT ou DP);
(…)
Retornando ao caso dos autos e tendo presente a factualidade apurada desde logo se constata que a junta médica respondeu aos quesitos que foram formulados pela seguradora responsável, deixando um rasto de dúvida quanto à avaliação efectuada ao sinistrado, pois solicitou que se procedesse à realização de uma perícia na área da medicina do trabalho, a qual não chegou a ter lugar, tendo por isso vindo a concluir por maioria, é de admitir a IPATH atentas as sequelas de que padece o sinistrado.
Com efeito, na fase conciliatório dos autos foi solicitado parecer da especialidade de ortopedia, razão pela qual se impunha em conformidade com o previsto no n.º 2 do art.º 139.º do CPT. a realização de uma junta da especialidade de ortopedia, ou seja, na junta médica deveriam ter participado pelo menos dois ortopedistas. Mas tal, não só não sucedeu, como os Srs. Peritos Médicos, ao que tudo indica generalistas, solicitaram a realização de uma junta da especialidade, a qual acabou por não ter lugar, tendo sido determinada pelo juiz a quo que concluíssem a avaliação do sinistrado, o que fizeram sem se munir de qualquer elemento tendente a apurar das funções concretamente desempenhadas pelo sinistrado, designadamente do estudo do posto de trabalho e do inquérito profissional, tendo de forma singela e desprovida de qualquer fundamentação concluído, por maioria, que o sinistrado é portador de IPATH, ou seja não se percebe o processo lógico que conduziu a tal conclusão.
Em suma, o laudo de junta médica não está elaborado em conformidade com o previsto no ponto 8 das instruções gerais a TNI, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro, pois padece de insuficiência de fundamentação, sendo certo que os Srs. Peritos Médicos não estavam habilitados a proceder à realização da perícia, uma vez que no caso se impunha a realização de uma perícia da especialidade de ortopedia.
Importa assim, ao abrigo do prescrito no art.º 662.º ns.º 1 e 2 al. c) do CPC., determinar a anulação da junta médica para que se proceda à realização de uma junta médica da especialidade de ortopedia, a fim de se apurar e valorizar as sequelas que o sinistrado é portador.
Quanto à questão da atribuição ou não ao sinistrado de IPATH, como refere a este propósito José Augusto Cruz de Carvalho, “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, 2ª Ed., 1983, pág. 97, ainda que no âmbito da Base XVI, nº 1, al. b), da Lei 2127, de 03.08.65, mas aplicável quer no âmbito do art. 17º da Lei 100/97 (LAT) quer no âmbito do actual art.º 48º, nº 3, al. b), da Lei 98/2009de 4/09 (NLAT), “a fixação do regime especial para os casos da al. b), resultou da consideração lógica (consagrada em legislação estrangeira) de que a incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual é sempre mais grave do que uma diminuição parcial da mesma amplitude fisiológica, não só pela necessidade de mudança de profissão, como pela dificuldade de reeducação profissional, exigindo por isso uma compensação maior”.
Acresce dizer que um dos elementos que a junta médica deverá necessariamente ponderar ao fixar a natureza da incapacidade e o grau de desvalorização reporta-se ao conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e às condições em que esse conteúdo funcional deve ser desempenhado, tal como resulta das instruções gerais 5º, al. a), 6º, al. b) e 13º, als. a) e b) da TNI, bem como do art.º 21º n.º 1 da NLAT.
De tudo isto resulta que para a atribuição ou não da IPATH, importa saber quais as tarefas concretas que fazem parte do conteúdo funcional do sinistrado, para daí se poder extrair a conclusão se as sequelas de que padece são susceptíveis de incapacitar absolutamente o sinistrado para o desempenho do seu trabalho habitual.
Assim, cientes de que nem sempre é fácil a determinação da existência, ou não, de IPATH, já que por vezes, é ténue a fronteira entre esta e a IPP, quando tal questão se suscita impõem-se proceder a uma rigorosa avaliação da repercussão desta na capacidade/incapacidade para o sinistrado continuar a desempenhar o seu trabalho habitual, o que determina que dos autos constem obrigatoriamente determinados elementos, mormente o inquérito profissional e a análise do posto de trabalho. O trabalho habitual a considerar é aquele que o sinistrado realizava à data do acidente e que em princípio corresponde ao executado de forma permanente, contínua.
Por outro lado, impõe-se ao juiz o dever de controlar se o exame por junta médica respeitou as instruções (gerais e específicas) enunciadas na Tabela Nacional de Incapacidades, de forma a garantir que o laudo pericial emitido pelos peritos médicos ponderou o real conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e as condições em que esse conteúdo funcional deve ser desempenhado.
Retornando de novo ao caso em apreço, temos por certo que não se procedeu ao referido controle, pois não resulta explicito no auto de junta médica que o conteúdo funcional do concreto posto de trabalho e as condições do seu desempenho tenha sido tido em atenção, desde logo, porque não é feita qualquer menção. Por outro lado, não foram juntos aos autos, quer o inquérito profissional, nomeadamente para efeito de história profissional, quer a análise do posto de trabalho, que constituem elementos obrigatórios que já deveriam constar desde a fase conciliatória do processo, em conformidade com o estabelecido no art.º 104.º do CPT., com influência necessária na decisão, designadamente porque em sede de exame singular foi entendido que as sequelas de que o sinistrado é portador o impedem de forma absoluta e permanente de exercer as funções de técnico de telecomunicações (considerando a limitação em subir a postes e em ajoelhar-se para passa cabos de telecomunicações), que exercia quando ocorreu o acidente, a que acresce o facto da Seguradora responsável, na fase contenciosa dos autos, questionar, precisamente, a atribuição de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) ao sinistrado.
Sucede ainda, que em conformidade com o prescrito no art.º 139.º do CPT. que regula a perícia por junta médica, designadamente no seu n.º 7, “o juiz, se o considerar necessário, pode determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos”.
Por outro lado, dispõe o n.º 4 do art.º 21.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, (NLAT), que estabelece o regime de reparação de acidentes de trabalho, que, sempre que haja lugar à aplicação ao sinistrado de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, o juiz pode requisitar parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral.
No caso em apreço, não consta, como já não constava à data da realização da junta médica, qualquer estudo fundamentado e imparcial sobre o conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e as condições em que deve ser desempenhado e, mais se constata que não foram oportunamente realizados, como se impunha, Inquérito Profissional e Análise do Posto de Trabalho que permitiriam um maior rigor na avaliação das incapacidades resultantes de acidente de trabalho e na apreciação jurisdicional, razão pela qual se impunha ao tribunal a quo que antes de proferir decisão, tivesse lançado mão do aludido mecanismo legal ao seu alcance, que, pela sua finalidade, teria suprido a omissão cometida.
Os senhores peritos que constituíram a junta médica, ao pronunciarem-se sobre a atribuição de IPATH sem que possuíssem conhecimento das funções executadas pelo sinistrado antes do acidente não podiam, com a devida segurança, formular juízos quanto ao facto de o mesmo estar ou não afectado de IPATH.
Para que pudessem formular o juízo científico a tal respeito seria necessário que apurassem as concretas funções desempenhadas pelo sinistrado, designadamente através do Estudo do Posto de Trabalho e só na posse daquele estudo, bem como do Inquérito Profissional, seria possível aos peritos concluírem, se as sequelas de que é portador o sinistrado o impedem absolutamente de exercer as funções inerentes à sua profissão.
Se as conclusões a que chegaram os Senhores Peritos Médicos não se mostram fundamentadas, tal implica que o Juiz fique também desprovido de todos os dados factuais essenciais para a formulação do juízo crítico subjacente à formação da sua convicção e à prolação de decisão sobre a atribuição ou não de incapacidade absoluta para o trabalho habitual (IPATH).
A falta destes elementos – que são essenciais e obrigatórios nos termos do nº13 alíneas a) e b) das Instruções Gerais da TNI – afeta de forma irremediável quer o parecer formulado pela junta médica, quer a própria sentença, que se apoiou exclusivamente naquele laudo, o que determina também por isso a sua anulação, com vista à realização daquelas diligências e outras que se tenham por necessárias.
Por último, é de referir que este Tribunal da Relação de Guimarães frequentemente tem decidido no sentido de que para que se possa formular um juízo científico no que respeita à atribuição de IPATH é necessário que conste dos autos, quer o estudo do posto de trabalho, quer o inquérito profissional, quer ainda a realização de pareceres ou exames a complementares requisitar às entidades competentes nas áreas do emprego e formação profissional, a fim de reunir todos os elementos que permitam avaliar com rigor se as sequelas de que o sinistrado é portador o impedem de desempenhar as tarefas inerentes ao seu trabalho habitual. Em conformidade com o entendimento desta Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães, a título meramente exemplificativo referenciamos o Acórdão de 18 de Junho de 2020, proferido no proc.º n.º 687/15.0T8VRL.G1 (não publicado), Acórdão de 20-01-2022, proferido no proc. n.º 6261/19.4T8GMR.G1 e Acórdão de 17-03-2022, proferido no proc.º n.º 1325/19.7T8VCT.G1, consultáveis em www.dgsi.pt.
Como resulta dos n.ºs 1 e 2, alínea c) do art.º 662.º do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, ou, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que permitam essa alteração, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.
Assim, em face da deficiência de que padece o auto de junta médica que conduziu à decisão da matéria de facto que suporta a sentença e sendo necessário proceder à realização de nova junta médica bem como solicitar a realização de Inquérito profissional, nomeadamente para efeito de história profissional e Análise do Posto de Trabalho, com caracterização dos riscos profissionais e/ou obter parecer de peritos especializados do Instituto do Emprego e da Formação Profissional sobre a questão da IPATH, importa também por esta razão anular a sentença, a fim de se reapreciar matéria de facto atinente ao grau de incapacidade para o trabalho reconhecido ao sinistrado, logo que reunidos os elementos de prova para o efeito.
Procede parcialmente o recurso.

V - DECISÃO

Nestes termos, acorda-se em anular a sentença recorrida, a fim de proceder à realização de junta médica da especialidade de ortopedia, devendo em momento anterior, ser solicitado estudo do posto de trabalho e inquérito profissional e/ou parecer de peritos especializados do Instituto do Emprego e da Formação Profissional sobre a questão da IPATH. Reunida toda a prova pertinente deve ser proferida nova sentença que, reaprecie e fixe a incapacidade para o trabalho de que o autor é portador e em que se decida fundamentadamente a questão da IPATH, com as respectivas consequências.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique
Guimarães, 2 de Junho de 2022

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga