Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4759/07.6TBGMR-A.G1
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
CHEQUE
FALSIDADE DA ASSINATURA
EXAME PERICIAL
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Quando se dá à execução um escrito particular, como é o caso do cheque, se for alegada a falsidade da assinatura constante desse escrito, incumbe ao exequente o ónus de provar a sua veracidade (art. 374º, nº2, do C.Civil).

II - Todavia, se o executado tiver culposamente tornado impossível a prova ao exequente onerado, há inversão do ónus da prova, passando a competir-lhe a prova de que não foi ele a apor a assinatura no escrito.

III – Verificando-se que o opoente por meio da alteração voluntária de escrita tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo, tem de se qualificar o seu comportamento como culposo, e assim concluir que impossibilitou a parte onerada, o exequente, de demonstrar os factos que eram relevantes para a sua defesa.

IV – A lei sanciona este comportamento culposo evidenciado pelo executado, imputando-lhe o ónus de ser ele a demonstrar a falsidade da assinatura, surgindo, assim, a inversão do ónus da prova como uma forma de sanção civil, punitiva de uma ilicitude civil.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO

Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que lhe move X – Borrachas Vulcanizadas, Lda., para dele receber coercivamente a quantia de 51.574,27 euros, veio o executado Paulo deduzir a presente oposição à execução.

Para tanto, alega, em síntese, que as assinaturas constantes dos cheques apresentados à execução não foram executadas pelo seu punho.

Termina pedindo que seja a oposição julgada procedente com a consequente extinção da execução.

A Exequente contestou a oposição, pugnando pela sua improcedência, alegando que o embargante subscreveu enquanto avalista os cheques apresentados à execução.

Foi proferido despacho saneador com identificação do objecto do litígio e temas da prova.

Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença que julgou procedente a oposição à execução e, consequentemente, declarou extinta a instância executiva contra o opoente/executado.

Inconformada, apelou a Exequente da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1. Os pontos de facto constantes dos quesitos 1º, 18º, 19º e 21º da Base Instrutória, foram incorrectamente julgados, pois que ao invés de terem sido julgados como não provados, deviam ter sido julgado como provados;
2. A antecedente conclusão impõe-se à luz do disposto no art. 344º, nº2, do Código Civil e com base nos seguintes concretos meios probatórios:
a. A conclusão pericial de fls. 301 e 570, segundo a qual a escrita produzida na colheita de texto, quando comparada com a escrita de assinaturas, não configura a hipótese de uma escrita natural;
b. O esclarecimento pericial de fls. 655, segundo o qual, o tipo de inconsistência interna na produção da escrita nas colheitas de autógrafos, com falta de fluência, hesitações e correcções configura a hipótese de alteração voluntária de escrita;
c. O registo ou gravação efectuado na audiência de 8 de Fevereiro de 2018, dos esclarecimentos periciais prestados pela Drª N. C., entre as 11 h 39´ 18´´ e as 11 h 50´53´´, de minutos 7,30´´ a 10,07´´, no qual não só foi confirmado estar-se perante um claro caso de alteração voluntária de escrita, como também foi esclarecido no que isso consistia, bem como,
d. De minutos 10,20´´ a 11,15´´, em que pela Exma. Perita foi explicada ao tribunal e a quem a quis ouvir a razão pela qual a superveniência de uma intervenção cirúrgica à mão nunca poderia constituir justificação para a divergência de escrita assinalada na recolha de autógrafos de fls. 572 (anteriormente 317): – disse aí a Exma. Perita que, caso a intervenção cirúrgica tivesse retirado destreza à mão do recorrido, ela tanto se verificaria na assinatura como no texto e não apenas numa delas!
e. O registo ou gravação efectuado na audiência de 8 de Fevereiro de 2018, do depoimento de parte do recorrido, prestado entre as 9 h 47´ 07´´ e as 10 h 29´38´´, quando de minutos 16,25´´ a 18,30´´ confirmou ter sido ele a preencher e a assinar os cheques matriz que hoje se mostram juntos de fls. 560 a 565 (anteriormente de fls. 403 a 408), os quais, tanto à vista, como em resultado da sua apreciação pericial, se mostram preenchidos numa letra maiúscula, fluente e evoluída e assinados com letras minúsculas, também fluentes e evoluídas; O que permite concluir, sem margem para dúvidas, que no ano de 2006, um ano antes daquele em que foram emitidos os cheques dados à execução e juntos em originais a fls. 534 a 538, o recorrido Paulo tanto sabia escrever em letras minúsculas como em maiúsculas e que toda essa sua escrita de então era fluente e evoluída; o que desde logo deita por terra a por isso impossível veracidade da afirmação efectuada pelo recorrido Paulo perante a Perita Sara, do Laboratório incumbido da perícia, a fls. 575, in fine, quando declarou não saber escrever de outra forma por só ter frequentado a escola até ao 4º ano….
f. O registo ou gravação efectuado na audiência de 8 de Fevereiro de 2018, do depoimento de parte do recorrido, prestado entre as 9 h 47´ 07´´ e as 10 h 29´38´´, quando de minutos 22,00´´ a 25,00´´, invocou como razão para ter conseguido preencher em 2006, de forma fluente e evoluída, os cheques matriz de fls. 560 a 565 e ter escrito em 2009, da forma que se mostra escrita a recolha de autógrafos de fls. 572 (anteriormente 317), o facto de entre as duas datas ter sido operado à mão; Mas nem por isso ter sido capaz de explicar, assim caindo no ridículo, a razão pela qual, nessa mesma recolha de autógrafos, quando escrevia os zeros do ano 2009 fazia rodinhas e quando escrevia os óó de zoologia ou de antropologia, ou mesmo o ó do seu nome quando escrito em maiúsculas, já só o fazia em tracinhos!
3. A conduta do recorrido evidenciada nos autos, de alteração voluntária de escrita perante os peritos do Laboratório incumbido de proceder à realização da perícia que, inclusivamente, ele próprio requereu, a fls. 212, assim impedindo que tal estabelecimento científico pudesse dispor, conforme se lê a fls. 537, no seu parágrafo 4º, de elementos genuínos de comparação, em quantidade e qualidade suficientes, constitui e integra a verificação de um comportamento culposo da contraparte que determinou a impossibilidade de a parte onerada demonstrar os factos que eram relevantes para a acção ou para a defesa.
4. O que, decorrendo dos elementos dos autos acima evidenciados na conclusão 2. e suas alíneas a. a f. determina, por força do disposto no art. 344º, nº2 do Código Civil, a inversão do ónus da prova e o julgamento como provados dos factos enumerados nos quesitos 1º, 18º, 19º e 21º da douta Base Instrutória.
5. Mesmo que, no limite da dialéctica argumentativa, se entendesse que o ardil usado pelo recorrido não tornou impossível a prova à recorrente, mas que apenas a dificultou, ainda assim, por força do disposto nos art. 389º do C.Civil e 417º, nº 2, 2º trecho, 1ª parte, do C.P.Civil, nos quais se consagra o principio da livre apreciação das provas pelo juiz, sempre tais quesitos haveriam de considerar-se provados, atendendo ao que igualmente decorre dos autos e acima enunciado no ponto 7. desta alegação de recurso.

Pugna a Recorrente pela integral procedência do recurso com a consequente improcedência da oposição à execução deduzida pelo recorrido Paulo, prosseguindo esta os seus termos.
O Executado não apresentou contra alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A questão a decidir reconduz-se à seguinte:

Se a conduta do executado evidencia alteração voluntária de escrita que impediu os peritos de dispor de elementos genuínos de comparação, em quantidade e qualidade suficientes para um resultado conclusivo, o que constitui um comportamento culposo que determinou a impossibilidade de a parte onerada demonstrar os factos que eram relevantes para a sua defesa, devendo, por isso, inverter-se o ónus da prova.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

Factos considerados provados em Primeira Instância:

1.- A exequente tem em seu poder 10 cheques juntos a fls. 10 a 14 dos autos da ação executiva, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, constando oposto: na face desses cheques, “conta (...) C. Recauchutagem, Lda.”, no “local da emissão“ Guimarães, no lugar destinado às assinaturas duas assinaturas manuscritas ilegíveis precedidas do carimbo “C. Recauchutagem, Lda.- A gerência”, “à ordem de X - Borrachas Vulcanizadas, Lda.”, apresentando como o ”Ano-Mês- Dia” as datas de, respetivamente, 2007-05-25, 2007-06-16, 2007-06-30, 2007-07-14, 2007-07-28, 2007-07-20, 2007-08-16, 2007-08-22, 2007-08-09 e 1007-08-27, e as quantias, respetivamente, 8.331,36€, 7.662,13€, 7531,81€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€, 4007,00€ e 4006,97€; no verso desses cheques, constam os seguintes dizeres “dou meu aval a favor de firma C. Recauchutagem, lda., seguidos de uma assinatura manuscrita ilegível, “dou o meu aval a favor da firma C. Recauchutagem, lda., seguidos de uma assinatura manuscrita ilegível, seguindo-se um carimbo com os dizeres “devolvido p/ falta provisão Banco A - serviço de compensação”, com as duas datas, respetivamente, de 14 de Junho de 2007, 19 de Junho de 2007 (e uma segunda data 26 Julho de 2007), 03 de Julho de 2007, 17 de Julho de 2007, 31 de Julho de 2007, 23 de Julho de 2007, 17 de Agosto de 2007, 24 de Agosto de 2007, 10 de Agosto de 2007 e 29 de Agosto de 2007.
2.- A exequente é uma empresa que exerce a sua atividade de comércio de borracha.
3.- A executada C. Recauchutagem, Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida em 23-11-2007, pelo 4.º Juízo Cível desta Comarca, no âmbito do processo n.º 2480/07.4TBGMR, transitada em julgado no dia 20-02-2008.
4.- Em Março de 2006, eram gerentes da sacadora dos cheques, os ditos Maria, F. C. e José, sendo certo que a sociedade só se obrigava validamente mediante a assinatura de dois gerentes.
5.- Em Março de 2006, o opoente comprou a outro avalista dos cheques em execução – José – a quota com o valor nominal de 72.000,00€ que este então detinha no capital social da sacadora dos cheques capital social este que era de 216.000,00 euros e se encontrava dividido da seguinte forma: uma quota de 48.000 € pertencente a Maria; outra, de 72.000 € pertencente ao dito José; outra, de 72.000 € pertencente a F. C. e outra, de 24.000 € pertencente em compropriedade à dita Maria e aos seus filhos, Paula e Miguel.
6.- Em assembleia geral realizada no dia 14 de Março de 2006, foi deliberado pelos demais sócios destituir de gerente o sócio F. C., bem como excluí-lo de sócio, sendo ainda, nessa mesma assembleia, deliberado que a sociedade consentisse na cessão ao aqui opoente da quota de 72.000 € que o José detinha no capital da sacadora dos cheques.
7.- Cessão esta que nesse mesmo mês foi celebrada e inscrita no registo comercial.
8.- A partir de então, de Março de 2006 e até meados de Maio de 2007, o opoente esteve intimamente ligado ao dia a dia empresarial da sacadora dos cheques exequendos, sendo quem, de facto e em conjunto com os demais gerentes da sacadora dos cheques, José e Maria, dirigiu a empresa de recauchutagem por aquela detida e explorada.
***
Factos considerados não provados em Primeira Instância:

