Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
69/13.8GFPRT-B.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: USO DE ARMA DE FOGO
ARGUIDO COM PASSADO CRIMINAL
INIDONEIDADE
ARTS. 14º
NºS 1
AL. C)
2 E 3 E 15º
DA LEI Nº 5/2006
DE 23/02
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1- O uso, detenção ou porte de armas de fogo, pelo acréscimo de perigosidade que traz à comunidade, está sujeito a licenciamento excludente da ilicitude de um ato genericamente proibido.

2 - A condenação reiterada por crimes de condução sob o efeito do álcool é suscetível de revelar inidoneidade para a utilização de armas de fogo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Em incidente de reconhecimento de idoneidade nos termos da Lei nº 5/2006, de 23/02, apenso ao processo comum (tribunal singular) com o nº 69/13.8GFPRT a correr termos no Tribunal Judicial da comarca de Braga – Juízo de Competência Genérica de Esposende – Juiz 1, foi proferido despacho, datado de 27/11/2018, do seguinte teor (transcrição):

“J. S. requereu o reconhecimento de idoneidade a que se refere o art. 15º, nº 2 da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, a fim de renovar a licença de uso, porte e detenção de arma de classe C.
*
Foi ouvido o requerente e as testemunhas por si arroladas.

Foi solicitado e junto Certificado de Registo Criminal actualizado do arguido (fls. 27 a 30).

O Ministério Público emitiu parecer, nos termos do disposto artigo 14.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, ex vi do artigo 15.º, n.º 2, da mesma lei, concluindo que o Requerente não dispõe da idoneidade necessária para deter armas e munições, promovendo que a mesma não lhe seja reconhecida (cfr. Parecer de fls. 31 e 32 que aqui se dá por integralmente reproduzido).
*
O requerente referiu ser caçador desde 1988, praticando vários tipos de caça, desde a caça ao coelho até caça grossa, deslocando-se com alguma frequência para diversos locais do país, durante o fim de semana.

Ouvidas as testemunhas P. J., J. R. e D. S., por todos foi referido o seu bom comportamento na caça e a sua boa integração profissional.

Considerando de forma conjugada o Certificado de Registo Criminal do requerente (cfr. fls. 27 a 30), a audição do requerente, a prova testemunhal produzida, e a prova documental junta aos autos, o Tribunal considera provados os seguintes factos, com relevo para a decisão:

1 - Por sentença proferida em 12 de Março de 2012 no processo nº 73/12.3PCVCD, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 8,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de três meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por factos praticados no dia 11 de Março de 2012.
2 - Por sentença proferida em 28 de maio de 2012 no processo nº 192/12.6GTVCT, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 7,00, pela prática de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, por factos praticados no dia 22 de maio de 2012.
3 – Por sentença proferida em 15 de Abril de 2013, no processo nº 69/13.8GFPRT, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 11,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de seis meses e quinze dias, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por factos praticados no dia 5 de Abril de 2013.
4 – Nenhum dos crimes anteriormente referidos foi praticado com recurso a armas de caça ou outras de qualquer natureza.
5 – O requerente é engenheiro civil.
6 – É portador de licença de uso e porte de arma – classe C – com o nº …-01, emitida em 2-8-2012.
7 – É trabalhador.
8 – É caçador há mais de 20 anos.
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Por sentença proferida em 12 de Março de 2012 no processo nº 73/12.3PCVCD, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 8,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de três meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por factos praticados no dia 11 de Março de 2012.

Por sentença proferida em 28 de maio de 2012 no processo nº 192/12.6GTVCT, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 7,00, pela prática de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, por factos praticados no dia 22 de maio de 2012.

O requerente foi condenado nos autos 69/13.8GFPRT, por sentença datada de 6 de Maio de 2013, pacificamente transitada em julgado, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 11,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de seis meses e quinze dias, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por factos ocorridos no dia 5 de Abril de 2013.

Preceitua o art. 14º da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, o seguinte:

“1 - A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.” (sublinhado nosso)

Dispõe o nº 3 do citado preceito legal (aplicável às licenças B1, C, D E e F) que “no decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação”.

A Lei não define o que se deve entender por idoneidade, sendo que, no entanto, estipula que é susceptível de indiciar a falta de idoneidade o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime.
Idoneidade implica aferir da aptidão de alguém para o uso e porte ou detenção de arma, de acordo com a Lei.
O Tribunal, para emitir a declaração de idoneidade, deve, assim, afirmar um juízo de prognose no sentido de que o requerente, presumivelmente, irá fazer um uso relativamente à arma, apenas e tão só, de acordo com a Lei.

O Ac. da Relação do Porto de 17-12-2008, acessível in www.dgsi.pt, fazendo um percurso histórico da legislação, refere que “A Lei 22/97, de 27 de Junho (alterada pela Lei 93-A/97, de 22-08, nos seus artigos 1.º, n.º 2, al. c), n.º 3 e n.º 4 e artigo 2.º, n.º 1 e 4, estabelecia como condição para a concessão e renovação de Licença referente às armas indicadas no n.º 1, al. a) e b), e no artigo 2.º, n.º 1, que o requerente não tivesse sido alvo de medidas de segurança ou condenado judicialmente por qualquer dos crimes previstos no n.º 3, nem condenado por quaisquer infracções relacionadas com estupefacientes ou por condução sob o efeito do álcool.

O referido diploma foi revogado pela Lei n.º 5/2006, sendo que, se por um lado a condenação pela prática de crime passa a funcionar sempre como indício de inidoneidade – alargou-se, portanto, o leque de crimes atendíveis, que não apenas os referidos no artigo 2.º, n.º 3 da Lei anterior - por outro lado deixou de haver automaticidade, como na legislação anterior.

Assim, a intenção do Legislador parece ser a de fazer passar pelo crivo judicial a apreciação da idoneidade ou não do condenado pela prática de um crime, para o uso e porte de arma, a apreciar casuisticamente.”

O Ac. da Relação de Évora de 16-06-2015, acessível in www.dgsi.pt, referindo-se à legislação em vigor, refere, quanto à alteração à Lei 5/2006, de 23.02 “introduzida pela Lei 12/2011, de 27.04: “sem prejuízo do disposto no artigo 30 da Constituição e do número seguinte… é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”.
De acordo com este preceito – redação vigente - são suscetíveis de indiciar a falta de idoneidade do requerente, para além da aplicação de medida de segurança ou a condenação pela prática de crime doloso cometido com uso de violência em pena superior a um ano de prisão, outras razões devidamente fundamentadas.

Ou seja, por um lado, o legislador reduziu os efeitos da condenação anterior, passando a ser mais exigente (onde antes era suscetível de indiciar falta de idoneidade do requerente a aplicação de medida de segurança ou a condenação pela prática de crime, atualmente é suscetível de indiciar a falta de idoneidade a aplicação de medida de segurança ou a condenação pela prática de crime doloso cometido com uso de violência em pena superior a um ano de prisão), por outro lado, ampliou os fatores a ponderar no juízo sobre a idoneidade do requerente, consagrando que, além daqueles, outras razões devidamente fundamentadas são suscetíveis de indiciar a falta de idoneidade.

Equivale isto a dizer que a condenação pela prática de qualquer crime não permite só por si indiciar a falta de idoneidade, porém, nada obsta a que o tribunal, perante as circunstâncias concretas do caso – designadamente, a natureza do crime (ou crimes), o tempo decorrido desde a sua prática e circunstâncias em que ocorreu - possa considerar essa condenação (ou essas condenações) como razão/fundamento bastante para concluir que o requerente não goza da idoneidade exigível para que lhe seja concedida a requerida licença”.

Assim, antes de mais, importa concretizar o conceito de idoneidade. Desde logo, de acordo com o artigo 14.º, n.º 2, da mencionada Lei, indicia não ter idoneidade aquele a quem tenha sido aplicada medida de segurança ou aquele que tenha sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.

Conforme nos diz Patrícia Naré Agostinho, in “O artigo 14.º do novo regime das armas e munições”, Revista do Ministério Público, n.º 116, Ano 29, Outubro-Dezembro de 2008, páginas 184 e 185, “O interessado será idóneo quando apresente um comportamento social denotador de ser merecedor da especial confiança que o Estado vai depositar em si. Na negativa: quando o interessado, através do crime por si praticado e pelo qual foi condenado, demonstrou profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, deverá ser considerado inidóneo para ser detentor de uma arma. Se a violação de tais regras demonstrar que o agente não está preparado para assumir a responsabilidade de deter uma arma, não lhe deve ser reconhecida (ainda que temporariamente) tal faculdade.

O legislador parte, assim, da presunção que a prática de qualquer crime é susceptível de implicar uma diminuição da idoneidade do interessado (…).”

O legislador proíbe, ainda, a detenção, uso, porte e transporte de arma sob a influência de álcool ou produtos estupefacientes (art.º 45 da Lei 5/2006).

As três anteriores condenações, pelos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (por duas ocasiões, com um ano de distância), e o crime de violação de proibições, pela sua reiteração, e segundo critérios de razoabilidade, e pese embora a correcta integração social e profissional do requerente, não permitem formular um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do requerente - uso adequado, de acordo com as normas vigentes, da arma cuja licença de porte de arma pretende.

O exercício da condução automóvel, como atividade perigosa que é, exige o acatamento e observância de um conjunto de regras, algumas das quais, para além de meras finalidades de ordenamento do trânsito automóvel e da circulação rodoviária, visam garantir a segurança da vida, da integridade física e do património do condutor e de terceiros, utentes das vias de circulação rodoviária. Entre estas avultam as normas relativas ao exercício da condução sob o efeito do álcool.

No crime de violação de proibições, o bem jurídico protegido no tipo é a não frustração de sanções impostas por sentença criminal.

O arguido incorreu, pois, na prática de crimes, sendo as condenações anteriores, pela quantidade e tipo são reveladores das características de personalidade do requerente, desconformes ao Direito.

Diremos, ainda, que não havendo distinção legal entre crimes praticados para se aferir da idoneidade do requerente, sempre diremos que as condenações por prática de crimes de condução de veículo sob estado de embriaguez são bastante relevantes para o caso concreto, atento o disposto no art. 45º da Lei 5/2006, que, entre o mais, nos diz que é proibida a detenção, uso e porte de arma, sob a influência de álcool (TAS igual ou superior a 0,50 g/l).

Assim, e tudo sopesado, pese embora a sua correcta integração, tais condenações fazem subsistir dúvidas sérias sobre a sua idoneidade para renovação de licença de uso e porte de arma de caça, que justificam o indeferimento do pedido.
Resulta, pois, do exposto, não ser possível formular um juízo positivo no sentido da idoneidade do arguido para detenção, uso ou porte de arma.
Ponderando todos os factores supra descritos, concordo com o douto Parecer do Ministério Público que antecede, no sentido de não ser reconhecida a idoneidade do requerente para o uso e porte ou detenção de armas.
Pelo exposto, decido homologar o Parecer do Ministério Público de fls. 18 e 19 e, consequentemente, não reconheço a idoneidade de J. S. para o uso e porte de armas, pelo que indefiro o requerido a fls. 2 a 6.
Sem custas.
Notifique.”
*
2 – Não se conformando com a decisão, o requerente interpôs recurso concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

1. A sentença de que se recorte não apresenta fundamento suficiente para recusa da atribuição de idoneidade para efeitos de atribuição de licença de uso e porte de arma classe C ao requerente/recorrente.
2. O não reconhecimento da idoneidade ao Requerente aparece no segmento decisório como resultado directo da prática de crimes, e aparece na decisão como uma decorrência automática da condenação anterior, há cerca de 6 anos e 5 anos, situação que se configura manifestamente inconstitucional.
3. A remissão para o artigo 30º da CRP a que alude o artigo 14º, nº 2 da lei nº 5/2006 está relacionada com os efeitos da condenação, e traduz-se na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente de forma automática, mecânica, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos. Assim, pela redacção actual da lei nº 5/2006, a condenação pela prática de crime(s) poderá ser susceptível apenas e tão só, de indiciar a falta de idoneidade, pelo que a sua aplicação não poderá ser automática.
4. Os crimes praticados pelo arguido foram-no há mais de seis anos (dois em 2012) e cinco anos (um em 2013).
5. Não foram crimes praticados com recurso à violência, nem o arguido recorreu à utilização de armas de qualquer natureza.
6. O arguido/recorrente não tem no seu CRC, que se encontra junto aos autos, qualquer notícia da prática de qualquer outro crime desde então; as penas aplicadas ao recorrente foram declaradas extintas, por cumprimento, a última das quais em 12.05.2014, ou seja, há quase cinco anos.
7. O recorrente é caçador há mais de vinte anos; a renovação da arma da classe C tem por pressuposto ser o recorrente, pelo menos desde data anterior à prática dos crimes pelos quais foi condenado, detentor de licença de uso e porte de arma da mesma classe.
8. Durante os últimos seis anos, o recorrente sempre caçou e sempre utilizou armas de caça e nunca foi inidóneo para tal.
9. O recorrente está integrado social e profissionalmente.
10. Tudo argumentos que deverão ser considerados e ponderados no juízo de prognose favorável do tribunal, conduzindo, a final, ao reconhecimento de idoneidade do recorrente para a renovação da concessão da licença de uso, porte e detenção de arma da classe C.
11. A decisão recorrïda violou assim, o disposto nos artigos 14º, nº 1 al.c), 2 e 3 e 15º da lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na sua redacção actual.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e por via disso, reconhecida a idoneidade do recorrente para a renovação da licença de uso, porte e detenção de arma da classe C.
Assim se fazendo Justiça!!
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3 – A Exma. Procuradora-Adjunta respondeu ao recurso, pugnando pela total improcedência do mesmo e pela consequente manutenção integral da decisão recorrida.
4 – Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de sufragar a posição já expressa na primeira instância na resposta ao recurso, concluindo que deve ser mantida a decisão recorrida.
5 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
6 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, do Código de Processo Penal.
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II - Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação (art. 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas (artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) – cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48.
2 - A única questão invocada pelo recorrente consiste na – errada, em sua opinião - interpretação e aplicação do disposto nos arts. 14º, nºs 1, al. c), 2 e 3 e 15º, da Lei nº 5/2006, de 23/02.
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III - Apreciação do recurso

O artigo 14º do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actual, estabelece os seguintes requisitos para obtenção de licença de uso e porte de arma da classe B1:

“1 – A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:

a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 – Sem prejuízo do disposto no artigo 30.° da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
3 – No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.
4 – A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso.
5 - O incidente corre por apenso ao processo principal, sendo instruído com requerimento fundamentado do requerente, que é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que decide, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público.
6 - Os pedidos de concessão de licenças de uso e porte de arma da classe B1 são formulados através de requerimento do qual conste o nome completo do requerente, número do bilhete de identidade, data e local de emissão, data de nascimento, profissão, estado civil, naturalidade, nacionalidade e domicílio, bem como a justificação da pretensão.
7 – O requerimento referido no número anterior deve ser acompanhado do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo da classe B1.”.

Nos casos das licenças das classes C e D, os requisitos são os mesmos (com as devidas adaptações) e, em conformidade com o estatuído no n° 2 do artigo 15.° da mesma Lei, a apreciação da idoneidade do requerente para obtenção da licença é feita nos termos do disposto nos n°s 2 a 4 do artigo 14°.

Para apreciação da questão suscitada, importa assinalar desde já que a concessão de licença de detenção e uso de armas não é um direito universal de todos os cidadãos. Ao invés e como regra, o uso e porte de armas é proibido, mas pode ser autorizado aos cidadãos que reúnam determinados requisitos – os explanados no artigo 14º já transcrito.

Na verdade, como decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n° 243/2007 (in DR de 22/05/2007) «estamos em presença de uma actividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa (…) que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa, independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis.

Com efeito, a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso das armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto genericamente proibido.

Na verdade, a necessidade do licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício destas actividades, como é indiscutivelmente o uso e porte de armas. Nada há portanto, nada de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares».

O requerente, em síntese, alega que a sentença recorrida não contém fundamento suficiente para recusar a atribuição de idoneidade e que esta resulta como decorrência automática da prática de crimes, há cerca de 5 ou 6 anos, sem uso de qualquer violência e sem recurso a armas, o que viola o disposto no art. 30º da CRP (o princípio de que nenhuma condenação envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, políticos ou profissionais).

Em suma, a única questão colocada à apreciação deste Tribunal é saber se, face à factualidade apurada pelo Tribunal a quo, o recorrente reúne condições de idoneidade para a renovação da licença de uso e porte de arma (da classe C).

Recordemos a factualidade apurada:

“1 - Por sentença proferida em 12 de Março de 2012 no processo nº 73/12.3PCVCD, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 8,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de três meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por factos praticados no dia 11 de Março de 2012.
2 - Por sentença proferida em 28 de maio de 2012 no processo nº 192/12.6GTVCT, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 7,00, pela prática de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, por factos praticados no dia 22 de maio de 2012.
3 – Por sentença proferida em 15 de Abril de 2013, no processo nº 69/13.8GFPRT, transitada em julgado, o requerente foi condenado na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 11,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de seis meses e quinze dias, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por factos praticados no dia 5 de Abril de 2013.
4 – Nenhum dos crimes anteriormente referidos foi praticado com recurso a armas de caça ou outras de qualquer natureza.
5 – O requerente é engenheiro civil.
6 – É portador de licença de uso e porte de arma – classe C – com o nº …-01, emitida em 2-8-2012.
7 – É trabalhador.
8 – É caçador há mais de 20 anos.”

Sendo esta a factualidade apurada, impõe-se dizer que o tribunal recorrido não fez uma “aplicação automática” das condenações anteriores para recusar a concessão de idoneidade. Mas também não deixou de apreciar tais condenações – para aferir da idoneidade do requerente - como era seu dever.

Na verdade, o Tribunal a quo – citando um Acórdão do TRP de 17/12/2008 – apreciou a evolução histórica da legislação atinente, consignando que com a publicação da Lei nº 5/2006 foi alargado o leque de crimes atendíveis (face à Lei nº 22/97) que poderiam indiciar a inidoneidade, mas deixando de “haver automaticidade”. Também ponderou que - com a alteração introduzida na Lei nº 5/2006 pela Lei nº 12/2011 – “o legislador reduziu os efeitos da condenação anterior, passando a ser mais exigente (…)”, mas, por outro lado, “ampliou os fatores a ponderar no juízo sobre a idoneidade do requerente”. Acrescentando que “a condenação pela prática de qualquer crime não permite só por si indiciar a falta de idoneidade, porém, nada obsta a que o tribunal, perante as circunstâncias concretas do caso – designadamente, a natureza do crime (ou crimes), o tempo decorrido desde a sua prática e circunstâncias em que ocorreu – possa considerar essa condenação (ou essas condenações) como razão/fundamento bastante para concluir que o requerente não goza da idoneidade exigível para que lhe seja concedida a requerida licença”.

Salientando a proibição da detenção, uso, porte e transporte de arma, quando sob a influência de álcool ou produtos estupefacientes (art. 45º da Lei nº 5/2006), ou seja quando a taxa de álcool no sangue é igual ou superior a 0,50 gramas por litro, a sentença em causa refere que “As três anteriores condenações, pelos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (por duas ocasiões, com um ano de distância), e o crime de violação de proibições, pela sua reiteração, e segundo critérios de razoabilidade, e pese embora a correcta integração social e profissional do requerente, não permitem formular um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do requerente – uso adequado, de acordo com as normas vigentes, da arma cuja licença de porte de arma pretende.”, acrescentando que “as condenações por prática de crimes de condução de veículo sob estado de embriaguez são bastante relevantes para o caso concreto, (…), atento o disposto no art. 45º da Lei 5/2006, (…)”.

Isto, já depois de ter procedido à averiguação do que deva entender-se por “idoneidade”, conceito que não se mostra legalmente definido, e de, para este efeito, ter analisado os indícios mencionados no nº 2 do art. 14º da Lei nº 5/2006, concluindo ser indispensável “aferir da aptidão de alguém para o uso e porte ou detenção de arma”, bem como necessário “afirmar um juízo de prognose no sentido de que o requerente, presumivelmente, irá fazer um uso relativamente à arma, apenas e tão só, de acordo com a Lei”.

Ora, tendo produzido estas considerações, não se consegue entender a alegação de que o tribunal recorrido procedeu a uma aplicação automática dos antecedentes criminais do arguido/requerente.
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Por “idoneidade” deve entender-se: a aptidão, capacidade, competência, qualidade de quem tem condições para desempenhar certos cargos, funções ou actividades.

Não tendo sido clara e legalmente definido tal conceito, ele tem de ser apurado de modo casuístico.

Ora, o “Novo Regime Jurídico das Armas e Munições”, instituído com a publicação da Lei nº 5/2006, traduziu uma inequívoca intenção do legislador no sentido do reforço da segurança, do controlo e da fiscalização do uso e porte de arma, bem como da correspondente responsabilização da comunidade.

Daí que tenha previsto algumas situações susceptíveis de indiciar a falta da requerida idoneidade – cfr. art. 14º, nº 2, do RJAM – sem prejuízo de, para o mesmo efeito e para além dessas, poderem ser tidas em conta outras razões devidamente fundamentadas, bem como da consideração de que nenhuma condenação envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, políticos ou profissionais.

Já se salientou que o uso, detenção ou porte de armas de fogo, pela própria natureza destas, constitui um acréscimo de perigosidade para a comunidade em geral, justificando a existência de condicionamentos e restrições legais e a exigência de “apertados” requisitos para o respetivo licenciamento. Em paralelo, aliás, com o que ocorre com a condução de veículos motorizados que, também pela sua própria natureza, introduz uma perigosidade acrescida para a comunidade.

Ora, o requerente foi condenado – por duas vezes e com intervalo de cerca de um ano entre elas - por crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (apresentando necessariamente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 gramas/litro), bem como (cerca de dois meses após a primeira daquelas condenações) por um crime de violação de proibições (violação de imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal - que tudo parece indicar estar relacionada com a interdição de conduzir).
É certo que tais factos e condenações ocorreram em 2012 e 2013 e que o requerente está integrado social e profissionalmente.
Mas tal inserção não é suficiente para afastar o peso negativo revelado pela natureza, gravidade e repetição dos referidos ilícitos, pondo em causa a confiança comunitária no requerente e a responsabilidade deste na utilização de arma de fogo.
No fundo, a questão a colocar é se pode concluir-se que quem se dispõe a conduzir um veículo automóvel com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l e que não acata proibições determinadas em processo criminal, adotará um comportamento diferente quando se dedicar à actividade cinegética com uso de arma de fogo (recorde-se a proibição do uso, porte, detenção ou transporte de arma de fogo, segundo o RJAM, quando a taxa de álcool no sangue seja igual ou superior a 0,5 g/l).
Não podemos assegurar tal diferente conduta!
E não sendo possível efectuar um juízo de prognose positivo acerca da idoneidade do requerente para a utilização de armas de fogo, tem de recusar-se a pretensão do requerente, mantendo a decisão recorrida.
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IV - DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo requerente e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
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Custas pelo requerente, fixando a taxa de justiça em 3 (três) UCs..
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 10 de Julho de 2019

(Mário Silva)
(Maria Teresa Coimbra)