Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1332/22.2T8GMR.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: FURTO
CONTRATO DE SEGURO
FRANQUIA
INDEMNIZAÇÃO
JUROS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Apenas é possível remeter para liquidação o montante de danos que tenham sido efectivamente provados mas cujo valor concreto não foi possível determinar.
II - A franquia corresponde à quantia a suportar pelo tomador do seguro, em caso de sinistro, fixa ou variável (percentagem) previamente estabelecida na apólice de seguro, a ser deduzida do montante indemnizatório apurado e a pagar pela seguradora.
III - O pagamento de danos decorrentes da prática de um acto ilícito cuja responsabilidade foi transferida para outrem, por via do contrato de seguro, sem que se tenha acordado o pagamento de juros comerciais, está sujeito, no que concerne ao atraso no respectivo cumprimento, às regras previstas nos artigos 804.º e seguintes do Código Civil, bem como ao pagamento de juros de mora supletivamente previstos no art.º 559.º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório

A. F..., SA, propôs acção declarativa, sob a forma comum, contra C... Seguros - Companhia de Seguros, SA, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 121.957,88, acrescida de juros, à taxa legal prevista para as dívidas comerciais, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo Riscos Industriais, titulado pela apólice n.º ...58, pelo qual transferiu para ela o risco decorrente do furto ou roubo de produtos ou matérias-primas existentes nas suas instalações.
Invocou que, entre as 15 horas do dia 18 e as 21.05 horas do dia 19 de Abril de 2020, indivíduos cuja identidade não foi apurada, introduziram-se nas suas instalações, mediante arrombamento, tendo dali retirado peças de vestuário cujo valor ascende a € 310.811,20.
Feita a participação à Ré, esta comunicou-lhe, no dia 30 de Março de 2021, ter apurado um prejuízo de € 190 046,00, o qual, por aplicação da regra contida no art. 19.º das Condições Gerais da Apólice, teria de ser reduzido a € 128 346,00, descontados os 10% da franquia contratada, perfazendo assim € 115. 511,40.
Tendo aceite os valores indicados pela Ré, insistiu com esta pelo pagamento da indemnização, o que foi recusado, peticionando, assim, que, ao valor apurado, acresçam juros de mora, contados desde o 30.º dia subsequente à participação do sinistro à Ré.
*
Citada, a Ré contestou apontando, também em síntese, as suas dúvidas quanto à verificação do sinistro nos termos que lhe foram participados pela Autora, daí a razão de ter recusado o pagamento da indemnização.
Acrescentou que, em qualquer caso, ao valor da indemnização haverá sempre que subtrair o valor da mercadoria que, entretanto, foi recuperada.
*
Foi proferido despacho saneador tabular, seguido da delimitação dos termos do litígio e do enunciado dos temas da prova, após o que foi realizada a audiência de discussão e julgamento, a que se seguiu a sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a Ré, C... Seguros - Companhia de Seguros, SA, a pagar à Autora, A. F..., SA, a quantia de € 115 511,40 (cento e quinze mil quinhentos e onze euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal prevista no art. 102, 3.º §, do Código Comercial, vencidos desde 29 de Abril de 2021 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
*
II. O Recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio a Ré apresentar recurso, nele formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A decisão de primeira instância, quanto à matéria de facto, padece de incorreções de julgamento e insuficiência, atentos os meios probatórios constantes do processo – documentos e depoimentos das testemunhas, que impunham decisão diversa da recorrida, que abaixo melhor se especificará.
2.ª- A sentença enferma de erro de julgamento e interpreta defeituosamente a factualidade apurada, aplicando erradamente a Lei e as orientações jurisprudenciais, como infra se verá.
3.ª - Não se conforma a ora recorrente com tal decisão, pois entende que da prova efetivamente produzida em audiência não é coincidente com a que foi dada como definitivamente assente.
4.ª- DOS PONTOS DA MATÉRIA DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADOS
No que respeita aos factos provados:
9. Entre as 15 horas do dia 18 e as 21.50 horas do dia 19 de abril de 2020, indivíduos cuja identidade não foi apurada entraram nas referidas instalações da Autora.
12. Para esse efeito, abriram o portão que dá acesso ao exterior.
13. Após, entraram no armazém, por forma que não foi apurada, e dele retiram, sem o conhecimento e contra a vontade da Autora, 421 peças de vestuário da marca ..., no valor de € 2176,05, 230 peca̧s da marca ..., no valor de € 2 300,00, e 27 488 pelas da marca ..., no valor de € 310 811,20, cf. anexo I, que faz parte integrante desta sentenca̧. (...)
19 - Na noite do dia 19 de abril de 2020, depois das 21.50 horas, o administrador da Autora AA tomou conhecimento do sucedido e participou o furto à GNR.
5.º - Por entendermos ser essencial para apreciação do presente recurso, passemos a analisar o depoimento prestado pela testemunha BB (que integralmente se transcreveu nestas alegações), docente universitário e perito técnico, e, consequentemente, do Relatório de peritagem por si elaborado e junto aos autos.
6.ª - Como o próprio Tribunal recorrido salienta, este ficou convencido da valia técnica do seu depoimento, no qual, de forma clara, coerente e suportada por elementos técnicos e lógicos, afirmou, de forma clara e consistente, que as dobras existentes e confirmadas dos ferrolhos, só podiam ter sido feitas com o portão aberto.
Conforme explicou a testemunha, louvando-se dos seus conhecimentos científicos e experiência, o estado em que os ferrolhos que estão nas fotografias constantes dos autos, implicaria, necessariamente, danos na folha do portão, na fechadura e respetiva fêmea e nas secções dos ferrolhos, os quais não foram reportados por nenhuma das pessoas que foram ao local logo na noite de 19 de maio e na manhã do dia 20.
Implicariam ainda vestígios no pavimento provocados pelo arrastamento do ferrolho inferior no sentido do interior para o exterior, que não existem.
O único vestígio de arrastamento do ferrolho inferior é o visível na 2.ª fotografia, que é no sentido oposto, conforme melhor se pode ver numa das fotografias 12 do relatório feito pela testemunha BB:
E que concluiu o Tribunal recorrido: Perante esta dúvida concreta, não foi possível formar uma convicção positiva quanto ao facto do ponto 21.
Vejamos o que consta como não provado:
24. os indivíduos referidos em 9. introduziram-se no interior das instalações da Autora após arrombarem o portão de entrada e o portão exterior de acesso ao armazém onde era guardado o produto acabado.
7.ª - No entanto, e apesar do assim considerado, o Tribunal recorrido considerou que apesar deste facto não provado, não conseguiu abalar a convicção da ocorrência do ato de subtração, de que existem, como referimos, elementos para a formação de uma convicção positiva: os depoimentos das testemunhas CC e DD, conjugados com os autos de apreensão de peças de vestuário.
8.º - Assim não entendemos:
Toda a narrativa da Autora quanto à ocorrência do furto assente na produção de toda a prova testemunhal oferecida, assenta na concreta forma de introdução no estabelecimento – quer através da introdução na cancela de acesso, quer na introdução no armazém, afirmando, sem qualquer dúvida, ter o portão e a cancela sido forçados.
9.ª - Ora, isso não resultou provado, o que falece toda a construção da Autora... concluindo-se que o sinistro não ocorreu conforme a versão da própria Autora.
10.ª - Mais, resulta do depoimento da testemunha BB (cujo depoimento igualmente se transcreveu) que os danos verificados foram feitos no interior de estabelecimento e com a porta aberta o que só permite tirar uma conclusão clara: esse ato foi realizado por alguém com o intuito de fazer crer uma realidade própria e adequada.
11.ª - Obviamente, até porque o ónus da prova é da Autora - Ora, pretendendo, no caso, a autora arrogar-se titular do direito indemnizatório que lhe assiste por via do contrato de seguro celebrado com a ré, em consequência de se ter verificado o “sinistro” participado, é indiscutível que sobre ela impende o ónus da prova da verificação do “sinistro”, por se tratar de elemento constitutivo do direito indemnizatório que se arroga titular perante a ré, isto é, desde logo, que o sinistro descrito na petição inicial, que o furto se verificou como alega e pretende provar e que se verificou e na sequência do mesmo, em resultado do mesmo, que os alegados danos se verificaram.
12.º É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação.
13.ª - Trata-se, pois, de atribuir àquela queixa de furto um valor de prova bastante que cede perante a simples dúvida que o julgador, confrontado com outros elementos de prova, tenha sobre a realidade do facto por ela em princípio provado (art. 346 CC).
14.ª - Parece-nos que a prova produzida pela autora não é, só por si suficiente para permitir que se dê como provado o furto, dada a prova produzida pela Ré que afastou o modus faciendi do sinistro oferecido pelas testemunhas da Autora;
15.ª - Ora, não se provando que os indivíduos se introduziram no interior das instalações da Autora após arrombarem o portão de entrada e o portão exterior de acesso ao armazém onde era guardado o produto acabado, o que temos quando à forma da entrada de tais alegados indivíduos? NADA.
16.ª - Não existiu nem foi provado qualquer vestígio de entrada de terceiros no estabelecimento.
Diga-se que, conforme as testemunhas arroladas pela Autora EE e DD referiram, o estabelecimento, ao fim de semana, fica devidamente fechado;
17.ª - Diga-se que também resultam muitas dúvidas quanto à forma como alegadamente a mercadoria foi subtraída: eram precisas duas ou três carrinhas altas, o procedimento implicaria uma logística própria e era demorada e causaria, igualmente, muito barulho e reboliço.
18.ª - Registe-se que são peças de vestuário de criança (com alguma volumetria) e deve atentar-se também ao elevado valor do suposto furto.
19.ª - Ora, como referem as referidas testemunhas, existem casas de habitação próximas do estabelecimento e ninguém detetou qualquer movimento anormal.
20.ª - Da mesma forma, e como também resulta do depoimento das referidas testemunhas, não existia nem alarme nem camaras de vigilância o que facilitaria o cumprimento do ónus da prova por parte da Autora.
21.º Face ao assim dito, não se pode, com propriedade dizer que ficou provada a subtração de
bens seguros contra a vontade e sem o conhecimento da Autora – rectius, das pessoas físicas que formam e exteriorizam a sua vontade; muito menos que essa subtração tenha ocorrido no período noturno, quando as instalações da Autora estavam fechadas; Se estavam fechadas, como é que os alegados terceiros entraram no estabelecimento? Muito menos que tem de concluir-se (nada aponta nesse sentido nem a prova da Autora vai nesse sentido) que os seus agentes se introduziram ali furtivamente.
22.ª - É que não basta a introdução furtiva de terceiros, mas também de várias carrinhas, o que implica uma logística própria e nada disse se pode induzir.
23.ª - E, muito menos, se pode retirar essa conclusão pelo material apreendido, pois é consabido que esse material, é muitas vezes, adquirido aos fabricantes (diga-se que, na altura do sinistro, estávamos em plena pandemia).
24.ª - Tudo razões válidas para se considerar que a Autora não logrou provar o Direito que lhe competia.
25.ª - DA RESPOSTA À MATÉRIA DE FACTO DE ACORDO COM O QUE VIMOS DE SUFRAGAR.
Ora, cremos que a conjugação destes factos e da análise crítica da prova, impõe a revogação da decisão de facto atinente, devendo ser dada como NÃO PROVADA a seguinte matéria de facto:
9. Entre as 15 horas do dia 18 e as 21.50 horas do dia 19 de abril de 2020, indivíduos cuja identidade não foi apurada entraram nas referidas instalações da Autora.
12. Para esse efeito, abriram o portão que dá acesso ao exterior.
13. Após, entraram no armazém, por forma que não foi apurada, e dele retiram, sem o conhecimento e contra a vontade da Autora, 421 peças de vestuário da marca ..., no valor de € 2 176,05, 230 peca̧s da marca ..., no valor de € 2 300,00, e 27 488 sentença. (...)
15. Na noite do dia 19 de abril de 2020, depois das 21.50 horas, o administrador da Autora AA tomou conhecimento do sucedido e participou o furto à GNR.
26.ª - Ora, pretendendo, no caso, a autora arrogar-se titular do direito indemnizatório que lhe assiste por via do contrato de seguro celebrado com a ré, em consequência de se ter verificado o “sinistro” participado, é indiscutível que sobre ela impende o ónus da prova da verificação do “sinistro”, por se tratar de elemento constitutivo do direito indemnizatório que se arroga titular perante a ré/recorrente.
27.ª - Ora, atenta a alteração da matéria de facto, afigura-se-nos não estarem verificados os pressupostos da responsabilidade contratual da ré, porquanto não resultou provada a ocorrência do sinistro descrito pela autora na peticã̧o inicial, pressuposto para o acionamento e enquadramento do contrato de seguro em causa.
28.ª - Assim não tendo a autora logrado provar os factos constitutivos do seu direito, que o sinistro ocorreu, impõe-se concluir pela improcedência da acã̧o.
Sem conceder e subsidiariamente,
29.ª - Como bem se refere na sentença recorrida e quanto ao valor do prejuízo apurado: € 190.046,00, o qual, por aplicação da regra contida no art. 19.º das Condições Gerais da Apólice, deve ser reduzido a € 128 346,00.
A este valor há ainda que descontar os 10% da franquia contratada, perfazendo assim € 115.511,40.
30.º No entanto, em data posterior a este apuramento, foram recuperados e restituídas à aqui Autora as seguintes peças:
(iv) No dia 9 de junho de 2020, na Feira ...: 711 babygrow ...; 217 macacões babygrow ...; 137 calcõ̧es babygrow ...; 247 gorros babygrow ...; 144 camisolas babygrow ...; 39 pares de meias babygrow ...; 239 casacos babygrow ...; e 261 vestidos babygrow ... No dia 9 de junho de 2020, a na Feira ..., cf. “auto de apreensão n.º 1” apresentado com a petica̧o inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
(v) (ii) No dia 6 de julho de 2020, na feira de ...: 1299 peca̧s de vestuário babygrow ...; 11 peca̧s de vestuário ..., cf. “auto de apreensão n.º 2.º apresentado com a petica̧o inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
(vi) No dia 30 de setembro de 2020, na feira de ...: 902 babygrow ...; 179 calcõ̧es babygrow ...; 261 acessórios babygrow ...; 358 camisolas/casacos babygrow ...; 90 vestidos babygrow ...; 580 blusas babygrow ..., cf. “auto de apreensão” apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
31.ª - Assim, deveria antes, o Tribunal recorrido remeter para liquidação posterior o valor dos bens a indemnizar, após a quantificação dos bens recuprados.
32.ª - Ao não os interpretar da forma acima assinalada, a decisão recorrida violou, entre outras disposições legais, 49.º, 128.º, 129.º, 130.º, 131.º e 134.º do DL 72/2008 de 16 de Abril, os arts. 342.º e 350.º e 473.º do Código Civil.
33.ª - Certo que a mora no cumprimento da prestação constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor pelo não cumprimento atempado, correspondendo a indemnização nas obrigações pecuniárias aos juros a contar do dia da constituição em mora (art°s 804° e 806° do Cód. Civil), no caso da citação da Ré;
34.º Os juros devidos são os legais, sendo que a taxa de juro aplicável, de 4%, a partir da citação da Ré, e vincendos, até integral pagamento - art. 559º do Cód. Civil e Portaria nº 291/2003, de 08/04.
35.ª - Ao assim não decidir, a sentença recorrida violou o disposto no art.º 559.º do CC e na Portaria nº 291/2003, de 08/04.
Termos em que, deve a decisão recorrida ser revogada na medida acima assinalada, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!!
*
A A. apresentou as suas contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:

1.º - A matéria de facto mostra-se corretamente julgada, tendo o MO Juiz a quo apreciado livremente as provas e formado a sua convicção na ponderação critica e confronto entre os meios de prova produzidos e as regras de experiência e o senso comum, tendo em conta as regras próprias da repartição do ónus da prova, pelo que não há qualquer fundamente para a sua pretendida alteração.
28 - Quer os funcionários da autora, quer os agentes da GNR, quer as fotografias, relatórios e demais elementos documentais constantes do processo, em especial os autos de apreensão de peças de vestuário, confirmam a ocorrência do ato de subtração que configura o sinistro, ou seja, confirmam que pessoa (s), cuja identidade concreta não se conseguiu apurar, apesar das variadas diligências efetuadas no inquérito crime instaurado contra incertos, se introduziu nas instalações da autora, no período compreendido entre as 15h do dia 18 de abril e as 21 h50h do dia 19 de abril de 2020, um sábado e domingo, respetivamente, e, portanto, ao fim de semana, altura em que a empresa está encerrada, tendo, para tal, aberto o portão que dá acesso ao exterior, após o que entraram no armazém, por forma que não foi apurada, e dele retiraram, sem o conhecimento e contra a vontade da Autora as peças de vestuário discriminadas em II. Dos factos provados ­cf Anexo 1, de que se apropriaram e fizeram suas.
3a - A recorrente, de forma deliberada, confunde duas realidades diferentes, a saber, a ocorrência do ato de subtração, furto, sobre a qual, como já se referiu, nenhumas duvidas se colocam, com a prova, ou falta da mesma, quanto ao modus faciendi como tal ocorrência/evento/sinistro ocorreu, que não é, nem tem de ser, do conhecimento da autora
48 - Provada que está, sem margem para qualquer dúvida, a subtração de bens seguros das instalações da autora, sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, tendo tal subtração ocorrido num fim de semana, no período noturno, e quando tais instalações se encontravam fechadas, tem de concluir-se que os seus agentes se introduziram ali furtivamente, estando assim preenchida a previsão da al.b) do n" 1 da clausula 44 das condições gerais da apólice que titula o contrato de seguro celebrado entre as partes, sendo assim irrelevante a não prova do arrombamento por parte da Autora.
58 - Competia à recorrente alegar a verificação de factos subsumíveis a qualquer uma das alíneas do n° 3 da referida clausula 44, na qual se prevê as causas de exclusão da sua responsabilidade, o que nem sequer fez, na contestação que apresentou, não tendo também feito prova da existência de factos que preencham tal exclusão, pelo que se constituiu na obrigação de pagamento da indemnização, sua principal obrigação.
6° - Quanto à pretensão, subsidiária, de remeter para liquidação posterior o valor dos bens a indemnizar, a mesma está destinada ao fracasso, já que, como ela muito bem sabe, está provado documentalmente e foi, até, confirmado pela sua testemunha FF, o apuramento dos prejuízos foi transmitido, pela ..., empresa por ela contratada especificamente para o efeito, à Autora, por ernail de 30/0312021 e confirmado, por email da própria Ré, de 02/08/2021, em ambos se afiunando que foram apurados prejuízos no valor de ] 90.046.44€, valor este que foi aceite pela Autora e no qual, como todos sabem, já tinha sido tomado em consideração o valor das peças recuperadas e entregues á autora, hájá quase um ano, mais concretamente, em 09/06/2020, 06/07/2020 e 30/09/2020, como consta na conclusão 30°, sendo portanto falso o que, de forma deliberada ou, no mínimo negligente, afirma a recorrente nesta mesma conclusão, que" ... em data posterior a este apuramento, foram recuperadas e restituídas à Autora as seguintes peças ... "
70 - Quanto à pretensão, também subsidiária, de defender que a taxa de juros de mora aplicável é de 4% ao ano, por aplicação do art. 559 do CC e portaria nO ...03 é absolutamente destituída de sentido e igualmente votada ao fracasso, estando a recorrente perfeitamente consciente de que a autora é uma sociedade comercial anónima e, portanto, a taxa de juros de mora é a prevista no art. 102, § 3 do Código Comercial, atenta a natureza da Autora, como muito bem se decidiu na sentença em recurso.
Termos em que deve a apelação ser julgada improcedente, mantendo-se, sem alteração, a sentença de 1 a instância, assim se fazendo a desejada JUSTIÇA.
*
O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
IV- O Direito

Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto dos recursos.
Assim, face às conclusões das alegações de recurso, cumpre decidir se é, ou não, de revogar a decisão
*
Fundamentação de facto

Factos provados

1.A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à fabricação, comércio, confeção, representações, importação e exportação, tinturaria e acabamentos de malhas e fios, confeções, vestuário, têxteis, fios tecidos, máquinas e acessórios para a indústria têxtil.
2.Tem a sua sede, armazém e instalações na Rua ..., freguesia ... (... e ...), concelho ..., cf. certidão registral apresentada como documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
3.No mês de dezembro de 2019, Autora e Ré celebraram um contrato de seguro do ramo Riscos industriais, titulado pela apólice n.º ...58, que teve o seu início no dia 1 de janeiro de 2020, pelo qual a segunda assumiu, entre outros, o risco decorrente de furto ou roubo do recheio, em especial de produtos e matérias-primas, existente nas instalações da Autora referidas no ponto anterior.
4.Nos termos da Cláusula 19.ª Condições Gerais da Referida Apólice, com a epígrafe “Insuficiência ou excesso de capital”: “1 - Salvo convenção em contrário, se o capital seguro pelo presente contrato for, na data do sinistro, inferior ao determinado nos termos dos n.ºs 2 a 4 da cláusula anterior, o Segurador só responde pelo dano na respetiva proporção, respondendo o Tomador do Seguro ou o Segurado pela restante parte dos prejuízos como se fosse Segurador. 2 - Aquando da prorrogação do contrato, o Segurador informa o Tomador do Seguro do previsto no número anterior e no n.º 4 da cláusula anterior, bem como do valor seguro do imóvel, a considerar para efeito de indemnização em caso de perda total, e dos critérios da sua atualização, sob pena de não aplicação da redução proporcional prevista no número anterior, na medida do incumprimento. 3 - Salvo convenção em contrário, se o capital seguro pelo presente contrato for, na data do sinistro, superior ao determinado nos termos dos n.ºs 2 a 4 da cláusula anterior, a indemnização a pagar pelo Segurador não ultrapassa o custo de reconstrução ou o valor matricial previstos nos mesmos números. 4 -No caso previsto no número anterior, o Tomador do Seguro ou o Segurado podem sempre pedir a redução do contrato, a qual, havendo boa fé de ambos, determina a devolução dos sobreprémios que tenham sido pagos nos dois anos anteriores ao pedido de redução, deduzidos os custos de aquisição calculados proporcionalmente. 5 - Segurando-se diversos bens por quantias e verbas designadas separadamente, o previsto nos números anteriores aplica-se a cada uma delas, como se fossem seguros distintos.”
5.Nos termos da cláusula 44.º/1 das Condições Gerais da Referida Apólice, sob a epígrafe “Furto ou roubo”, o referido seguro “[g]arante a perda, destruição ou deterioração verificadas nos bens seguros em consequência direta de furto ou roubo, tentado, frustrado ou consumado, praticado no interior do local ou locais de risco, incluindo garagens e arrecadações quando devidamente fechadas, desde que se caraterize por uma das seguintes circunstâncias: a) Praticado com arrombamento, escalamento ou uso de chaves falsas; b) Cometido sem os condicionalismos anteriores, por quem se introduza furtivamente no local de risco ou nele se haja escondido com o intuito de furtar; c) Cometido com violência contra as pessoas que habitem ou se encontrem no local de risco, ou através de ameaças com perigo iminente para a sua integridade física ou vida, ou pondo-as, por qualquer maneira, na impossibilidade de resistir.”
6.Nos termos do n.º 2 da mesma Cláusula, “[e]ntende-se por arrombamento, o rompimento, fratura ou destruição no todo ou em parte, de qualquer elemento ou mecanismo que servir para fechar ou impedir a entrada, exterior ou interior, no estabelecimento seguro ou lugar fechado dele dependente, ou de móveis destinados a guardar quaisquer objetos (…)”
7.Segundo o n.º 3 da mesma Cláusula, “[f]icam excluídos desta cobertura: a) As perdas ou extravios, bem como as subtrações de qualquer espécie, furtos ou roubos cometidos por pessoas ligadas ao tomador do seguro ou ao segurado por laços de sociedade ou pelos seus familiares, cônjuge, pessoa que viva em união de facto, ascendentes, descendentes e irmãos, adotados, tutelados e curatelados; b) O furto ou roubo da autoria, ou com a cumplicidade, de trabalhadores do tomador do seguro ou do segurado, ou de pessoas a quem tenham sido confiadas as chaves de móveis ou imóveis, onde se encontrem os bens seguros; c) O furto ocorrido durante os períodos de abertura do estabelecimento ao público, salvo quando praticado nas condições descritas na alínea c) do n.º 1; d) Os sinistros ocorridos quando a atividade do estabelecimento seguro se encontre paralisada há mais de trinta dias seguidos; e) O furto ou roubo em bens que se encontrem ao ar livre, em varandas, alpendres saguões ou edifícios anexos não totalmente fechados, tendas caravanas; f) Quaisquer perdas ou insuficiências descobertas no momento em que se faz ou confere um inventário físico ou relação correspondente, salvo se tal inventário ou relação forem feitos para confirmar uma ocorrência indemnizável por esta cobertura; g) O furto facilitado pelo segurado, incluindo: i) chaves deixadas nas fechaduras, debaixo de tapetes, na caixa de correio ou em qualquer outro local de fácil acesso; ii) A não substituição de fechadura após furto ou roubo, ou no caso de perda de chaves,” tudo conforme documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
8.De acordo com as condições particulares da apólice, a franquia era de 10% sobre os prejuízos indemnizáveis e no mínimo de € 500,00 e as coberturas e capitais seguros eram os seguintes:

- cf. documento 2 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
9.Entre as 15 horas do dia 18 e as 21.50 horas do dia 19 de abril de 2020, indivíduos cuja identidade não foi apurada entrararam nas referidas instalações da Autora.
10.Para esse efeito, abriram o portão que dá acesso ao exterior.
11.Após, entraram no armazém, por forma que não foi apurada, e dele retiram, sem o conhecimento e contra a vontade da Autora, 421 peças de vestuário da marca ..., no valor de € 2 176,05, 230 peças da marca ..., no valor de € 2 300,00, e 27 488 pelas da marca ..., no valor de € 310 811,20, cf. anexo I, que faz parte integrante desta sentença.
12.As instalações da Autora encontravam-se então encerradas, por ser fim-de-semana.
13.No início daquele período, o portão da entrada a partir do exterior ficou encerrado, o mesmo sucendo com a partog de acesso ao armazém.
14.Na noite do dia 19 de abril de 2020, depois das 21.50 horas, o administrador da Autora AA tomou conhecimento do sucedido e participou o furto à GNR.
15.No dia 22 de abril de 2020, o mesmo administrador elaborou e apresentou à Ré a participação do sinistro, nos seguintes termos: “Descrição do sinistro e causas presumíveis: Furto na noite de sábado 18/04/2020 com arrombamento do portão de entrada e da porta exterior do armazém de produto acabado; Relação dso danos materiais: 421 peças ...: €2 176,95; 230 peças ... – Valor: € 2 300,00; 27 488 Peças babygrow ... – Valor: € 310 334,25”, cf. documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
16.A Ré solicitou à ... que procedesse à avaliação do prejuízo sofrido pela Autora e à A... - Peritagens Técnicas, Lda., que averigurasse a ocorrência do sinistro.
17.A Ré recebeu o relatório da A... - Peritagens Técnicas no dia 2 de novembro de 2020 e o da ... no dia 30 de março de 2021.
18. A PSP apreendeu as seguintes peças que se encontravam entre as retiradas das instalações da Autora: (i) No dia 9 de junho de 2020, na Feira ...: 711 babygrow ...; 217 macacões babygrow ...; 137 calções babygrow ...; 247 gorros babygrow ...; 144 camisolas babygrow ...; 39 pares de meias babygrow ...; 239 casacos babygrow ...; e 261 vestidos babygrow ... No dia 9 de junho de 2020, a na Feira ..., cf. “auto de apreensão n.º 1” apresentado com a petiçao inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido; (ii) No dia 6 de julho de 2020, na feira de ...: 1299 peças de vestuário babygrow ...; 11 peças de vestuário ..., cf. “auto de apreensão n.º 2” apresentado com a petiçao inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido; (iii) No dia 30 de setembro de 2020, na feira de ...: 902 babygrow ...; 179 calções babygrow ...; 261 acessórios babygrow ...; 358 camisolas/casacos babygrow ...; 90 vestidos babygrow ...; 580 blusas babygrow ..., cf. “auto de apreensão” apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
19.As peças referidas no ponto anterior foram restituídas à Autora.
20.Por email de 30 de março de 2021, a ... comunicou à Autora que colocaria à consideração da Ré “os seguintes valores apurados de prejuízos e em risco”:
21.Na data referida no ponto anterior, a Autora comunicou à Ré a sua aceitação dos valores indicados.
22.No dia 2 de agosto de 2011, a Autora remeteu à Ré email do seguinte teor: “Como sabem, há já mais de um ano, a 18 de abril de 2020, as instalações da empresa foram arrombadas por desconhecidos, que furtaram, do seu interior, diversas mercadorias, crimes estes que foram participados à GNR ..., sendo que tudo isto foi atempadamente participado à C... Seguros - Companhia de Seguros.
Quase um ano volvido, por mail de 30 de março de 2021, fomos informados pela ..., empresa por vós contratada para o efeito, do valor dos prejuízos apurados e em risco, no total de € 190 046,44. Apesar de várias insistências no sentido de ser, por fim, efetuado o pagamento dos prejuízos por nós sofridos, o certo é que, até agora, ainda não foi efetivado o pagamento da indemnização que nos é devida, em consequência do furto da mercadoria.
No n.º 2 da Cláusula 24.ª das Condições Gerais e Especais da apólice consta que o segurador deve pagar a indemnização…logo que concluídas as investigações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à fixação do montante dos danos, sem prejuízo do pagamento por conta, sem que se reconheça que devem ter lugar, prevendo o n.º 3 desta mesma Cláusula que decorridos 30 dias das conclusões previstas no n.º anterior sem que haja sido paga a indemnizaçção são devidos juros à taxa legal em vigor.
Ora, como é bom de ver, as investigações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e ã fixação do montante dos danos estão já concluídas, pelo menos desde o final de março/2021.(…)
Assim, aguardamos até ao final do corrente mês de agosto que procedam ao pagamento do valor de € 190 046,44, por vós próprios fixado e que aceitámos”, conforme documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reconhecido.
23.A Ré respondeu à Autora, por carta de 11 de agosto de 2021, dizendo que “[e]stão concluídos todos os apuramentos necessários à regularização do processo de sinistro acima indicado.
De acordo com o processo de peritagem efetuado e documentação apresentada e analisada conjuntamente, apurámos prejuízos no valor de € 190 046,44. Contudo, ao valor indicado terá de ser aplicada a regra proporcional, de acordo com a Cláusula 19.ª das Condições Gerais da Apólice, em virtude do Capital Seguro na rubrica “produtos e m-primas” se apresentar manifestamente inferior ao real valor em risco à data da ocorrência;
Capital seguro: € 1 000 000,00; Valor em risco: € 1 480 736,94.
Assim, o valor dos prejuízos indemnizáveis apurados correspondente a € 128.346,00 antes da franquia.
Quanto às causas desta ocorrência, após detalhada averiguação das circunstâncias do sinistro participado, foi concluído que os danos ao portão não são compatíveis com arrombamento, pelo que não é possível confirmar a ocorrência de qualquer das circunstâncias que permitiriam accionar as garantias da apólice, designadamente as previstas na cobertura de “furto ou roubo”, cf. documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
*
Factos não provados

24. Os indivíduos referidos em 9. introduziram-se no interior das instalações da Autora após arrombarem o portão de entrada e o portão exterior de acesso ao armazém onde era guardado o produto acabado.
*
Fundamentação jurídica

Cumpre começar por apreciar e decidir sobre o apontado erro de julgamento, considerando que no domínio do nosso regime recursório cível, o meio impugnatório de recurso para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida.
Não basta, pois, vir requerer-se a alteração da decisão da matéria de facto com base numa perspectiva parcelar de parte.
Acresce que a matéria de facto só deve ser alterada quando o registo e análise crítica da prova o permita com a necessária segurança – n.º 1 do artigo 662.º do CPC.
Por outro lado, importa ter sempre presente que o julgador da matéria de facto tem um contacto directo com as pessoas e coisas que servem de fontes de prova, sendo, em conformidade com as impressões colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que a prova é apreciada, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, embora com a devida conjugação e avaliação de toda a prova.
Contudo, não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a “um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida” - in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192.
A este propósito dispõe o referido artº. 662º, n.º 1, do C.P.C. que “a[A] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Nesse sentido, o princípio da livre apreciação da prova vigora com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do nº. 5 do artº. 607º do C.P.C..
Significa isto que o tribunal aprecia livremente os meios de prova e que o tribunal é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido. Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (ou seja, com maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão). Coisa diferente é a questão do standard ou padrão de prova, a qual já tem que ver com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus – no sentido de que a lei manda que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova (cfr. artºs. 346.º do C.C. e 516.º do C.P.C..
Vejamos, pois, o que da prova resulta, por forma a apurar se foram, ou não, incorrectamente julgados os pontos 9, 10, 11 e 14, dos factos provados, no sentido de se julgar verificado o alegado erro de julgamento.
Como argumento, em suma, a Ré/Recorrente aponta essencialmente o relatado pela testemunha BB, indicado pelo tribunal a quo, como tendo prestado um depoimento coerente, claro, consistente e de relevo técnico, daí se ter dado a factualidade do ponto 24, como não provada, sem que se entenda a razão de se ter considerado ter ocorrido o acto de subtracção, ainda que não demonstrada a versão da A. quanto ao portão e cancela terem sido forçados.
Após se apontar as demais circunstâncias referentes ao caso que deveriam levar, no seu entender, a outras conclusões, considera que a factualidade vertida nos referidos pontos 9, 10, 11 e 14, devia ser dada como não provada.
Ora, sinteticamente para dar tais factos como provados e não provada a factualidade vertida no ponto 24, o tribunal a quo considerou o depoimento da testemunha DD, maquinista na fábrica da Autora, que se deparou com o portão de entrada a partir do exterior aberto e fora da respectiva calha, bem como o portão de quatro folhas que dá acesso ao armazém também aberto, mencionando sinais de arrombamento, apontando, ainda, o facto de, no interior do armazém, se ter deparado com caixas vazias e desarrumadas, o que fez com que contactasse o administrador da Autora, AA.
De forma conjugada, apontou-se o depoimento da testemunha CC, que se deslocou de imediato ao local, e corroborou o estado de desarrumação que presenciou, com caixas vazias espalhadas, e da retirada de peças de vestuário que estavam a aguardar para serem encaminhadas para os clientes, e explicou o modo como fez o apuramento das peças subtraídas e respectivo valor e esclareceu as diligências que fez juntos dos clientes da Autora para justificar a não entrega de encomendas que, em alguns casos, já estavam pagas, confirmando a recuperação de várias peças pela PSP, em feiras, e a sua colaboração nessas diligências.
Depoimentos estes que foram complementados com as declarações prestadas pelo administrador da Autora, referido AA, ao atestar o encerramento das instalações e relatar o modo como teve conhecimento dos factos.
Quanto à valoração de tais depoimentos e declarações, considerou-se a atitude, a forma e modo como foram prestados, por forma a fazer criar uma convicção sólida sobre a ocorrência da subtração no hiato temporal apontado.
Teve-se também em consideração a circunstância de se ter igualmente atestado qual o transporte que seria necessário para tal, considerando tratar-se de roupas de bebé e criança, parte delas, ainda não encaixotadas.
Relativamente ao modo como os autores do furto acederam ao interior do armazém onde as peças de vestuário eram guardadas, teve-se em conta o depoimento das testemunhas EE, agente da GNR que tomou conta da ocorrência e foi ao local na noite do dia 19 de Abril (cf. auto de notícia apresentado com a petição inicial), GG, empregado da Autora, que chegou ao local pelas 8 horas de segunda-feira, e HH, agente do NIC da GNR que participou da investigação, tendo-se deslocado ao local na manhã de segunda-feira, onde recolheu os elementos para a elaboração do “relatório tático de inspeção ocular 64/20”, apresentado com a petição inicial, onde são referenciados os ditos “sinais de arrombamento” consubstanciados nas marcas junto das fechaduras” e no “mecanismo de fecho/segurança no cimo e em baixo” do portão de acesso ao armazém, conforme documentado no “relatório fotográfico” elaborado pela GNR.
Contudo, atendendo ao facto de não se mostrar evidenciada a destruição da fechadura, da parte fêmea do respetivo batente e, bem assim, das secções dos ferrolhos, nem procedido consequentemente ao arranjo da fechadura e respectivo batente nem das secções dos ferrolhos considerou-se, em conjugação com a demais prova posta em evidência e analisada, não se ter provado ter ocorrido arrombamento, sem que tal invalide, por si só, a ocorrência do acto de subtração.
Isto considerando inclusive, o facto de se ter apreendido várias peças de vestuário em feiras.
Nesta instância recursiva percebe-se que a recorrente pretende afastar a prova da ocorrência de um furto, pugnando por uma diferente valoração da prova no sentido de conduzir a um resultado diverso.
Facto incontornável é o desaparecimento dos produtos pela forma e meios que não são os “normais”, o que aliado a juízos de experiência comum induz no sentido da ocorrência de um acto ilícito, um furto.
Foi nesse sentido que o Tribunal de 1ª instância fez a análise dos vários elementos que se lhe apresentaram e concluiu não ter motivos para duvidar da ocorrência de um furto, face aos “sinais” ou indícios que detectou, e sem prejuízo de outros que suscitassem dúvidas e que rebateu, tudo de forma motivada.
O princípio de que se parte é o da seriedade de quem faz uma denúncia de furto, e não da sua suposta simulação tendo em vista outros fins que não os legais. Por isso, sem qualquer desconfiança, há que averiguar se a prova sustenta a sua ocorrência num grau de elevada probabilidade, atentas as regras da experiência e da normalidade.
Certo é que, para abalar a seriedade da denúncia, aliada ao estado dos portões e desaparecimento de material, teríamos que ter algo mais do que a ausência de certeza sobre o modus operandi.
O que não temos é algo de concreto e objectivo que abale aqueles outros indícios. E por isso o raciocínio é ao contrário: a prova, sendo indireta, basta-se com indícios razoáveis que não foram afastados, e que, aliado a juízos de normalidade e de experiência comum, conduzam a uma probabilidade elevada de ocorrência do facto. Esta probabilidade elevada tem de ser concretizada em termos de exigência de modo diverso quando se tem prova directa, e quando se está perante prova indireta.
Este Tribunal, ainda que na perspetiva mais ampla que defende a convicção autónoma do Tribunal da Relação, para além de não detectar qualquer erro de julgamento, tem de concluir como o fez o Tribunal a quo, considerando, como se disse já, o facto de se ter indiciariamente acedido indevidamente ao local e dali retirado os bens, sem que nada nos permita concluir pela existência de uma “simulação”.
Por tudo o exposto, mantém-se a decisão da matéria de facto.
Face ao exposto, dúvidas não há que no caso em apreço cabia à A./recorrida a alegação e prova do evento que faria acionar a cobertura do seguro decorrente do contrato celebrado com a R./recorrente –artº. 342º, nº. 1, do C.C.; a parte contrária podia tentar tornar tais factos duvidosos, fazendo contraprova (artº. 346º do C.C.), no que não logrou obter sucesso, tal como ressalta do elenco da factualidade dada como provada.
Verificado o evento susceptível de accionar o pagamento do valor indemnizatório há que proceder à análise das demais questões levantadas no recurso.
A primeira questão respeita à aplicação do artº. 609º, nº. 2, do C.P.C. e à franquia contratual.
Nos termos do artº. 609º nº. 1 do C.P.C. “a[A] sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”, referindo-se no seu nº. 2 que “s[S]e não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja liquida”.

Assim, o Tribunal deve condenar no que se liquidar em incidente – artºs. 358º e segs. C.P.C.- sempre que:

- o réu tenha efectivamente causado danos ao autor
- o montante desses danos não esteja determinado na acção declarativa por não terem sido concretamente apurados.

Também se diz que este é um poder dever do Juiz e não um poder discricionário.
Como se referiu no Acórdão do STJ de 18/4/2006 (www.dgs.pt) a[A] relegação para liquidação em execução de sentença de indemnização deduzida pelos réus na sua reconvenção, é legalmente possível, apesar de terem formulado um pedido líquido e não terem conseguido provar o montante exacto dessa indemnização”.
É pacífico portanto que apenas é possível remeter para liquidação o montante de danos que tenham sido efectivamente provados mas cujo valor concreto não foi possível determinar. Por outro lado, apenas se pode relegar para momento ulterior a liquidação dos danos e não a prova da ocorrência dos mesmos.
Como se refere no Acórdão do STJ de 03/12/1998, BMJ 482-180, proferido ao abrigo da anterior legislação processual, mas que se mantém plenamente válido (e citado no Ac. do STJ de 18-09-2018 in www.dgsi.pt), “Do cotejo destes normativos resulta que só é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora se prove a sua existência, não existam os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem sequer recorrendo à equidade.
O que é essencial é que esteja provada a existência dos danos, ficando dispensada apenas a prova do respectivo valor”.
Já relativamente à franquia, diz-nos Menezes Cordeiro (“Manual de Direito Comercial”, 2ª. ed., 2007, pag. 819) que se traduz na “margem não-coberta pela indemnização e que fica a cargo do segurado”. No mesmo sentido, José Vasques (“Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, 1999, pag. 309), diz que a franquia é uma dedução ao montante indemnizatório, um desconto que tem de incidir sobre quem o recebe e que normalmente é o segurado. A franquia corresponde então à quantia a suportar pelo tomador do seguro, em caso de sinistro, quantia essa que pode ser fixa ou variável (percentagem) previamente estabelecida na apólice de seguro. O valor da franquia será, assim, deduzido do montante indemnizatório apurado e a pagar pela seguradora - cfr. Acórdãos do STJ de 20/02/2001, e da Rel. de Coimbra de 24/04/2012 (www.dgs.pt). No sumário do primeiro lê-se: “V - No contrato de seguro facultativo, no montante indemnizatório garantido e a pagar não se inclui a franquia; o valor desta é devido pelo segurado ao lesado. VI - A franquia funciona como estímulo à atitude prudente do segurado, é elemento de cálculo do prémio, e diminui a possibilidade de o segurador se ocupar de sinistros de pequeno valor.”
Igualmente no Ac. da Re. de Évora 7/1/2016 (www.dgs.pt) diz-se: “A franquia tem como escopo (e como seu essencial fundamento) o estímulo à prudência do segurado e a eliminação da responsabilidade do segurador em pequenos sinistros, obstando aos custos administrativos inerentes. No seguro facultativo (…), as partes podem introduzir no contrato as cláusulas que tiverem por convenientes, desde que não ofendam a lei ou interesses de ordem pública. Inclui-se nessas cláusulas admissíveis aquela que, restringindo a garantia do seguro, estabelece uma certa franquia dos prejuízos indemnizáveis.
Ora, in casu, apurado foi que o valor das peças retiradas do local do risco perfazia o montante de €310.811,20.
De acordo com as condições particulares da apólice, a franquia fixada era de 10% sobre os prejuízos indemnizáveis e no mínimo de €500,00.
Contudo, como igualmente resulta da factualidade apurada, foram apreendidas várias peças e restituídas as mesmas à A.
Após várias diligências e após a realização de peritagem determinada pela Ré, esta indicou à A. ter apurado prejuízos no valor de € 190.046,00, o qual, por aplicação da regra contida no art. 19.º das Condições Gerais da Apólice, foi reduzido a € ...46, ...0, sem a franquia.
Assim, descontados os 10% da franquia contratada, encontrar-se-ia o valor de € 115 511,40.
Uma vez que aquele valor de € 190 046,00 foi indicado pela Ré, através da ..., e aceite pela Autora depois de recuperada parte da mercadoria, é de considerar, como o fez o tribunal a quo, ter-se já tido em conta esse facto, pelo que é de manter o valor da indemnização fixada em € 115 511,40.
Quanto ao mais, entende a Ré que os juros só são devidos desde a citação e que apenas são devidos os legais.

Vejamos

Na sentença recorrida, tendo-se considerado, em suma, que a Ré concluiu as diligências destinadas à averiguação do sinistro e da sua dimensão no dia 30 de março de 2021, quando foi elaborado o relatório da ... e recebeu a resposta da Autora a aceitar a proposta contida neste, se constituiu em mora decorridos 30 dias sobre esta data – ou seja, no dia 29 de abril de 2021 – , sendo devidos a partir dessa data os juros previstos no art. 102, § 3.º, do Código Comercial, atenta a natureza da Autora.
Em causa está o pagamento de uma indemnização decorrente do risco segurado.
Posto isto, importa ter em conta que a interpelação corresponde à comunicação feita pelo credor ao devedor de que deve efectuar a prestação; é a reclamação feita pelo credor ao devedor para que cumpra a obrigação a que se encontra adstrito; “é o acto pelo qual o credor comunica ao devedor a sua vontade de receber a prestação” (Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, pag. 184). Deve conter exatamente o pedido, ou seja, o credor deve exigir o pagamento da quantia a que julga ter direito.
Nesse sentido, a comunicação do sinistro à seguradora não equivale a uma interpelação extrajudicial para o cumprimento da obrigação. De igual modo não tem significado em termos de constituição em mora o facto da seguradora, na sequência da comunicação, declinar a responsabilidade pelo sinistro, no âmbito da faculdade que lhe assiste de discutir a sua efectiva ocorrência.
Aliás, concretamente no caso dos autos, apesar da Ré ter indicado um valor quanto ao apuro dos prejuízos, aceite pela A. para regularização do processo de sinistro, não concordou com o seu pagamento por considerar não ser possível confirmar a ocorrência de qualquer uma das circunstâncias que permitiriam accionar as garantias da apólice.
Por sua vez, a mora reporta-se ao momento da citação e constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor nos termos do artº. 804º, nº. 1, do C.C.
Já as taxas de juros legais que o nosso ordenamento jurídico contempla são de duas distintas espécies: uma respeitante aos juros de carácter geral, que são os juros civis a que se reporta o art. 559º do CC, fixados por portaria e para valer para todas as situações em que por disposição específica não esteja prevista taxa superior; outra referente aos juros de natureza especial, que são os juros comerciais, previstos no art. 102º do Cód. Comercial, para os quais se prevê uma taxa supletiva superior à taxa geral e aplicável no âmbito dos actos, maxime dos contratos, de natureza mercantil.
In casu, em causa está o pagamento dos danos decorrentes da prática de um acto ilícito cuja responsabilidade foi transferida para a apelante, pelo referido contrato de seguro, sem que se tenha acordado o pagamento de juros comerciais.
Trata-se, no nosso entender, de uma obrigação de natureza meramente civil, como tal sujeita, no que concerne ao atraso no respectivo cumprimento, às regras previstas nos artigos 804.º e seguintes do Código Civil.
Como tal, concretizada a obrigação de indemnização numa prestação pecuniária, o atraso na sua efectivação será reparado com o pagamento de juros de mora (art.º 806.º), supletivamente os juros legais previstos no art.º 559.º do Código Civil, em conjugação com a portaria aí referida.
Pois, o crédito da A. não emerge de um puro acto de comércio, de uma transação comercial.
Por conseguinte não lhe é aplicável o art.º 102.º do Código Comercial.
Este artigo, como decorre da sua inserção no Código Comercial (artigos 1.º, 2.º), tem em vista a remuneração compensatória ou moratória, por via do pagamento de juros, de créditos emergentes de actos de comércio.
Aliás, o DL n.º 62/2013, de 10 de Maio, que, em cumprimento da Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 2011, estabeleceu medidas de luta contra os atrasos de pagamento em transações comerciais, expressamente excluiu do seu âmbito de aplicação quer os juros relativos a outros pagamentos que não os efectuados para remunerar transações comerciais, quer os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efectuados por companhias de seguros (alíneas b) e c) do n.º 2 do seu art.º 2º).
Neste sentido aponta-se, entre outros, o acórdão proferido na Relação de Évora com o n.º 132/12.8TBSTR.E, a 16.4.15, publicado na dgsi, onde se sumariou que: ‘Sendo a A. uma sociedade comercial a formular um pedido de indemnização por danos resultantes da ocorrência de um sinistro (furto de três tractores que se encontravam parqueados no parque de exposição e vendas), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, e a Ré uma Companhia de Seguros com quem a A. celebrou um contrato de seguro de responsabilidade de concessionário auto, não são aplicáveis juros comerciais, dado não estarmos no âmbito de relações comerciais entre duas empresas que levaram à existência de um crédito titulado pela Autora por incumprimento contratual.’.
Assim sendo, julgamos ter de proceder, nessa parte, a pretensão da apelante.
*
V. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os Juízes da 2.ª Secção Cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar o recurso interposto pela A. parcialmente procedente quanto à questão dos juros moratórios que devem ser contabilizados à taxa civil legal, desde a citação, no mais mantendo a decisão proferida.
Custas pela A. e Ré, na proporção do decaímento
Registe e notifique.
*
Guimarães, 9.03.2023
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nas transcrições que a ele tenham atendido, e é por todos assinado electronicamente)