Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4592/10.8TBMTS-C.G1
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL DO ADVOGADO
LEVANTAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2º SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1- O segredo profissional a que estão sujeitos os Advogados serve como forma de assegurar o respeito pelos direitos à palavra, à intimidade da vida privada e à informação e consulta jurídicas, constitucionalmente consagrados.
2- Além disso, esse segredo profissional é também fundamental para garantir uma sadia relação de confiança entre o Advogado e aqueles com quem o mesmo se relaciona em termos profissionais, particularmente, os seus clientes, o que se reflete positivamente na boa administração da justiça.
3- Esse segredo, porém, não é um valor absoluto. Deve, excecionalmente, ceder perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor. Designadamente, deve ceder quando o depoimento do Advogado se mostre imprescindível para a descoberta da verdade material e para a proteção de outros bens jurídicos, que, no caso, se mostrem mais relevantes.
4- Havendo controvérsia sobre se uma das partes assinou um contrato promessa que serve de base à execução, na presença de um Advogado, e não havendo outros meios de prova para além de duas perícias cujo sentido não é unívoco, é de levantar o segredo profissional a que aquele Advogado está sujeito, para que o mesmo esclareça o conhecimento que tem acerca daquele facto concreto.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

1- Por apenso à execução que A e M, moveu contra, V, veio este executado deduzir oposição alegando, para além do mais, que a assinatura que lhe é imputada no contrato promessa que serve de base à referida execução não é da sua autoria e, portanto, é falsa.
Por esse motivo, deve ser “desobrigado de efetuar o pagamento da quantia peticionada e respetivos juros (…)”.
2- Contra esta pretensão manifestaram-se os exequentes, sustentando, ao invés, que “[a] assinatura aposta no contrato promessa junto aos autos principais, (…) é da autoria do oponente e foi manuscrita pelo seu punho perante e na presença do Doutor FM, Advogado”.
Assim, “a arguida falsidade mais não é do que uma manobra dilatória do Oponente que procura retardar o andamento dos presentes autos, claramente de má-fé (…)”.
Como tal, terminam pedindo a improcedência da oposição e a condenação do oponente como litigante de má-fé.
Requerem ainda o depoimento, como testemunha, do referido Dr. FM.
3- Terminados os articulados, foi proferido despacho saneador e julgada parcialmente procedente a oposição, tendo sido ainda ordenado o prosseguimento dos autos “para instrução tendente a aferir a autoria do contrato promessa exequendo, assim permitindo aferir em termos definitivos a legitimidade do oponente nestes autos”.
Neste sentido, foi selecionada a matéria de facto assente e controvertida, fazendo parte desta última apenas a seguinte questão:
A assinatura constante do documento a que se alude em A) e B) [intitulado de Contrato Promessa de Compra e Venda com Hipoteca], que forma o nome V, foi aí aposta pelo próprio punho do executado/Oponente V ?”.
4- Realizado exame pericial pelo Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, nele se concluiu, no dia 17/06/2013, que “a escrita da assinatura contestada de V, aposta no documento identificado como C1, pode ter sido produzida pelo seu punho”.
5- Entretanto, num outro exame pericial realizado pelo Laboratório de Policia Cientifica da Policia Judiciária, nele se concluiu, em 11/07/2014, que se admite “como muitíssimo provável que a escrita suspeita da assinatura (…) não seja da autoria de V.”.
6- Os autos prosseguiram, tendo sido designado dia para a audiência final.
7- Ao ter conhecimento de que fora convocado para essa audiência, para depor como testemunha, veio o Dr. FM, Advogado, informar que tinha requerido junto do Conselho Distrital do Porto, da Ordem dos Advogados, a dispensa do segredo profissional.
8- Este pedido, porém, por decisão datada de 12/11/2015, foi liminarmente rejeitado, em virtude de não ter sido fundamentado.
9- Vieram, então, os exequentes suscitar o incidente de dispensa do dever de segredo profissional, sustentando, em suma, que:
Se encontra alegado por eles próprios, exequentes, no artigo 17.º da resposta à oposição, que o contrato promessa, referido no quesito único da base instrutória, foi subscrito pelo oponente, na presença da referida testemunha, na qualidade de Advogado.
Encontrando-se juntos aos autos, “até ao momento, dois relatórios periciais contraditórios entre si, no que tange à aferição do juízo de probabilidade da assinatura de V, constante na 2ª pág. do contrato promessa (título executivo que serve de base à presente execução), embora a sua rubrica constante da pág. 1 desse documento não tenha sido impugnada pelo oponente”.
“Perante esta contradição, os exequentes entendem que o depoimento da testemunha, Dr. FM se revela absolutamente essencial, necessário, conveniente e relevante à descoberta da verdade e boa decisão da causa, porquanto incidirá o seu depoimento sobre factos que o mesmo presenciou e nos quais teve direta participação e intervenção, os quais não estão suficientemente esclarecidos por qualquer outro meio de prova”.
Deste modo, requerem que seja dispensada do segredo profissional a indicada testemunha, para esclarecimento da questão enunciada no quesito único da base instrutória.
10- Ouvida a Ordem dos Advogados, emitiu parecer o respetivo Conselho Regional do Porto:
a) No sentido da legitimidade da escusa invocada para a prestação do depoimento nos termos do art. 417°, nº 3, al. c) do CPC e nos do art. 92º, nº1, do EOA;
b) No sentido da justificação da quebra do sigilo profissional, nos termos do art. 135º, n.s 3 e 4 do CPP, aplicável por remissão do art. 417°, nº 4, do CPC, 92º, nº 4 do EOA e 4º, n.º 1, do RDSP, por forma a que o Sr. Dr. FM possa prestar depoimento no âmbito do processo nº 4592/10.8TBMTS-A que pende termos pela lª Secção de Execução, J2, Instância Central de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, concretamente relativamente ao conhecimento que o mesmo tenha respeitante a identificação da pessoa que subscreveu o contrato promessa aludido no quesito único da base instrutória e em que circunstâncias e local foi o mesmo subscrito”.
11- Não consta que tivesse havido resposta.
12- Preparada a deliberação, importa tomá-la:
*
II- Mérito do incidente
1- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do presente incidente é constituído apenas pela questão de saber se, no caso em apreço, se justifica a quebra do segredo profissional, com o objetivo pretendido pelos requerentes.
2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado - que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar esta questão:
Está em causa o depoimento de um Advogado relativamente a factos que alegadamente terá tomado conhecimento no exercício da sua profissão.
Como tal, nos termos do artigo 92.º, n.º 1, al. a), do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), o referido Advogado está sujeito à obrigação de sobre esses factos manter segredo profissional. O que significa que, sobre esses factos, o mesmo se pode recusar a depor; isto é, a sua recusa é legítima (artigo 417.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Civil). Nem isso está em causa no presente incidente.
O que aqui está em causa, como vimos, é tão só a questão de saber se se justifica o levantamento do referido segredo.
A lei atribui-lhe um carater excecional. A tal ponto que o tribunal só pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional quando essa quebra se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de proteção de bens jurídicos – artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal “ex vi” artigo 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Efetivamente, o sigilo profissional não é instituído em defesa do interesse exclusivo do Advogado. É erigido também como forma de respeito pelos direitos à palavra, à intimidade da vida privada e à informação e consulta jurídicas, constitucionalmente consagrados [artigos 20.º, 26.º, n.º 1, e 208.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP)]. E, a estes direitos, todos, isto é, entidades públicas e privadas, devem respeito (artigo 18.º, n.º 1, da CRP).
Ora, uma das formas de assegurar esse respeito é conferindo aos Advogados as imunidades necessárias para o exercício do mandato, onde se inclui o segredo profissional.
Mas não só. O segredo profissional é também fundamental para garantir uma sadia relação de confiança entre o Advogado e aqueles com quem o mesmo se relaciona em termos profissionais, particularmente, os seus clientes. Sem essa confiança, a referida relação não se expande e preserva, sendo, nessa medida, prejudicada, por essa via, também a administração da justiça.
Bem se vê, assim, que o segredo profissional dos Advogados se destina a tutelar interesses privados mas também de ordem pública(1).
Sucede, ainda assim, que esse segredo não é um valor absoluto(2). Como já vimos, deve ceder perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor. Designadamente, como decorre da lei, quando o depoimento do Advogado se mostre imprescindível para a descoberta da verdade e para a proteção de outros bens jurídicos. O que tem de ser ponderado em cada situação concreta.
Pois bem, no caso presente, como já vimos, está em causa a questão de saber se o oponente assinou, ou não, o contrato promessa que serve de base à execução.
O executado sustenta que não. Mas os exequentes defendem o contrário, alegando até que a assinatura do oponente “foi manuscrita pelo seu punho perante e na presença do Doutor FM, Advogado”.
Realizada a prova pericial, verifica-se que a mesma não é unívoca.
No exame pericial pelo Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, concluiu-se que “a escrita da assinatura contestada de V, aposta no documento identificado como C1, pode ter sido produzida pelo seu punho”.
Mas, num outro exame pericial, realizado pelo Laboratório de Policia Cientifica da Policia Judiciária, chegou-se a uma conclusão diversa; ou seja, aí se admite “como muitíssimo provável que a escrita suspeita da assinatura (…) não seja da autoria de V”.
Bem se vê, assim, que a ter sido realizada a assinatura em questão na presença da citada testemunha, e não havendo notícia de outras testemunhas presenciais, se revele imprescindível que aquela diga o que observou.
Até porque, como se refere no Parecer do Conselho Distrital do Conselho Distrital do Porto, da Ordem dos Advogados, junto aos autos, “o que está em causa, em última instância, é a dignidade do Advogado, Sr. Dr. FM, pois, se a assinatura cuja veracidade se discute foi feita na sua presença – como alegam os Requerentes - não deixa esse facto de ser de algum modo colocado em crise pela perícia que concluiu pela pouca probabilidade dessa veracidade.
E, se tal assinatura não foi feita na sua presença, então imputam-lhe os Requerentes actos que não terá praticado”.
E acrescenta o mencionado Parecer: “Mas cremos também que o que está igualmente em causa é a confiança das pessoas nos advogados em geral e, logo, na advocacia enquanto profissão de interesse público, pois se não se puder confiar na palavra de um advogado quanto a actos em que directamente interveio, não existirão verdadeiras condições para o exercício da advocacia”.
E conclui: “Assim, pensamos que o interesse a acautelar com a prestação do depoimento não é só o da descoberta da verdade material, mas, também, o da dignidade dos advogados e o da confiança nesses profissionais. E esses - os três em conjunto - por um lado, no caso concreto, teremos que considerar prevalentes sobre o da confiança no exercício da advocacia protegido através do segredo profissional.
Até porque o depoimento testemunhal é absolutamente imprescindível à descoberta da verdade material, pois só o Sr. Dr. FM saberá se a assinatura posta e em causa foi ou não feita na sua presença.
Como também, face às dúvidas surgidas sobre esse facto, só ele poderá, pelo depoimento requerido, prestar, assegurar a defesa da sua dignidade e a tutela da confiança que merece enquanto advogado.
(…)
Até porque, como não deixam de dizer os Requerente, é exclusivo como meio de prova a prestação desse depoimento.
Como, pelo que se disse, é imprescindível e essencial à defesa da dignidade desse advogado”.
Esta é, a nosso ver também, a perpetiva a adotar; ou seja, perante os diversos interesses em confronto, no caso presente deve prevalecer o interesse na boa administração da justiça, que, reflexamente, contribuirá para o aumento da dignidade da Advocacia e, nessa medida também, para a preservação da confiança nos profissionais que a exercem.
Em suma: é de deferir o pretendido levantamento do segredo profissional.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em julgar procedente o presente incidente e, consequentemente, considera-se justificado o levantamento do sigilo profissional do Sr. Dr. FM, Advogado, para que o mesmo possa prestar o seu depoimento no âmbito do processo nº 4592/10.8TBMTS-A, que corre termos pela lª Secção de Execução, J2, Instância Central de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, relativamente à questão de saber se o oponente assinou, ou não, o Contrato Promessa de Compra e Venda com Hipoteca, nos termos mencionados no quesito único da base instrutória e, na afirmativa, em que circunstâncias de tempo, modo e local foi feita essa assinatura”.
*
- Sem tributação.

1 - Ac. STJ de 27/05/2008, Processo 07B4673, consultável em www.dgsi.pt.
2 - Neste sentido, entre outros, Ac. RC de 04/03/2015, Processo n.º 60/10.6TAMGR-A.C1, consultável em www.dgsi.pt.