Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
55/20.1T8VLN.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
SANÇÃO ADMINISTRATIVA
PERDA DE PONTOS
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
ARTº 148º
NºS 2 E 11 DO CE
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Num processo instruído para decidir sobre a verificação dos pressupostos de cassação de um título de condução, não há lugar à constituição de arguido nos termos previstos no art. 58º do Código de Processo Penal.
2. A perda de pontos - que decorre automaticamente da prática de uma contraordenação de natureza estradal ou da imposição de pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor ( art. 148º do Código da Estrada), - não é uma pena, nem constitui uma perda de direitos civis, profissionais ou políticos, pelo que não viola o nº 4 do art. 30º da Constituição da República Portuguesa.
3. A partir da revisão do Código da Estrada operada pelo DL 44/2005 de 23.02, a cassação do título de condução perdeu a natureza de medida de segurança e passou a assumir a natureza, que mantém, de sanção administrativa, razão pela qual a competência atribuída ao presidente da autoridade nacional de segurança rodoviária ( art. 169 nº 3 do Código da Estrada), não põe em causa a soberania dos tribunais fixada no art. 202º da Lei fundamental.
4. A perda de pontos subsequente a uma condenação pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez com imposição, além do mais, de pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, não viola o princípio ne bis in idem.
5. O tempo de proibição de condução de veículos com motor imposto como pena acessória na última condenação criminal de um arguido, não pode ser descontado no período de dois anos de interdição de obtenção de novo título de condução, subsequente à cassação da carta de condução.
6. A restrição ao exercício de uma concreta atividade profissional derivada da interdição de condução de veículos com motor, não constitui violação do direito ao trabalho.
7. Tendo em conta os valores em confronto (direito à circulação automóvel e direito à vida e integridade física ) não viola o princípio da proporcionalidade, nem os subprincípios da adequação e da necessidade, a norma ( art. 148 nº 2 do Código da Estrada ) que impõe a subtração de 6 pontos de cada vez que ocorre uma condenação em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
8. Embora num entendimento mais exigente do que outros expressos a propósito da fixação de prazos ne varietur pela lei, o tribunal constitucional, no acórdão 260/2020, proferido no processo 315/2019 – 1ª secção de 13.5.2020, concluiu pela compatibilidade constitucional da norma ( art. 148 nº 11 do Código da Estrada) que fixa em dois anos o tempo de interdição de obtenção de novo título de condução, subsequente à decisão de cassação da carta de condução.
Decisão Texto Integral:
Juiz Desembargadora Relatora: Maria Teresa Coimbra.
Juiz Desembargadora Adjunta: Cândida Martinho.

Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo 55/20.1T8VLN que corre termos pelo juízo de competência genérica de Valença foi decidido julgar improcedente o recurso de impugnação intentado por M. J. e, consequentemente, manter a decisão administrativa que determinou a cassação do título de condução nº ……, bem como a impossibilidade de concessão de novo título de condução no prazo de 2 anos.

Inconformado com a decisão, recorreu para este tribunal da Relação concluindo o seu recurso do seguinte modo:

A) Na fase administrativa inicial do processo não foi M. J. constituído arguido de acordo com o estatuído nos artºs 57º e segs. CPPenal, o que, por remissão, é consagrado no art.º 22º do Regime Geral das Contra-Ordenações e exigido e exigível na defesa das garantias e dos direitos e dos deveres substantiva e adjectivamente consagrados, a propósito.
B) Nem, depois, foi cabalmente respeitado o seu direito de audição, nos termos do disposto no art.º 50º RGC-O, por não lhe terem sido comunicados os elementos necessários para que ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão a proferir.
C) Sequentemente ao (ilegalmente) eivá-lo a ‘arguido’, tudo o processado não passa de uma proclamação urbi et orbi de que o seu título de condução será cassado, resumindo-se ao pretenso cumprimento do que é tido como uma mera ‘obrigação formal’.
D) Tais postergações e omissões geram e consubstanciam nulidades insanáveis por não terem sido devidamente assegurados os direitos de efectiva defesa e de audiência, como, entre outros, decorre e obriga o no nº 10 do art.º 32º CRPort. – destarte violado.
E) É tão flagrante esta violação que o aqui recorrente, v. g., nem sequer foi notificado que gozava do direito de constituir advogado ou de solicitar a nomeação de um defensor ou, tão pouco, da possibilidade de oferecer provas, o que é do mais básico e imprescindível mesmo em sede contra-ordenacional – v. art. 61º CPPenal.
F) A Constituição da República Portuguesa, no n.º 4 do seu art.º 30º, proíbe que um cidadão perca direitos civis, profissionais ou políticos como efeito necessário de uma pena.
G) Ora, o propugnado e decidido pela ANSR e sancionado pelo Tribunal a quo é que tendo o recorrente praticado os crimes em 1) e 2) de factos provados e sido, em cada, sentenciado à “perda de seis pontos, nos termos do artigo 148º n.º 2 do Código da Estrada”, não há senão lugar à inexorável perda automática do título de condução, por cassação. E dizem mais: que a proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de dois anos.
H) Tal contradiz um dos principais e basilares princípios do direito: a de que a pena deve ser graduada em função da culpa do infractor.
I) O que acontece, na asserção formal / positivista sucessivamente adoptada, é uma aplicação cega e sem excepção duma única e mesma pena para todos os que atinjam a perda de 12, 13, 14, 15, 18, 24 ou mais pontos(!!!), já que todos eles ficam impossibilitados da obtenção de novo titulo de condução por esse período de dois anos e de exercer a condução de qualquer veículo a motor nesse mesmo lapso temporal.
J) Donde, não só o disposto nos n.ºs 2, por reporte ao corpo do n.º 1, e 11 do art.º 148º CEst. como o n.º 1 do art. 169º desse diploma (que atribui a competência ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária para decidir sobre a verificação dos respectivos pressupostos e ordenar a cassação do título de condução) são materialmente inconstitucionais, por reporte ao no n.º 4 do art.º 30º CRPort.
L) Não faz qualquer sentido atribuir, ab initio, a uma qualquer autoridade administrativa mais amplos e extensos poderes que aos Tribunais.
M) Se a estes últimos apenas couber aplicar a(s) pena(s) acessória(s) de inibição de condução mas já não, ab initio, a cassação do título de condução, em última análise, tal até põe em causa os poderes (e as responsabilidades) do órgão de soberania Tribunais e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
N) É que são os Tribunais que têm o direito à coadjuvação de outras entidades e não o invés!
O) Violado ficou, pois, o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 202º CRPort.
P) In casu, a cassação e a inerente impossibilidade de concessão de novo título de condução no prazo de dois anos, implica uma dupla condenação, em manifesta e ostensiva violação do princípio ne bis in idem – cfr. n.º 5 do art.º 29º, ancorado no disposto no n.º 5 do art.º 32º (estrutura acusatória do processo), ambos da CRPort.
Q) É que se cada condenação penal implicou a inibição de condução (de três meses e dez dias, a primeira, e de quatro meses, a segunda), de acordo com o referido princípio, ninguém pode ser julgado, nem condenado, mais que uma vez sobre os / pelos mesmos factos.
R) Atente-se que os crimes cometidos, temporalmente próximos, resultaram de mera negligência e, ainda, que o aqui recorrente viu completamente paralisada a sua actividade profissional de motorista com o cumprimento dessas inibições e o mesmo sucederá com a cassação do seu título de condução, impedindo, nova e inexoravelmente, o exercício da sua profissão – e, concomitantemente, o seu sustento e o de sua família (agora de forma irreversível), como se vê e mostra de 6) de factos provados,
S) In casu, a cassação decorrerá mecânica e automaticamente da sua segunda condenação.
T) Então, mais não fosse, os quatro meses de inibição sempre teriam de ser subtraídos aos dois anos da cassação… Mas, à luz deste princípio, de condenação suplementar e ilegal se cuida, pelo que ‘cairá’ a cassação.
U) O que o n.º 4 do art.º 30º CRPort. pretende proibir e proíbe é que à condenação em certas penas se acrescente de forma mecânica e automática, independentemente de decisão judicial que a venha a sancionar, a posteriori, uma outra pena com a mesma natureza ou fim.
V) Ora, a inibição e a cassação são duas faces duma mesma e única moeda, sendo que a cassação tem o mesmo escopo da inibição – punir violações à segurança rodoviária – e pretende ser (rectius, pretende-se que seja) de aplicação mecânica, automática e sucessiva (administrativamente complementar), o que, como reportado, é constitucionalmente vedado e proibido.
X) Para além da perda de direitos civis (afectando / destruindo a validade do título de condução) a propugnada cassação acarreta a violação do direito ao trabalho do aqui recorrente, também constitucionalmente consagrado (na consideração da actividade profissional exercida) – cfr. n.º 1 do art.º 58º CRPort. (v., ainda, o art. 23º n.º 1 DUDH e o em 6) de factos provados).
Z) A preconizada cassação viola, também, de forma grave e irreversível os princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação, sendo que os seus efeitos excedem largamente a culpa do agente, tanto mais que as infracções sentenciadas não foram praticadas com dolo e o título de condução é imprescindível ao exercício da actividade profissional e à própria subsistência do recorrente e do seu agregado familiar, pelo que a decisão do Tribunal a quo pode, deve e há de ser revertida.

Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento V/Excias., deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a, aliás douta, sentença recorrida, não se procedendo à pura e simples cassação do título de condução do recorrente pelo prazo de dois anos, assim se fazendo sã, serena, objectiva e a mais lídima
JUSTIÇA!
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Recebido o recurso e remetido a este tribunal, a ele respondeu o ministério público pugnando pela manutenção da decisão.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).
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Após os vistos, foram os autos à conferência.
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II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que em matéria de contraordenações o tribunal da Relação funciona como tribunal de revista por conhecer apenas de matéria de direito (artigo 75.º nº 1 do DL 433/82 de 27/10), sem prejuízo do disposto no nº 2 da referida norma e das questões de conhecimento oficioso.

Analisando a síntese conclusiva são as seguintes as questões trazidas à apreciação deste Tribunal:

- nulidade insanável decorrente da falta de constituição do recorrente como arguido e desrespeito pelo direito de defesa;
- violação do nº 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa (CRP);
- inconstitucionalidade material dos nºs 2 e 11 do artigo 148º e nº 1 do artigo 169º do Código da Estrada (CE), com a consequente incompetência da autoridade administrativa para decretar a cassação do título de condução e violação do disposto no artigo 202º, nº 1, 2 e 3 da CRP;
- violação do princípio ne bis in idem;
- subtração aos 2 anos de cassação do título, dos 4 meses de inibição impostos na última condenação criminal sofrida pelo recorrente;
- violação do direito ao trabalho;
- violação dos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação.

É a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância e respetiva motivação:

1) No âmbito do processo 40/17.0GTVCT, o recorrente, por decisão transitada em julgado em 02.10.2017, o arguido foi condenado, pela prática, em 02.08.2017, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de três meses e dez dias.
2) No âmbito do processo 39/18.0GTVCT, o recorrente, por decisão transitada em julgado em 01.10.2018, o arguido foi condenado, pela prática, em 14.07.2018, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de quatro meses.
3) Por carta enviada com aviso de recepção e recebida a 15.04.2019, o recorrente foi notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.50.º RGCO.
4) Da notificação referida em 3., cujo teor, a fls.13 a 15, se dá por integralmente reproduzido, constava o seguinte, para o que interessa ao caso vertente: “(…) Em observância do direito de audição e defesa previsto no art.50.º RGCO, fica V.Exa. notificado do seguinte: (…) Para que se considerem preenchidos os pressuspostos da cassação de um título de condução, o seu titular deverá ter sido condenado à perda total de pontos atribuídos ao título de condução, após 01.06.2016, data da entrada em vigor da Lei n.º 116/2015 de 28 de Agosto. Para verificação dos pressupostos da cassação do título de condução, nos termos do art.148.º do Código da Estrada, são os seguintes os averbamentos do Registo de Infracções do Condutor, para efeitos do presente processo: - Processo crime n.º 40/17.0GTVCT: (…) e) perda de seis pontos, nos termos do art.148.º n.º 2 do Código da Estrada; f) pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 meses e 10 dias; - Processo crime n.º 39/18.0GTVCT: (…) e) perda de seis pontos, nos termos do art.148.º n.º 2 do Código da Estrada; f) pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 4 meses. Constata-se assim a prática, pelo condutor acima identificado, de dois crimes rodoviários, tendo havido lugar a sentença judicial, transitada em julgado, nos respectivos processos, encontrando-se preenchidos os pressupostos da cassação do título de condução. (…) Face ao que antecede, fica V.Exa notificado para, querendo, apresentar defesa quanto à cassação do seu título de condução, no prazo de 20 dias úteis, nos termos do disposto no art.50.º RGCO. (…)”
5) Por carta enviada com aviso de recepção e recebida a 14.06.2019, o recorrente foi notificado da decisão ora posta em crise, e cujo teor, a fls.27 a 31 dos autos, se dá aqui por integralmente reproduzida.
6) O recorrente é motorista profissional; reside com a esposa, doméstica, e sogros, ambos reformados, sendo, de tal agregado familiar, o único elemento laboralmente inserido, auferindo, pele desempenho da sua actividade, remuneração no valor de cerca de 670 euros; é tido, pelos pares, como pessoa cumpridora e responsável.

Motivação.
A convicção do tribunal assentou, desde logo, do teor das certidões, com nota de trânsito em julgado, das sentenças proferidas no âmbito dos processos 40/17.0GTVCT e 39/18.0GTVCT, da notificação dirigida ao recorrente (e respectivo registo postal), a fls.17 e 19, respectivamente, e da decisão final (e respectivo registo postal), junto a fls. 27 e 31 dos autos, respectivamente também. No que respeita à situação pessoal e económica do recorrente, o tribunal atendeu essencialmente às suas declarações que, neste particular, mereceram a nossa credibilidade, devidamente cotejadas com os depoimentos das testemunhas J. B. e J. R. que, pela proximidade vivencial com aquele, o afiançaram nos mesmos termos.
*
Apreciação do recurso.

Da invocada “nulidade insanável” decorrente da falta de constituição como arguido e desrespeito pelo direito de defesa.

Invoca o arguido que, nestes autos instruídos para decidir a cassação da carta de condução, não foi constituído arguido, devendo tê-lo sido, o que, no seu entender, constitui violação do direito de defesa e nulidade insanável.

A constituição como arguido está prevista no Código de Processo Penal. E se é verdade que os direitos penal e processual penal servem de referência ao direito de mera ordenação social, havendo contributos inegáveis daqueles ramos do direito (artigo 41º do RGCO) para o direito das contraordenações, também é certo que este tem uma dogmática própria não importando acriticamente regimes e figuras, não obstante a interpenetração a nível de princípios fundamentais. Há até quem defenda que o processo de contraordenação constitui uma realidade sui generis que representa um tercium genus entre o tradicional processo administrativo sancionador e o tradicional processo criminal.
Assim sendo, desde já se adianta que a falta de constituição como arguido não constitui nulidade insanável, nos termos previstos no artigo 119º do CPP.
É que mesmo que não se concorde com quem defende que do artigo 119º do CPP só o emprego de forma especial de processo fora dos casos previstos na lei poderá ser aplicado ao processo contraordenacional (Lopes de Sousa - Simas Santos in RGIF - Anot, Áreas - Editora, 2001, 373), ou com quem afirma não haver no processo de contraordenação nulidades insanáveis (Alfredo José de Sousa - Infrações Fiscais não Aduaneiras, Almedina, 167) posições referidas no Assento 1/2003 publicado no DR nº 21, I, A, de 25.01.2003, certo é que no processo contraordenacional não há a obrigatoriedade de constituição de arguido, em termos semelhantes aos do processo penal. E não há, porque o processo se inicia no âmbito administrativo e a autoridade administrativa carece de competência criminal, limitando-se a praticar os atos necessários a concluir pela eventual existência de ilícito gerador de aplicação de coima/sanção administrativa.
Portanto, a adoção da designação arguido, importada do direito criminal, não pressupõe no processo administrativo a sua constituição nessa qualidade, como ocorre em termos criminais, antes se fica pelo sentido literal, pelo significado da palavra, isto é, aquele a quem é imputado um determinado comportamento ilícito
Mas a falta de constituição de alguém como arguido em processo contraordenacional não significa que o seu direito de defesa e audição possa ser postergado. É que, tal como em processo criminal, o arguido tem no processo administrativo, se o pretender, o direito de audição, de presença, de assistência de defensor, de interposição de recurso, direitos que, aliás, estão constitucionalmente consagrados (artigo 32º, nº 10º da CRP).
Como ensina o Prof. Manuel Andrade, ensinamento aplicável a qualquer ramo do direito, "o direito a ser ouvido exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de apresentarem as suas razões, oferecerem provas, controlarem as oferecidas pelas outras partes e pronunciarem-se sobre umas e outras” (Noções Elementares de Processo Civil, I, 1976, 377 citado por Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral in Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas).
E é para que possa ser exercido um cabal direito de defesa (como é dito no já referido Assento citando Marcelo Caetano in Manual do Direito Administrativo, II, 1280 "quer a lei o diga ou não (…) há que respeitar o princípio de que ninguém pode ser condenado sem previamente ter sido ouvido (…) que existe no processo no processo contraordenacional uma norma como o artigo 46º do RGCO: “1. Todas as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas são comunicadas às pessoas a quem se dirigem. 2. Tratando-se de medida que admita impugnação sujeita a prazo, a comunicação revestirá a forma de notificação, que deverá conter os esclarecimentos necessários sobre a admissibilidade, prazo e forma de impugnação.”
Ainda em correlação com o alegado neste segmento do recurso, o recorrente invoca o facto de na decisão administrativa que determinou a cassação da carta de condução não constar a informação sobre a interposição de recurso. Ocorre que a presente apreciação respeita, precisamente, ao recurso da decisão judicial que, na sequência da impugnação da decisão administrativa, foi tomada. Isto é, o recorrente ao recorrer por intermédio de advogado e levantando diversas questões de direito sanou o vício que invoca, uma vez que se prevaleceu da faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia (artigo 121º nº 1 al. c) do CPP aplicável ex vi artigo 41º RGCO).
Como é dito por João Conde Correia in Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Coimbra Editora, 1999, 155), igualmente citado no Assento 1/2003 publicado no DR nº 21, I, A, de 25.01.2003, o legislador procura evitar a anulação do processado por motivos de mera forma, contribuindo para a construção de um sistema menos formalista e mais preocupado com a justiça material. Se o ato, apesar de imperfeito, cumprir os objetivos para os quais foi pensado pelo legislador (…) não se justifica a sua repetição.
No fundo, é também a esta luz que se avalia a boa fé processual.
Como foi dito pelo Tribunal Constitucional no acórdão 429/95 de 6.7 in DR, II, de 10/11/1995 os sujeitos processuais não podem "aproveitar-se de alguma omissão porventura cometida ao longo dos atos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um trunfo para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado".
E citando de novo João Conde Correia, página 146, nota, 328 e 177 a 179 pode ler-se no citado Assento 1/2003: O legislador português (…) criou um sistema responsabilizador e progressivo, onde os sujeitos processuais são convidados a participar na marcha processual e a denunciar, com prontidão, as infrações cometidas e onde as possibilidades de sanação do vício vão aumentando à medida que o processo se afasta do ato imperfeito e se aproxima do seu epílogo (…). No fundo, o legislador estruturou o processo penal em etapas sucessivas que servem de barreiras à propagação de certos defeitos do ato processual penal. Ultrapassados aqueles prazos fica precludida a possibilidade de invocar a infração cometida e os efeitos produzidos pelo ato processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos. Regime que, embora seja uma clara manifestação do princípio da conservação dos atos imperfeitos, se destina também a evitar que o interessado, em vez de arguir de imediato a nulidade, guarde esta possibilidade para utilizar no momento mais oportuno, se e quando for necessário. Conduta processual que, para além de ser muito reprovável, teria como consequência necessária a inutilização de todo o processado posterior, muitas vezes apenas na sua fase decisiva e no fim de uma longa marcha, que só com muito custo poderia ser refeita".
As considerações precedentes aplicam-se à questão levantada pelo recorrente perante este tribunal. Uma vez que interpôs recurso de impugnação e, depois, o presente recurso, não pode agora querer prevalecer-se do facto de na notificação que lhe foi efetuada lhe não ter sido informada a possibilidade, prazo e modo de interposição de recurso.
Tanto basta para que improceda este segmento do recurso.

