Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
814/18.5T8GMR.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
ATIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O art. 493º, n.º 2, do Código Civil estabelece uma presunção de culpa sobre quem exerce uma atividade perigosa (por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados), com a inerente inversão do ónus da prova, de acordo com o estatuído no art. 344º do CC, pois que ao lesante se passa a exigir a demonstração de que adotou todos os cuidados (regras técnicas e deveres ditados pelas regras da experiência comum) que as concretas circunstâncias exigiam para evitar o dano.

II - Essa presunção só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com a atividade perigosa.

III - Esse ónus de prova (do facto que serve de base à presunção de culpa) cabe ao lesado (art. 342º, n.º 1, do Código Civil).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de X

I. Relatório

T. J. intentou, no Juízo Local Cível de X – J1 – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra A. C., SA, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 6.970,00 € e, ainda, na quantia diária de 15,00€, desde a data do sinistro até ao dia em que o Autor venha a ser indemnizado pela Ré, acrescido dos juros contados desde a citação até integral e efectivo pagamento.
Trata-se, em resumo, de uma acção de efectivação de responsabilidade civil extra-contratual decorrente de um evento estradal, na sequência do qual subsistiram danos patrimoniais para a autora, que a mesma pretende ver reparados.
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Regularmente citada, contestou a Ré, arguindo a ineptidão da petição inicial ou, assim não se entendendo, pugnando pela total improcedência da acção (cfr. fls. 25 a 33).
Mais requereu a intervenção provocada da X Europe Limited – Sucursal em Portugal.
Negou qualquer responsabilidade na produção do evento estradal em causa nos autos.
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Por despacho datado de 13/06/2018, foi deferido o pedido de intervenção principal provocada da seguradora, X Europe Limited – Sucursal em Portugal (cfr. fls. 66).
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Regularmente citada, a demandada X Europe Limited – Sucursal em Portugal deduziu contestação, na qual igualmente rejeita qualquer responsabilidade na produção do evento estradal em causa nos autos (cfr. fls. 68 a 71).
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Foi realizada a audiência prévia, com elaboração do despacho saneador, no qual foram considerados válidos e regulares os pressupostos objetivos e subjetivos da instância; procedeu-se à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova, bem como foram admitidos os meios de prova (cfr. fls. 79 a 81).
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Procedeu-se a audiência de julgamento (cfr. fls. 113 a 116).
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Logo de imediato, o Mmº. Julgador “a quo” proferiu sentença (cfr. fls. 117 a 131), nos termos da qual julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo as rés dos pedidos.
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Inconformada, a autora interpôs recurso da sentença (cfr. fls. 132 a 156) e, a terminar as respetivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. O artigo 483º, número 1 do Código Civil, relativo à responsabilidade extracontratual ou aquiliana, dispõe que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
2. A obrigação de indemnizar decorrente da citada norma depende da verificação cumulativa de um facto, da ilicitude desse facto, da imputação do mesmo ao lesante, do dano e, por último, do nexo de causalidade entre o facto e o dano.
3. Entende a Recorrente que a matéria de facto dada como provada seria suficiente para dela se concluir pela verificação da responsabilidade extracontratual da Ré e, consequentemente, da obrigação desta em indemnizar a Autora, com a inerente procedência da ação.
4. Com efeito, o Tribunal recorrido deu como provado que:
- No dia 13 de maio de 2017, ocorreu um evento estradal, em que foi interveniente o veículo automóvel pertença da Autora, conduzido pelo seu filho R. F..
- Verificou-se a existência no pavimento de terra e areia na faixa de rodagem.
- Em consequência direta e necessária do acidente, o veículo da Autora, ficou substancialmente danificado, impossibilitando o seu uso.
- A Ré A. C., S.A., executava, no sentido ascendente, uma empreitada de construção de infraestruturas de loteamento à data e no local onde se deu o sinistro, no sentido descendente.
5. Acrescentando-se que o Tribunal considerou como não provado que o local intervencionado pela Ré se encontrava adequadamente sinalizado.
6. Sendo certo que a prova documental junta aos autos – designadamente, fotografias do local -, e a produzida em sede de audiência e julgamento – nomeadamente, os depoimentos do agente P. M., do R. F. e do J. F. – revelam que inexistia no local qualquer sinalização de perigo em qualquer dos sentidos da via e que a mesma se encontrava impregnada com lama, terra e saibro.
7. Da matéria de facto resultaram, pois, preenchidos os requisitos da responsabilidade extracontratual da Ré, uma vez que ficou demonstrado que, para além de inexistir na via qualquer sinalização informativa dos trabalhos que lá decorriam e dos perigos que estes podiam causar, esta encontrava-se, ainda, impregnada com detritos, sendo que era à Ré, como entidade executante daquela obra, que cabia prezar e acautelar pela segurança de quem nessa via circulava, sinalizando-a adequadamente e procedendo à sua limpeza.
8. Pelo que a sentença recorrida é nula, por manifesta contradição entre os fundamentos de facto e a decisão – cfr. artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, sendo que viola, ainda, o disposto no artigo 483º, número 1 do Código Civil.
9. Sem prescindir, na responsabilidade extracontratual era à Ré a quem incumbia ilidir a presunção de culpa que sobre ela impendia, por não ter tomado as diligências necessárias para evitar perigos para terceiros, resultantes da obra que estava a executar – artigo 493º, número 2 do Código Civil – o que, efetivamente, não logrou ilidir.
10. Acresce que, apesar de a referida norma dispensar a prova da culpa, é necessário que se verifique a ilicitude do facto, que ocorre com a violação pela Ré de várias disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, nomeadamente o art. 5º, números 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de maio e o art. 83º do Decreto- Lei n.º 41821/58, de 11 de agosto.
11. Aliás, sendo a Ré experiente em obras de construção civil, devia, face às circunstâncias concretas, ter agido de outro modo, nomeadamente, com a adequada sinalização e limpeza da via, pois podia perfeitamente prever os perigos que estas obras acarretam.
12. Nestes termos, a sentença recorrida violou, outrossim, o disposto nos artigos 83º do Decreto-Lei n.º 41821/58, de 11 de agosto, 5º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de maio, 7º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, 1 de outubro e 493º, nº 2 do Código Civil.
13. Ainda e sem prescindir, a Recorrente expressamente impugna a decisão acerca da matéria de facto, porquanto entende que os seguintes meios probatórios impunham uma decisão diferente quanto à factualidade dada como não provada:

a) Dos documentos juntos à Petição Inicial a fls. 2 e seguintes, relativo ao auto de participação de acidente de viação, donde se retira a existência de areia e terra a cerca de 50 metros do local onde se imobilizou a viatura;
b) Das fotografias juntas à P.I. a fls. 4 e seguintes, onde se comprova, quer a existência de terra e saibro na via, quer a inexistência de qualquer sinalização indicativa de perigos;
c) Dos documentos juntos à P.I. a fls 8, referente à resposta da Câmara Municipal ... à missiva enviada pelo condutor do veículo, onde se refere que a responsabilidade pelo sinistro ocorrido deve-se à empresa responsável pela construção do loteamento, a Ré A. C., SA. E, neste ponto, ressalte-se que é o Município a entidade responsável pelo licenciamento de obras, pelo que, como tal, teria conhecimento de outras obras nas imediações das quais pudesse resultar perigo para quem circulasse naquela via. Não obstante, apenas indicou a Ré como única responsável.
d) Do depoimento da testemunha P. M., agente da PSP que foi chamado ao local onde se deu o sinistro, donde se comprova a curta distância entre esse local e a obra da Ré – 10/15 metros – e a inexistência de sinalização na via.
e) Do depoimento da testemunha R. F., condutor do veículo da Autora, que esclarece que apenas se apercebeu da existência de detritos quando já se encontrava em despiste, pois não havia qualquer sinalização na via. Refere, ainda, que os sedimentos tinham origem na obra de terraplanagem que existia no lado esquerdo da via (a obra que a Ré estava a executar), que estava numa cota superior relativamente à faixa de rodagem.
f) Do depoimento da testemunha D. A., bombeiro que procedeu à limpeza da via, que confirma o aglomerado de detritos na via e a configuração do local, que qualificou como sendo uma encosta.
g) Do depoimento da testemunha J. O., engenheiro civil responsável pela obra, do qual se retira a elevada dimensão da obra a ser executada pela Ré (6000m2), comparativamente à outra moradia que, alegadamente, estava também a ser construída (800/1000m2).
h) Do depoimento da testemunha J. F., que circulava atrás do veículo da Autora, que corrobora o depoimento de outras testemunhas quanto à inexistência de sinalização no local, e confirma que o veículo sinistrado perdeu a tração traseira devido à existência de terra e saibro na via, acrescentando que constatou que a origem desses sedimentos era a obra da Ré.
i) Das regras de experiência, conjugadas com os citados depoimentos, não poderá dar-se como não provado que inexistia sinalização no local intervencionado, que o ,condutor do veículo da Autora circulava a uma velocidade não superior a 50km/h e que o sinistro se ficou a dever à conduta da Ré, que negligenciou o dever de sinalização adequada e de limpeza da via.
j) Por último, uma palavra para o depoimento da testemunha D. S., em que reveste notória importância atender à sua relação laboral com a Ré, que claramente veio a comprometer o seu depoimento, que se mostrou ofuscado pelo interesse em proteger a sua entidade empregadora, negando sempre qualquer questão que a pudesse prejudicar, como a inexistência de sinalização na via, que ficou provada pelos depoimentos supra referidos e pela prova documental junta aos autos.
14. Deverá, pois, pelos invocados fundamentos, ser alterada a matéria de facto, de modo a que seja dado como não provado que (25º da matéria de facto apurada) no momento do despiste o veículo da autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 km/h e provados os seguintes factos:
i. O condutor circulava com respeito pelas regras estradais, nomeadamente com velocidade não superior a 50km/h, e sem que nada o fizesse prever, deixou de poder controlar o veículo, de modo que o mesmo só se imobilizou quando embateu numa vedação e num pedregulho.
ii. A perda de controlo do veículo deveu-se exclusivamente à existência de substâncias no pavimento – terra, areia e saibro -, provenientes da obra que a Ré A. C., SA. se encontrava a executar, situada em cota superior à Rua …, do lado esquerdo e atento o sentido de marcha do veículo sinistrado.
iii. Inexistia qualquer sinal de trânsito que indicasse perigo ou cautelas especiais, nomeadamente da existência de obras ou a possibilidade de existir substâncias estranhas no pavimento rodoviário.
iv. Pelo que, o referido sinistro deveu-se à conduta da Ré, que não cuidou de acautelar que as terras da sua obra pudessem deslizar para a rua por onde circulam veículos automóveis, provocando aglomeração das mesmas que, com a chuva, se transformaram em lama, saibro e areia.
v. Nem sequer diligenciou pela adequada sinalização dos trabalhos a ser executados nas imediações da via, nem que a via estava impregnada das referidas substâncias, nem sequer a limpou ou alertou para a sua limpeza.
vi. Sabendo a Ré que a sua conduta era suscetível de causar danos e perigos para terceiros, em particular, acidentes, como efetivamente causou.
15. Face ao exposto, a sentença recorrida viola o art. 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, os artigos 483º, n.º 1 e 493º, n.º 2 do Código Civil, o art. 83º do Decreto-Lei n.º 41821/58, de 11 de agosto, o art. 5º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de maio e o art. 7º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, 1 de outubro.

Termos em que deverá o presente recurso ser admitido, julgado procedente e, consequentemente, revogada a sentença proferida, tal como é de JUSTIÇA».
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Contra-alegou a recorrida X Europe Limited – Sucursal em Portugal, pugnando pela improcedência do recurso (cfr. fls. 164 a 167).
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cfr. fls. 169).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].

No caso, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

i) – Da nulidade da sentença, por manifesta contradição entre os fundamentos de facto e a decisão – cfr. art. 615º, n.º 1, alínea c), do CPC;
ii) – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
iii) – Se as recorridas estão, ou não, sujeitas à obrigação de indemnizar a recorrente pelos danos que afectaram a sua esfera jurídica.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto

A. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1º - Encontra-se inscrito a favor da autora o direito de propriedade relativo ao veículo da marca Citroen C2, matrícula AH, por o haver adquirido a M. J..
2º -No dia 13 de maio de 2017, pelas 00.05H, na Rua …, da freguesia da …, concelho de X, no sentido descendente ocorreu um evento estradal, em que foi interveniente o veículo automóvel, com a matrícula AH, da marca Citroen, modelo C2, pertença da Autora e conduzido na altura do acidente pelo seu filho R. F..
3º - No dia, hora e local indicado supra em 2º, o R. F. seguia no indicado sentido descendente, quando numa curva com ligeira inclinação à direita, o veículo entrou em despiste, perdendo o controlo do mesmo.
4º - O condutor do veículo da Autora chamou ao local a Policia de Segurança Pública que tomou conta da ocorrência e tendo verificado a existência no pavimento de terra e areia, chamou os bombeiros locais para proceder à limpeza e remoção dos detritos referidos.
5º - Em consequência directa e necessária do acidente, o veículo da Autora, ficou muito amolgado no lado direito, na zona frontal e lateral, afectando órgãos importantes do mesmo, tais como a direcção, sendo necessário proceder a trabalhos de chapeiro e pintura e substituição de diversos materiais de ambos os lados veículo.
6º - O condutor do veículo efectuou em 23-5-2017, uma exposição ao Presidente da Câmara Municipal ..., expondo os factos e juntando fotografias quer do local quer do veículo acidentado.
7º - Respondeu o Município, da forma constante da missiva de fls. 12 dos autos cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
8º - A Oficina de J. R., orçou a sua reparação em 7.500,00€ (doc. 9). 9º - O valor comercial do veículo da A. segundo o site Stand Virtual ( o mais usado para compra on line e venda de veículos ), usando método de comparação é de 6.900,00€.
10º - O veículo teve que ser rebocado, para a oficina, despendendo a A., a quantia de 70,00€.
11º - O veículo do Autor ainda hoje se encontra por reparar, já a Ré não se responsabilizou pelo sinistro.
12º - Ainda hoje a Autora está privada de usar e conduzir o seu veículo, sendo que o utilizava para os mais variados fins, em especial para o filho se deslocar para a Universidade.
13º - A Autora não dispõe da quantia necessária para mandar proceder à reparação do veículo, pelo que por força dessa paralisação, reclama da Ré, o pagamento quantia diária de 15,00€, desde a data do acidente e até ao momento em que venha a ser efectiva e totalmente ressarcido pela Ré.
14º - A Ré A. C., S.A. é uma sociedade comercial que se dedica, com carácter habitual e intuito lucrativo, à indústria da construção civil e obras públicas, entre outras.
15º - Por adjudicação da co-Ré ... – Sociedade Imobiliária, Lda., a Ré aqui contestante A. C., S.A. executou a empreitada de construção de infraestruturas do loteamento denominado “Quinta ... – 4.ª Fase”, autorizado pelo Alvará n.º 12/2015, da Câmara Municipal ..., sito na Rua …, da freguesia da …, do concelho de X.
16º - O referido loteamento situa-se, efectivamente, no sentido ascendente do arruamento vindo de referir.
17º - A sociedade Ré confirma, no entanto, que, através de comunicação escrita que lhe foi dirigida pela Câmara Municipal ... em 9 de Junho de 2017, foi levado ao seu conhecimento a alegada verificação deste mesmo sinistro.
18. - Tendo merecido resposta da aqui Ré, em 28 de Junho de 2017, no sentido de que, pelos motivos aí devidamente descritos e que nesta contestação se reiteram, não poderia assumir a responsabilidade pela sua produção.
19. - Resposta em tudo idêntica foi a dada pela aqui Ré A. C., S.A., em 23 de Novembro de 2017, à comunicação escrita que lhe foi dirigida, em 22 de Novembro de 2017, pela “... Assistência – Companhia de Seguros, S.A.”, na sua qualidade de «protecção jurídica da “Seguros”».
20. - A Ré “A. C., S.A.” terminou a obra (loteamento) em 19 de Julho de 2017.
21º - Todos os trabalhos de escavação e movimentação de terras executados foram por concluídos pela primeira ré em 31 de Outubro de 2016.
22º - Em Maio de 2017 encontravam-se a ser efectuados, no visado loteamento, os trabalhos de instalação das infraestruturas de telecomunicações (ITED) e de electricidade, a cargo de outra empresa que não a aqui Ré A. C., S.A..
23º - Bem assim como o calcetamento dos arruamentos interiores do mesmo, a que se seguiram trabalhos de acabamento e remate, todos estes ao encargo da primeira ré.
24º - A distância entre o local em que se encontra implantado o loteamento em questão e o ponto concreto da via estradal onde, de acordo com a participação de acidente elaborada pela Polícia de Segurança Pública, se encontravam depositados detritos (terra e lama) distam cerca de 50 metros.
25º - No momento do despiste o veículo da autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada mas superior a 50 Km/h.
26º - No período compreendido entre 16 de Setembro de 2016 e 15 de Setembro de 2017, a Ré A. C., S.A. havia transferido para a sobredita seguradora “X Europe Limited – Sucursal em Portugal” toda a responsabilidade civil extracontratual decorrente de danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros que, durante os trabalhos de construção civil por si executados, fossem causados a terceiros por actos ou omissões dos seus legítimos representantes ou das pessoas ao seu serviço e pelas quais fosse civilmente responsável.
27º - Nos termos das referidas Condições Particulares, foi convencionado que durante o período de cobertura e por cada sinistro participado, a “A. C., S.A.” suportaria uma franquia de 10% dos danos indemnizáveis, no mínimo de € 500,00 em danos materiais.
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B. E deu como não provados os seguintes factos alegados:

a) O condutor circulava com respeito pelas regras estradais, nomeadamente dentro da sua faixa de rodagem e com velocidade adequada a circular no local, não superior a 50 km e sem que nada o fizesse prever, deixou de poder controlar o veículo, de modo que o mesmo só se imobilizou quando embateu na vedação e pedregulho referida supra em 3º paralela ao poste de iluminação pública que serve como ponto fixo e inalterável.
b) Essa perda de controlo deveu-se exclusivamente à existência das substâncias (terra, saibro, areia) no pavimento, as quais tiveram a sua proveniência no desaterro ou movimento de terras que a Ré estava a levar acabo em terrenos pertencentes à sociedade ... – Imobiliária Lda., e situados em cota superior à Rua …, do lado esquerdo destas e atento o sentido de marcha do Citroen.
c) Inexistia qualquer sinal de trânsito que indicasse perigo ou cautelas especiais, nomeadamente da existência de obras ou a possibilidade de existir substâncias estranhas em pavimento rodoviário.
d) Nesse dia, é do conhecimento da A. que, pelo menos, uma viatura sofreu despiste, pelos mesmos motivos, desconhecendo-se se sofreu danos.
e) Tudo acontecendo por causa do pavimento estar sem condições de circulação automóvel, causados pela Ré, enquanto responsável pelos trabalhos ocorridos nos terrenos junto à via pública, sem que tivesse de algum modo diligenciado ou prevenido pela limpeza e ainda pela sinalização do estado da via.
f) A Ré, ao não cuidar de acautelar que as terras ao serem movimentadas pudessem deslizar, com as chuvas, para a rua por onde circulam veículos automóveis, violou, com a sua actividade o direito de circulação rodoviária em segurança, prejudicando a A. já que, da mesma resultou danos materiais no Citroen.
g) O acidente ficou a dever-se à conduta da Ré que, por si ou através dos seus trabalhadores ou colaboradores, a quem lhes foi ordenada a realização desses serviços, não tiveram o cuidado necessário para evitar que as terras que estavam a movimentar deslizassem para a via pública, provocando aglomeração das mesmas que, com a chuva se transformaram em lama, saibro e areia.
h) Nem sequer foi sinalizado o trabalho que estava a ser executado, nem que a via estava impregnada das substâncias provenientes das obras locais, nem sequer a limparam ou chamaram alguém para a limpar.
i) A Ré sabia que, com as chuvas, as terras poderiam deslizar para a via pública e que tal circunstância era susceptível de causar acidentes, como efectivamente causou.
j) No decorrer dos trabalhos de escavação e movimentação de terras – executados mais de meio ano antes do descrito sinistro – o local intervencionado pela Ré A. C., S.A. encontrava-se adequadamente sinalizado, alertando os condutores, transeuntes e moradores que decorriam trabalhos de construção junto à via, pelo que a condução deveria ser prudente e adequada às condições do meio.
k) Por se localizar numa zona central do concelho e da cidade de X, as condições de execução da obra em questão foram sendo permanentemente acompanhadas pelos serviços de fiscalização da Câmara Municipal ... que, em momento algum e tanto quanto se sabe, deram conta à Ré da acumulação de detritos na via resultantes da execução das aludidas infraestruturas no loteamento em questão.
l) A Ré terminou os seus trabalhos no dia 31 de Outubro de 2016, sendo que, durante a execução dos mesmos, o local intervencionado manteve-se sempre adequadamente sinalizado.
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V. Fundamentação de direito

1. Da nulidade da sentença recorrida com fundamento na al. c) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
1.1. Como é sabido, é através da sentença, conhecendo das pretensões das partes – pedido e causa de pedir –, que o juiz diz o direito do caso concreto (arts. 152º, n.º 2 e 607º, ambos do CPC).
Pode, porém, a sentença estar viciada em termos que obstem à eficácia ou validade do pretendido dizer do direito.
Assim, por um lado, nos casos em que ocorra erro no julgamento dos factos e do direito, do que decorrerá como consequência a sua revogação, e, por outro, enquanto ato jurisdicional que é, se atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou ainda contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, caso este em que se torna, então sim, passível do vício da nulidade nos termos do artigo 615.º do CPC(1).
As nulidades de decisão são, pois, vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se, pois, de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in iudicando), seja em matéria de facto, seja em matéria de direito (2).
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer despacho (art. 613º, n.º 3, do CPC) ou de acórdão (arts. 666º, n.º 1, e 685º, ambos do CPC), são as que vêm taxativamente enumeradas no n.º 1 do art. 615º do CPC.

Nos termos do art. 615º, n.º 1, al. c), do CPC, a sentença é nula, entre o mais, quando:

«Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».

No tocante à mencionada nulidade trata-se de um vício lógico da sentença que a compromete; «se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença» (3). Não se trata de um simples erro material (em que o juiz, por lapso, escreveu coisa diversa da que pretendia escrever - contradição ou oposição meramente aparente), mas de um erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real) (4). O que não é, também, confundível com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção dos factos concretos à correspondente previsão normativa abstrata, nem, tão pouco, a uma errada interpretação desta, vícios estes só sindicáveis em sede de recurso jurisdicional (5). Na verdade, quando, embora indevidamente, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, está-se perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, verifica-se a apontada nulidade (6).
Subjacente a esta causa de nulidade está a ideia de que a sentença deve constituir um silogismo judiciário, em que a norma jurídica constitui a premissa maior, os factos provados a premissa menor e a decisão será a consequência lógica de tais premissas, não devendo, pois, existir qualquer contradição ou oposição entre os fundamentos e a decisão (7).
Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e a causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial, posto que em ambos os casos falta um nexo lógico entre as premissas e a conclusão (8) (art. 186º, nºs 1 e 2, al. b) do CPC).
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1.2. Com vista a fundamentar a aludida nulidade da sentença recorrida (art. 615.º n.º 1, al. c) do CPC) defende a recorrente que a matéria de facto dada como provada era suficiente para dela se concluir pela verificação da responsabilidade extracontratual da Ré e, consequentemente, da obrigação desta em indemnizar a Autora, com a inerente procedência da ação, mais acrescentando que da matéria de facto resultaram, pois, preenchidos os requisitos da responsabilidade extracontratual da Ré, uma vez que ficou demonstrado que, para além de inexistir na via qualquer sinalização informativa dos trabalhos que lá decorriam e dos perigos que estes podiam causar, esta encontrava-se, ainda, impregnada com detritos, sendo que era à Ré, como entidade executante daquela obra, que cabia prezar e acautelar pela segurança de quem nessa via circulava, sinalizando-a adequadamente e procedendo à sua limpeza.

Em face da delimitação da nulidade invocada, manifestamente a recorrente carece de razão no vício que aponta à sentença impugnada.

Isto porque os fundamentos de facto não apresentam qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, além de que a decisão alcançada na sentença recorrida está em perfeita sintonia lógica com os fundamentos que lhe servem de suporte, inexistindo qualquer oposição entre o segmento decisório e a respetiva fundamentação. Lida a fundamentação de facto e direito da sentença, percebe-se que o dispositivo seja aquele que efetivamente ficou consignado

Depreende-se, aliás, que o verdadeiro motivo do vício apontado pela recorrente à sentença radica essencialmente no alegado erro de julgamento, traduzido quer na errada subsunção dos factos concretos (provados e não provados) à correspondente previsão normativa abstrata, bem como na errada interpretação do regime normativo aplicável, o que, como se disse, não é subsumível à previsão normativa prescrita do art. 615º, n.º 1, al. c), do CPC.
De facto, o vício dirigido à sentença impugnada não configura uma oposição entre os fundamentos e a decisão, pois que a decisão, mal ou bem (mas essa é questão de eventual erro de julgamento), fundamentou de modo suficientemente percetível o percurso lógico seguido até à decisão.

No caso, o Mm.º juiz “a quo”, em face dos factos apurados, entendeu que dos mesmos resultava determinada consequência jurídica, entendimento esse com o qual a recorrente não concorda, o que nos remete para um (eventual) erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade da sentença.
Nesta conformidade, conclui-se pela manifesta improcedência da nulidade da sentença arguida pela recorrente com fundamento na al. c) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
*
2. Da impugnação da matéria de facto.

2.1. Em sede de recurso, a apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, o qual dispõe que:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».

Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada (da modificação de um facto provado para não provado e dos factos não provados para provados (9)), como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua ótica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, pelo que – contrariamente ao propugnado pela apelada X Europe Limited (10) (11) – podemos concluir que cumpriu suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640º.
Assim, no caso sub júdice, o presente Tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada, uma vez que, tendo sido gravada a prova produzida em audiência, dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre o(s) facto(s) em causa.
*
2.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o artigo 662.º, n.º 1 do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se, resumidamente, de acordo com os seguintes parâmetros (12):

- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes).
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância.
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de reapreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão.
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com benefício da imediação e oralidade - apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
- a demonstração da realidade de factos a que tende a prova (art. 341º do Cód. Civil) não é uma operação lógica, visando uma certeza absoluta. “A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção assente na certeza relativa do facto” (13). O mesmo é dizer que “não é exigível que a convicção do julgador sobre a realidade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que o necessário recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351 CC) por natureza implica, mas que não dispensa a máxima investigação para atingir, nesse juízo, o máximo de segurança (14).
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2.3. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a recorrente pretende a alteração da resposta positiva para negativa do ponto 25 dos factos provados e das respostas negativas para positivas das alíneas a) a q) dos factos não provados elencados no corpo alegatório [ponto VI (Impugnação da decisão acerca da matéria de facto) - B], concomitantemente reproduzidas (por reporte à resposta pretendida) nas alíneas i) a vi) da 14ª conclusão.

Vejamos, então, da bondade da pretensão de impugnação da matéria de facto.

Antes, porém, de iniciarmos essa análise importa deixar assinalado que, com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação dos depoimentos (testemunhais e depoimento de parte do legal representante da recorrida A. C., SA) invocados quer na apelação como justificadores da impugnação da matéria de facto, quer na motivação da decisão sobre a matéria de facto, não nos tendo restringido aos trechos parcelares e/ou truncados (daqueles depoimentos) assinalados pela apelante.
Para além disso, foram analisados todos os documentos produzidos nos autos.
E, no caso vertente, após a audição dos depoimentos testemunhais invocados e análise da prova documental produzida, desde já podemos adiantar ser de sufragar na íntegra a valoração/apreciação explicitada pelo Tribunal recorrido, o qual – contrariamente ao propugnado pela recorrente –, em obediência ao estatuído no art. 607º, n.º 4 do CPC, fez uma análise crítica objetiva, articulada e racional da globalidade da prova produzida, que se mostra condizente com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, logrando alcançar nos termos do n.º 5 do citado normativo uma convicção quanto aos factos em discussão que se nos afigura adequada, lógica e plausível, em termos que nos merece total adesão.
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2.4. Seguindo a ordem dos meios de prova enunciados na sentença impugnada temos, em primeiro lugar, o depoimento da testemunha P. M., agente da PSP a exercer funções na esquadra de X, o qual se deslocou ao local no mesmo dia do acidente, tendo tomado conta da sua ocorrência e elaborado o respetivo auto de participação, cuja cópia consta de fls. 8 e 9, e cujo teor confirmou em julgamento.

Confirmou que a via (faixa de rodagem) tinha areia e terra no local do despiste, tendo assinalado tais vestígios no auto de participação de acidente.

Nesse dia tinha chovido (“estava chuva”) e o piso estava escorregadio.

Mais confirmou que no local existia uma obra de terraplanagem (porque a terra estava remexida, embora na altura não tenha ali presenciado qualquer máquina de terraplanagem), mais propriamente estava a ser construído um loteamento (no sentido descendente do lado esquerdo da via, atento o sentido de marcha do veículo de matricula AA, ou seja, …-…), mas não conseguiu confirmar se os inertes na via provinham dessa obra. Esclareceu que essa obra se situa num plano mais elevado em relação à via, mas não soube dizer se a cota permitia o deslizamento da terra para a via.

Mais declarou que, defronte desse loteamento (no sentido descendente, mas do lado direito da via, atento o sentido de marcha do veículo AH), existia uma moradia em construção.

Ou seja, quer do lado esquerdo da via, quer do lado direito, na altura havia construções a ser erigidas.

Declarou não ter conhecimento da notícia de qualquer outro acidente ali ocorrido no mesmo dia.

Não logrou precisar a velocidade a que seguia o veículo sinistrado, nem se o despiste se deveu a excesso de velocidade ou descuido do condutor.

Não presenciou qualquer sinalização indicadora da existência de obras na via ou de detritos (areia) na via.

Indicou que, no local, o limite máximo de velocidade é de 50 Km/h.

Esclareceu ainda que a distância entre o local em que se encontrava implantado o dito loteamento e o ponto concreto da via estradal onde se encontravam depositados detritos (terra e lama) distam cerca de 50 metros.

De igual modo, desde o local onde a terra estava depositada na via e o local onde o veículo se imobilizou distavam cerca de 50 metros.

Precisou que a terra e/ou areia estava isoladamente depositada na via, inexistindo qualquer vestígio de rasto de terra pelo pavimento fora. Daí ter tido o cuidado de assinalar no croquis a localização precisa onde tais vestígios se encontravam depositados na via.

Desde já se diga que a referida testemunha prestou um depoimento que se nos afigurou credível e isento, quer pelo modo como o prestou, alicerçando as suas respostas nos factos objetivos por si presenciados aquando da deslocação ao local do acidente para tomar conta da respetiva ocorrência e escusando-se a emitir juízos meramente opinativos ou conclusivos, quer por não ter qualquer interesse no resultado da lide, o que o torna um interveniente acidental descomprometido com qualquer das partes, o que reforça o juízo de credibilidade supra formulado.

O depoimento de parte do legal representante da ré A. C., SA, SA., R. R., mostrou-se, de facto, irrelevante para o apuramento dos factos em discussão, designadamente por não ter demonstrado qualquer conhecimento revelante quanto ao acidente estradal objeto dos autos, sendo que esse depoimento não revestiu cariz confessório.

A testemunha R. F., filho da autora/recorrente, era o condutor do veículo despistado (de matricula AA).
Indicou que vinha no sentido …-X quando numa curva ligeiramente à direita “as rodas pareciam que tinham bloqueado” e o veículo entrou em despiste, tendo embatido numa pedra.
No seu entendimento, as rodas bloquearam e o carro perdeu tracção devido à existência de terra na via.
Era 0h15m/0h20m, estava de chuva (choveu o dia todo, não muito, mas com regularidade) e o piso encontrava-se molhado.
Ia sozinho no interior do veículo, mas atrás de si circulava outro veículo conduzido pelo namorado da sua irmã, J. F., os quais vinham e iam para o mesmo local.
Quanto à velocidade, referiu não saber precisar a velocidade exata a que circulava, mas dentro do normal, sendo que a conduzir não vai estar a olhar para o conta quilómetros, pois tem de estar a olhar para a estrada, não estando atento à velocidade a que ia, acrescentando que não ia além do limite legal que lhe era permitido, que é de 50 km/h.
Quando sentiu que o carro estava a perder tracção tentou controlar o mesmo, não tendo contudo travado, pois na sua “opinião era pior”.
No tocante à localização da areia na via, situou-a “praticamente na zona da curva toda”, sendo que na faixa de rodagem contrária à por si seguida “tinha um ligeiro friso de terra e depois prolongava-se mais na zona da curva; tinha do lado esquerdo e ficava ali aglomerado na curva”, confirmando que a terra ia no sentido da inclinação do terreno, afirmando que a proveniência desse saibro/areia vinha “da zona da esquerda”, onde estavam a ser executadas umas obras, existindo inclusivamente lá umas escadas, sendo da zona lateral dessas escadas que a areia vinha para a via, formando um carreiro que confluía para a curva, onde se aglomerou, acrescentando que esse terreno situado do lado esquerdo, donde provinha o sedimento de terra e areia, está num plano ligeiramente mais elevado, relativamente à estrada por onde circulava.
À semelhança do aduzido na motivação da decisão da matéria de facto, o depoimento da indicada “testemunha foi relevante para se perceber o modo como o despiste ocorreu”.

E, de facto, conjugando o referido depoimento com outros meios probatórios, designadamente o já analisado depoimento da testemunha P. M., agente da PSP, também nós ficámos convencidos de que o veículo da autora circulava em excesso de velocidade.

Esta nossa convicção é baseada na distância que vai do início do despiste até ao local onde ficou imobilizada a viatura (cerca de 50 metros), conjugada – como explicitado pelo Mm.º Juiz “a quo” – com a configuração do local, “uma vez que a curva é ligeira e seguida de uma recta”, além de que circulava no sentido descendente. A isto acresce o próprio depoimento da testemunha que, relativamente às condições atmosféricas e de visibilidade que na altura se faziam sentir, para além do já explicitado, referiu que a visibilidade não era boa, fazendo-se sentir um ligeiro nevoeiro, o que não permitia ver a terra na via. Atentas as referidas limitações de visibilidade, por maioria de razão o condutor do veículo em causa deveria ter adequado a velocidade imprimida ao veículo em função das referidas condições meteorológicas adversas, o que não foi observado.

Por outro lado, a explicação apresentada quanto ao alegado rasto ou carreiro da areia e às implicações que daí pretendeu retirar, mostram-se infirmadas pelo croquis elaborado pelo agente da autoridade policial, bem como pelo testemunho prestado pelo agente autuante, o qual rejeitou perentoriamente tal versão fáctica.

A testemunha D. A., bombeiro, confirmou ter estado no local no dia do acidente dos autos por ter sido solicitada a presença dos bombeiros, que ali se deslocaram, onde procederam à limpeza da via (pavimento), por volta da 1h da manhã.
Descreveu as características (físicas) da via (faixa de rodagem), bem como do espaço envolvente.
Confrontado com o croquis junto aos autos não soube precisar o concreto local onde a terra se encontrava depositada na via.
Declarou que a área da limpeza estava devidamente identificada, ocupando uma área de cerca de 5 a 10 metros da via.
Confrontado com as fotografias juntas aos autos (cfr. fls. 10 e 11 v.º) confirmou que foram tiradas no dia do evento quando, juntamente com o colega, se encontrava a e executar os trabalhos de limpeza da via.
Atestou que a terra que se encontrava na via era a que está retratada nas fotografias.
No seu entendimento, os vestígios existentes no local não permitiam apurar qual a origem dos sedimentos existentes no pavimento, afirmando inexistir no pavimento qualquer rasto de terra donde se pudesse retirar a sua proveniência.
Sufragando o juízo afirmado na sentença impugnada, o “seu depoimento foi relevante para se perceber o local da via onde se encontrava a terra, assim como o tipo de resíduos que existiam na via”.

Tal versão relativamente à localização dos sedimentos na via, corroborando a da testemunha P. M., agente da PSP, contraria a afirmada pelo condutor do veículo sinistrado, R. F. (bem como ulteriormente explicitaremos, a da testemunha J. F.), sendo de destacar que a mencionada testemunha prestou um depoimento que temos como credível, pois limitou-se a depor sobre factos por si presencialmente verificados, objetivando o seu depoimento e excluindo-o de juízos opinativos ou subjetivos, além de que não tem qualquer interesse no desenlace da lide.

A testemunha D. S., colaborador subordinado da ré A. C., SA há 12 anos, exerce as funções de director de produção.
Por referência à obra existente próxima do local em discussão nos autos exercia as funções de director de produção e deslocava-se à obra “dia sim, dia não”.
Disse tratar-se de uma obra de loteamento, que começou com a movimentação de terras a que se seguiu a construção de todas as obras inerentes às infra-estruturas necessárias ao loteamento (como seja, águas pluviais, saneamento, condutas de eletricidade e pavimentação).
O dono da obra era outra empresa (cfr. documento de fls. 37).
A obra foi adjudicada em 2016 e de imediato começaram os trabalhos de movimentação de terras, que correspondem à fase inicial da obra, os quais ficaram concluídos em outubro de 2016.
Em 13/05/2017, inexistiam trabalhos de movimentação de terras naquela obra.
Confirmou que, à data, havia outros trabalhos a decorrer no referido loteamento, efectuados por outros sub-empreiteiros, como por exemplo a colocação de infra-estruturas de luz e de gaz, sendo que para a realização desses trabalhos foi necessário abrir e fechar valas, implicando movimento de terras, o que foi levado a cabo por tais sub-empreiteiros.
Confrontado com o livro de obra de fls. 100 a 106 (no qual vão sendo registados/anotados os diversos trabalhos que vão sendo executados ao longo do desenvolvimento da empreitada), esclareceu que o livro de obra foi preenchido pelo dono de obra, estando na sua posse.
Mais referiu que nas imediações do local do acidente (do lado direito da via, atento o sentido de marcha do veículo AH) estavam a decorrer várias obras em simultâneo, incluindo a construção duma moradia, um estaleiro a cargo da A. C. e a própria Câmara Municipal tinha lá uma obra/estaleiro (mais a sul), todas elas implicando movimento de entrada e saída de camiões.
Em relação a sinalização na via, a testemunha indicou que no local existia sinalização, em ambos os sentidos de trânsito, designadamente limitador de velocidade (30km/h), de perigos e trabalhos na estrada, que perduraram até à conclusão final da obra, dado tratar-se de uma obra à face da estrada, com entrada e saída de viaturas.
O referido depoimento, conjugado com o livro de obra, foi relevante para nos inteirarmos do faseamento dos trabalhos realizados pela ré no loteamento em causa, sufragando-se o juízo firmado na sentença recorrida de que, em maio de 2017, a ré já não se encontrava a fazer qualquer trabalho de movimentação de terras (como, aliás, resulta do ponto 21 dos factos provados, não impugnado), bem como de que “no local existiam mais empresas a operar, na obra em causa, para além de outras obras existentes nas imediações” (como parcialmente decorre do ponto 22 dos factos provados, igualmente não impugnado).
A testemunha J. O., engenheiro civil, foi colaborador subordinado da ré A. C., SA durante três anos, tendo cessado tal vínculo em dezembro de 2018.
Era um dos engenheiros responsáveis pela obra e estava no local diariamente (mais de uma vez ao dia).
Indicou o início dos trabalhos (no início de 2016), que consistiram na realização de trabalhos com movimentação de terras, que se desenrolaram durante cerca de 8 ou 9 meses.
Em maio de 2017, a ré não se encontrava a efectuar qualquer trabalho de movimentação de terras naquele loteamento.
Confrontado com o livro de obra junto aos autos, confirmou corresponder à obra em causa nos autos, bem como os trabalhos aí anotados, livro que era assinado pelo dono da obra e pelo Eng. P. M..
À semelhança da testemunha antecedente, particularizou a existência de três outras obras levadas a cabo nas imediações do local do acidente, designadamente a construção duma moradia particular, um estaleiro da responsabilidade da sociedade A. C. e a construção da ciclovia pela Câmara Municipal, que implicavam transporte de terras.
Mais confirmou o depoimento da testemunha antecedente.
Em relação a estas duas últimas testemunhas embora se aceite que a vinculação ou dependência jurídica possa, nalguns casos, constituir uma circunstância impeditiva da prestação, em juízo, de um depoimento isento e credível, pois, como é sabido, um trabalhador subordinado (o mesmo podendo dizer-se no caso de um familiar ou de um amigo) poderá mais facilmente ser tentado a faltar à verdade no intuito de beneficiar a entidade (ou pessoa) com a qual está relacionado, dada a existência de interesse (ou falta dele) no resultado da lide, a verdade é que a existência dessas relações (nomeadamente vínculo laboral) não é, nos termos legais, motivo de impedimento ou de inabilidade para depor como testemunha. Acresce que, dada a razão de ciência revelada, nomeadamente por terem diretamente intervindo ou acompanhado os trabalhos levados a cabo na obra em causa, muitas vezes essas pessoas (cingindo-nos, por exemplo, aos trabalhadores subordinados) vêm a revelar-se serem as que têm conhecimentos mais circunstanciados e precisos sobre os termos e timings em que os mesmos ocorreram. E para colocar em causa a credibilidade de tais depoimentos não basta a mera alegação genérica da menção das relações (como seja o vínculo jurídico) que tais testemunhas têm – ou tiveram – com uma das partes da causa. Esta circunstância, no caso de dependência laboral, foi desde logo confirmada pelas enunciadas testemunhas aquando do juramento e interrogatório preliminar nos termos e para os efeitos do disposto no art. 513º, n.º 1 do CPC, não deixando certamente de ser tomada em consideração aquando da valoração da globalidade dos meios de prova produzidos.
A testemunha J. F. – condutor de um veículo (marca/modelo BMW/118) que circulava atrás do veículo da autora (distanciados um do outro cerca de 10 metros) e que é namorado da filha da autora – presenciou o despiste, esclarecendo que no local em causa nos autos, na descida, perto da curva, o R. F. “perdeu a traseira do carro, tinha lá terra no chão, ele derrapou e foi embater numa pedra”.
Declarou que a terra estava antes da curva e que o despiste foi um bocado antes da curva.
A terra (sedimentos) ocupava as duas faixas de rodagem (provinha do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do AH e ficou retida do lado direito), existindo um rasto de terra que vinha do terreno situado daquele lado esquerdo, que “depois começou a alargar na via porque ela como estava ligeiramente inclinada para o lado direito, ela atravessou a via e foi-se espalhando pela via”.
Indicou que circulava à mesma velocidade do carro do autor, perto de 50 km/h.
Como refere a recorrente, a indicada testemunha confirmou que o veículo da Autora perdeu a tração traseira quando apanhou terra na via, mais confirmando que o rasto dos referidos sedimentos provinham do lado esquerdo da faixa de rodagem, atravessando-a e ocupando as duas vias, em virtude da inclinação existente no local.
Acontece, porém, que as reservas colocadas relativamente à valoração do depoimento da testemunha R. F. são igualmente transponíveis, com as devidas adaptações, no tocante à apreciação/valoração do depoimento da testemunha em apreço.
A versão fáctica aportada pela testemunha quanto à origem dos sedimentos foi infirmada pelos depoimentos das testemunhas P. M. (agente da PSP) e D. A. (bombeiro) e não se mostra retratada no croquis inserto no auto de participação do acidente de viação.
Acresce que, a ser como as testemunhas R. F. e J. F. pretenderam fazer crer em julgamento, no sentido de que de imediato se inteiraram que os sedimentos depositados na via provinham do prédio situado do lado esquerdo da via atento o sentido de marcha do veículo AH, contraria as regras da experiência comum que, antes de interpelar a ré C. J., SA para assumir as responsabilidades pelo pagamento dos danos decorrentes do despiste, a Autora tenha procurado ser ressarcida de tais danos junto do Município de X e só ulteriormente, após o alijar de responsabilidades por parte desta edilidade, tenha decidido interpelar aquela Ré.

No tocante à prova documental, mais uma vez concordamos com a apreciação/valoração feita pelo tribunal recorrido, que se desdobra nos termos seguintes:

- o auto de participação de acidente de viação (cfr. fls. 8 a 9), conjugado com o depoimento das testemunhas P. M. (agente da PSP) e D. A. (bombeiro) dá-nos uma perspetiva da configuração do local e indica-nos com precisão o local onde se encontravam os detritos (terra e lama) na via, o local onde o veículo ficou imobilizado e a distância entre o veículo e o local dos detritos.
- as fotografias juntas aos autos do local (cfr. fls. 7 v.º, 10 e 11 e 37 vº) permitem inteirar-nos da configuração do local, sendo que algumas delas (as fotografias aéreas) permitem perceber a existência de obras no local, dos dois lados da faixa de rodagem (quer o loteamento levado a cabo pela ré, quer a construção da moradia).
- o documento de fls. 12 (resposta do Município de X à exposição de 23/05/2017) não é por si só apto à imputação de responsabilidade pelo ocorrido à ré C. J., SA, na qualidade de construtor do loteamento.
Não será de menosprezar que o próprio Município não é de todo desinteressado do evento em causa, até porque, em termos hipotéticos, poderá não estar necessariamente excluída a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos em causa.
Ademais, não consta que o Município tenha providenciado por qualquer ação fiscalizadora e/ou sancionatória contra a ré C. J., SA por esta não ter cuidado de acautelar que as terras da sua obra não deslizassem para a via por onde circulavam veículos, provocando aglomeração das mesmas e colocando em causa a segurança do trânsito que aí se fazia sentir.
- o livro de obra constante de fls. 100 a 106 permite aferir, entre o mais, o início e o termo dos trabalhos executados, bem como o momento (timing) e a natureza dos trabalhos realizados

Comungamos identicamente da valoração global feita na sentença impugnada dos meios de prova, nos termos seguintes:

- A configuração do local, a data, o estado do tempo, a existência de detritos na via e o local de imobilização da viatura da autora, resultaram plenamente demonstrados com base em todos os meios de prova produzidos em audiência, sem qualquer prova em sentido contrário.
- Já o concreto local desses detritos na via resultou provado com base no depoimento das testemunhas P. M. (agente da PSP) e D. A. (bombeiro), bem como do auto de participação de acidente de viação (cfr. fls. 8 e 9) e das fotografias de fls. 10.
- A velocidade da viatura da autora foi dada como provada atendendo à configuração da via, à distância que mediou a existência dos detritos na via e o local de imobilização da viatura, assim como as declarações do condutor, nos termos supra analisados.
Como se aduziu na sentença recorrida – com que se concorda –, segundo os estudos científicos disponíveis, o cálculo de travagem de uma viatura que circule a 50 Km/h com piso regular e seco é de cerca de 24 metros (15). No dia do despiste o piso estava molhado. Todavia, “ainda assim, pensamos que uma distância não inferior a 50 metros indicia claramente uma velocidade superior a 50 Km/h”.
- No tocante à origem dos detritos na via, os meios probatórios produzidos apenas nos permitem concluir pela sua existência, do lado direito da via, atento o sentido de marcha do AH.
À data, nas imediações do local, existiam duas obras a ser executadas, uma (de maiores dimensões) levada a cabo pela ré C. J., SA, e outra pertencente a outra pessoa, não concretamente apurada.
Todos os trabalhos de escavação e movimentação de terras executados foram concluídos pela primeira ré em 31 de outubro de 2016 (ponto 21 dos factos provados), portanto há mais de 6 meses por referência à data do evento estradal em discussão nos autos.
Ora, não é pelo facto de a obra executada pela Ré ser de maior dimensões que se poderá sem mais concluir que os sedimentos existentes na via provieram dessa obra.
- Em maio de 2017, encontravam-se a ser efectuados, no visado loteamento, os trabalhos de instalação das infraestruturas de telecomunicações (ITED) e de electricidade, a cargo de outra empresa que não a Ré C. J., SA (ponto 22 dos factos provados).
Não se produziu qualquer prova credível que permita estabelecer (ainda que em termos plausíveis) um nexo causal entre a obra da ré e a presença dos detritos na via.
*
O tribunal recorrido concatenou o depoimento de parte, as prestações testemunhais produzidas em audiência e os documentos produzidos, e, discutindo as suas posições, apelando aos conhecimentos, à experiência e à razão de ciência de cada uma, tirou conclusões que se mostram condizentes com a leitura por nós efetuada da prova produzida.

Nesta conformidade, por referência à prova produzida nos autos, não se evidenciam razões concretas e circunstanciadas capazes de infirmar a apreciação crítica feita pelo tribunal recorrido sobre os pontos de facto impugnados.

De facto, a fundamentação que serviu de base a essas conclusões dadas pela 1.ª instância – que subscrevemos, nos termos explicitados –, baseando-se na livre convicção e sendo uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, revela-se convincente e sustentada à luz da prova auditada e não se mostra fragilizada pela argumentação probatória da impugnante, não se impondo decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto diversa da recorrida (art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC).
Nesta conformidade, coincidindo integralmente a convicção deste Tribunal quanto aos factos impugnados com a convicção formada pelo Mmº Juiz “a quo”, impõe-se-nos confirmar na íntegra a decisão da 1ª instância e, consequentemente, concluir pela total improcedência da impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
*
3. Enquadramento jurídico dos factos provados.

3.1. – Indagar se as recorridas estão ou não sujeitas à obrigação de indemnizar a recorrente pelos danos patrimoniais que afectaram a sua esfera jurídica.

A sentença recorrida considerou como não verificados os pressupostos de que depende o dever de indemnizar a cargo da(s) demandada(s), estabelecidos no art. 493º, n.º 2, do Código Civil (doravante, abreviadamente, designado por CC), porquanto, apesar de demonstrada a existência de uma obra operada pela 1ª ré, ficou por demonstrar qualquer facto que possa ser imputado a essa ré, uma vez que não se provou que a terra presente na via tenha origem numa actuação (ou numa omissão) da ré, atendendo a que no local existiam várias obras e várias empresas a operar. O mesmo é dizer que não se provou a existência de um facto ilícito, nem consequentemente um nexo causal entre esse facto e os danos, tão pouco qualquer atuação culposa da ré.

Paralelamente, a sentença igualmente decidiu não se demonstrar que tivesse sido a terra na via a causar o despiste do veículo da autora, uma vez que também se provou que o condutor desse veículo circulava em excesso de velocidade.

Insurge-se a recorrente contra essa decisão absolutória, aduzindo que “na responsabilidade extracontratual era à Ré a quem incumbia ilidir a presunção de culpa que sobre ela impendia, por não ter tomado as diligências necessárias para evitar perigos para terceiros, resultantes da obra que estava a executar, por força do artigo 493º, número 2 do Código Civil”.

Mais entende que, para além da ilicitude, encontra-se provada a culpa efetiva, na modalidade de negligência ou mera culpa da Ré C. J., SA., na medida em que ficou demonstrado que não foram empregues todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir danos e evitar perigos para terceiros, além de que, do facto ilícito praticado pela Ré, decorreram danos e avultados prejuízos para a Autora, designadamente, no veículo sinistrado, que ficou imobilizado desde a data do sinistro.

Conclui, por isso, que a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 83º do Decreto-Lei n.º 41821/58, de 11 de agosto, 5º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, 7º do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, 1 de outubro, 483º, n.º 1, e 493º, n.º 2, do Código Civil.
Vejamos da bondade da argumentação aduzida pela recorrente.

A responsabilidade civil extracontratual tanto pode basear-se na culpa (art. 483º, n.º 1, do CC), como no risco (art. 503º, n.º 1, do CC).

Estabelece o art. 483º do CC que “quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

A responsabilidade civil por factos ilícitos, geradora da obrigação de indemnizar, assenta num conjunto de pressupostos que passo a enunciar: prática de um facto ilícito, culpa do lesante, existência de danos indemnizáveis e nexo de causalidade adequada entre o facto e os danos.
Daí que se refira que as ações de responsabilidade civil extra-contratual compreendam uma causa de pedir complexa (16).
Como primeiro requisito da responsabilidade exige-se que se esteja perante um comportamento humano susceptível de ser controlado ou dominável pela vontade.
A ilicitude é uma infração à lei que decorre da violação de um dever jurídico.
Quanto à culpa, como pressuposto da responsabilidade, tem de verificar-se se a atuação do lesante foi em termos de merecer reprovação ou censura do direito em face da sua capacidade e circunstâncias concretas, pois que poderia e deveria ter agido de outro modo (17).

Nos termos do art. 487º, n.º 2, do CC, a culpa é sempre apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias concretas, cabendo, por regra, ao lesado o ónus de alegação e prova da culpa do autor da lesão - n.º 1 do citado preceito -, sem prejuízo das presunções de culpa que a lei consagra.
Como pressuposto da responsabilidade civil é necessário, também, que se tenha produzido um prejuízo que na sua vertente patrimonial é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado, compreendendo não só o dano emergente – prejuízo causado nos bens ou direitos inseridos na esfera patrimonial do lesado ao tempo da lesão – como também o lucro cessante – benefício que o lesado deixou de poder obter em razão da lesão ao qual, ao tempo dela, ainda não tinha direito (18).
Por último, o nexo de causalidade entre o facto e o dano, nos termos do art. 563º do Cód. Civil, traduz a obrigatoriedade de ressarcir relativamente aqueles danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
O citado preceito consagra a teoria da causalidade adequada: o facto há-de ser não só condição da lesão como também sua causa adequada, isto é, a acção ou omissão devem revestir específica idoneidade de produção do resultado, segundo a normalidade das coisas.
Por sua vez, nos termos do art. 493º, n.º 2, do CC, “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Não se alterando o princípio base do art. 483º do CC, de que a responsabilidade depende de culpa, o citado n.º 2 do art. 493º do CC estabelece uma presunção de culpa sobre quem exerce uma actividade perigosa, com a inerente inversão do ónus da prova, de acordo com o estatuído no art. 344º do CC, pois que ao lesante se passa a exigir a demonstração de que adoptou todos os cuidados (regras técnicas e deveres ditados pelas regras da experiência comum) que as concretas circunstâncias exigiam para evitar o dano (19).
A lei não indica um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos da norma e também não fornece um critério em função da qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade (geradora dos danos), como a natureza dos meios utilizados pelo agente para a pôr em prática (20). Trata-se, pois, de um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas (21).

O Prof. Vaz Serra considera “actividades perigosas” as «que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades» (22).

O Prof. Almeida Costa (23) defende que a atividade perigosa deve tratar-se de atividade que, mercê da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, «tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral».
O que significa que a perigosidade de uma atividade deve aferir-se segundo as regras da experiência, pelo que será perigosa uma actividade que, segundo aquelas regras, envolve uma propensão para ocorrência de danos. Note-se que a perigosidade deve ser entendida objetivamente, deixando-se de lado meros temores pessoais de uma potencial vítima (24).
O que determinará, assim, a qualificação de uma atividade como perigosa será a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que há-de resultar, como a própria lei o define, da sua própria natureza ou da natureza dos meios utilizados.
Ao tratar do exercício das atividades perigosas, o legislador quis (apenas) referir-se àquelas operações profissionais que, pela sua especial perigosidade (como o transporte, o comércio e o armazenamento de combustíveis e inflamáveis, os trabalhos de pirotecnia, o fabrico e uso de explosivos, os tratamentos de raio x, o emprego dos raios Laser, o uso da broca no tratamentos de odontologia, a actividade de produção, transformação, condução e distribuição de energia elétrica, a construção de uma barragem, a condução de água para abastecimento público, etc.) requerem medidas especiais de prevenção (25).
O Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado que a actividade de construção civil, quer de obras públicas quer de obras particulares, não constitui, em si mesma, uma actividade perigosa (26). Todavia, dependendo quer da natureza das obras em execução, quer da natureza ou características dos meios utilizados, nada obsta a que essa actividade seja, em concreto, qualificada como perigosa para efeitos do art. 493º, n.º 2, do CC.
É de referir, no entanto, que a presunção de culpa estabelecida no n.º 2 do art. 493º do CC não envolve simultaneamente a dispensa da prova do nexo de causalidade, exigindo-se, por isso, a demonstração de que a atividade perigosa foi juridicamente a causa da ocorrência daqueles danos. E esse ónus de prova cabe ao lesado (27).
Tenha-se presente que o art. 350º, n.º 1, do CC dispõe que “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”, competindo-lhe apenas alegar e provar o facto que serve de base à presunção, porquanto “desde que o queixoso alegue e prove que os danos foram causados no exercício de uma actividade perigosa (por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados), a lei (art. 493º, nº2, do Código Civil) presume, a partir desse facto (base de presunção), que o acidente foi devido a culpa do agente” (28).
Para convencer o tribunal de que o agente procedeu com culpa, o lesado não terá de alegar nem provar as circunstâncias concretas do acidente.
Ao presumidamente culpado, se quiser liberar-se da responsabilidade instituída nesse normativo, é que caberá alegar e provar “que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de» prevenir a ocorrência dos danos causados ou que o acidente se deveu a culpa do lesado ou de terceiro.
Na sentença recorrida, concluiu-se que o regime jurídico aplicável era o consagrado no art. 493º, n.º 2, do CC, posição essa que foi retomada pela recorrente na apelação e que não é questionada pelas apeladas.
Pois bem, no caso sub júdice, não obstante os parcos factos alegados e provados, entendemos que aquela qualificação poderá retirar-se tendo por base a perigosidade da natureza da atividade desenvolvida pela ré C. J., SA, posto que resulta provado que, por adjudicação da ... – Sociedade Imobiliária, Lda., aquela Ré executou a empreitada de construção de infraestruturas do loteamento denominado “Quinta ... – 4.ª Fase”, autorizado pelo Alvará n.º 12/2015, da Câmara Municipal ..., sito na Rua …, da freguesia da …, do concelho de X, o qual se situa no sentido ascendente do arruamento vindo de referir, sendo que para aquele efeito foram executados, entre outros, trabalhos de escavação e movimentação de terras.
Estes trabalhos, regra geral, são em si mesmo uma atividade perigosa, dado o risco de desmoronamento de terras com consequências danosas imprevisíveis para pessoas e coisas, o que no caso é potenciado pelo facto desse loteamento se situar próximo duma via pública, por onde circulam veículos e peões, podendo interferir com o tráfego rodoviário que aí se processa.
A isto acresce a envergadura da obra levada a cabo pela ré C. J., SA..
E, como tem sido sublinhado, a actividade perigosa, geradora de culpa presumida, pode ter como elemento de análise toda a actividade inerente ao processo construtivo das infraestruturas do loteamento, que, pela sua própria natureza (atenta a sua dimensão, a localização dos trabalhos, a sua estrutura e outros aspectos), é dotada de elevada potencialidade para causar danos – implicando escavações, abertura de valas, remoção e movimentação de terras –, e não apenas cada uma dessas operações, isolada e atomisticamente (29).

Como tal, é de secundar o juízo formulado na sentença recorrida, no sentido de a atividade levada a cabo pela Ré C. J., SA, dada a sua periculosidade intrínseca, estar sujeita ao regime previsto no n.º 2 do art. 493º do CC, que estabelece uma presunção de culpa por danos causados no exercício de uma atividade perigosa por sua própria natureza ou pelos meios utilizados.

Feita esta delimitação jurídica importa ter presente o seguinte quadro factual:

- No dia 13 de maio de 2017, pelas 00.05H, na Rua …, da freguesia da …, concelho de X, no sentido descendente ocorreu um evento estradal, em que foi interveniente o veículo automóvel, com a matrícula AH, pertença da Autora e conduzido na altura do acidente pelo seu filho R. F..
- No dia, hora e local indicado supra em 2º, o R. F. seguia no indicado sentido descendente, quando numa curva com ligeira inclinação à direita, o veículo entrou em despiste, perdendo o controlo do mesmo.
- Verificou-se a existência no pavimento de terra e areia.
- Em consequência directa e necessária do acidente, o veículo da Autora, ficou muito amolgado no lado direito, na zona frontal e lateral, afectando órgãos importantes do mesmo, tais como a direcção, sendo necessário proceder a trabalhos de chapeiro e pintura e substituição de diversos materiais de ambos os lados veículo, cuja reparação foi orçada em 7.500,00€.
- A Ré A. C., S.A. é uma sociedade comercial que se dedica, com carácter habitual e intuito lucrativo, à indústria da construção civil e obras públicas, entre outras.
- Por adjudicação da ... – Sociedade Imobiliária, Lda., a Ré A. C., S.A. executou a empreitada de construção de infraestruturas do loteamento denominado “Quinta ... – 4.ª Fase”, autorizado pelo Alvará n.º 12/2015, da Câmara Municipal ..., sito na Rua …, da freguesia da …, do concelho de X.
- O referido loteamento situa-se, efectivamente, no sentido ascendente do arruamento vindo de referir.
- A Ré “A. C., S.A.” terminou a obra (loteamento) em 19 de Julho de 2017.
- Todos os trabalhos de escavação e movimentação de terras executados foram por concluídos pela primeira ré em 31 de Outubro de 2016.
- Em Maio de 2017 encontravam-se a ser efectuados, no visado loteamento, os trabalhos de instalação das infraestruturas de telecomunicações (ITED) e de electricidade, a cargo de outra empresa que não a Ré A. C., S.A., bem assim como o calcetamento dos arruamentos interiores do mesmo, a que se seguiram trabalhos de acabamento e remate, todos estes ao encargo da primeira ré.
- A distância entre o local em que se encontra implantado o loteamento em questão e o ponto concreto da via estradal onde, de acordo com a participação de acidente elaborada pela Polícia de Segurança Pública, se encontravam depositados detritos (terra e lama) distam cerca de 50 metros.
- No momento do despiste o veículo da autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada mas superior a 50 Km/h.
Sendo estes os factos provados, sobressai desde logo a existência de danos, mas não a comprovação do nexo de causal entre eles e a conduta da ré C. J., SA.

Ora, como já vimos, embora o art. 493º, n.º 2, do CC, estabeleça efetivamente uma presunção de culpa que favorece o lesado, tal presunção só opera após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com a atividade perigosa [”Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade” perigosa (por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados)]. E esse ónus da prova (do facto que servia de base à presunção de culpa) cabia à lesada.

Como se discorreu na sentença, “(…) no caso dos autos demonstrou-se a existência de uma obra mas ficou por demonstrar qualquer facto que possa ser imputado à ré. Quer dizer, não se demonstrou que a terra presente na via tenha origem numa actuação (ou numa omissão) da ré atendendo a que no local existiam várias obras e várias empresas a operar.
No fundo, não se provou que a terra constante na via tenha tido origem na obra operada pela ré.
Ou seja, não se provou um facto e, por conseguinte, um nexo causal entre esse facto e os danos”.

O mesmo é dizer que não ficou demonstrado que o despiste do veículo da autora tivesse sido causado, em termos de causalidade adequada, pela ré C. J., SA no exercício da sua atividade considerada perigosa relacionada com a construção das infraestruturas do loteamento identificado nos autos. Ficou tão só provado que, quando seguia no sentido descendente, numa curva com ligeira inclinação à direita, o veículo AH entrou em despiste, perdendo o controlo do mesmo, tendo-se constatado a existência no pavimento de terra e areia, mas não tendo resultado provado que tais substâncias ou detritos existentes no pavimento tiveram a sua proveniência no desaterro ou movimento de terras que a Ré havia levado a cabo no loteamento.

Não vem estabelecida qualquer relação causal entre as obras de construção de infraestruturas do loteamento (mais propriamente as escavações e movimentação de terras propriamente ditas) e o aparecimento dos detritos no pavimento onde se despistou o veiculo AH, por forma a que deva ponderar-se a inclusão dessas obras nos factos integradores dos requisitos da responsabilidade civil e obrigação de indemnizar.

À procedência da pretensão da Autora era imprescindível esta estabelecer o nexo de causalidade entre o acidente e a atividade perigosa exercida pela ré. Só depois se passaria à obrigação de indemnizar os danos pela ré, no caso desta não demonstrar “que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

A verdade é que a apelante não logrou demonstrar, como lhe competia (art. 342º, n.º 1 do CC), o nexo causal entre o acidente e respetivos danos e a atuação da ré C. J., SA relacionada com a construção do refletido loteamento.

Sendo assim, não é possível julgar verificado condicionalismo que permitisse decidir na base de inversão do ónus de prova sobre a culpa, não sendo, no caso concreto, aplicável o disposto no art. 493º, n.º 2 do CC.

O que vale por dizer que:

a) o circunstancialismo provado torna irrelevante a falta de prova de inexistência de culpa por parte da ré C. J., SA
b) não há prova direta de factos demonstrativos da ilicitude e de culpa da ré C. J., SA, bem como do nexo de causalidade entre o (não comprovado) evento ilícito e os danos.

Concretizando esta última conclusão, não resultou provado que:

- O condutor do AH circulava dentro da sua faixa de rodagem e com velocidade não superior a 50 km e, sem que nada o fizesse prever, deixou de poder controlar o veículo, de modo que o mesmo só se imobilizou quando embateu na vedação e no pedregulho paralela ao poste de iluminação pública que serve como ponto fixo e inalterável.
- Essa perda de controlo deveu-se exclusivamente à existência das substâncias (terra, saibro, areia) no pavimento, as quais tiveram a sua proveniência no desaterro ou movimento de terras que a Ré estava a levar acabo em terrenos pertencentes à sociedade ... – Imobiliária Lda., e situados em cota superior à Rua …, do lado esquerdo destas e atento o sentido de marcha do Citroen.
- Inexistia qualquer sinal de trânsito que indicasse perigo ou cautelas especiais, nomeadamente da existência de obras ou a possibilidade de existir substâncias estranhas em pavimento rodoviário (30).
- O despiste ocorreu por falta de condições de circulação automóvel do pavimento, causados pela Ré, enquanto responsável pelos trabalhos ocorridos nos terrenos junto à via pública, sem que tivesse de algum modo diligenciado ou prevenido pela limpeza e ainda pela sinalização do estado da via.
- A Ré não cuidou de acautelar que as terras ao serem movimentadas pudessem deslizar, com as chuvas, para a rua por onde circulam veículos automóveis.
- A Ré, por si ou através dos seus trabalhadores ou colaboradores, a quem lhes foi ordenada a realização desses serviços, não tiveram o cuidado necessário para evitar que as terras que estavam a movimentar deslizassem para a via pública, provocando aglomeração das mesmas que, com a chuva se transformaram em lama, saibro e areia.
- Não foi sinalizado o trabalho que estava a ser executado, nem a via estava impregnada das substâncias provenientes das obras locais, nem sequer a limparam ou chamaram alguém para a limpar.
- A Ré sabia que, com as chuvas, as terras poderiam deslizar para a via pública e que tal circunstância era susceptível de causar acidentes, como efectivamente causou.

Por conseguinte, reafirma-se não estarem demonstrados os supra enunciados pressupostos necessários para a verificação do instituto da responsabilidade civil da 1ª ré, por imputação subjetiva ou delitual.
Deste modo, a sentença recorrida merece confirmação, improcedendo a apelação.
*
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I - O art. 493º, n.º 2, do Código Civil estabelece uma presunção de culpa sobre quem exerce uma actividade perigosa (por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados), com a inerente inversão do ónus da prova, de acordo com o estatuído no art. 344º do CC, pois que ao lesante se passa a exigir a demonstração de que adoptou todos os cuidados (regras técnicas e deveres ditados pelas regras da experiência comum) que as concretas circunstâncias exigiam para evitar o dano.
II - Essa presunção só funciona após a prova de que o evento se ficou a dever a razões relacionadas com a atividade perigosa.
III - Esse ónus de prova (do facto que serve de base à presunção de culpa) cabe ao lesado (art. 342º, n.º 1, do Código Civil).
*
VI. Decisão

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela apelante, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da apelante (art. 527º do CPC).
*
Guimarães, 10 de julho de 2019

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)


1. Cfr. Ac. da RP de 24/01/2018 (relator Nélson Fernandes), in www.dgsi.pt. e Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., 2014, Almedina, pp. 598/601.
2. Cfr. Ac. do STJ de 17/10/2017 (relator Alexandre Reis), Acs. da RG de 4/10/2018 (relatora Eugénia Cunha) e de 5/04/2018 (relatora Eugénia Cunha), todos disponíveis in www.dgsi.pt. e Ac. do STJ de 1/4/2014 (relator Alves Velho), Processo 360/09, Sumários, Abril/2014, p. 215, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2014.pdf. Nas elucidativas palavras de Alberto dos Reis, o juiz “comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o mérito da decisão; os da segunda categoria são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade de julgador” (cfr. Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, 1984, pp. 122, 124/125).
3. Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 736.
4. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo (…), vol. V, p. 141 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 690.
5. Cfr. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 371.
6. Cfr. José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum À luz do Código de Processo Civil, 4ª ed., Gestlegal, 2017, p. 383.
7. Cfr. Helena Cabrita, A fundamentação de facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra editora, p. 258/259.
8. Cfr. Luís Correia de Mendonça/Henriques Antunes, Dos Recursos (regime do Dec. Lei n.º 303/2007), Quid Iuris, 2009, p. 117.
9. Quer no corpo alegatório [ponto VI (Impugnação da decisão acerca da matéria de facto) - B], quer nas alíneas i) a vi) da 14ª conclusão (se bem que nesta parte se limite a indicar as respostas que preconiza deverem ser preferidas sobre as questões de facto impugnadas).
10. As dificuldades na indicação da matéria de facto impugnada colocam-se porquanto, tendo o Mm.º Juiz “a quo”, no âmbito da decisão sobre a matéria de facto, declarado efetivamente, nos termos do n.º 4 do art. 607º do CPC, quais os factos que julgou provados e quais os que julgou não provados (acrescentando, no início de cada facto, o concreto artigo por referência ao articulado do qual extraiu tal facto), seguidamente, em estrita obediência ao n.º 3 do citado normativo, limitou-se a discriminar, autonomamente, os factos que considerou provados.
11. A verificação do cumprimento das exigências formais, segundo o ensinamento de Abrantes Geraldes (cfr. Recursos (…), pp. 159/163), deve ser apreciada “à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”. Contudo, importa que não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador. Ou seja, jamais deve transparecer a ideia (…) de que a elevação do nível de exigência além dos parâmetros que a lei inequivocamente determina constitui, na realidade, um mero pretexto para recusar a apreciação do mérito da impugnação da decisão da matéria de facto, com invocação, nesse primeiro momento, do incumprimento de requisitos de ordem adjetiva (…)”.
12. Cfr., na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos (…), pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396; Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, obra citada, pp. 462 a 469; na jurisprudência, Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.
13. Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, obra citada, pp. 435/436; no mesmo sentido, Manuel A. Domingues de Andrade, obra citada, pp. 191/192
14. Cfr. Lebre de Freitas, Introdução Ao Processo Civil. Conceito E Princípios Fundamentais À Luz Do Novo Código, 4ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2017, p. 202.
15. De acordo com o cálculo das distâncias médias de paragem disponibilizado pelo IMTT, a uma velocidade de 30Km/hora corresponde uma distância de reação de 9 m e uma distância de travagem de 4,5m o que dá uma distância de paragem de 13,5m. A uma velocidade de 50Km/hora a distância de reação corresponde a 15m, a distância de travagem a 12,5m, sendo portanto a distância de paragem de 27,5m. Se a velocidade for de 70Km/hora a distância de reação já sobe para 21m, a distância de travagem para 24,5m, sendo portanto a distância de paragem de 45,5m. Bem sabemos que estes resultados têm de ser lidos “cum grano salis”, dado que na fixação da distância de travagem ou da distância de paragem há que entrar em linha de consideração com uma multiplicidade de parâmetros variáveis, que vão desde as condições da via (natureza do piso, o seu estado de conservação, as condições de aderência, a sua inclinação, a taxa de desgaste), condições relativas ao automóvel (estado de conservação e pressão dos pneus, tipo de travões e condições do seu funcionamento), bem como as condições meteorológicas.
16. Cfr., entre outros, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, Coimbra, 1994, p. 465 e Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, volume I, 6.ª ed., Almedina, pp. 494/496, Vaz Serra, in RLJ, 103º, pp. 509 a 512 e 104º, p. 232;
17. Cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 536.
18. Cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 567 e segs.
19. Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, p. 496, «quanto aos danos causados no exercício de actividades perigosas, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar. Afasta-se indirecta, mas concludentemente, a possibilidade de o responsável se eximir à obrigação de indemnizar, com a alegação de que os danos se teriam verificado por uma outra causa (causa virtual: ...), mesmo que ele tivesse adoptado todas aquelas circunstâncias».
20. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 495 e Ac. do STJ de 17/05/2017 (relator António Piçarra), in www.dgsi.pt.
21. Cfr. Ac. do STJ de 15/10/2011 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt.
22. Cfr. Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades, separata do BMJ, n.º 85, p. 378.
23. Cfr. Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, p. 493.
24. Cfr. Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, Principia, p. 243.
25. Cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 121, 1988-1989, n.º 3766-3777, p. 51 e Ac. do STJ de 18/01/2000, BMJ, n.º 493, 367/373; em particular, no tocante à actividade de produção, transformação, condução e distribuição de energia elétrica, entre outros, os Acs. do S.T.J. 25/03/04, CJSTJ, T. I, p. 149, de 20/1/2010 CJSTJ, T. I, p. 29, ac. da RL de 17/03/05, CJ, T. II, p. 80, 12/02/2004 (relator Araújo Barros), Ac. do STJ de 8/11/2007 (relator Pires da Rosa), Acs. da RP de 02/07/2013 (relatora Maria João Fontinha Areias Cardoso) e de 21/02/2017 (relator Vieira e Cunha) e Ac. da RL de 9/03/2017 (relatora Maria Teresa Albuquerque), consultáveis in www.dgsi.pt.
26. Cfr. Acórdãos do STJ de 27-1-04, CJSTJ, tomo I, p. 46, de 13-11-12 (relator Gabriel Catarino), de 5-6-98 (relator Oliveira Rocha), de 11-11-03 (relator Lopes Pinto), de 22-4-08 (relator Salvador da Costa), de 9-07-15 (relator Abrantes Geraldes) e de 17/05/2017 (relator António Piçarra), estes in www.dgsi.pt.
27. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª ed., Almedina, 2002, p. 309 e Ac. da RL de 20/03/2001, CJ Ano XXVI – 2001, T. II, p. 83/84.
28. Cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 122º, 1989-1990, n.º 3778-3789, p. 217.
29. Cfr. Acs. do STJ de 9/07/15 (relator Abrantes Geraldes) e de 17/05/2017 (relator António Piçarra), disponíveis in www.dgsi.pt.
30. Atenta a não demonstração dessa facticidade, torna-se irrelevante a explanação (fáctica e legal) aduzida na apelação a respeito da (alegada) falta de sinalização da via na constância das obras do loteamento.