- Os dizeres “dou o meu aval a favor da firma C. Recauchutagem, lda.” e a assinatura ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso dos cheques referidos em 1 dos factos provados, foram apostos pelo punho do opoente Paulo.
- O opoente desconhecia por completo até à data da sua citação, a existência dos cheques referidos em 1 dos factos provados.
-… o que é do conhecimento da exequente uma vez que a mesma teve já na sua posse outros títulos de crédito, esses sim assinados pelo opoente, desta feita na qualidade de sócio gerente da sociedade comercial M. Pneus, Lda., nos termos constantes dos documentos juntos a fls. 9 e cujos valores por eles titulados foram efetivamente pagos.
- … sendo o opoente quem decidia as suas compras, vendas e prestações de serviços, ajustava os respetivos preços e condições de pagamento, admitia e despedia funcionários e contratava outros colaboradores, determinando que os gerentes nominais da sacadora assinassem os documentos que necessariamente a vinculassem.
- No final do ano de 2006, porque a sacadora dos cheques em execução já devia e não pagava à exequente várias centenas de milhares de euros de mercadorias por si compradas, esta decidiu que não lhe forneceria mais matéria-prima a menos que o seu pagamento fosse efetuado a pronto, contra a entrega daquelas.
- Em face disso, o opoente, mais o gerente nominal da sacadora dos cheques sob execução – o José –, pediram encarecidamente aos representantes da exequente que não lhes impusesse tais condições, visto que desse modo seriam forçados a parar a laboração, e oferecendo-se, ambos e cada um, para garantirem pessoalmente e com o seu próprio património as dívidas que de futuro a sua representada viesse a contrair.
- Ficando assim assente entre eles – opoente e gerente José – e a exequente, que o preço das mercadorias que de futuro a representada daqueles viesse a comprar seria titulado por cheque ou cheques pré-datados, e que todos eles seriam avalizados pelos referidos indivíduos, sob pena de, caso tal não ocorresse, a exequente ficar livre para recusar todo e qualquer fornecimento.
- Assim entendidos, a exequente vendeu e entregou à sacadora dos cheques, em 10, 16 e 22 de Janeiro e em 22 de Fevereiro de 2007, diversas mercadorias, identificadas nas seguintes faturas, contra a entrega dos seguintes cheques: Fatura nº 550/2007000029 de 10/01/2007 no valor de 8.331,36, contra a entrega do Cheque Nº 33001208161 sacado sobre o Banco A no valor de 8.331,36 datado de 25/05/2007; Fatura nº 550/2007000050 de 16/01/2007 no valor de 7.662,13, contra a entrega do Cheque nº 4901208170 sacado sobre o Banco A no valor de 7.662,13 datado de 16/06/2007; Fatura nº 550/2007000068 de 22/01/2007 no valor de 7.531,81, contra a entrega do Cheque nº 8101208188 sacado sobre o Banco A no valor de 7.531,81 datado de 30/06/2007; Fatura nº 550/2007000130 de 07/02/2007 no valor de 28.048,97, contra a entrega dos seguintes cheques: Cheque nº 3001208226 sacado sobre o Banco A no valor de 4.007,00 datado de 14/07/2007; Cheque nº 5501208234 sacado sobre o Banco A no valor de 4.007,00 datado de 20/07/2007; Cheque nº 8001208242 sacado sobre o Banco A no valor de 4.007,00 datado de 28/07/2007; Cheque nº 9601208251 sacado sobre o Banco A no valor de 4.007,00 datado de 09/08/2007; Cheque nº 5601208277 sacado sobre o Banco A no valor de 4.007,00 datado de 16/08/2007; Cheque nº 3101208269 sacado sobre o Banco A no valor de 4.007,00 datado de 22/08/2007; cheque nº 8101208285 sacado sobre o Banco A no valor de 4.006,97 datado de 27/08/2007.
- Cheques esses – dados à execução – que a sua sacadora entregou à exequente no momento da entrega da mercadoria, dizendo-lhe, em cumprimento do solene e expressamente acordado, que todos eles estavam devidamente avalizados pelo gerente José assim como pelo opoente.
- Após o recebimento pela exequente dos cheques em execução e antes da apresentação a pagamento do primeiro deles, a exequente foi informada que o opoente se andava a vangloriar que nunca os pagaria, visto que, dizia, apusera neles, e propositadamente com vista à criação de confusão, uma assinatura breve, sumida e diversa da que usualmente utilizava.
- Em face de tal informação, a exequente, em Abril de 2007, através dos seus representantes de então, e numa reunião nos seus escritórios de Pombal, na qual além deles, do opoente e do José, estavam ainda presentes a sócia Paula e Fernando, interpelou e interrogou o opoente expressamente sobre a razão de ser da divergência entre o aspeto gráfico da sua assinatura usual e das assinaturas apostas no verso dos cheques sob a declaração de aval. - Tendo dele recebido como resposta a afirmação, feita perante todos os acima identificados circunstantes que ele, opoente, tinha e usava várias assinaturas e que, por isso, os representantes da exequente poderiam ficar descansados que ele nunca se prevaleceria de tais divergências gráficas, reafirmado perante a exequente que sempre honraria os avais que prestara em todos e cada um dos cheques ora dados à execução.
- O opoente, ao colocar nos cheques em execução, com o seu punho, as assinaturas que apôs, dolosa e defeituosamente, com um aspeto gráfico diverso daquele que usualmente utilizava, por forma a criar a incerteza da sua autoria, visava deliberada e conscientemente enganar a exequente e conseguir, em prejuízo desta, que ela, por força de tal engano em que ele dolosamente a induziu, entregasse à sociedade sacadora dos cheques as mercadorias que ele, opoente, pretendia que lhe fossem entregues, para manter a sua laboração industrial em seu proveito e da sacadora dos cheques, que doutra forma não conseguiria obter.
- Dolosamente se reservando o direito de, se e quando viesse a ser chamado a honrar o aval que lhe fora exigido, poder invocar a divergência de assinaturas em ordem a não pagar aquilo que ficou a dever em consequência da sua prestação.
- Sendo certo que, quando foi direta e pessoalmente confrontado com tais divergências, em Abril de 2007, o opoente fez tudo para sossegar e tranquilizar a exequente e nela criar a legítima convicção de que ele nunca invocaria em seu benefício e em detrimento dela, a apontada divergência.
- Com tal atuação e com a dedução desta oposição, o opoente está a exceder os mais elementares ditames da boa fé negocial.
*
3.2. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do art. 662º do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Assim, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova utilizados pelo tribunal (1) e ainda de outros que se mostrarem pertinentes, essa operação não pode nunca olvidar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.

Isto posto.

A Recorrente considera incorretamente julgados os factos 1º, 18º, 19º e 21º, da Base Instrutória, pois que ao invés de terem sido julgados como não provados, deviam ter sido julgados como provados.

A matéria em causa é a seguinte:

Os dizeres “dou o meu aval a favor da firma C. Recauchutagem, lda.” e a assinatura ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso dos cheques referidos em 1 dos factos provados, foram apostos pelo punho do opoente Paulo.
18º O opoente, ao colocar nos cheques em execução, com o seu punho, as assinaturas que apôs, dolosa e defeituosamente, com um aspeto gráfico diverso daquele que usualmente utilizava, por forma a criar a incerteza da sua autoria, visava deliberada e conscientemente enganar a exequente e conseguir, em prejuízo desta, que ela, por força de tal engano em que ele dolosamente a induziu, entregasse à sociedade sacadora dos cheques as mercadorias que ele, opoente, pretendia que lhe fossem entregues, para manter a sua laboração industrial em seu proveito e da sacadora dos cheques, que doutra forma não conseguiria obter.
19º Dolosamente se reservando o direito de, se e quando viesse a ser chamado a honrar o aval que lhe fora exigido, poder invocar a divergência de assinaturas em ordem a não pagar aquilo que ficou a dever em consequência da sua prestação.
21º Com tal atuação e com a dedução desta oposição, o opoente está a exceder os mais elementares ditames da boa fé negocial.

A questão central reconduz-se a saber se os dizeres “dou o meu aval a favor da firma C. Recauchutagem” e se a assinatura manuscrita ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso de cada um dos cheques dados à execução, foram apostos pelo punho do opoente Paulo.

Para o efeito foi ordenada a realização de prova pericial.

O Laboratório incumbido do exame apresentou o relatório pericial no qual afirma que não é possível formular conclusão.
Assim, numa primeira fase, o resultado da prova pericial revelou-se inconclusivo.
A questão, todavia, não ficou resolvida na medida em que se consignou expressamente naquele relatório pericial que “a escrita produzida na colheita de texto, quando comparada com a escrita de assinaturas, não configura a hipótese de uma escrita natural”.

E esta afirmação vem estribada na circunstância de a escrita contestada ser maioritariamente em maiúsculas, fluente e evoluída enquanto a escrita produzida na colheita de autógrafos ser em maiúsculas, muito pouco fluente e de traçado lento.
Acrescenta-se naquele relatório que a escrita das assinaturas genuínas de Paulo é também fluente e envolve letras minúsculas. No entanto, quando solicitado a escrever texto em minúsculas, declarou não saber escrever de outra forma que não em letras maiúsculas.

Daí que, no caso presente, em termos de juízo pericial, considerou-se existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto, pouco fluente, em maiúsculas, sendo cada letra constituída por vários traços.

Nestas condições, não foi possível o exame comparativo e, consequentemente, formular qualquer conclusão.

Daqui, podíamos já inferir que a impossibilidade de realização do exame em termos conclusivos se ficou a dever ao facto de o opoente Paulo não ter produzido ou oferecido, como termo de comparação, quando da colheita de texto perante o Laboratório, uma escrita natural.

Mas esta hipótese de escrita não natural, significará o mesmo que escrita artificial, isto é, intencionalmente modificada?

No caso sub judice, cremos que sim, em face das diligências instrutórias realizadas.

A simples observação visual, mesmo sem possuir conhecimentos especiais, causa a impressão forte de artificialidade (cada letra é constituída por vários traços).

Mas é o próprio perito que, não obstante as justificações apresentadas pelo opoente, afirma existir uma clara incompatibilidade entre a escrita de assinaturas, fluente e em minúsculas, e a escrita de texto a maiúsculas, muito pouco fluente e constituída por traços.

Admitindo, até aqui, alguma dúvida, cremos ter sido sanada com as diligências instrutórias posteriormente realizadas, e assentes num juízo pericial.

Foram juntos novos elementos documentais e realizou-se um novo exame pericial.

Neste novo exame, o Laboratório, tendo procedido à comparação entre os cheques incontestavelmente preenchidos pelo punho do opoente e os originais dos cheques dados à execução, já concluiu que a escrita contestada atribuída a Paulo, pode ter sido produzida pelo seu punho.

Mas de importância capital revelou-se a prestação de esclarecimentos da Srª Perita que subscreveu o relatório e que após ressaltar as diferenças entre a escrita dos documentos obtidos de forma espontânea e os obtidos por colheita de autógrafos afirma que este tipo de inconsistência interna na produção da escrita nas colheitas de autógrafos, com falta de fluência, hesitações e correcções configura a hipótese de “alteração voluntária de escrita”.
Conclusão que manteve e explicou quando foi ouvida em julgamento, afastando com argumentação técnica as diversas hipóteses que lhe eram colocadas como justificativas daquele tipo de letra.

A Srª Perita não emitiu uma opinião, uma probabilidade, ou sequer manifestou um estado de dúvida. Emitiu um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão em análise.

Daí a valoração da prova pericial, por assentar em critérios científicos e objetiváveis, tendo sido descrito e explicado pela perita o procedimento de análise que conduziu às suas conclusões. É este conjunto de critérios objetivos que permite ao juiz, na ausência de conhecimentos científicos equiparáveis ao do perito, formular um juízo sobre o mérito intrínseco e grau de convencimento a atribuir ao laudo pericial (neste sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, “A valoração da prova pericial”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (27), 2016, p. 11-24).

Do que se deixa exposto, forçosa se impõe a conclusão de que o opoente por meio da alteração voluntária de escrita tornou impossível a obtenção de um resultado pericial conclusivo e, assim, a impossibilidade de a parte onerada, o exequente, demonstrar os factos que eram relevantes para a sua defesa.

Sendo certo que, no caso, não se trata de uma mera culpa ou culpa negligente, mas sim de uma atuação dolosa, pois é manifesto que o opoente usou propositadamente uma escrita aos tracinhos visando com isso impedir o Laboratório de comparar a escrita contestada com a sua escrita genuína, obtida esta em quantidade e qualidade suficientes que o habilitassem a um juízo científico rigoroso e conclusivo.

Quando assim é, verificado um comportamento culposo, opera a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º, nº 2, do C. Civil.

A propósito da impossibilitação culposa da prova, defende Ferreira de Almeida que, “inverte-se o ónus da prova com base na regra de experiência de quem coloca entraves excessivos, ou mesmo insuperáveis, à descoberta da verdade material é o que mais descrê da consciência do seu direito, além de violar o princípio da cooperação entre as partes no domínio do processo” (Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 239).

Invertido o ónus probatório, passa a competir ao opoente demonstrar não ter sido ele o autor das escritas e das assinaturas em discussão nos presentes autos.

Coligida a prova produzida, não logrou o opoente fazer a demonstração de tal facto.

Pelo exposto, o facto “Os dizeres “dou o meu aval a favor da firma C. Recauchutagem, Lda.” e a assinatura ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso dos cheques referidos em 1 dos factos provados, foram apostos pelo punho do opoente Paulo”, terá de ser dado como provado.

Esta modificação do Facto 1º, decorrente da inversão do ónus da prova, não é extensível à demais factualidade impugnada, para a qual, como resulta da motivação da sentença recorrida, não foi produzida prova bastante.

Ponderando as razões expostas pela Recorrente em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, formamos convicção coincidente com a convicção do tribunal recorrido.
Pelo que, quanto estes factos mantém-se inalterada a decisão.

Em suma, a decisão da matéria de facto deverá ser alterada, passando a constar dos factos provados o seguinte facto: Os dizeres “dou o meu aval a favor da firma C. Recauchutagem, Lda.” e a assinatura ilegível aposta por baixo de tais dizeres, constantes do verso dos cheques referidos em 1 dos factos provados, foram apostos pelo punho do opoente Paulo.
*
3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Em face da modificação da decisão de facto, cumpre proceder à correspondente subsunção jurídica.
Foram dados à execução dez cheques que contêm os requisitos essenciais mencionados no artigo 1º da Lei Uniforme relativa ao Cheque (doravante designada por L.U.Ch.): a palavra "cheque" inserta no texto do título, o mandato puro e simples de pagar quantia determinada, o nome do sacado e do sacador, a data de pagamento, a indicação do lugar em que o cheque é passado, e indicação da data em que e do lugar onde o cheque é passado.

O opoente/executado alegou serem falsas as assinaturas apostas nos cheques apresentados à execução, no local do aval, assinaturas essas que lhe são atribuídas.

Quando se dá à execução um escrito particular, como é o caso do cheque, se for alegada a falsidade da assinatura constante desse escrito, incumbe ao exequente o ónus de provar a sua veracidade (art. 374º, nº2, do C.Civil).

Todavia, se a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, há inversão do ónus da prova, passando a competir-lhe a prova de que não foi ele a apor a assinatura no escrito.

De acordo com o art. 344.º, nº 2, do C.Civil, há “inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações”.

Deste normativo decorre que este instituto exige a verificação de dois pressupostos:

a) que a prova de determinada factualidade, por ação da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer;
b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título culposo.

A “inversão do ónus da prova” surge, assim, como uma forma de sanção civil, punitiva de uma ilicitude civil.

Tal foi o caso dos autos.

Sancionou-se o comportamento culposo evidenciado pelo opoente (executado), imputando-lhe o ónus de demonstrar a falsidade da assinatura.

Não conseguiu o opoente efetuar essa prova.

De acordo com a factualidade apurada, para o que agora interessa, resultou provado que a exequente tem em seu poder os dez cheques que deu à execução, constando no verso desses cheques os seguintes dizeres “dou meu aval a favor de firma C. Recauchutagem, lda”., seguidos de uma assinatura manuscrita ilegível, aposta por baixo de tais dizeres, os quais (dizeres e assinatura) foram apostos pelo punho do opoente Paulo.

O pagamento do cheque passa pela aposição do nome do sacador ou avalista no lugar próprio para tal – art. 10º a 13º da L.U.Ch.
Não tendo resultado demonstrada a falsidade da assinatura, atento o disposto nos art. 342.º, nº 1 e 344.º, nº 2 do Cod.Civil, terá o tribunal de considerar que as mesmas foram apostas pelo opoente/executado.

Nesta conformidade, demonstrado que está que o opoente subscreveu os mencionados cheques na qualidade de avalista, é ele um obrigado cambiário e, portanto, responsável pelo seu pagamento.

Consequentemente, a oposição deve ser julgada improcedente.
*
IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, revogando a douta sentença recorrida, assim julgando improcedente a oposição à execução deduzida pelo executado Paulo, prosseguindo esta os seus termos.
Sem custas.
Guimarães, 18 de Outubro de 2018

Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves
Fernanda Proença Fernandes


1. Cfr. Geraldes, António Santos Abrantes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 256.