Da violação do nº 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Dispõe o artigo 30º da CRP com a epígrafe "Limites das penas e das medidas de segurança" no seu nº 4 que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”. Este mesmo ditame veio a ficar plasmado no artigo 65º do Código Penal.
Significa esta proibição que a aplicação de uma pena não pode ser acrescida de forma automática, isto é, ope legis, sem intervenção de uma decisão, de uma outra pena que implique perder direitos civis, profissionais ou políticos.
Pensada inicialmente para evitar os efeitos jurídicos automáticos desonrosos e estigmatizantes de certas formas de prisão (cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 97 e 100), deve entender-se que não se limita ao plano criminal, estendendo-se a outros domínios sancionatórios como é o direito das contraordenações.
Entende, então, o recorrente que a cassação da carta de condução, decorrente da prática de crimes pelos quais foi condenado, se traduz na imposição automática da perda de direitos, nomeadamente da perda automática do direito de conduzir veículos.
Mas, de facto, assim não é. O que decorre da prática do crime é a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir que sendo um efeito da prática do crime de condução em estado de embriaguez não é automático no sentido legalmente proibido, - porquanto não é um efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno da pena, que é o que verdadeiramente justifica o nº 4 do artigo 30º da CRP -, para além de ser sujeita na sua aplicação aos princípios da proporcionalidade e da culpa. Acresce que a aplicação da pena acessória é mais um efeito da prática do crime do que da aplicação de uma pena (veja-se a circunstância de poder não haver aplicação de uma pena - no caso de suspensão provisória do processo - e continuar a haver a imposição da pena acessória).
Ora, o que resulta automaticamente da imposição da pena acessória é a perda de pontos da carta de condução. E sendo um efeito automático (a prática de uma contraordenação grave ou muito grave ou a aplicação de uma sanção acessória implica sem qualquer outra ponderação a subtração de pontos) não é, em si mesma, uma perda de direitos civis, profissionais ou políticos. É, tão só, uma perda de pontos, dos que são atribuídos a todos os condutores, os quais são retirados ou adicionados consoante o comportamento estradal, sendo que só quando a perda de pontos é total, ocorre a cassação do título de condução. Assim, não pode dizer-se que a cassação de carta decorre automaticamente da prática do crime de condução em estado de embriaguez ou da prática de contraordenações graves ou muito graves. Ela decorre do comportamento estradal que foi sendo adotado e que levou à progressiva retirada de pontos, até à sua inexistência.
Portanto, nem a cassação da carta constitui um efeito necessário de uma qualquer pena, nem tem o caráter estigmatizante, dessocializador e criminógeneo das penas, que é o que verdadeiramente subjaz ao comando constitucional ínsito no artigo 30º, nº 4 da CRP, norma que, pelo exposto, não se mostra violada.
Entende ainda o recorrente, a propósito desta invocada violação da lei fundamental, que a cassação do título de condução e a proibição de obter novo título de condução com uma duração fixa de dois anos viola o princípio da culpa na aplicação das penas, porque um dos princípios basilares do direito é o de que a pena deve ser graduada em função da culpa do infrator.
Argumenta o recorrente que é aplicada cegamente uma única e mesma pena para todos os que atingem a perda de "12, 13, 14, 15, 18, 24 ou mais pontos", já que ficam impossibilitados de obter novo título de condução por esse período de dois anos e de exercer a condução de qualquer veículo a motor nesse mesmo lapso temporal.
Antes de mais diga-se que não há a perda de "18, 24 ou mais pontos" uma vez que a carta por pontos atribui a cada condutor 12 pontos a que podem acrescer mais 3 e mais 1 nas circunstâncias previstas nos nºs 5 a 7 do artigo 148º do CE.
Mas, de facto, qualquer condutor que perca a totalidade dos pontos vê cassada a sua carta de condução e uma vez cassada a carta de condução fica interdito de conduzir pelo período de dois anos.
A questão invocada pelo recorrente é renovada no momento em que invoca a violação dos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação. A ela nos referiremos, portanto, de novo, mais tarde. No entanto desde já se diga que o raciocínio que subjaz à perda de pontos, não é um raciocínio que se assemelhe ao da imposição de uma pena. A perda de pontos não é uma pena. Aliás, a perda de pontos em si mesma, se forem poucos os pontos perdidos, nada modifica na vida do condutor, que em rigor nem sequer a sente. As consequências severas só aparecem quando a perda de pontos é de tal forma significativa que faz emergir consequências dessa mesma perda. O que parece querer o recorrente discutir é o facto de o número de pontos perdidos por cada infração criminal ser elevado, ao ponto de duas condenações criminais em pena acessória determinarem a perda da totalidade de pontos inicialmente atribuídos. Mas a opção do legislador teve seguramente a ver com a realidade trágica das estatísticas respeitantes à sinistralidade rodoviária, (a que nos voltaremos a referir adiante), não cabendo ao aplicador da lei discutir as opções legislativas.

Da inconstitucionalidade material dos nºs 2 e 11 do artigo 148º e nº 1 do artigo 169º do Código da Estrada (CE) e incompetência da autoridade administrativa para decretar a cassação do título de condução e violação do disposto no artigo 202º, nº 1, 2 e 3 da CRP;

Defende ainda o recorrente a inconstitucionalidade material dos nºs 2 e 11 do artigo 148º e do nº 1 do artigo 169º do Código da Estrada na medida em que, diz, violam o nº 4 do artigo 30 da CRP e bem assim, os nºs 1, 2 e 3 do artigo 202º da mesma lei fundamental.
Descodificando as referências legais, entende o recorrente que a competência atribuída ao presidente da ANSR para decidir a cassação da carta de condução, põe em causa a soberania dos tribunais e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
O tratamento desta questão implica um breve périplo pela figura jurídica da cassação do título de condução e pela avaliação da sua natureza.
Embora já antes do Código da Estrada aprovado pela lei 114/94 de 3 de maio, existisse a figura da cassação do título de condução (cfr. artigo 61, nº 3 do Código da Estrada/54) esta ganhou especial evidência a partir da chamada de atenção de Figueiredo Dias para a necessidade de inscrever no Código Penal (CP), como medidas de segurança de caráter geral, as medidas de segurança de cassação de licença de condução de veículo motorizado e de interdição de concessão da licença. Defendia o insigne mestre que estas medidas deviam estar ligadas à condenação por crime praticado na condução de veículo motorizado ou com ela relacionado, quando ocorresse grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem, ou em caso de absolvição por motivo exclusivo de inimputabilidade. E deveriam ser aplicadas sempre que, verificados aqueles requisitos, houvesse fundado receio de que o agente pudesse vir a praticar outros factos da mesma espécie (isto é, relacionados da forma descrita com a condução automóvel) ou o agente devesse ser considerado inapto para a condenação de veículo motorizado, nomeadamente pela prática de crimes (…). A tais agentes deveria ser cassada a licença de condução, se já a possuíssem, decretando o tribunal uma interdição da concessão de nova licença durante período determinado, ou, no caso de não serem titulares de licença de condução, deveria ser simplesmente decretada a interdição de a obterem durante período determinado.
E acrescentava: Por demasiado severo que possa ser reputado o regime sugerido - que se aproxima do previsto pelos §§ 69 a 69 b) do CP alemão, embora com ele não coincida totalmente, e com o qual deve continuar a coexistir a previsão da proibição de conduzir como pena acessória (…) - ele parece imposto pelas fortíssimas razões de prevenção e de defesa da comunidade que, nesta matéria, em Portugal se fazem sentir. Ponto é que, uma vez inscrito no CP, uma reforma do CE não venha, como é de (infeliz) tradição entre nós, modificar atrabiliariamente um tal regime - na base de que a competência para a regulamentação pertença segundo a matéria ao "direito estradal", com sacrifício insuportável dos princípios e da racionalidade do sistema jurídico-penal.
E foi assim que na revisão do CP de 95 surgiu como medida de segurança, no artigo 101º, a "cassação da licença de condução de veículo motorizado" e no artigo 102º a medida de segurança de "interdição de concessão de licença".
Também no Código da Estrada aprovado pelo DL 114/94 de 3.5 foi prevista a cassação da carta ou licença, ficando a constar no artigo 150º, nº 1 que pode ser cassada pelo tribunal a carta ou licença de condução quando, em face da gravidade das contraordenações praticadas e da personalidade do condutor, este deva ser julgado inapto para a condução de veículo motorizado.

Acrescentava o nº 2: É suscetível de revelar a inaptidão para a condução do veículo motorizado a prática, no período de três anos, de:

a) três contraordenações muito graves;
b) cinco contraordenações graves;
c) Duas contraordenações muito graves e três graves;
d) Uma contraordenação muito grave e quatro graves.

O artigo 151º, por sua vez, tratava da interdição da concessão de licença e prescrevia que:

“1. Quando decretar a cassação da carta ou licença de condução, o tribunal determina que ao agente não pode ser concedida nova carta ou licença de condução de veículos motorizados, de qualquer categoria ou de uma categoria determinada, pelo período de um mês a três anos.
2. Aquele a quem tiver sido cassada carta ou licença de condução só pode obter nova carta ou licença se for aprovado em exame especial, em termos a fixar em diploma próprio”.

Portanto, olhando para as referidas normas que previram a cassação do título de condução, não há qualquer dúvida de que a trataram como medida de segurança e que, como qualquer outra medida de segurança, estava sujeita aos princípios da legalidade, da post-delitualidade, da perigosidade, da proporcionalidade e do monopólio judicial (cfr Medidas de Segurança e "Habeas Corpus" - Breves notas - Legislação Jurisprudência, 2002 de Manuel Leal - Henriques, Áreas Editoras, 21).

Assim, ao tempo competia aos tribunais e tão só aos tribunais de jurisdição comum a aplicação da medida de segurança de cassação do título de condução. E sendo um poder atribuído em exclusivo aos tribunais, não era partilhável com qualquer outro órgão da administração pública, traduzindo o que se podia apelidar da garantia jurisdicional das medidas da segurança (artigo 27, nº 2 da CRP).

É neste estado de coisas que o recorrente se projeta ao dizer que a atribuição da competência ao presidente da ANSR (artigo 148º e 169º do Código da Estrada) para decretar a cassação do título de condução viola a Constituição (artigos 30º, nº 4 e 202 da CRP).

Ocorre que se não havia qualquer dúvida de que a cassação do título de condução constituía uma medida de segurança - aliás, a própria inibição da faculdade de conduzir era entendida como medida de segurança (assim foi fixado pelo Assento 7/92 de 29/04/1992 in DR - I de 10/07/1992 e BMJ, 416, 119: ("a inibição da faculdade de conduzir, estatuída no artigo 61º do Código da Estrada, constitui medida de segurança") - a partir da revisão do Código da Estrada, operada pelo Decreto Lei 44/2005 de 23/02, a cassação do título de condução perdeu a natureza de medida de segurança para assumir a natureza de sanção administrativa ao ser estatuído no artigo 148º, com a epígrafe "Cassação do Título de Condução" que:

1. É aplicável a cassação do título de condução quando o infrator praticar contraordenação grave ou muito grave, tendo, no período de cinco anos imediatamente anterior, sido condenado pela prática de três contraordenações muito graves ou cinco contraordenações entre graves e muito graves.
2. A cassação do título de condução é determinada na decisão que conheça da prática da contraordenação mais recente a que se refere o nº 1.
3. Quando for determinada a cassação do título de condenação, não pode ser concedido ao seu titular novo título de condenação de veículos a motor, de qualquer categoria, pelo período de dois anos.

É, em face do novo texto legal, então, possível constatar que a decisão de cassação do título de condução prevista no Código da Estrada, passou a ser administrativa, deixando de implicar um qualquer juízo sobre inaptidão, para se bastar com a prática de um determinado número e gravidade de contraordenações. E passou a assumir a natureza de sanção de caráter administrativo, apesar da justificação constante do preâmbulo do diploma de que se tratava tão só de uma alteração de procedimento. Mas foi mais do que uma alteração de procedimento, porque a partir daí não mais se afastou a natureza de sanção administrativa.
É certo que o DL 113/2008 de 01/07 passou a exigir que a cassação fosse decidida num processo autónomo organizado logo que as condenações pelas contraordenações fossem definitivas (artigo 148º, nº 2), mas atribuiu competência exclusiva para a verificação dos respetivos pressupostos ao presidente da ANSR, competência que se manteve quando a lei 116/2015 de 28/08 instituiu o "Sistema de pontos e cassação do título de condução" no artigo 148º.
Ora, tendo a cassação do título de condução perdido a natureza de medida de segurança, não havendo lugar a um qualquer juízo sobre a inadaptação ou perigosidade do condutor, mas resultando ela ficcionada pela lei a partir do momento em que tenham sido perdidos os pontos atribuídos, não há dúvida de que a cassação da carta de condução, prevista no Código da Estrada, não se confunde com a cassação que, como medida de segurança, se encontra prevista no Código Penal, por ter desaparecido qualquer margem de apreciação e ponderação de culpa e perigosidade do agente.
É evidente que melhor seria que, respeitando a racionalidade, unidade e coerência do sistema jurídico, a designação constante do Código da Estrada fosse diferente da da medida de segurança prevista no Código Penal para evitar que a sanção administrativa pudesse ser confundida com uma medida de segurança, a permitir o entendimento - como o que o recorrente defende - de que só um juiz, dado o princípio do monopólio judicial das medidas de segurança, poderia impor a cassação do título de condução.
Aqui chegados é manifesto que se tratou de uma opção legislativa que se foi impondo por força da necessidade de fazer face a cada vez maior sinistralidade rodoviária - autêntica guerra civil estradal -, com custos elevadíssimos humanos e materiais a reclamarem uma cada vez maior severidade na punição de comportamentos estradais reveladores de irresponsabilidade, - mas que pelas razões referidas não viola qualquer preceito constitucional v.g. os invocados pelo recorrente, como vem sendo reiteradamente dito pela jurisprudência que tem tratado a questão (Cfr. Ac RE de 31/12/2019 proferido no processo 1525/19.0T9STB.E1; Ac. RP de 30/04/2019 proferido no processo 316/18.0T8CPV.P1 e de 09/05/2018 proferido no processo 644/16.9PTPRT-A.P1 de 06/11/2019 proferido no processo 4289/18.0T8PBL.C1; Ac.RG de 27.12.2020 proferido no processo 1732/20.2T8BCL.G1 e da RG de 22.03.2021 proferido no processo 1094/20.8T8BCL.G1 ( todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Aliás, tal opção legislativa correspondeu a uma necessidade também sentida em diversos países da Europa, uma vez que antes da implementação em Portugal já o sistema da carta por pontos existia na Espanha, França, Itália, Reino Unido, Alemanha, Malta, Polónia, Áustria e Dinamarca, o que é revelador da premência de acrescentar severidade à avaliação do comportamento estradal.
Não ocorre, portanto e pelo exposto, qualquer incompatibilidade entre a legislação em apreço e a lei fundamental.

Da violação do princípio ne bis in idem

Invoca ainda o recorrente a violação do princípio ne bis in idem.

O referido princípio tem assento no artigo 29º, nº 5 da CRP.
Ai se estabelece que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime". Idêntica formulação encontramos no artigo 14º §7 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, na CEDH (artigo 4º nº 1 do Protocolo 7), na carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 50º).
Trata-se de um princípio que vale para todas as pessoas e para todos os processos: pelo mesmo facto ninguém pode ser julgado mais que uma vez.
Ora, se é certo que o recorrente sofreu penas principais e acessórias de cada vez que foi condenado pela prática dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, também é certo que sofreu a cassação da carta não por força das referidas condenações individualmente consideradas, mas autonomamente por ter perdido e esgotado os pontos de que dispunha. Portanto, nem as circunstâncias que motivaram as sucessivas decisões foram as mesmas, nem as finalidades da aplicação das diferentes sanções é a mesma, nem a perda de pontos é um novo julgamento, pelo que a responsabilização cumulativa não viola o princípio ne bis in idem.
De facto, as diferentes punições foram sendo impostas à medida que se sucederam os comportamentos delituosos de acordo com as sanções previstas para cada um deles.
Não ocorre, portanto, a violação do princípio ne bis in idem.

Da subtração aos 2 anos de interdição de obtenção de novo título de condução, dos 4 meses de inibição impostos na última condenação criminal sofrida pelo recorrente.

Defende também o recorrente que os 4 meses de inibição de conduzir que sofreu aquando da condenação pela prática do segundo crime de condução em estado de embriaguez deveriam ser descontados no período de interdição de 2 anos previsto na lei para o caso de cassação do título de condução.
Certamente para o entendimento expresso pelo recorrente não será alheio o disposto no nº 7 do artigo 69º do CP quando afirma que “cessa o disposto no nº 1 (proibição de conduzir veículo a motor por período de 3 meses a 3 anos) quando pelo mesmo facto tiver lugar a aplicação da cassação ou da interdição da concessão do título de condução nos termos do artigo 101º”.
Isto é, a lei penal prevê que se o tribunal decretar a cassação do título não poderá simultaneamente decretar a sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizados. Percebe-se à luz da lógica das coisas na medida em que a cassação consome a proibição de conduzir que pudesse ser aplicada.
Mas deverá o último período de proibição de condução sofrido pelo recorrente (e só este, porque só a este se refere) ser descontado nos dois anos previstos no nº 11 do artigo 148 do CE?
A figura jurídica do desconto prevista no artigo 80.º do Código Penal está essencialmente pensada para a privação de liberdade, quer por força de penas sofridas, quer por força de medidas de segurança, mas não é afastável no caso de cumprimento de penas acessórias e nas medidas de segurança não privativas de liberdade (cfr. Paulo Pinto Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3ª ed., Universidade Católica- anot. artigo 80.º, 385 e ss).
No entanto, no que concerne concretamente à condução estradal, o acórdão FJ 4/17 publicado no DR 115/2017, I, de 16/06/2017 deixou claro que tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281.º do CPP com a injunção de proibição de condução de veículo automóvel, prevista no nº 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do nº 4 do artigo 282.º do mesmo código, o tempo em que o arguido esteve privado de carta de condução não deve ser descontado no tempo da pena acessória de inibição de faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar.
Não obstante se reconhecer que nas declarações de voto de vencido do referido Ac.FJ e nos acórdãos nelas referidos se encontram argumentos em sentido contrário valorosos e que também a melhor doutrina abre a porta a outras interpretações (cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal Português- As consequências jurídicas do crime, 300), não se configura, neste momento, possível o afastamento do entendimento maioritariamente fixado no Ac.FJ referido, uma vez que não está legalmente previsto o desconto pretendido pelo recorrente e tal implicaria que se equiparasse o sofrimento causado por uma prisão com a limitação de não poder conduzir, os quais são sacrifícios dificilmente equiparáveis, como é dito no Ac.FJ que nos serve de base para apreciar negativamente, neste segmento, a pretensão do recorrente e cujos argumentos são transponíveis para a situação em apreço.

Da violação do direito ao trabalho

Defende ainda o recorrente que a sanção que lhe foi imposta - cassação de carta e interdição de obtenção de novo título num período de 2 anos - é violadora do seu direito ao trabalho, até porque é motorista de profissão.
Percebe-se o quanto nos dias de hoje a impossibilidade de conduzir um veículo automóvel é geradora de dificuldades adicionais no desenvolvimento de uma atividade laboral, tanto mais quanto essa atividade é exatamente exercida pelo ato de conduzir. Mas tal não basta para que se diga que o direito ao trabalho foi violado, mesmo que alguma restrição ou sacrifício seja imposto e mesmo que uma concreta atividade profissional deixe de poder ser exercida.
Como se diz no acórdão da relação de Coimbra de 15/01/2020 proferido no processo nº 576/19.9T9GRD.G1 a propósito de uma situação em tudo semelhante à que apreciamos e citando o tribunal constitucional (v.g. Ac. TC 276/2002 in DR de 29/11/2020, II) “o direito ao trabalho com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma atividade profissional, se confere ao trabalhador, por um lado, determinadas dimensões de garantia e, por outro, se impõe ao Estado o cumprimento de determinadas obrigações, não é um direito que à partida se possa configurar como não podendo sofrer, pontualmente, quer numa, quer noutra perspetiva, determinadas limitações no seu âmbito quando for restringido ou sacrificado por mor de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Efetivamente, uma tal justificação resulta das circunstâncias de a sanção de inibição temporária de faculdade de conduzir se apresentar como meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, avaliados também na perspetiva da sociedade a quem, reflexamente, se dirige também a medida, uma vez que com ela se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, compensá-la com o risco a que o seus membros ficam sujeitos com a prática de uma condução com efeito de álcool.
Qualquer cidadão tem ao seu dispor um conjunto de atividades laborais que poderá exercer, sendo que a impossibilidade de exercício de umas, não necessariamente acarreta a impossibilidade de escolher outras, enquanto a impossibilidade de exercer as primeiras se mantiver.
Admitindo-se que possa haver restrições ao desenvolvimento de uma concreta atividade profissional, já não se percebe como pode ser sustentada a afirmação de que o direito ao trabalho se mostra violado.
Acresce que sendo o arguido motorista profissional se lhe impunha um dever acrescido de irrepreensibilidade de comportamento enquanto condutor, que se adotado, o afastaria das dificuldades que enfrenta por força da decretada cassação.
Improcede, assim, a invocada violação do direito ao trabalho.

Da violação dos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação.

A última questão invocada pelo recorrente respeita à violação dos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação. Percebe-se que o recorrente com esta invocação pretende assacar inconstitucionalidade à norma (148.º do CE) com base na qual lhe foi cassado o título de condenação, até porque só a normas e sua interpretação e não às decisões, pode ser assacada inconstitucionalidade Ac.TC de 24/04/94 in BMJ 404,486 e ainda 358,236.
Qualquer sanção seja criminal ou administrativa deve respeitar os princípios cuja violação foi invocada pelo arguido.
O princípio de proporcionalidade, da justa medida, da temperança, impõe, muito em resumo, que a sanção imposta seja proporcionada à gravidade do comportamento sancionado. E a gravidade do comportamento deve ser aferida pela importância dos bens jurídicos violados, pela culpa do agente da infração, pelo modo de execução; o princípio de adequação ou idoneidade, um dos sub princípios nos quais se desdobra o anterior, impõe que a medida seja apta a alcançar a finalidade pretendida; o princípio de necessidade ou indispensabilidade, traduz a obrigação da intervenção sancionatória mínima de acordo com a qual se os fins pretendidos pela lei forem atingidos por meios menos severos, por estes deve ser a opção.
Não há qualquer dúvida de que o regime instituído pelo “sistema de carta por pontos” aparece aos olhos do cidadão comum com uma severidade inusual no sistema sancionatório estradal. E assim aparece, não porque já antes não houvesse instrumentos legislativos que permitissem fazer a aproximação ao sistema vigente, mas porque, na prática, não eram utilizados. De facto, na realidade do dia a dia dos tribunais sucediam-se julgamentos do mesmo arguido por condução com álcool em que se iam aplicando penas acessórias de proibição de conduzir, cada vez mais severas, mas que raramente determinavam a aplicação da medida de segurança, cassação do título de condução prevista no artigo 101.º do Código Penal.
E estando também já prevista a possibilidade de cassação de carta como resultado da prática de três contraordenações muito graves ou cinco contraordenações entre graves e muito graves, ela não teve projeção real (vejam-se as estatísticas da ANSR sobre o assunto).
O sistema atual é mais transparente, facilmente compreensível, mas muito mais severo na prática.
Retirando dois pontos na generalidade das infrações graves, quatro pontos nas muito graves e seis pontos nos crimes rodoviários, qualquer condutor percebe a que distância se encontra de ficar sem o seu título de condução.
Mas, como já se disse, a opção legislativa não corresponde a uma atuação arbitrária ou desnecessária, foi ditada pelos números que as estatísticas da sinistralidade rodoviária ostentavam e pelas razões imensas de prevenção geral que se faziam sentir, porque, não obstante as sucessivas campanhas de prevenção, a realidade das nossas estradas traduzia-se, repete-se, numa guerra civil em que as vítimas se sucediam sem que se lhe antolhasse a possibilidade de lhe pôr fim. Foi este um dos objetivos que ficou plasmado na exposição de motivos da proposta de lei 336/XII que deu origem à alteração do Código da Estrada operado pela lei 116/2015 de 28.08. até porque como aí se diz “a análise comparada com outros países europeus demonstra que é expectável que a introdução do regime de carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo assim para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública”.

Ora, assim sendo, tendo em conta os valores em confronto, isto é, o direito à circulação automóvel e o direito à vida e à integridade física com proteção constitucional (artigo 24.º n 1 e 25.º da Constituição da República), não se configura que o legislador tenha violado os princípios da proporcionalidade e os sub princípios da adequação e necessidade v.g. ao instituir a perda de 6 pontos de cada vez que é praticado um crime estradal que preveja imposição de pena acessória. É que as subsequentes e cada vez mais severas medidas que foram sendo tomadas pelo legislador desde 1994 mostraram-se ineficazes para fazer face ao grave problema de sinistralidade rodoviária, sendo que a condução em estado de embriaguez reveste uma especial censura.
No que concerne ao período de tempo (2 anos) durante o qual o recorrente se encontra impedido de obter o título de condução ele já foi alvo de análise pelo tribunal constitucional (aliás numa situação em tudo semelhante à que nos ocupa) no acórdão 260/2020 proferido no processo nº 315/2019- 1ª secção de 13/05/2020 in www.dgsi.pt.
Aí se diz: Dúvidas não existem de que a fixação de um período sobre a cassação da carta se apresenta como uma medida idónea para salvaguardar o interesse publico da segurança rodoviária, prevenindo o perigo resultante da condução na via pública por parte de condutores que não apresentam a aptidão necessária para o efeito, ao mesmo tempo que permite ao condutor inabilitado refletir sobre a inadequação da conduta estradal anterior e colher a instrução e ensinamentos necessários ao aperfeiçoamento da sua aptidão como futuro condutor. Não são apresentados argumentos que permitam censurar o legislador por desprezar medidas menos gravosas que pudessem produzir o mesmo efeito com o mesmo grau de eficácia.
(…) O período estabelecido na norma expressando, naturalmente, uma opção dentro da liberdade do legislador, pode ser controlada pelo juiz constitucional caso se afigure excessiva.

Ora, no caso, a duração prevista- dois anos- não se apresenta como excessiva, tendo em conta que o título de condução habilita a conduzir veículos a motor na via pública, atividade que exige competência técnica que pressupõe um juízo prévio de aptidão para o seu exercício, e que o condutor que vê a sua carta cassada revelou a perda dessa aptidão. Nessa situação demanda algum tempo a recuperação das condições que poderão habilitar a pessoa de novo a conduzir, o que não dispensa o reforço da consciência pessoal sobre a natureza e perigos da atividade de condução, bem como a sedimentação da aprendizagem das regras do Código da Estrada. Neste contexto, a imposição de um período de 2 anos entre a efetivação da cassação da carta e a concessão de novo título de condução não se apresenta como uma medida excessiva ou desequilibrada”.
Em face do que acaba de transcrever-se é forçoso afirmar que o Tribunal Constitucional concluiu pela compatibilidade constitucional da imposição da sanção de interdição por 2 anos de obtenção de título de condução determinada ne varietur pela lei.
No entanto sempre se diga que a conclusão a que agora chegou o TC se apresenta mais rigorosa do que outra orientação já produzida (Acórdãos TC 202/2000 e 203/2000 de 04/04 ), a propósito de um outro prazo fixado ne varietur, qual seja, o período fixo de interdição do direito de caçar por 5 anos constante do artigo 31.º, nº 10 da lei 30/86 de 27/08, que foi julgado inconstitucional, precisamente por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Se é certo que estão em causa períodos temporais diferentes, também não é menos verdade que uma atividade lúdica como é a caça, não é comparável com uma atividade absolutamente necessária à vida quotidiana, como é a condução de veículos com motor, tanto mais quanto o período de interdição é, na prática, uma segunda sanção (na sua génese no Código Penal começaram por ser medidas de segurança distintas) que acresce à cassação do título.
Mas uma vez que o entendimento agora expresso pelo TC e acima transcrito respeita a uma situação em tudo semelhante à que nos ocupa, não ocorre motivo para dele divergir.
Finalmente diga-se que sendo compreensível a perturbação sentida pelo recorrente com a decisão recorrida, não poderá esquecer-se que, como já se disse, a agora invocada imprescindibilidade do título de condução para a vida do arguido deveria ter sido a principal condicionante do seu comportamento enquanto condutor, na certeza de que poderia ter evitado chegar à subtração total dos pontos que, como a todos os condutores, lhe foram atribuídos.
Improcede, por tudo o que fica dito, o recurso.

III.
DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
Notifique.
Guimarães, 12 de abril de 2021

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho