Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
386/16.5GAVLP.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
VÍTIMA EX-MULHER ARGUIDO
DESQUALIFICAÇÃO CONDUTA DELITUOSA
ARTº 145
AL. A) E Nº 2 E 132
Nº 2. B)
DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - No nosso C. Penal, como resulta do disposto no nº 1 do art. 145º e da remissão que no n.º 2 do mesmo preceito se faz para o art. 132º, nº 2, o crime de ofensa à integridade física qualificada está construído, à semelhança do homicídio qualificado, para o qual é feita a remissão, segundo a técnica dos exemplos-padrão: no nº 1 está configurada a tipicidade da qualificativa e no nº 2 faz-se uma indicação meramente exemplificativa de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere.

II - O legislador também entendeu que os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, tendo, com a Lei nº 59/2007, alargado ainda mais essa tutela penal, ao incluir o ex-cônjuge e a pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges, assim prescindindo da existência de tais laços, pois estes devem continuar a impor-se ao respeito dos que neles intervieram.

III - Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflictam uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente.

III - E o juízo de especial censurabilidade ou perversidade só é sustentável se, subjectivamente, o dolo do agente também abranger a condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade.

IV - No caso dos autos, o arguido perpetrou a agressão, desferindo várias pancadas na cabeça, rosto, peito e braços da sua ex-mulher, quando a mesma se encontrava sozinha na casa que serviu de morada de família, tendo para esse efeito utilizado o cabo de um sacho.

V - Contudo, apesar de o arguido ter vencido as contra motivações éticas que radicam nos laços de casamento e sobre ele impender um especial dever de respeito, o que indicia um aspecto da sua personalidade mais desvaliosa, não ressuma dos factos, para além da agressão em si mesma, um especial acréscimo de censurabilidade e de potencial criminoso pela afronta aos motivos inibitórios do crime que as relações de índole familiar devem supor, nem nada se descortina nos factos que permita encarar o instrumento usado como meio insidioso ou como tendo colocado a ofendida numa situação de dificuldade exponencial de defesa, pelo que o facto de a vítima ser sua ex-mulher, ainda que justifique um elevado juízo de censura no quadro do tipo do ilícito base, não basta para que o crime de ofensa à integridade física por ele cometido seja qualificado, por desvendar uma “imagem global do facto agravada”, passível de sustentar um juízo de especial censurabilidade, de fundar um juízo de maior desvalor ético, quando confrontado com os procedimentos de agressão comummente adoptados.

VI - E, mesmo que assim não fosse, também nada se extrai que, no plano subjectivo, permita imputar ao arguido tal qualificativa: no caso, que o arguido teria actuado com consciência e a vontade de lesar a integridade física da pessoa a que o ligavam os laços do dissolvido casamento e de violar os especiais deveres a que, por isso, se encontrava adstrito para com a sua ex-mulher, socorrendo-se de um meio insidioso ou particularmente perigoso. Dito de outro modo, a sentença não contém factos que, aliás já não constavam da acusação, que sustentassem que, no caso concreto, o dolo do arguido também abrangeu essa peculiar condição bem como a da especial vulnerabilidade em que o mesmo, supostamente, teria colocado a ofendida com uma forma de realização do facto particularmente desvaliosa, por visar atingir corporalmente a ex-mulher dificultando a sua defesa, em razão da enorme supremacia que lhe conferia o instrumento usado ou a particular perigosidade deste.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo supra identificado, do Juízo de Competência Genérica de Valpaços, da Comarca de Vila Real, o arguido J. A. foi julgado e, por sentença proferida e depositada em 31/10/2017, absolvido da imputação de um crime de descaminho, p. e p. pelo art. 355º do C. Penal, e condenado como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. no art. 143º e 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. b) do nº 2 do art. 132º, do Código Penal, na pena de quatro (4) meses de prisão, substituída por 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 9, no total de € 1.080 (mil e oitenta euros).

O arguido foi, ainda, condenado a pagar à demandante cível E. B. a quantia de € 600 (seiscentos euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos decorrentes da sua conduta, acrescidos de juros de mora desde a data da sentença.

Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs recurso cujo objecto delimitou com as conclusões que a seguir se enunciam, sustentando a sua absolvição pela prática do aludido crime:

1. O objecto do presente recurso prende-se, essencialmente, com os seguintes aspectos:
a) Entendemos que a M.ma Julgadora a. quo não realizou uma análise correcta e equilibrada da prova produzida.
b) Os factos provados (atenta a prova, efectivamente, produzida) não permitem concluir que o arguido/Recorrente praticou o crime de ofensa à integridade física qualificada,
2. O arguido/Recorrente considera que a M.ma Julgadora a quo fez uma apreciação incorrecta e imprudente da prova produzida (dando relevância ao depoimento da assistente) e, em consequência, aplicou de forma deficiente o direito.
3. Os vícios que, infra, se invocam resultam do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum; a M.ma Julgadora a quo realiza uma errada interpretação da matéria de facto provada, ocorre contradição insanável da fundamentação e, sobretudo, entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova,
4. Não existem elementos probatórios, suficientes ou bastantes, que permitam concluir que o arguido ofendeu o corpo ou a saúde de outra pessoa ... e que o crime tenha sido praticado em circunstâncias que revelem especial perversidade ou censurabilidade do agente ...
5. Ninguém presenciou os factos.
6. A M.ma Julgadora acreditou na assistente, não obstante a animosidade revelada para com o arguido ... o que não afectou a sua credibilidade.
7. No entanto, as declarações da assistente não apresentam qualquer credibilidade, à luz do critério da normalidade das coisas e do bom senso.
8. A assistente refere ao minuto 16.50 do seu depoimento que foi atingida com o cabo de um sacho, mais grosso que o cabo de uma vassoura (quase o dobro), "em cheio" e esclarece ao minuto 17.35 que o arguido "não levantou o sacho, foi com o topo do sacho" que a atingiu na testa.
9. A douta sentença, não obstante, refere terem resultado provadas "várias pancadas na cabeça, rosto, peito e braços da assistente". Se mais ninguém viu (para além da assistente), como é que o Tribunal chegou a tal conclusão?
10. A douta sentença, quando muito, deveria referir uma, única, pancada na cabeça e "com o topo do sacho". É verdade que esta afirmação não tem qualquer credibilidade, contraria a douta acusação pública, não é coerente com a queixa crime apresentada e não é coincidente com as declarações prestadas pela assistente ao longo do processo; não obstante, a M.ma Julgadora a qua diz-nos que as suas declarações foram credíveis e, por isso, consideradas pelo Tribunal.
11. Ao minuto 4.30 do seu depoimento, a assistente refere que foi atingida na cabeça, braço e torax, da forma referida ao minuto 17.35. 12. Ou seja, a assistente explica ao Tribunal que mentiu/omitiu ao longo de todo o processo e que só depois de alertada pelo arguido, em sede de contestação, para a falta de razoabilidade da douta acusação pública e para a circunstância de alguém ser atingido "à paulada" e só apresentar escoriações e uma pequena ferida na cabeça, é que a assistente veio modificar o seu discurso e refere que, afinal, "só", foi atingida com o topo do sacho i!!
13. É esta a credibilidade que a assistente patenteia e que o Tribunal a qua, inocentemente, acolheu ?!!!
14. Esta versão dos acontecimentos não pode ter ocorrido (não é razoável, nem lógico, que alguém tenha ido buscar o cabo de um sacho ao andar superior da sua casa, para depois o esconder na carrinha e só ter atingido a assistente, com o seu topo (pasme- se !!!), quando esta lhe referiu eu é que tinha amantes e tu é que andas atrás delas, como explicou a assistente ao minuto 3.06).
15. Não é normal que a assistente se tenha apercebido da presença do cabo do sacho no andar superior da casa.
16. Não é razoável que o arguido, sem mais, premeditadamente (como refere a assistente), tenha ido buscar o cabo do sacho e que o tenha escondido na carrinha.
17. Não é aceitável que o arguido adivinhasse que a assistente lhe ia dirigir palavras
18. E que, nessa sequência, tenha atingido a assistente, com o "topo" do cabo.
19. Que após estas bárbaras agressões, a assistente tenha tido a preocupação de fechar o portão para que o arguido não abandonasse o local e alguém o visse ...
20. Um comportamento, todo ele, anormal e que confere pouca credibilidade ao testemunho da assistente e da testemunha que, alegadamente, viu o arguido nas proximidades.
21. Em todo o caso, as declarações das testemunhas Fernando e José apresentam-se, assim, contraditórias, entre si; sendo de realçar que a testemunha José "não fala" com o arguido e que as testemunhas Fernando e José referem que fizeram o trajecto "Valpaços - Vale de Espinho" e o primeiro "jura" que não se cruzou com o arguido e o segundo afirma que se cruzou com o arguido, a cerca de 100/200 metros do local e que este "Ia devagar" (cfr. minuto 7.40 das suas declarações).
22. Este "ir devagar" não é compatível com o comportamento de alguém que acaba de dar umas "pauladas" na ex-mulher, que tem que passar por cima de um portão ou cancela e quer "fugir" do local do crime.
23. Uma destas testemunhas, necessariamente, mentiu em Tribunal.
24. Entendemos, assim, que terá que resultar não provado que
3. No dia 20.11.2016, pelas 14.30 horas, encontrando-se ambos junto daquela que foi a casa de morada de família, sita no …, em Vale de Espinho, deste concelho de Valpaços e no âmbito de conflitos ainda existentes, o arguido desferiu várias pancadas na cabeça, rosto, peito e braços da assistente, tendo para esse efeito utilizado o cabo de um sacho que transportava no seu veículo automóvel.
4. Mercê da conduta do arguido, sofreu a assistente as seguintes lesões físicas:

- No crânio: ferida sutura da com três pontos na extremidade externa da região frontal
- Na face: escoriação linear medindo 1 cm na região inter supra ciliar, equimose de cor violácea forte medindo 2 cm X 5 cm no lado direito da região metionina,
- No tórax: equimose de cor violácea forte, medindo 3cm X 4 cm no terço médio do músculo grande peitoral - no membro superior esquerdo: grupo de duas equimoses de cor violácea forte e forma ovalada, medindo igualmente 2 cm de diâmetro e distanciadas 3 em na face anterior do terço médio do braço.
5. E que foram causa directa e necessária de um período de 12 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
10. Ao actuar da forma descrita em 3. e 4., o arguido actuou com a intenção concretizada de molestar a assistente, sua ex-mulher, na sua integridade física e saúde, concretamente de lhe provocar as lesões verificadas e acima descritas.
11. Ao agir das formas descritas, agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as prosseguir
24. A "especial censurabilidade ou perversidade do agente", também, não ocorre nos presentes autos.
25. Refere a M.ma Julgadora a quo
Ora, no caso dos autos, atento o modo de execução dos factos, encontrando-se a assistente sozinha perante o arguido, na casa que foi a de ambos, em conjugação com os demais factos que resultaram assentes, conclui-se que a actuação do arguido preenche a cláusula de especial censurabilidade exigida pelo artigo 145°., nº1, aI. a) do CP.
26. Estamos na presença de uma conclusão, incompatível com os factos relatados pela assistente e, por isso, inaceitável e temerária ... 27. A douta sentença assenta nas declarações da assistente e na perícia médico-legal.
28. Dos factos provados não resulta que a assistente se encontrasse "sozinha com o arguido",
29. E das declarações da assistente resulta que o arguido "não levantou o sacho", que a atingiu com o "topo" do cabo e que perante esta situação a assistente fechou a cancela para o arguido não abandonar o local e que se dirigiu para a via pública a solicitar auxílio ...
30. Por outro lado, a assistente refere que o arguido a agrediu na sequência daquela lhe ter dirigido as seguintes palavras: "Eu é que tinha amantes e tu é que andas atrás delas".
31. Não se verifica - mesmo pela análise das declarações incoerentes e inconsistentes da assistente - que o agente tenha actuado com especial censurabilidade ou perversidade.
32. Em face do exposto, deverá o, aqui, Recorrente, pura e simplesmente, ser absolvido do crime de que vinha acusado.
33. O crime, em todo o caso, não pode ser considerado como qualificado,
34. A douta sentença, ora, em recurso, interpreta de forma incorrecta a prova produzida e, em consequência, aplica de modo deficiente o preceituado nos art".s 143°. e 145°., nº. 1, aI. a) e nº. 2 do Cód. Penal, violando estas disposições legais. Os vícios invocados resultam do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum; o M.mo Julgador a quo realiza uma errada interpretação da matéria de facto provada, ocorre insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação e, sobretudo, entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova, pelo que, em face dos factos provados, a douta sentença deve ser revogada e substituída por douto Acórdão que contemple a absolvição do arguido.».

O recurso foi admitido pelo despacho proferido a fls. 275.

Em 1ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua total improcedência, asseverando que foi feita uma adequada apreciação de todos os meios de prova, não padecendo a sentença recorrida de qualquer erro ou vício nem ter sido violada qualquer norma jurídica.
A assistente também respondeu ao recurso dizendo que o mesmo deve ser rejeitado, na medida em que a impugnação da matéria de facto feita pelo recorrente não obedece ao estabelecido na lei, quer na vertente dos vícios decisórios, porque os mesmos não foram minimamente concretizados, quer na da impugnação ampla por não terem sido observados os requisitos a que alude o art. 412º do CPP.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto acolheu no seu muito douto parecer a posição do Ministério Público de 1ª instância, que desenvolveu com pertinentes considerações, dizendo que o recurso deve improceder na sua totalidade.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, nº 3, al. c), do CPP.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as seguintes questões:

) impugnação da matéria de facto nos termos do nº 2 do art. 410º do CPP e por erro de julgamento;
) a qualificativa do crime de ofensa à integridade física.

Importa apreciar e decidir tais questões, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados na decisão recorrida e a respectiva motivação, que a seguir se transcrevem.
«1.O arguido e a assistente E. B. foram casados no regime da comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido por sentença proferida em 23.06.2016 e transitada em julgado em 09.09.2016, no âmbito do processo de divórcio n.º 278/15.5T8VPC-B que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Valpaços.
2. O referido casamento foi pautado pela conflituosidade, que subsistiu mesmo após o divórcio.
3. No dia 20.11.2016, pelas 14:30 horas, encontrando-se ambos junto daquela que foi a casa morada de família, sita no …, em Vale de Espinho, deste concelho de Valpaços e no âmbito dos conflitos ainda existentes, o arguido desferiu várias pancadas na cabeça, rosto, peito e braços da assistente, tendo para esse efeito utilizado o cabo de um sacho que transportava no seu veículo automóvel.
4. Mercê da conduta do arguido, sofreu a assistente as seguintes lesões físicas:
- No crânio: ferida suturada com 3 pontos na extremidade externa da região frontal esquerda;
- Na face: escoriação linear medindo 1 cm na região inter supra ciliar, equimose de cor violácea forte medindo 2 cm x 5cm no lado direito da região metionina;
- No tórax: equimose de cor violácea forte, medindo 3 cm x 4 cm no terço médio do músculo grande peitoral e
- No membro superior esquerdo: grupo de duas equimoses de cor violácea forte e forma ovalada, medindo igualmente 2 cm de diâmetro e distanciadas 3 cm na face anterior do terço médio do braço.
5. E que foram causa directa e necessária de um período de 12 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
6. Acresce que, no âmbito de providência cautelar de arrolamento requerida preliminarmente à acção de divórcio pela mesma assistente E. B., em 21.12.2015 foi ordenado o arrolamento de vários bens pertencentes ao, à data, ainda casal, entre o mais, de um tractor, marca SAME, com a matrícula MX e respectivas alfaias, a saber, fresadora, pulverizador, escarificador, caixa, sulcadora e dois reboques (um grande e um pequeno).
7. Os referidos bens que, à data, se encontravam na residência de ambos, sita no …, em Vale de Espinho, deste concelho de Valpaços, foram aí efectivamente arrolados, em 22.12.2015, tendo os mesmos ficado a constar do correspondente auto sob o item 27.
8. Uma tal diligência foi realizada na presença e com o acompanhamento do arguido, o qual foi nomeado fiel depositário de tais bens, tendo sido logo aí advertido dos deveres e obrigações que lhe estão inerentes, concretamente que a sua destruição, danificação, inutilização, total ou parcial ou a sua subtracção ao poder público o faria incorrer em responsabilidade criminal.
9. Sucede que, no período compreendido entre 06.01.2017 e 08.01.2017, a assistente E. B., numa deslocação que efectuou à sua anterior residência e acima identificada, constatou que os identificados bens já não se encontravam na posse do arguido.
10. Ao actuar da forma descrita em 3. e 4., o arguido actuou com a intenção concretizada de molestar a assistente, sua ex-mulher, na sua integridade física e saúde, concretamente de lhe provocar as lesões verificadas e acima descritas.
11. Ao agir das formas descritas, agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as prosseguir.
12. Como consequência directa dos factos referidos em 3. e 4., a Ofendida sentiu dores, angústia, humilhação, tristeza e ansiedade.
13. Após a agressão, a assistente foi de imediato transportada ao Centro de Saúde, onde recebeu os primeiros tratamentos médicos e medicamentosos, tendo permanecido algumas horas nos Serviços de Enfermagem do Centro de Saúde.
14. O Arguido procedeu à venda do veículo tractor de matrícula MX de Marca Same a J. B., pelo valor de € 1.000 (mil euros).
15. A venda do tractor ocorreu no âmbito das funções que o arguido desempenha como cabeça-de-casal.
16. O tractor necessitava de várias e dispendiosas reparações.
17. O casal já não necessita de qualquer tractor agrícola, pelo que o arguido decidiu realizar a sua venda e relacionou o produto da venda no correspondente processo de inventário.
18. Antes de efectuar a venda, o arguido solicitou a 26/01/2017 a emissão de certidão judicial, no âmbito do processo de arrolamento, para efeitos de cancelamento do registo do arrolamento, tendo a sua pretensão sido deferida.
19. O tractor referido em 6. foi registado a favor de J. B. a 20/02/2017.
20. Os autos de arrolamento referidos em 6. foram remetidos à conta a 29/09/2016.
21. O arguido encontra-se aposentado, auferindo € 2.077 mensais de pensão de reforma.
22. Vive com a companheira E. M. desde 6/2/2017, à qual paga € 800,00 pela prestação de serviços de sua cuidadora.
23. Paga € 300,00 mensais de prestação por um jipe que adquiriu em Fevereiro de 2017.
24. Paga € 400,00 mensais de renda de uma casa em Espanha.
25. Tem três filhos, de 33, 32 e 26 anos de idade.
26. Tem o 4º ano de escolaridade.
27. O arguido não regista antecedentes criminais.».

Factos não provados:

A. Sem prejuízo do referido em 9., que o arguido tenha dado aos bens destino que não foi possível apurar.
B. Acresce que, quanto ao demais, apesar de ter ficado ciente do teor das obrigações que sobre si recaíam decorrente da sua nomeação como fiel depositário dos bens em causa e ainda das consequências do seu incumprimento, o arguido dissipou-os, pese embora ter perfeito conhecimento de que os mesmos ficaram, a partir da data da realização do arrolamento, sob o poder público e que, por tal motivo, deles não poderia dispor livremente.
C. Que a venda referida em 15. tenha sido feita pelo valor de € 14.000.
D. As alfaias têm o valor comercial nunca inferior a € 35.000 (trinta e cinco mil euros).
E. Para se deslocar, no dia 24.11.2016, ao Serviço de Medicina Legal do Hospital para fazer exame médico, efectuou deslocação de ida e volta de táxi de Midões — Argeriz a Valpaços, onde despendeu € 16,00 e de autocarro de Valpaços a Chaves onde despendeu € 7.30.
F. Apesar dos tratamentos, em consequência directa e necessária da agressão a assistente ficou com uma cicatriz permanente na região frontal, o que lhe causa desgosto e sofrimento.
G. Ao longo dos últimos meses, o arguido tem sido insultado e ameaçado pela sua ex-mulher, pelo que evita qualquer tipo de contacto com a mesma.
H. A conduta do arguido é do conhecimento geral de familiares, nomeadamente dos seus filhos, amigos e vizinhos, o que causa à assistente sofrimento, angústia, vergonha e humilhação.
I. No dia 20 de Novembro de 2016, o arguido não se cruzou com a ofendida.

Motivação da decisão de facto (sic):

«Nos termos do disposto no art. 124.º do C.P.P. constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável.
O princípio básico que norteia a apreciação da prova é o da sua livre apreciação tal como prescrito pelo art. 127.º, n.º 1 do C.P.P.: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente».
A este propósito, releva a apreciação feita pelo Cons. Armando Leandro no Ac. do STJ de 16/01/2002, Proc. nº 3649/01 - 3ª Secção, que afirma o seguinte:“O critério da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP, não significa a possibilidade de apreciação puramente subjectiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objectiva e crítica e em boa medida objectivamente motivável, em harmonia com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos; engloba porém não só os factos probandos apreensíveis por prova directa mas também os factos indiciários, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles, tendo por base as referidas regras, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos, que constituem o tema da prova; tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve porém, naturalmente, também elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer com honestidade e maturidade para melhor impedir que possam ser fonte de arbitrariedade e permitir actuem, pelo contrário, como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível”.
Inspirados por este mote cumpre, então, explanar os elementos probatórios nos quais se baseou o tribunal para dar como provados e não provados os factos supra elencados.

Assim, os factos provados baseiam-se nos seguintes meios de prova:

Por declarações: da assistente.
Testemunhal:
- Fernando, melhor identificado a fls. 45;
- José, melhor identificado a fls. 47;
- Maria, melhor identificada a fls. 303 e
- Luís, melhor identificado a fls. 338
- J. B.;
- A. B.;
- M. T.;
Documental: a dos autos, designadamente:
- Relatório do episódio de urgência, de fls. 55 e 56;
- Cópias de fls. 89 a 105 e
- Certidões de fls. 131 a 137.
- CRC de fls. 200;
Pericial:
- Relatório do exame pericial de fls. 19 a 21.
Os factos assentes em 1. e 2. resultam da confirmação dos mesmos pelo arguido e pela assistente E. B., a par das certidões e documentos de fls. 131 a 137 dos autos.
Para prova do facto assente em 3., foram tidas em conta as declarações da assistente E. B., que confirmou no essencial o que daí constava.
Ora, não obstante a animosidade revelada pela assistente para com o ofendido nas suas declarações, a mesma não se mostrou, no entender deste Tribunal, de molde a afectar a sua credibilidade.
Para além disso, foi ainda tido em conta o depoimento da testemunha Fernando, que afirmou que quando passava de carro pela casa da assistente se deparou com a mesma com a cara com sangue, pelo que a transportou ao Centro de Saúde.
Esta testemunha afirmou não ter visto nem se cruzado com o arguido quando conduzia em direcção da casa da assistente e até aí chegar.
Para além disso, a testemunha José também confirmou ter visto a assistente com sangue na cara quando passou por casa desta, quando já lá estava a testemunha Fernando.
Ora, esta testemunha afirmou ter-se cruzado com o arguido cerca de 100 a 200 metros antes do local, apenas se tendo cruzado com ele.
Mais referiu que se cruzou com o arguido em local que a testemunha Fernando não passou, pelo que pode depreender-se ser possível que aquela testemunha não tenha visto o arguido.
Já o arguido, nas suas declarações, negou integralmente a prática do facto assente em 3., tendo afirmado que se encontrava a almoçar em Vassal em casa de uma tal “Dona E. M.”, tendo lá permanecido até às 14:30.
Mais referiu que após o almoço esteve a jogar cartas em Argeriz até cerca das 17:30/ 18:00 num café em Argeriz. Explicou que entre o percurso de Vassal para Argeriz não passa em Vale de Espinho.
Por sua vez, as testemunhas A. B. e a sua mulher M. T. confirmaram ter almoçado com o arguido naquele dia. Contudo, ambos referiram que após o almoço a testemunha A. B. foi levar a mulher a casa antes de se dirigir para o café onde jogava às cartas com o arguido, tendo este seguido sozinho no seu carro após o almoço em direcção ao café.

Para além disso, as mesmas apressaram-se a referir com toda a certeza terem almoçado com o arguido na data dos factos, sem contudo saberem concretizar outras datas concretas em que almoçaram com o arguido, o que denota a sua preocupação em tentar demonstrar a presença do arguido fora do local dos factos.
Ora, do exposto se depreende que estas testemunhas não acompanharam o arguido em todos os momentos, designadamente após o almoço e antes de este chegar ao referido café em Argeriz.
Por outro lado, o seu depoimento não se revelou sequer nessa parte inteiramente coincidente, designadamente quanto à hora a que o almoço teria acabado e o arguido se teria daí ausentado.
Ademais, as fotografias juntas pelo arguido, que ostentam a hora e data das 14:25 no dia dos factos, ainda que demonstrem a presença do arguido em Vassal àquela hora, não são de molde a invalidar a presença do arguido pouco tempo depois no local dos factos, atenta a relativa proximidade entre ambos os locais.

Por tal motivo, e conjugados todos estes depoimentos, mostra-se viável que o arguido tenha passado pelo local dos factos antes de se dirigir para o café, motivo pelo qual o depoimento das testemunhas A. B. e M. T. não se mostrou suficiente para abalar a credibilidade dos restantes depoimentos referidos, bem como das declarações da assistente.
Pelo que resultou assente o facto referido em 3.
Para prova dos factos assentes em 4. e 5., foi tido em conta o teor do relatório pericial de fls. 19 a 21 dos autos, resultando daí a existência de uma relação de coerência entre as lesões apresentadas pela assistente e a agressão com o cabo de um sacho, o que também contribuiu para abalar a tese da defesa segundo a qual as lesões não seriam compatíveis com a agressão com aquele objecto.
Para prova dos factos assentes em 6. a 8., foi tido em conta o teor dos documentos de fls. 89 a 105 dos autos.
Foram ainda tidas em conta as declarações do arguido, que confirmou na íntegra o que daí constava.
Para prova dos factos assentes em 12. a 13. foram tidas em conta as declarações da assistente, em conjugação com as regras da experiência comum relativamente aos efeitos da agressão por si sofrida.
Para prova do facto assente em 14. foram tidas em conta as declarações do arguido, a par do depoimento da testemunha J. B., que confirmou ter adquirido o tractor ao arguido pelo valor de € 1.000.
Por este motivo, resultaram não provados os factos A) e D).
Para prova dos factos assentes em 15. a 18., foram valoradas as declarações do arguido, a par dos orçamentos de reparação do tractor por este juntos aos autos.
Foi ainda consultado o histórico do processo n.º 278/15.5T8VPC, o que permitiu dar como assente a data constante de 20.
Para prova do facto assente em 19., foi tido em conta o teor da Informação relativa ao registo do tractor de fls. 161 dos autos.
Para além do já supra referido, os factos não provados resultam da ausência de prova bastante a seu respeito ou da sua contradição com os factos que resultaram provados.
Por outro lado, atentos o circunstancialismo e o modo de execução dos factos materiais pelo arguido nos termos supra apurados, deve dizer-se que resulta das regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido actuou com intencionalidade, com vista a ameaçar e agredir o corpo da assistente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e puníveis por lei, assim se dando especificamente como provados os factos vertidos nos pontos 10. e 11.
Para prova das condições económicas e sociais do arguido (factos 21 a 26), foram tidas em conta as declarações prestadas por este em audiência.
Relativamente à inexistência de antecedentes criminais do arguido (facto n.º 27), foi tido em conta o CRC supra referido, de fls. 200.».
*
1. A impugnação da matéria de facto.

Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: pelo âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
O recorrente argui o que considera ser erro manifesto na apreciação da prova ao ter-se dado como provados factos que conduziram à sua condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada assacando à decisão recorrida todos os vícios do nº 2 do art. 410º do CPP. No entanto, na concretização dos mencionados vícios, faz apelo aos depoimentos produzidos em audiência de julgamento, logo denunciando que o que está em causa é a sua discordância, dum ponto de vista substancial, com a convicção que a Julgadora formulou para o decidido nesse conspecto, por considerar que não deveriam ter sido valoradas as declarações da assistente, por não serem credíveis, e os depoimentos das testemunhas Fernando e José, por serem contraditórios. Realmente, o recorrente entende que a decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto viola as regras da experiência comum e da normalidade da vida, na medida em que ninguém presenciou os factos e é por demais evidente a animosidade da assistente para com o arguido, circunstância que, por si só, retiraria toda a credibilidade às suas declarações, ao mesmo passo que refere terem sido contraditórios os depoimentos das testemunhas Fernando e José, quando o primeiro afirmou que não se cruzou com o arguido e o segundo garantiu que se cruzou com o mesmo a cerca de 100/200 metros do local onde ocorreram os factos.
Vejamos.
Os vícios apontados naquela primeira vertente, apreciados nessa perspectiva e não no eventual erro (de julgamento) na apreciação da prova, visam o erro na construção do silogismo judiciário, não o chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (1). O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, como resulta do citado normativo, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (2). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Assim, o vício atinente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (3).
No fundo, este vício consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma.
Porém, este vício também não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, enquanto questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) (4).
Também o vício da contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, «tal como os demais previstos nas als. a) e c), tem de resultar do texto da decisão recorrida e só se verifica quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação, não só não justifica como impõe uma decisão contrária ou, quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se concluir que a decisão não resulta suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados» (5).
Este vício, como resulta da letra da al. b) do art. 410º, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Identicamente, a jurisprudência tem considerado o vício contemplado na al. c) de tal preceito apenas como os erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (6). Assim, apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (7). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (8) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido.
Por conseguinte, tratar-se-ia de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer outro dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2, do CPP (contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou erro notório), portanto, uma errónea construção de silogismo judiciário necessariamente resultante do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Ora, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida qualquer dos vícios (formais) que o recorrente lhe assaca, com os mencionados contornos que a lei lhes oferece, aliás, incompatíveis com os próprios termos do arrazoado recursivo.
Efectivamente, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente não se conforma com a circunstância de a sua posição sobre a matéria de facto não ter sido acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar os aludidos vícios que aponta à decisão recorrida. Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões do recurso, complementadas com a respectiva motivação, que o recorrente invoca a existência destes vícios fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe às do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto da sentença recorrida, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Por conseguinte, improcede essa via da deduzida impugnação da matéria de facto.

Como se disse, a verdadeira pretensão do recorrente, embora aludindo aos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, defendendo que ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto tida por não provada na decisão de 1ª instância enunciada nos pontos 3º, 4º, 5º, 10 e 11º.
Para correctamente se impugnar (nos termos previstos no art. 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), do CPP) a decisão, com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido, assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito, ou, ainda, que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (9). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP (10). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (11).
O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº 3 do citado art. 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Note-se que, o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do nº 4 do citado art. 412º.
E daí que se reconheça não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (12).
E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (13). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (14).
É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (15), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».

Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (16).
E, como é evidente, é segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida. Em suma, neste processo, a violação do invocado princípio deve ser defrontada ou apreciada também nesta vertente da adequação da decisão proferida à prova produzida.

É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência, tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.
Com efeito, não podemos olvidar que de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta. Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (17).
Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, antes é livremente apreciada, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha (18), seja ou não vítima, de maior ou menor idade, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao depoimento do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.
Por fim, sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se disse, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.

Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos da impugnação deduzida.
À luz do que acima expendemos, o recorrente não cumpriu, devidamente, o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulou. Basta atentar em que o recorrente, tendo identificado os concretos pontos de facto que impugnou – atinentes à própria ofensa e às consequências da sua conduta – estas, em particular, quanto às lesões descritas como sofridas pela assistente/demandante e aos danos supostamente daí decorrentes, dizendo que os mesmos deveriam ter sido considerados como não provados –, para tanto, apenas remeteu, genericamente, para as declarações da assistente e para depoimentos das testemunhas Fernando e José prestados em sede de audiência de julgamento, indicando apenas alguns minutos da gravação (19) e, sobretudo, sem cumprir a exigência legal de especificação das “concretas” provas, a qual só se satisfaria com a indicação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, ou seja, do conteúdo específico do meio de prova em que pretendeu basear a impugnação, bem como com o estabelecimento da necessária correlação entre o concreto meio de prova e o concreto ponto de facto que almejou contrariar. Com efeito, o recorrente, ao invés, distanciando-se do grau de exigência do recurso sobre a matéria de facto à luz do art. 412º do CPP, quedou-se por um mero arrazoado composto de comentários e considerações genéricas sobre o que suporia ser razoável o tribunal ter por provado.
Visando uma valoração autónoma das provas que o recorrente identificou, não obstante a registada deficiência da sua correlação com os concretos pontos de facto impugnados, confrontámos o juízo que foi realizado pelo tribunal a quo para formar a sua própria convicção sobre tais pontos com o resultado do exame a que procedemos dos meios probatórios aludidos no recurso bem como da audição dos demais depoimentos produzidos, conjugada com os elementos documentais juntos aos autos.
Esses exame e confronto crítico das versões aqui apresentadas permite, desde já, afirmar que a prova produzida sustenta, a plausibilidade do sentido obtido na decisão criticada no recurso, como passamos a concretizar, muito sumariamente.
Para o assentamento dessa essencial factualidade, as declarações da assistente/demandante assumem uma consistente prevalência em relação à negação por parte do arguido, por serem, claramente, corroboradas por outras provas de que se colhem contributos indiciários que com elas se conjugam adequadamente, à luz da experiência comum.
Com efeito, apesar de o arguido ter negado a prática dos factos, procurando a todo o custo demonstrar que nesse dia e hora se encontrava em outro local – chegando ao ponto de exibir uma fotografia com a hora em que agrediu a assistente –, e de dizer que esta lhe tem feito a vida num “inferno” e de que não ganha para tribunais nem para advogados, asseverando ainda, que a mesma é capaz de se auto flagelar, apenas com o intuito de o incriminar, a assistente de modo muito consistente, descreveu as circunstâncias em que foi agredida pelo arguido com o cabo de um sacho de que o mesmo se muniu para o efeito. Mas a assistente não se ficou por aqui, identificou as zonas do corpo atingidas pelas agressões perpetradas pelo arguido, dizendo que a primeira pancada lhe foi desferida na zona da cabeça, o que fez com que os óculos que trazia caíssem ao chão, acrescentando que as pancadas seguintes a atingiram nos braços e tórax.
Quanto a este aspecto, nenhuma objecção merece a decisão recorrida quando dá como assente que foram desferidas várias pancadas, na cabeça, rosto, peito e braços da assistente, na medida em que, o que se afirma é que foram dadas várias pancadas, indicando-se as respectivas zonas atingidas e não o número de vezes em que foram dadas em cada uma dessas partes.
A controvérsia suscitada pelo recorrente a este propósito é descabida, não só em face das declarações da assistente, mas especificamente em face dos registos clínicos e resultado da perícia, uma vez que se coadunam com as lesões tidas como causadas pelo comportamento questionado no recurso.
Ademais as declarações da assistente acabaram por ser amplamente reforçadas pelos depoimentos prestados pelas testemunhas Fernando e José, que, ao passarem no local onde ocorreram os factos, viram a assistente com sangue na cara, tendo sido o primeiro a transportá-la para o centro de saúde onde recebeu tratamento, e o segundo confirmou ter-se cruzado com o arguido a cerca de 100/200 metros do local a circular em sentido contrário ao seu, o que, muito relevantemente, infirma a inverosímil versão deste último de que, no circunstancialismo em questão, nem sequer teria estado no local.
Para além disso, estas testemunhas também atestaram pormenores revelados pela assistente e referentes ao comportamento do arguido no momento dos factos, designadamente a destruição pelo mesmo de uma pequena cancela ao ausentar-se do local e que acabou por ficar na estrada, reforçando o solidamente reportado por aquela.

Assim, pese embora o recorrente, tenha alegado, neste âmbito, que os depoimentos destas testemunhas foram contraditórios e que a testemunha José se encontra de relações cortadas com ele, tal arrazoado não tem qualquer fundamento, pois, conforme se infere do depoimento desta testemunha, o mesmo sempre manteve uma relação de amizade com o arguido e foi este quem lhe deixou de falar por problemas relacionados com um irmão, tendo explicado devidamente a razão pela qual a testemunha Fernando não se pôde cruzar com o arguido como sucedeu consigo.
Ao invés, as testemunhas A. B. e M. T., apesar do empenho despendido nos seus depoimentos, não lograram convencer de que, nesse mesmo dia e hora, se encontravam com o arguido num almoço, acabando, inclusive, por retratar o afirmado com umas fotografias, não só pela prontidão e adiantamento das respostas às questões, como sucedeu com a história dos fotogramas, mas, sobretudo, pela inverosimilhança do seu relato, em si mesmo e, particularmente, da sua incongruência com o produto dos demais elementos solidamente colhidos.

Assim sendo, não tem fundamento a discordância do recorrente quanto à decisão sobre a matéria de facto. Como resulta expressamente da motivação dessa decisão, a Sra. Juíza atribuiu credibilidade às referenciadas declarações e depoimentos, em detrimento das declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas arroladas pela defesa, pela razão, como sublinhou, de aqueles lhe terem parecido mais lógicos e conformes com a realidade e com as regras da experiência comum, consignando, também, na motivação da decisão sobre a matéria de facto o motivo pelo qual desconsiderou estas declarações.
Realmente, a Sra. Juíza, na expressão da convicção que formou sobre os factos, evidenciou, exemplarmente, que aquela essencial factualidade se retira, consistentemente, das declarações da assistente, porque a prevalência das mesmas em relação ao afirmado pelo arguido ressalta com uma clareza avassaladora face à sua perfeita conjugação entre si e com as regras da experiência comum, bem como à sua corroboração pelos contributos fornecidos por outras provas: os elementos recolhidos nos autos­­ – relatório de perícia de avaliação do dano corporal e ficha clínica de fls. 5 –, de harmonia com a realidade dos factos e do normal suceder, apontam no sentido plasmado na decisão recorrida. Pese embora a inexorável privação de imediação, aderimos ao exame da Sra. Juíza sobre as falhas de credibilidade das declarações do arguido e dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela defesa, insuficiente, por isso, para abalar a convicção formada quanto ao desenvolvimento dos factos. Bem diversamente, reiteramos nós, a já referenciadas declarações prestadas pela assistente foram coerentes e convincentes e deles se extrai a materialidade que ficou a constar do elenco dos factos provados.
E, quanto ao elemento subjectivo da infracção, mais uma vez se tem que fazer uso das regras da experiência comum. Na verdade, sendo o dolo um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, de um facto do foro psicológico – do agente, por isso, impossível de apreender directamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. Tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através de outros que com eles normalmente se ligam. Na verdade, é lícito aos juízes, na formação da sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, utilizar a experiência da vida, inferindo de um facto conhecido outro ou outros factos desconhecidos, convencendo sobejamente as explicações vertidas na decisão recorrida.
No caso, em face dos apurados condicionalismos pessoais do recorrente, os particulares contornos da sua conduta desta têm um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjectivo, a certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que é evidente a vontade da prática dos factos, sem que se verifique qualquer erro na apreciação da prova e sem contradição da fundamentação na modalidade de se terem dado como provados factos contraditórios ou da omissão da sua motivação.
Portanto, a Senhora Juíza fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeram em detrimento de outros: os meios de prova produzidos e examinados fundam, sem margem para qualquer dúvida, a convicção formada e expressa pelo Tribunal recorrido.
E, conforme já exposto, a este Tribunal de recurso também não restaram dúvidas da prática pelo arguido dos factos assentes e, consequentemente, também nós concluímos que foi acertada a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Na verdade, todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as expostas ilações quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou o recorrente quanto aos pontos referidos no recurso. Assim, perante a prova produzida, não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pelo julgador (com imediação (20)).
Por conseguinte, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não se vislumbrando a violação de qualquer norma ou princípio jurídico.

2. O crime de ofensa à integridade física qualificada.

O recorrente também não se conformou com o enquadramento jurídico com que o Tribunal entendeu qualificar a sua conduta, como crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 143º e 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. b) do nº 2 do art. 132º, do Código Penal, sustentando que não resultaram provados os factos em que a decisão recorrida estribou tal circunstância qualificativa, designadamente o encontrar-se “sozinha com o arguido”.
Contudo, importa, desde logo, referir que o recorrente, para sustentar a não verificação da qualificativa do crime, uma vez mais, transpõe o seu ponto de vista para o domínio dos factos ou para o juízo que faz sobre o que deveria ser tido por (não) provado. Ora, improcedendo a impugnação de tal decisão, não assiste razão ao recorrente: não podendo confundir-se matéria de facto com matéria de direito, uma vez ultrapassada essa questão com o reconhecimento da improcedência total da impugnação da decisão sobre aquela, a subsunção jurídica é feita mediante a matéria de facto já tida por fixada. Essa é uma questão arrumada e decidida no momento próprio: no caso, o tribunal concluiu, estar provado que o arguido agiu com o propósito concretizado de ofender o corpo da assistente, sua ex-mulher, quando a mesma se encontrava sozinha, na casa que ambos habitaram enquanto se manteve a união, aliada à demais matéria factual.
Realmente, quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, mas se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até quatro anos (cf. arts. 143º e 145º, nº 1, alínea a) do Código Penal).
Pretende-se, com a citada prescrição, proteger a integridade física da pessoa humana, integridade entendida como corporal e psíquica e, por consequência, punir o agente que inflige na vítima «mau trato através do qual [aquela] é prejudicada no seu bem estar físico de forma não insignificante» (ofensa no corpo), ou age de modo a pôr «em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a» (lesão da saúde) (21).
Sendo elemento objectivo do tipo de ilícito qualquer ofensa no corpo ou na saúde de outrem, ainda que não cause dor ou sofrimento, o crime de ofensa à integridade física é um crime de resultado, na medida em que supõe tal dano, imputado objectivamente à conduta do agente, cuja consumação depende da verificação da ofensa entendida como efeito e não como acção de ofender. «O tipo legal em análise abrange (…) um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais» (art. 10) (22).
É também um crime de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito, que pode ser uma ofensa no corpo ou uma ofensa na saúde da pessoa visada.
Subjectivamente, para o preenchimento do mesmo crime, é imposto que o agente actue com consciência e vontade de que a sua conduta lesa o corpo ou a saúde de outra pessoa. Tem como elemento subjectivo o dolo, em qualquer das suas modalidades, dolo, que deve ser dirigido à ofensa do corpo ou da saúde de terceiro, sendo irrelevante a motivação do agente (23).

Constando dos factos provados que o arguido desferiu várias pancadas na cabeça, rosto, peito e braços da assistente, tendo para esse efeito utilizado o cabo de um sacho que transportava no seu veículo automóvel, que demandaram para cura um período de 12 dias, preenchido se mostra o tipo objectivo em questão.
Identicamente consta da decisão que o arguido actuou com a intenção concretizada de molestar a assistente, sua ex-mulher, na sua integridade física e saúde, concretamente de lhe provocar as lesões verificadas e acima descritas, agindo de forma livre, voluntária e consciente e, não obstante saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as prosseguir, não restando dúvidas também do preenchimento do elemento subjectivo do aludido crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º do C.Penal.
A questão que se poderá, então, colocar é a de saber se a descrita conduta reveste características tais que a tornem especialmente censurável ou perversa, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2, do artigo 132º e, por consequência, do art. 145º, nº 1, al. a) e nº 2, também do C. Penal, isto, é se o crime de ofensa à integridade física praticado pelo arguido deve ser qualificado nos termos preconizados na decisão recorrida.
São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no citado nº 2 do artigo 132º, nas quais se inclui a de o agente praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, aludida na al. b) do preceito.
No C. Penal português o crime de ofensa à integridade física qualificada está construído, à semelhança do homicídio qualificado para o qual é feita a remissão, segundo a técnica dos exemplos-padrão: no nº 1 está configurada a tipicidade da qualificativa e no nº 2 faz-se uma indicação meramente exemplificativa de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere. É o que resulta do disposto no nº 1 do art. 145º e da remissão que no n.º 2 do mesmo preceito se faz para o art. 132º, nº 2 (24).
Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente (25).
Ou, no dizer de F. Dias, a especial censurabilidade refere-se a condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas; e a especial perversidade refere-se àquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (26).
Tais elementos são referentes ao tipo de culpa do agente, o que determina que «(...) a [sua] verificação (...) não leva, só por si, ao agravamento da censura penal, sendo indispensável ainda apurar, no caso concreto, se o índice em causa tem a virtualidade de revelar força que justifique tal agravamento (...)» (27).
Entendeu o legislador que os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade.
E com a Lei nº 59/2007 veio alargar ainda mais esta tutela penal, prescindindo mesmo da existência de laços familiares básicos entre a vítima e o agente, ao incluir o homicídio de ex-cônjuge, de pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges e mesmo de progenitor de descendente comum em 1.° grau. Desde modo, incluem-se sob a tutela penal as relações familiares pretéritas e as relações parentais não familiares. É certo que as relações familiares, presentes e pretéritas, e as relações parentais são também aquelas que permitem uma maior desinibição, mas essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado (28).
Como também realça Paulo Pinto de Albuquerque (29), os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, mesmo se tiverem cessado as relações matrimoniais, pois os laços familiares devem continuar a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram (30).
Está-se no âmbito dos vínculos familiares, ou equiparados, a partir da relação matrimonial. O legislador entende que qualidades ou relações como as descritas agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o crime é praticado e integra estes comportamentos no artigo 132.º
No entanto, torna-se necessário que a conduta do agente, em concreto, revele uma especial censurabilidade ou perversidade que justifique, pela referida relação, a maior severidade da punição devida.

E, subjectivamente, o juízo de especial censurabilidade só é sustentável se o agente actuar com consciência e vontade de que a sua conduta lesa o corpo ou a saúde de uma pessoa nessa condição de especial vulnerabilidade, ou seja, se o elemento subjectivo, o dolo, também abranger essa condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade.
Assim, a simples verificação, de um ou mais exemplos-padrão não significa, necessariamente, a realização do especial tipo de culpa e consequente qualificação da ofensa à integridade física, da mesma forma que a não verificação de um qualquer exemplo-padrão não impede a qualificação, desde logo porque o uso, no nº 2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que não estamos perante um elenco taxativo. Mas o que se exige é a verificação de elementos substancialmente análogos aos tipicamente descritos ou seja, que embora não expressamente previstos na lei, correspondam ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão (31).
No caso dos autos, conforme se logrou apurar, a agressão foi levada a cabo sobre a assistente, ex-mulher do arguido, quando a mesma se encontrava sozinha na casa que serviu de morada de família.
Sendo assim, coloca-se a questão de saber se o simples facto de a assistente ser ex-cônjuge do arguido e se encontrar sozinha na casa de morada de família do ex-casal, constituem circunstâncias suficientes para se poder afirmar que o arguido teve uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má e de profundo egoísmo do arguido denotando qualidades desvaliosas da sua personalidade. Por outro lado, impõe-se apurar se ressuma dos factos, para além da agressão em si mesma, um especial acréscimo de censurabilidade e de potencial criminoso pela afronta aos motivos inibitórios do crime que as relações de índole familiar devem supor.
O tribunal a quo entendeu que a conduta do arguido era qualificada, enquadrando-se no art. 145º, apenas com base na prova dos elementos do tipo legal do art. 143º, nº 1, e com a invocação, de forma lacónica, da circunstância de a assistente ser ex-cônjuge do arguido e se encontrar sozinha na casa que serviu de morada de família.
Ora, apesar de o arguido ter vencido as contra motivações éticas que radicam nos laços de casamento e sobre ele impender um especial dever de respeito que indiciam um aspecto da sua personalidade mais desvaliosa, não basta o facto de a vítima ser sua ex-cônjuge para que o crime de ofensa à integridade física por ele cometido seja qualificado. É necessário verificar se da conjugação dessa com as demais circunstâncias resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Perante a factualidade que ficou exposta, com o devido respeito, entendemos que, apesar da superioridade física do arguido e da violação do dever de respeito à ex-mulher, a justificar um elevado juízo de censura no quadro do tipo do ilícito base, daquela nada mais resulta que revele insensibilidade e desvende uma «imagem global do facto agravada» (32), passível de sustentar um juízo de especial censurabilidade, por fundar um juízo de maior desvalor ético, quando confrontada com os procedimentos de agressão comummente adoptados.
E, mesmo que assim não fosse, também nada se extrai que, no plano subjectivo, permita imputar ao arguido tal qualificativa, sendo que, como se viu, também se exige que o dolo abranja a condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade: no caso, que o arguido teria actuado com consciência e a vontade de lesar a integridade física da pessoa a que o ligavam os laços do dissolvido casamento e de violar os especiais deveres a que, por isso, se encontrava adstrito para com a sua ex-cônjuge. Dito de outro modo, a sentença não contém factos que sustentem a condenação do arguido pelo crime de ofensa corporal qualificada, desde logo, pela falta do elemento subjectivo.
Ausência que também não consente a conclusão de que o arguido agiu de uma forma especialmente censurável, ou seja, que adoptou uma conduta ostensivamente contra legem, passível, assim, de uma maior censura jurídico-penal, sustentada pela prevalência, no seu íntimo querer, de uma forma de realização do facto especialmente desvaliosa, por visar atingir corporalmente uma pessoa para com a qual tinha especiais deveres.
De todo o modo, a acusação apenas continha factos susceptíveis da prática de um crime de ofensa corporal simples, sem que tenha sido feita qualquer comunicação da alteração da qualificação jurídica, acompanhada de factos que abrangessem o elemento subjectivo do tipo legal de crime (qualificado), pelo que a condenação do arguido por tal crime sempre estaria votada ao insucesso.
A apurada conduta do arguido preenche portanto, apenas, o tipo do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal.

3. A medida da pena.

Concluindo-se que o arguido apenas incorreu na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, este é abstractamente punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Da conjugação do art. 143º nº 1 com os artigos 41º nº 1 e 47º nº 1 e 2, todos do C. Penal, verificamos que a moldura penal abstracta terá como limite mínimo um mês e como limite máximo três anos de prisão, ou, optando-se pela pena de multa, terá como limite mínimo dez dias e como limite máximo trezentos e sessenta dias, cujo quantitativo diário deve ser fixado entre os € 5 e os € 500.
Em consonância com o estipulado no artigo 40º do C. Penal, a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
O bem jurídico que se visa proteger com esta incriminação é a integridade física e moral alheia, valor fundamental à vida em comunidade e à tranquilidade social, sendo sabido que a violação de tal bem jurídico suscita intensa reprovação social.
Em consonância com o estipulado nos arts. 71º, nº 1, e 40º, nº 2, do C. Penal, a medida da pena é determinada em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, cuja medida, em caso algum, pode ser ultrapassada pela pena.
Na medida em que neste tipo legal de crime se admite a aplicação, em alternativa, das duas penas principais – a pena de prisão e a pena de multa – o primeiro passo a dar pelo julgador consiste na escolha do tipo de pena.
Quanto ao critério de escolha da pena a utilizar, deverá atender-se ao que dispõe o artigo 70º do C. Penal: “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Através deste normativo, o legislador deixou claro que a pena de prisão deve ser perspectivada como a ultima ratio, à qual só se recorrerá se, de outra forma, não for possível ir ao encontro das finalidades de prevenção geral positiva ou de reintegração e de prevenção especial positiva aludidas no já referido artigo 40º.
Estabelecidas estas linhas orientadoras, cumpre aquilatar se, na concreta situação, as exigências de prevenção geral e especial encontram resposta adequada na aplicação da pena de multa ou se, diversamente, é necessário lançar mão da pena privativa da liberdade.
Atenta a factualidade provada, e não obstante a necessidade de consciencializar a sociedade para a relevância que assume o respeito pela integridade moral e física alheia, julgamos que não é necessária a condenação em pena de prisão para se assegurar a tutela das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e para ir ao encontro da finalidade de ressocialização do agente deste crime.
Assim, opta-se pela aplicação ao arguido de pena de multa, que, na concreta situação, oferece resposta adequada às exigências de prevenção geral e especial.
Na determinação concreta da pena, há, assim, que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, nº 2, do C. Penal).
Dito por outras palavras, na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção, quer de ordem geral – com o objectivo de confirmar os bens jurídicos violados –, quer de ordem especial – tendo em vista gerar condições para a readaptação do agente do crime, de modo a evitar que este volte a violar tais bens –, mas sem se perder de vista a culpa do agente – com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade –, que a medida da pena tem como base e limite.
Como se disse, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (33). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (34). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (35).
Em suma, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa» (cfr. art. 40º, nº 2, do Código Penal).
No caso vertente, resulta da matéria de facto, que o arguido nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos factos provados, dirigiu-se à assistente, sua ex-cônjuge, munido de um sacho, e com o cabo do mesmo, desferiu-lhe várias pancadas na zona da cabeça, braços e tórax, agindo com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde daquela.

É, assim, relativamente acentuada a gravidade objectiva da conduta do arguido, pois que com ela atingiu um valor fundamental à vida em comunidade e à tranquilidade social, como é a integridade física alheia, como acima se disse. E a violação, por essa sua conduta, do bem jurídico tutelado pelo citado ilícito suscita intensa reprovação, realçando essas exigências de prevenção geral, porque, não sendo muito graves, as consequências também não foram propriamente insignificantes e o arguido violou em grau elevado os deveres que sobre si impendiam de respeitar a sua ex-cônjuge.
Por outro lado, no que respeita às necessidades de prevenção especial positiva ou de ressocialização, há que ponderar que o arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta e, por outro lado, não tem antecedentes criminais e mostra-se regularmente inserido socialmente.
Ora, sopesando todos os enunciados factos apurados quanto à pessoa do arguido e as considerações expendidas quanto à intensidade das exigências de prevenção geral, atinentes à necessidade da pena, entendemos que a factualidade apurada permite concluir que, atenta a natureza dos valores imprescindíveis à vida em comunidade por ele atingidos com a sua actuação e as sentidas necessidades de prevenção geral, bem como a de procurar que o arguido não volte a delinquir apenas serão satisfeitas com a pena de multa de 120 dias.
Partilhamos o entendimento de que, quando aplicada a pena de multa, o quantitativo fixado deve constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar. É esta a jurisprudência corrente, para que a aplicação concreta da pena de multa não represente «uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa de pena ou isenção de pena que se não tem coragem de proferir» (36). De facto, a aplicação de uma multa deve sempre cumprir a verdadeira função de uma pena e por isso, tem que constituir um real sacrifício para o condenado. Só assim este poderá sentir o juízo de censura que a condenação significa, bem como só assim se dará satisfação às exigências de prevenção.
Portanto, uma vez que o arguido é aposentado, auferindo € 2.077 mensais de pensão, crê-se que a decisão recorrida ao fixar em € 9 diários o montante da multa acertou no que seria adequado em face da evidenciada (boa) capacidade económica do arguido.
*
Decisão:

Nos termos expostos, concedendo parcial provimento ao recurso, decide-se:

1) condenar o arguido J. A., como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do C. Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 9 (nove euros), o que perfaz a multa global de € 1.080,00 (mil e oitenta euros);
2) manter no demais a decisão recorrida.

Sem tributação.
Guimarães, 19/03/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado
[1] Nada tem a ver com qualquer destes vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente também demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento.
[2] Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 8ª ed., pp. 73 e ss.
[3] Como assinalam os já mencionados autores Simas Santos e Leal Henriques, (ob. cit., p. 74) este vício existe quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final ou, por outras palavras, quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito (cf. também Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 340). Também o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena e circunstâncias relevantes para a determinação desta -, e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (entre outros, cfr. Acs sumariados em Sumários de Acórdãos do STJ - Secções Criminais de: 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678, em www.dgsi.pt; de 5/9/2007, Proc. n.º 2078/07; e de 14/11/2007, Proc. n.º3249/07).
[4] Cfr. Acs. do STJ de 7/1/2004, P. n.º 3213/03, e de 29/4/1992, P. n.º 42535.
[5] Ac. do STJ de 17-12-2014 (p. 937/12.4JAPRT.P1.S1 - Isabel São Marcos). No mesmo sentido, os Acs. do STJ de 14-03-2013 [(p. 1759/07.0TALRA.C1.S1 - Raul Borges): «Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, (…) se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados»], de 11/5/1994 [(p. 045987 - Amado Gomes): «verifica-se quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados»] e de 12/2/1997 [(p. 047001 - Joaquim Dias): «A contradição insanável de fundamentação é um vício ao nível das premissas, determinando a formação defeituosa da conclusão; se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível, não passa de mera falácia. Este vício pode ocorrer por contradição entre factos provados, contradição entre factos provados e não provados, contradição entre factos provados e motivos de facto, contradição entre a indicação das provas e os factos provados e contradição entre a indicação das provas e os factos não provados.»].
[6] Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
[7] Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
[8] Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., pp. 80.
[9] Segundo pensamos, a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal arredou a tese de que o tribunal de segunda jurisdição não deve (pode) formar uma nova convicção, não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si. Realmente, o legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto, embora circunscrita pelos termos em que for cumprido o ónus de impugnação.
[10] Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
[11] Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
[12] É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
[13] Como dizia Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, p. 191.
[14] Rev. Min. Pub. 19º, 40.
[15] Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, pág. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
[16] Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
[17] A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionariedade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
[18] O provérbio “testis unus testis nullus” não tem, pois, definitiva relevância, apesar de muito ancestral. É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187).
[19] Na sequência do já referido supra na nota 12, não se olvida, porém, a doutrina fixada no AUJ do STJ nº 3/12, de 8/03/2012, publicado no DR, 1ª Série, de 18/04/2012: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Também perfilhamos o doutamente decidido no Ac. STJ de 1-07-2010, CJ, 2010, T2, pág.219 onde se asseverou se o recorrente, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa com indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou, só lhe faltando indicar as «concretas passagens das gravações em que se fundamenta a impugnação e imporia decisão diversa», não se pode dizer que há uma tal falta de especificação, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar».
[20] Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre impõe a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
[21] Paula Ribeiro de Faria, in citado Comentário Conimbricense … I, pp. 202 e ss. Assim, o bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana, englobando o tipo legal um determinado resultado quer através de ofensas no corpo, quer lesando a saúde. Quando se fala em ofensa no corpo, abrange-se o mau trato através do qual o agente é afectado no seu bem-estar físico.
[22] Paula Ribeiro de Faria, Ibidem.
[23] Portanto, nos termos do art. 14º do CP, é indispensável que o agente, para além de representar aquelas lesões ou resultados, actue com intenção de as conseguir (dolo directo), as preveja como resultado necessário do seu comportamento voluntário (dolo necessário) ou, pelo menos, as admita como consequência possível e, não obstante, prossiga na sua actuação conformando-se com a ocorrência de tal resultado (dolo eventual).
[24] Cumpre salientar, antes de mais, na esteira de Maia Gonçalves (In “Código Penal Português” Anotado e Comentado - 14ª Ed. - 2001 - pp. 444 e ss) que a enumeração das circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade feita no Artº 132º não é taxativa, mas exemplificativa, e que as enunciadas no nº 2 não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa. O que significa que não são de funcionamento automático, bem podendo dar-se o caso de se verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas, e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. A propósito desta técnica legislativa, salientou Eduardo Correia, na 2.ª sessão da CRCP (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal (Parte Especial), ed. da AAFDL., Lisboa, 1979, p. 21), que «por um lado as circunstâncias enunciadas no n.º 2 não são elementos do tipo antes elementos da culpa. Portanto não são de funcionamento automático: pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. Por outro lado, como a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não escritas são susceptíveis de revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas no n.º 1.».
[25] V. Teresa Serra, in “Homicídio qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, 1990, pág. 63 e 64.
A censurabilidade que constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa e a perversidade que se reporta a uma atitude rejeitável face à personalidade do agente, uma concepção que propicia uma concepção emocional da culpa.
[26] Citado Comentário …, I p. 29. O legislador adoptou a técnica dos exemplos-padrão, através da qual faz derivar a qualificação «(...) da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrita com recurso a conceitos indeterminados: a ‘especial censurabilidade ou perversidade’ do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2.» (Autor cit., ibidem, p. 26).
[27] V. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal, 2º vol., p. 39.
[28] Cfr. Margarida Silva Pereira, 2008, pag. 102).
[29] Código Penal Anotado, pág. 349.,
[30] Cfr. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, “Código Penal – Anotado e Comentado”, p. 344).
[31] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, 26, Prof. Augusto Silva Dias, “Crimes Contra a Vida e a Integridade Física”, 2ª ed., AAFDL, 2007, 25 e ss., e Teresa Serra, “Homicídio Qualificado”, 73).
[32] Leal-Henriques e Simas Santos, in Código citado, p. 26.
[33] Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
[34] Ibidem, p. 575
[35] Ibidem, p. 558.
[36] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas d