Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5250/19.3T8GMR-A.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
GERENTE DE DIREITO
GERENTE DE FACTO
CAUSA EXCLUDENTE DE RESPONSABILIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1. Verificada que seja a factualidade consubstanciadora das alíneas a), e d), do nº2, do artº 186º, do CIRE, haverá que qualificar-se a insolvência como culposa, presumindo-se a culpa dos gerentes da pessoa coletiva e o nexo de causalidade entre aquela sua conduta e o resultado, sem admissibilidade de prova em contrário.
2. A circunstância de alguém ser apenas gerente de direito, que não de facto, não o exime das obrigações impostas pelo Código das Sociedades Comerciais, designadamente pelo seu artº 64º, não constituindo o seu afastamento da esfera decisória causa excludente da sua responsabilização.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Em 12 de julho p.p., o Juízo de Comércio de Guimarães prolatou sentença com o seguinte dispositivo:
Nestes termos, decide este Tribunal:
Qualificar como culposa a insolvência de X Unipessoal, Lda.
A) Será abrangido pela qualificação como culposa o gerente de facto R. C. e a gerente de direito M. C.;
B) Declarar o gerente R. C. inibido para o exercício do comércio durante 5 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
C) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente detidos pelos gerentes R. C. e M. C. bem como determinar que sejam restituídos à massa quaisquer bens ou direitos recebidos em pagamento desses créditos;
D) Condenar os gerentes R. C. e M. C. a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património.
E) Declarar a gerente de direito M. C. inibida para o exercício do comércio durante 2 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
Custas a cargo da massa insolvente – art.º 304.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.
Registe e notifique.

Inconformada com a decisão, M. C. interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões sintetizadas:

I. O Tribunal a quo qualificou como culposa a insolvência de X Unipessoal, Lda., abrangendo “o gerente de facto R. C. e a gerente de direito M. C.”, condenando, consequentemente, a aqui Recorrente, M. C., à inibição de exercer comércio durante 2 anos, bem como de ocupar qualquer cargo titular de órgão de sociedade civil ou comercial, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa. Assim como, determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente detidos pela gerente, M. C.. E, por fim, condenar a Recorrente a indemnizar os credores da Insolvente nos montantes dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património.
II. Sucede que a Douta decisão não deu como provados determinados factos cuja prova foi feita em audiência de julgamento e baseou-se em factos antagónicos à verdade material, pois que a sentença é constituída por factos incorretamente julgados (estes basilares da motivação do Tribunal), que impunham uma decisão contrária à doutamente proferida, quando confrontados com os meios probatórios carreados aos autos.
III. Conquanto, tendo em consideração os documentos e depoimentos carreados aos autos, o Tribunal deveria, para além dos então dados como provados, ter dado igualmente como provado que:
“1. A Requerida era tão só uma operária da sociedade.
2. E não praticava quaisquer atos de gestão de relevo na devedora, nem tinha quaisquer funções de chefia.
3. A oponente, tratando-se de uma pessoa completamente analfabeta, julgava que era uma simples funcionária.
4. Quando a filha foi despedida e procurou auxílio jurídico para ser ressarcida dos seus créditos laborais, a Requerida tomou conhecimento de que era na verdade titular e gerente da sociedade, aqui insolvente.
5. Bem como, constatou que o Sr. R. C., já havia constituído uma outra sociedade, designada “F. C., Unipessoal, Lda.”.
7. Não foi ela que procedeu ao levantamento daquelas quantias, muito menos rececionou tais quantias, resultantes da atividade da sociedade.”

ISTO PORQUE
IV. O Tribunal a quo achou que o depoimento das testemunhas, C. F., M. P., S. N., A. A., C. P. e A. C., foi prestado de forma isenta e segura, as quais resumem-se: ao facto da Recorrente, M. C., ser apenas uma empregada, cujas funções eram de colar tela;
quem dava as ordens, pagava os salários e falava com os fornecedores era o SENHOR R. C. e sua esposa, CT.. Veja-se o depoimento da testemunha, C. F., realizado no dia 14 de junho de 2021, que consta dos minutos [00:52] aos minutos [01:28], do minuto [09:24] ao [10:09] do minuto [02:24] ao minuto [02:55].
V. Efetivamente, esta testemunha afirma com toda a convicção que a D.ª M. C. não era gerente de facto da sociedade, até porque, para ele, esta não tinha capacidades para executar tais funções, nem Responsabilidade limitada nunca praticou atos de gestão, tipicamente reconhecido de um sócio/gerente de uma empresa -Ver minuto [01:19] ao minuto [01:28] do seu depoimento.
VI. Tanto é assim que, a testemunha, C. F., tomou conhecimento da mudança de sociedades pelo SR. R. C., e não pela Requerida M. C., não obstante este estar diariamente com a mesma, dado que era ele, quem lhe dava boleia na ida ao trabalho e no regresso a casa (minuto [01:43] ao minuto [01:51]). E só desconfiou que a Requerida pudesse, eventualmente, ser a gerente da sociedade “X”, quando assistiu à IMPOSIÇÃO pelo Requerido, R. C., para que a Requerida, M. C., assinasse uns documentos – veja-se a gravação do seu depoimento no minuto [04:40] ao minuto [05:17] -, sendo sua convicção que a Requerida não tinha a mínima noção do que estava a assinar e quais as suas inerentes consequências.
VII. No mesmo sentido, as testemunhas M. P., S. N., S. F., A. A., A. C. asseveraram que as contratou, quem lhes dava ordens, que lhes pagava o salário e quem falava com os clientes e fornecedores era o SR. R. C. e sua esposa, CT. – Vide gravação do seu depoimento prestado nos minutos [02:27] aos minutos [03:11] da testemunha M. P.; vide gravação dos depoimentos das testemunhas S. N. e S. F., nos minutos [00:53] a [00:58] e [01:25] a [01:59] - O que demonstra que a Recorrente não sabia que era sócia e gerente da sociedade, sempre pensando, até à data do despedimento da filha, que era uma mera funcionária.
VIII. Pela prova produzida e aqui chamada à colação, o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que a Requerida era tão-só uma operária da sociedade, bem como não praticava quaisquer atos de gestão de relevo na devedora, nem tinha quaisquer funções de chefia.
MAIS,
IX. As referidas testemunhas afirmaram que a Recorrente, M. C., apenas tomou conhecimento de que era sócia e gerente da sociedade “X”, quando a filha, ao ser despedida, se dirigiu ao Sindicato para reivindicar os seus direitos. Até então estava na completa ignorância. - Veja-se a gravação do depoimento da testemunha M. P., mormente os minutos [03:12] até aos minutos [04:16] e [04:28] até [05:00] e da testemunha C. P., prestado aos minutos [01:16] até aos minutos [02:34] da testemunha, S. N., com início a [02:20] até [03:02] e a [03:57] a [04:50].
ACRESCE QUE,
X. A testemunha, M. P., declarou inclusive que, quando “explodiu” o escândalo sobre o despedimento da filha da M. C., o Requerido, R. C., e a esposa, CT., mantiveram a versão de que eram eles os donos da sociedade – vide gravação do seu depoimento prestado a [04:28] até [05:00].
XI. Face ao exposto, o tribunal a quo não podia ter dado como não provado o facto da Oponente achar que era uma simples funcionária, pois que da prova produzida em audiência de julgamento é indiscutível que a Requerida, M. C., desconhecia por completo que tinha constituído uma sociedade e que era a gerente da mesma. Assim, salvo o devido respeito por melhor opinião, entende a Requerida que o ponto 3 e 4 dos factos não provados, devem passar para a lista dos factos dados como provados.
XII. No que tange ao ponto 5 dos factos não provados, as testemunhas, S. N. e S. F., afirmaram que, quando o SR. R. C. decidiu fechar a empresa “X”, que lhes ofereceu emprego numa outra sociedade denominada “F. C.” – veja-se, na gravação dos seus depoimentos os minutos [02:58] aos [03:41] e os minutos [04:30] aos minutos [04:53]. Tendo então ficado provado que o SR. R. C., já havia constituído uma outra sociedade, designada “F. C.”, razão pela qual não se aceita que o ponto 5, no seu todo, seja dado como não provado.
CONTUDO,
XIII. Já não se pode dar a mesma credibilidade ao depoimento prestado pela Contabilista, a DRA. E. L., pelo facto do seu testemunho desta não foi de todo isento e imparcial, conquanto a mesma teve um discurso pouco coeso, bastante esquivo e hesitante, demonstrando inclusive uma relação extremamente comprometida com o SR. R. C.. Na verdade, a contabilista falou de forma hesitante, notava-se insegurança e receio de se comprometer no seu depoimento, pois que o seu discurso não fluía naturalmente, existia muita relutância em falar sobre o assunto. Mais, aquela testemunha não se lembrava sequer do nome da sócia e gerente da sociedade insolvente “X”, apenas se lembrando do nome do SENHOR R. C., de forma espontânea, sem quaisquer hesitações! – vide sua gravação nos minutos [01:07] aos minutos [01:43], o que contraria o afirmado - nos minutos [13:14] a [13:21] -, quando pelas suas próprias palavras: com a contratação dos seus serviços inicia-se uma relação de trabalho.
XIV. Ora, tal comportamento só pode ser explicado com o facto de esta ter sempre estado em conluio com o SENHOR R. C., ou pelo menos, ter conhecimento desde o início que o Requerido enganou a Requerida e que, quem na verdade geria a sociedade insolvente “X”, era o SENHOR R. C. e sua Esposa. Tanto é que, a certo ponto do seu depoimento, mais precisamente, no minuto [13:14] ao minuto [13:30], a contabilista mostra pouca convicção sobre o facto da Requerida ter tido consciência do que estava a fazer e a assinar, quando foi pela primeira vez ao seu gabinete, não tendo deixado claro que lhe deu os esclarecimentos a que se encontrava adstrita. Apenas deixou bem claro uma coisa: quem efetivamente tratava de todos os assuntos, nomeadamente os contabilísticos era o SENHOR R. C., mediante procuração outorgada a seu favor – Vide depoimento nos minutos [05:47] a [06:11].
XV. Outro contrassenso é facto da Contabilista dizer que não estranhou o SR. R. C. levar a Requerida, M. C., para dar início de uma atividade de uma outra sociedade, cuja atividade e sede, curiosamente, era exatamente a mesma da aqui Insolvente “X”. Muito menos estranhou a junção de uma procuração com poderes gerais de gestão a favor do SR. R. C., nem de ser ele a tratar de todos os assuntos, inclusive o pagamento pelos serviços por si prestados – Vide depoimento nos minutos [11:32] a [11:54]. Como é bom de ver, qualquer pessoa, com a formação académica idêntica à da testemunha, facilmente concluiria que o SR. R. C. constituiu uma nova sociedade utilizando o nome da Requerida, M. C., aproveitando-se do seu analfabetismo e ignorância. Afirmou ainda, de forma convicta, que quem procedeu aos levantamentos foi o SENHOR R. C. – Vide depoimento do minuto [15:08] a [15:22], porém, questionada se alguma vez vira cheques assinados pela Requerida esta disse não se recordar – Vide depoimento do minuto [17:19] a [17:59].
XVI. Assim, salvo melhor opinião, não pode ser dado tamanha relevância ao depoimento desta testemunha, cujo testemunho se demonstrou pouco coerente, e este não só não corrobora com o alegado pela Administradora de Insolvência, como com as restantes testemunhas arroladas pela Requerida, muito menos com a documentação junta aos autos – veja-se as declarações da AI cujo início ocorreu a [00:51] e terminou a [14:03]. Acresce que, além de a Sra. Administradora não ser capaz de determinar quem efetivamente se apossou daquele dinheiro de caixa (Vide depoimento prestado nos minutos [07:39 a [08:12]), também só logrou encontrar dois cheques assinados pela Requerida, M. C., que são os cheques datados de 06/08/2018, no valor de €511,03 (Quinhentos e onze e três cêntimos) e €345,99 (Trezentos e quarenta e cinco euros e noventa e nove cêntimos), perfazendo uma módica quantia de €857,02 (Oitocentos e cinquenta e sete euros e dois cêntimos), conforme dado aliás como provado no ponto 19 da sentença.
XVII. Sempre ressalvando que não existe prova concreta que a Requerida tenha recebido tais quantias, até porque as testemunhas foram todas assertivas sobre as dificuldades económicas que a mesma passava, nunca tendo manifestado qualquer comportamento de luxúria (neste sentido veja-se o depoimento da testemunha, C. P., veja-se a gravação do seu depoimento nos minutos [06:03] a [07:14]) - portanto, significa que a Recorrente M. C. não procedeu ao levantamento da quantia global de €250.434,31 (Duzentos e cinquenta mil, quatrocentos e trinta e quatro euros e trinta e um cêntimos), pois que, como é bom de ver, qualquer pessoa que tivesse desviado tal quantia, certamente não viveria nas condições descritas pelas testemunhas, não pediria dinheiro emprestado e já teria tratado do problema de saúde (fenda palatina e ausência de dentes), que a impede de falar corretamente, conforme documento junto aos autos através do requerimento n.º 39072026, datado de 02 de junho de 2021.
XVIII. Analisando todos os depoimentos e conjugando com o depoimento da Requerida, podemos concluir que D.ª M. C. estava completamente alheia ao que se passava ao seu redor, até ser “desmascarada” a situação. Aliás, a mesma julgava que continuava a trabalhar para empresa “G. R.”, que era uma simples funcionária a executar a tarefa de colar telas -desconhecendo por completo o esquema montado pelo Sr. R. C..
XIX. Em suma, a Requerida é na verdade uma VÍTIMA, dado que, na realidade, o SR. R. C. e sua esposa, aproveitaram da sua total ignorância para criar uma sociedade em seu nome, bem sabendo que esta não tinha de todo consciência das consequências dos atos por si praticados (assinar documentos cujo teor desconhecia), bem como da sua relevância jurídica.
Por conseguinte, apenas se alcançará a verdade material com a alteração da matéria de facto dada como não provada, nomeadamente a que consta dos pontos 1 a 5 e 7.
XX. Tendo em consideração a explicação que antecede e para a elucidação das razões que levam a Recorrente a não concordar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, realizar-se-á imperativamente uma reapreciação da matéria de facto, bem como a elaboração de variadas considerações de Direito. Devendo, portanto, passar a constar como factos provados os seguintes pontos:
• A Requerida era tão só uma operária da sociedade.
• E não praticava quaisquer atos de gestão de relevo na devedora, nem tinha
quaisquer funções de chefia.
• A oponente, tratando-se de uma pessoa completamente analfabeta, julgava que era uma simples funcionária.
• Quando a filha foi despedida e procurou auxílio jurídico para ser ressarcida dos seus créditos laborais, a Requerida tomou conhecimento de que era na verdade titular e gerente da sociedade, aqui insolvente.
• Não foi ela que procedeu ao levantamento daquelas quantias, muito menos rececionou tais quantias, resultantes da atividade da sociedade.
• Bem como, constatou que o Sr. R. C., já havia constituído uma outra sociedade, designada “F. C., Unipessoal, Lda.”.
XXI. O tribunal recorrido dá por preenchido as alíneas a) e d), do n.º 2 do artigo 186º do CIRE, isto é, o tribunal considera que os gerentes, de direito, M. C., e de facto, R. C., fizeram desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património da sociedade “X” e que dispuseram dos bens da sociedade em proveito pessoal ou de terceiros. Contudo, com o devido respeito, a aqui Recorrente entende que, da matéria dada como provada, não resultam preenchidos o n.º 1, 2 al. a) e d) do art.º 186º do CIRE, como foi considerado na douta sentença.
VEJAMOS PORQUÊ:
XXII. Pese embora o art.º 185º do CIRE qualifique a insolvência como fortuita ou culposa, não define, num artigo, o que se deve entender como insolvência fortuita, o que já não se verifica com a insolvência culposa. De acordo com o artigo 186.º do CIRE a insolvência é culposa quando se verificar simultaneamente: i) a mesma sobreveio a uma atuação ou omissão dolosa, ou com culpa grave, ii) do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito, iii) que tenha causado ou agravado a situação de insolvência, iv) e tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do respetivo processo. O n.º 2 do artigo 186.º do CIRE estabelece um elenco taxativo de situações de cuja verificação individualmente considerada - o mesmo é dizer, da ocorrência de qualquer uma delas -, decorre a presunção inilidível de uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, causal da situação de insolvência, sem possibilidade de prova do contrário. Acresce ainda um segundo requisito, na interpretação e aplicação do n.º 3 do art.º 186: para além da prova dos factos integradores das várias alíneas do preceito (a partir dos quais se presume a culpa grave), é necessário ainda a prova do nexo de causalidade entre tal atuação culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
XXIII. Note-se que, com a previsão do art.º 186º, nºs. 1 e 2 do CIRE, o legislador não visou excluir os administradores de direito que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a atos praticados por administradores de facto. Ou seja, a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais que se impunham ao gerente da insolvente [art.º 64º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC)], ISTO QUANDO ESTE TEM CONHECIMENTO DE QUE CONSTITUÍRA UMA SOCIEDADE E FORA NOMEADO GERENTE. Um administrador de direito que não exerce, de facto, está, por opção, a não exercer o seu fundamental dever de cuidar, previsto no art.º 64º do CSC, nomeadamente na modalidade do dever de controlo, com gravidade acrescida em situação de dificuldades, em que o cenário de insolvência é um dos possíveis. O cargo de gerente/administrador é incompatível com o respetivo não exercício. A opção de se manter inativo em nada fazer viola lei imperativa e não funciona como causa de exclusão de responsabilidade, podendo e devendo ser abrangido pela qualificação da insolvência da sociedade administrada como culposa - o que não acontece no caso em apreço.
XXIV. Aqui, a gerente de direito, M. C., tal como acima demonstrado e provado em sede de julgamento, não tinha sequer consciência de que era gerente da sociedade “X”, pelo que é falso que a mesma se tenha acomodado à situação. A Recorrente, M. C., sempre que assinava um documento, julgava estar relacionado com o seu contrato de trabalho, nunca suspeitou que fosse gerente da sociedade, estando completamente à margem da empresa. Desta feita, como podia a Recorrente controlar e vigiar a condução da atividade da sociedade, quando não sabia sequer que detinha esse poder-dever, previsto no art.º 64º do CSC? Ou renunciar ao cargo ou requer judicialmente o seu investimento no mesmo, se nem sequer sabia que detinha esse cargo?
XXV. Assim, no caso que nos ocupa, entende a aqui Recorrente, M. C., não estar preenchido a al. a) do art.º 186º do CIRE, pois que não foi ela que fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património da sociedade, mas sim o gerente de facto, o SR. R. C., à revelia da gerente de direito, uma vez que desconhecia que assumira formalmente o cargo de gerente. Com efeito, ficou provado que a M. C. apenas teve conhecimento de que era sócia e gerente da sociedade Insolvente, quando a sua filha fora despedida pelo Sr. R. C. e sua esposa, conforme supra melhor explanado.
XXVI. Acresce que, os únicos cheques encontrados com a assinatura da ora Recorrente, M. C., ainda que se admitisse que fosse ela a levantá-los, sempre se tratam de montantes pouco consideráveis, no cômputo geral do património da sociedade [um de €511,03 (Quinhentos e onze euros e três cêntimos) e €345,69 (Trezentos e quarenta e cinco euros e sessenta e nove cêntimos), respetivamente, perfazendo um total de €856,72 (Oitocentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos)]. Ora, tais valores correspondem a uma ínfima parte do património da sociedade. E atendendo ao preceito legal consignado na al. a) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, apenas se considera culposa a insolvência quando os administradores, de direito ou de facto, tiverem feito desaparecer, TODO OU EM PARTE CONSIDERÁVEL, o património do devedor. Logo, no que tange à aqui Recorrente, não se aplica aquela alínea.
XXVII. O mesmo se dirá quanto ao disposto na al. d) do citado preceito legal, pois que a Recorrente, M. C., não dispôs dos bens da sociedade em proveito pessoal ou de terceiros. Aliás, é entendimento unânime da jurisprudência que, embora a citada alínea d) do n.º 2 do art.º 186.º não faça menção à importância económica dos bens de que o administrador dispôs em proveito pessoal ou de terceiros, se não estiver demonstrado o seu valor ou que os bens tinham algum relevo económico, a insolvência não deve, com fundamento nessa norma, ser qualificada como culposa.
XXVIII. Ora, compulsada a factualidade dada como provada, constata-se, efetivamente, que o segundo requisito que aqui se assinala não se mostra preenchido, já que, apesar de se ter apurado que foram realizados atos de disposição, torna-se necessário apurar o valor dos bens sobre que recaíram os atos de disposição aqui questionados. Destas considerações decorre assim que, apesar de se mostrar apurado o valor, objeto dos atos de disposição aqui questionados, tem que se concluir que não é possível qualificar a Insolvência como culposa, pelo menos no que tange à gerente de direito/Recorrente, como entendeu o Tribunal Recorrido.
XXIX. Finalmente, importa ter em atenção que a presunção que aqui está em jogo mostra-se estabelecida em função dos atos de disposição e do proveito que deles possa ter resultado para os terceiros adquirentes ou para os próprios Administradores da devedora/Insolvente. In caso: não resulta da matéria de facto provada que os atos de disposição (propriamente ditos) tenham sido realizados em proveito pessoal da devedora ou dos terceiros adquirentes, até porque foi dado como provado que os valores em caixa, recebido em dinheiro e não depositado na conta, nem os valores depositados no Banco ..., entraram na esfera patrimonial da Recorrente (Ponto 32 dos factos dados como provados). Também não ficou provado que os atos de disposição foram produzidos para proveito de terceiros, não se preenchendo o requisito da al. d) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE. Nesta conformidade, e por todas as razões expostas, julga-se não se mostram preenchidos os requisitos previstos na al. d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE.
XXX. Aqui chegados, e tendo em conta toda a exposição que antecede resta, pois, concluir que a decisão da Primeira Instância não se pode manter, nomeadamente no que concerne ao juízo valorativo por esta efetuada, quanto à qualificação de insolvência como culposa, uma vez que não se mostram preenchidos os requisitos legais estabelecidos na al. d) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, no que tange à aqui Recorrente, conforme se julga ter-se demonstrado.
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim
- apurar da correção da fixação da matéria de facto;
- apurar do preenchimento dos requisitos legais para qualificação da insolvência como culposa;
- apurar da possibilidade de responsabilização como afetada pela insolvência, de gerente de direito.
*********
III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

1. De acordo com a Certidão de Matrícula disponível, a sociedade X Unipessoal Lda. foi constituída em 16/05/2018.
2. Iniciou a sua atividade para efeitos fiscais no dia 17/05/2018.
3. Tem como objeto social a fabricação de calçado.
4. Teve como sócio-gerente M. C., NIF ……… e como gerente de facto R. C..
5. Apresentou-se à Insolvência em 27/09/2019.
6. Consta do Balancete Geral Acumulado de 31/03/2019 (último disponível), o seguinte:
a. Conta 111 – Caixa: € 250.434,31
b. Conta 1201 – Banco ...: € 78.462,61
7. Constam do extrato bancário da conta à ordem titulada pela X Unipessoal, Lda. junto do Banco ..., S.A., referente ao período de 12/04/2019 a 01/10/2019, os seguintes movimentos:


8. Verifica-se, assim, foram efetuados levantamentos ao balcão no montante global de € 58.400,00.
9. Em 16/12/2019 foi enviada carta registada à sócia e gerente M. C., endereçada para a Ruela …, na qual foi notificada para proceder ao pagamento do montante de € 250.434,31, correspondente ao saldo de caixa em 31/03/2019.
10. Para o efeito, foi notificada para emitir cheque à ordem da Massa Insolvente de X Unipessoal, Lda., e entregá-lo à signatária.
11. Foi ainda notificada para esclarecer os movimentos abaixo descritos:



12. Atendendo o alegado na petição inicial, “3. Quem na verdade era titular e dirigia a referida empresa, entre maio de 2018 e a presente data, era o Sr. R. C.”, em 16/12/2019 foi enviada carta registada ao Sr. R. C.,
endereçada para a Rua …, na qual foi notificado para proceder ao pagamento do montante de €250.434,31, correspondente ao saldo de caixa em 31/03/2019.
13. Para o efeito, foi notificado para emitir cheque à ordem da Massa Insolvente de X Unipessoal, Lda. e entregá-lo à signatária.
14. Foi ainda notificado para esclarecer os movimentos abaixo descritos:

15. Na mesma data foi enviada carta simples.
16. A carta registada enviada ao Sr. R. C. veio devolvida com a indicação de “Não Atendeu” “Objeto não reclamado”.
17. Até à presente data, o Sr. R. C. não entregou o cheque correspondente ao saldo de caixa em 31/03/2019, no montante de € 250.434,31, nem prestou qualquer esclarecimento.
18. Em 19/12/2019, a sócia e gerente M. C., informou o seguinte, que por facilidade de exposição se reproduz: “(…)
1. Vem V. Exa. solicitar a emissão de um cheque, à ordem da Massa Insolvente de “X, Unipessoal, Lda.”, no valor de €250.434,31 (Duzentos e cinquenta mil, quatrocentos trinta e quatro euros e trinta e um cêntimos).
2. De facto, resulta do balancete que foi faturado e recebido tal quantia, e que a mesma nunca chegou a ser depositada no Banco.
3. Acontece que, tal como foi frisado na petição inicial, a aqui respondente, M. C., apesar de constar como gerente, nada sabe sobre o assunto.
4. Ou seja, desconhece o paradeiro de tal exorbitância.
5. Tanto que, esta foi declarada insolvente, pelo Juízo de Comércio de Guimarães, no Juízo 1, com o processo n.º 5408/19.5T8GMR. – cfr. Doc.n.º 1.
6. Pelo que não pode proceder à entrega da dita quantia.
7. Quanto aos levantamentos dos cheques melhor discriminados na V/carta, sempre se esclarece que não foi a M. C. que procedeu aos levantamentos dessas quantias,
8. Mas sim, o Sr. R. C., através de uma procuração por si assinada, embora aos eu ver nula por vício de vontade.”
19. Consta dos elementos bancários os seguintes movimentos:

20.De acordo com as reclamações de créditos apresentadas, a insolvente deixou de cumprir as suas obrigações desde agosto de 2018.
21.Tem dívidas à Segurança Social que compreendem o período de 2018/08 a 2019/06, no montante global de € 29.613,65.
22.Tem dívidas à Fazenda Nacional desde setembro de 2018, no montante global de € 95.564,77, relativas a IVA, IRS, IRC, coimas, encargos e custas.
23. Nas reclamações de créditos apresentadas pelos trabalhadores é mencionado o seguinte:
a) “Em 16 de Setembro de 2019, o gerente de facto, R. C., tão só, fechou as portas da fábrica, sem dar mais amplas explicações, nem entregar a Declaração de Situação de Desemprego a fim de obter as respetivas prestações de desemprego e sem o pagamento das respetivas compensações e créditos salariais.”
b) “Após as férias foi dito à requerente pela D. M. C. para ficar em casa pelo fato da empresa não ter trabalho e aguardar pelo seu telefonema para regressar. Como o tempo foi passando e a reclamante não obtinha qualquer contato por parte da D. M. C. nem pessoalmente nem telefonicamente procurou saber o que se passava e acabou por descobrir que a empresa se tinha apresentado à insolvência no dia 27 de setembro de 2019.”
24. A Requerida sociedade “X, Unipessoal, Lda.” Foi constituída em 16 de maio de 2018, com o objeto social de fabricação de calçado.
25. A Requerida sociedade tem sede na Rua … Guimarães e número de pessoa coletiva ……….
26. O seu capital social é de 200,00 Euros (Duzentos Euros);
27. Distribuído por uma única quota, em nome da sócia, M. C., no valor de 200,00 Euros (Duzentos Euros).
28. A Requerida Insolvente tem como gerente a mencionada sócia, M. C., vinculando-se através da sua assinatura.
29. A requerida assinou uma procuração, dando poderes de gerência ao Sr. R. C., mediante procuração, sendo este o autor material de todos os atos consubstanciadores da criação da situação de insolvência
30. Resulta da contabilidade que existia em caixa, €250.434,31 (Duzentos e cinquenta mil quatrocentos e trinta e quatro euros e trinta e um cêntimos) e no banco do ... um saldo de €78.462,61 (Setenta e oito mil, quatrocentos e sessenta e dois euros e sessenta e um cêntimos).
31. Do extrato bancário, verifica-se que foram efetuados levantamentos entre 12 de abril de 2019 a 01 de outubro de 2019, no respetivo balcão, no valor de €58.400,00 (Cinquenta e oito mil, e quatrocentos euros).
32. Quer o montante em caixa, recebido em dinheiro e não depositado na conta; quer os valores depositados no Banco ..., nunca entraram na esfera patrimonial da oponente.
33. A requerida trabalhou inicialmente para a sociedade “G. R., Unipessoal, Lda.”, com NIPC ……… e sede na Rua …, Guimarães, cujo sócio e gerente era única e exclusivamente, o Sr. R. C..
34. A requerida é analfabeta.
35. De acordo com as reclamações de créditos apresentadas, deixou de cumprir as suas obrigações desde agosto de 2018 uma vez que:
a) Tem dívidas à Segurança Social que compreendem o período de 2018/08 a 2019/06, no montante global de € 29.613,65.
b) Tem dívidas à Fazenda Nacional desde setembro de 2018, no montante global de € 95.564,77, relativas a IVA, IRS, IRC, coimas, encargos e custas.
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O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:

1. A Requerida era tão só uma operária da sociedade.
2. E não praticava quaisquer atos de gestão de relevo na devedora, nem tinha quaisquer funções de chefia.
3. A oponente, tratando-se de uma pessoa completamente analfabeta, julgava que era uma simples funcionária
4. Quando foi despedida, em 16 de setembro de 2019, e procurou auxílio jurídico para ser ressarcida dos seus créditos laborais, tomou conhecimento de que era na verdade titular e gerente da sociedade, aqui insolvente.
5. Bem como, constatou que o Sr. R. C., já havia constituído uma outra sociedade, designada “F. C., Unipessoal, Lda.”, com NIPC ………, e sede na Ruela … Vizela, sendo a sua única sócia e gerente, a sua cunhada (esposa do seu irmão), R. F..
6. Facto que soube através de alguns dos seus colegas de trabalho, que foram transferidos da sociedade insolvente para a sociedade supra melhor identificada, a qual tem como sede o local onde oponente exercia as suas funções.
7. Não foi ela que procedeu ao levantamento daquelas quantias, muito menos rececionou tais quantias, resultantes da atividade da sociedade.
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B. Fundamentos de direito.

B.1 Da impugnação de matéria de facto

Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Resulta desta norma que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
No que toca à especificação dos meios probatórios, estabelece o artigo 640º, nº2, alínea a), que: “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.2011, Álvaro Rodrigues, 1079/07, decidiu-se que “A lei impõe ao recorrente que indique (concretamente) os depoimentos em que se funda, não sendo suficiente indicar um conjunto de testemunhas que depuseram a determinado facto (mesmo que venham devidamente identificadas pelos nomes e outras referências), para depois se concluir, sem mais, que ouvidos os seus depoimentos se deveria decidir diferentemente.”.
Incumbe ao impugnante alegar o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão do Tribunal recorrido relativa à matéria de facto.
Por sua vez, no Acórdão do STJ de 9.2.2012, Abrantes Geraldes, 1858/06, decidiu-se que “Insurgindo-se contra uma decisão fundada em determinados meios de prova que ficaram concretizados na motivação, era suposto que se aprimorasse na enunciação dos reais motivos da sua discordância traduzidos na análise crítica (e séria) da prova produzida e não na genérica discordância quanto ao facto de o tribunal de 1ª instância ter dado mais relevo a umas testemunhas do que a outras. Ónus esse que deveria passar pela análise conjugada dos diversos meios de prova, relevando os que foram oralmente produzidos e os de outra natureza constantes dos autos.”.
A recorrente pretende que sejam considerados como provados os factos 1 a 5 e 7, que o tribunal recorrido deu como não provados, basicamente tendo por base a reprodução em bloco das declarações das testemunhas que assinala.
A possibilidade de exercício efetivo de duplo grau de jurisdição no que se refere à apreciação da prova por parte do Tribunal da Relação tem como contrapartida o cumprimento pelo recorrente do ónus de impugnação com rigor, não bastando a expressão de “inconsequente inconformismo”, como refere Abrantes Geraldes. Não obstante, são percetíveis as razões pelas quais a recorrente discorda da motivação do tribunal recorrido, razão pela qual se consideram cumpridos os apontados requisitos formais.
Começar-se-á por referir que foi ouvida integralmente a audiência de julgamento realizada, com duas sessões, a primeira das quais inconsequente.
De referir ainda que a ata da sessão de 14 de junho, assinada a 16, omite completamente as testemunhas S. N. e S. F., lapso que a audição da gravação no cotejo com a ata permitiu reparar. Todavia, a sentença faz-lhes referência na motivação da prova, não havendo, por isso, omissão relevante com influência na decisão da causa.
Assente o exposto, analisemos então a pretensão da recorrente.
Dispõe o artº 607º, nº5, do CPC, que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
Significa isto, desde logo, que pela circunstância de uma testemunha referir determinado facto não há que considerar o mesmo necessariamente provado.
Assim, e quanto aos três primeiros factos que a recorrente defende deverem ser dados como provados, nada a apontar ao decidido. Não nos convenceu minimamente a versão do alegado desconhecimento da recorrente sobre a circunstância de figurar como gerente da sociedade. Desde logo, pensamos que o alegado (rectius, provado pelo tribunal recorrido) analfabetismo careceria de prova mais consistente. Autofagicamente, na procuração forense junta aos autos, em que constituiu mandatária, consta que a procuração forense foi lida e assinada pela recorrente. Depois, relativamente ao ato apresentado a registo na conservatória de registo comercial teria tido interesse ver o que consta dos respetivos documentos na base do registo, nomeadamente quanto ao que terá sido (ou não) cumprido relativamente, por exemplo, às exigências dos artºs 46º, nº1, m), e artº 50º, nº3, do Código de Notariado. Igual raciocínio para a alegada procuração da recorrente a favor do alegado empregador R. C.. Ou até ter pedido cópia do pedido de cartão de cidadão (ou bilhete de identidade, se anterior) e verificar o que aí consta.
A recorrente alegou ainda nas suas conclusões (XXIV) que sempre que assinava um documento, julgava estar relacionado com o seu contrato de trabalho. Então não discutia isso com os seus colegas, não achou estranho que de todos os funcionários apenas a si fosse pedido para assinar documentos?
Sem embargo do exposto, foi dado como assente (e não impugnado) que a recorrente é analfabeta (só sabendo assinar o nome) e é desse pressuposto que se partirá.
O tribunal recorrido, na motivação, refere que a contabilista da sociedade, E. L., fez menção a deslocações da recorrente ao seu gabinete, em que inclusivamente foram feitas fotocópias do cartão de cidadão e a recorrente teve de assinar. Ouvido o seu depoimento resulta que a mesma referiu que a recorrente foi mais do que uma vez ao seu gabinete e, que se lembre, esteve lá pelo menos duas ou três vezes. Ou seja, ficamos com a convicção de que haveria um qualquer acordo, cujos termos não se apuraram, entre a recorrente e o citado R. C.. E a tal acordo não obsta o caráter de analfabeta da recorrente que foi dado como provado. Analfabetismo não equivale a vício de vontade ou a imputabilidade diminuída. Daí que não se possa dar como provado que a recorrente fosse uma simples operária, ou que não praticasse atos de gestão na devedora. Por outro lado, importa aqui enfatizar que a não prova de um facto não significa a prova do facto contrário, ou seja, ao não se dar como provado, v.g., que a recorrente não praticava atos de gestão não se tem como provado que os praticasse. Igual raciocínio é válido para os demais factos não provados. A sede própria de extração das consequências do que se afirma é a decisão de mérito, infra explanada, pelo que nos abstemos de mais comentários nesta sede.
Também quanto aos factos 4, 5 e 7 dados como não provados, devem manter-se. Com efeito, e dando por reproduzidas as considerações antecedentemente feitas, da circunstância de as testemunhas ouvidas fazerem menção a uma suposta relação de subalternidade da autora perante o referido R. C. e mulher deste (que não foi ouvida como testemunha), não se pode retirar a prova da factualidade que a recorrente pretende ver como assente. Nem existem sequer documentos juntos nos autos que consintam tal conclusão. Mesmo a circunstância de a recorrente ter apresentado queixa crime contra o citado R. C. não permite retirar tal conclusão. Apresentar uma queixa crime não equivale a considerar como provados os alegados factos que lhe servem de fundamento. Aliás, então também não deveria ter apresentado queixacrime contra as pessoas que, a montante, intervieram necessariamente na constituição da sociedade, no seu registo, na abertura de contas bancárias, e contra a contabilista, a cujo gabinete se deslocou algumas vezes e onde terá assinado documentos? Não nos convence. Também a menção às alegadas dificuldades económicas da recorrente nada permite concluir sobre as motivações da recorrente e sobre o acordo que pudesse ter com o citado R. C.. E a circunstância de as quantias levantadas e que deveriam estar em caixa não terem sido total ou parcialmente afetas à recorrente não invalida as considerações anteriores. E, repete-se, a não prova de um facto não equivale à prova do facto contrário.
A circunstância de as testemunhas ouvidas referirem que a recorrente era uma subalterna, até pior tratada que as outras, não invalida a convicção deste tribunal de recurso de que haveria um qualquer acordo entre a recorrente e o referido R. C., ainda que dele as testemunhas nada eventualmente soubessem. Uma coisa não é excludente da outra.
Em suma, a auto-vitimização da recorrente, tal como não convenceu o tribunal recorrido, também não nos convence.
Ou seja, nada temos a censurar ao acervo dos factos contra os quais a recorrente se insurgiu, dados como provados e não provados pelo tribunal recorrido, improcedendo assim a pretensão da recorrente quanto a este ponto.

B.2 Do mérito do recurso:

Na definição de Luís M. Martins (1), o incidente de qualificação da insolvência (pleno ou limitado) é um incidente obrigatório de apreciação da conduta do devedor e/ou dos seus administradores, que tem como finalidade a responsabilização dos mesmos nos casos em que existe culpa pela situação de insolvência.
O incidente de qualificação pode ser limitado (artº 191º) ou pleno (artº 188º) e a insolvência pode ser qualificada como culposa (artº 186º), sujeita aos efeitos estatuídos no artº 189º, ou fortuita quando, por exclusão de partes, não estão preenchidos os requisitos do artº 186º.

Dispõe o artº 186º, do CIRE, na redação à data vigente, que:
1 – A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artº 188º.
3 – Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 – O disposto nos nºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 – Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.

O tribunal recorrido, e como decorre da sentença, baseou a sua decisão basicamente em 2 fundamentos:
- No disposto no artº 186º, nº1, do CIRE: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”;
- Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – cfr. al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE e também com base na alínea a), desse nº2, por força do desaparecimento de dinheiro de caixa em montante ligeiramente superior a €250 mil.
Como resulta do AcRG de 4/04/2019, processo nº 109/14.3TBCHV-A.G1, “Há, porém, certos comportamentos ilícitos dos administradores das pessoas coletivas que o legislador tipificou como insolvência culposa, prescindindo do juízo sobre a culpa, os quais vêm taxativamente enumerados no nº2 (do artº 186º, do CIRE). Assim, pode-se ler que será considerada culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham (…) h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; I) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2, do artº 188º. Trata-se de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, presumindo-se, por isso, iuris et de jure que a insolvência é culposa. (…) Daí que, tal como sucede nas presunções iuris et de jure não exista a possibilidade de prova em contrário, mas ainda que fique dispensada a alegação e consequentemente a prova de qualquer outro facto, ficcionando a lei, desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa. Nestes termos, verificada qualquer uma das situações tipificadas taxativamente no nº2, do artº 186º, do CIRE, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como dolosa. De facto, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado nº2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento”.
Vide também, com interesse, relativamente às presunções do nº 2, do artº 186º, do CIRE, o AcSTJ de 15/02/2018, processo nº 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1.

O tribunal recorrido fundamentou bem as razões pelas quais a insolvência deveria ser considerada culposa:
Na verdade, apurou-se que os gerentes, principalmente o de facto, procederam ao levantamento e posterior ocultação de bens da insolvente, através das contas bancárias, tendo incumprido sistematicamente as suas obrigações ao Estado. Encontram-se contabilizados diversos levantamentos em dinheiro de montantes muito elevados da conta da insolvente, sem que os mesmos tenham destino comprovado e justificado. A conta de caixa também tem um montante elevadíssimo não tendo sido apreendida nenhuma quantia. A justificação dada pela TOC é que se tratariam de levantamentos efetuados sem justificação”.
São razões que subscrevemos e que no cotejo com o anteriormente exposto determinam tal conclusão, quer em termos de matéria de facto dada como provada quer face às citadas disposições legais. A circunstância de o dinheiro subtraído da caixa não ter como destino, total ou parcialmente, a aqui recorrente, não invalida que tal possibilidade fosse uma consequência necessária do acordo que teria com o citado R. C., e que em termos de critérios de normalidade prática não poderia desconhecer. Esta apreciação tinha de ser previamente feita, pois dela depende a extensão à apelante, ou não, dos respetivos efeitos.
Por tudo o exposto, dúvidas não restam sobre o acerto da decisão recorrida na qualificação da insolvência como culposa.
A questão que então se coloca é a de saber se a recorrente deveria ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa, designadamente tendo em conta que era alegadamente mera gerente de direito.
É pacífico jurisprudencial e doutrinalmente que a circunstância de alguém ser apenas administrador de direito não é excludente das obrigações impostas pelo Código das Sociedades Comerciais, designadamente pelo seu artº 64º:
A previsão do artº 186º, nº1 e 2, do CIRE, não visou excluir os administradores de direito, que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a atos praticados por administradores de facto. II – A ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais que se impunham ao gerente da insolvente (artº 64º, nº1, do CSCom), pelo que a invocação de que, como gerente de direito, a requerida estava afastada do dia-a-dia da sociedade, não a dispensava dos seus deveres para com a sociedade” – AcRP de 22/10/2019, Processo nº 327/15.7T8VNG-B.P1, in www.dgsi.pt;
O primeiro dever de um administrador é o de exercer, de facto, as funções para as quais foi nomeado, pelo que a circunstância de se manter afastado da administração da sociedade e o desconhecimento da situação económico-financeira da mesma não o ilibam, por si só, de quaisquer responsabilidades no eclodir ou no agravar de uma situação de insolvência. 2 – Assim, a circunstância de nunca ter participado de facto na administração da devedora, não o isenta do cumprimento das obrigações legais que sobre ele impendem enquanto vogal do conselho de administração, constituindo a ignorância e o alheamento relativamente aos destinos da sociedade, por si só, uma violação de tais deveres. 3 – Se a violação de tais deveres se concretizar num comportamento por omissão, como são o caso dos deveres de elaboração e aprovação das contas e respetivo registo e o de apresentação à insolvência, o administrador de direito será de considerar afetado pela qualificação da insolvência quando tal obrigatoriedade se mostre incumprida.” – AcRC de 11/10/2016, processo nº 462/12.3TJCBR-J.C1, in www.dgsi.pt;
A insolvência de uma sociedade comercial deve forçosamente ser qualificada como culposa quando provada factualidade subsumível à previsão de qualquer uma das alíneas do nº 2 do artº 186º, do CIRE, pelo que a constatação da existência de culpa (quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência), relevante para efeitos de qualificação da insolvência como culposa não admite prova em contrário (atenta a presunção iuris et de jure).
Detendo o requerido a qualidade de gerente de direito é manifesto que a insolvência que seja declarada culposa nos termos do nº 2 do artº 186º, do CIRE, o tem de abranger, ainda que a gerência de facto seja exercida por terceiro.
Foi o próprio legislador quem quis – ao criar o instituto da insolvência culposa – responsabilizar os devedores e administradores, no pressuposto de que, quem assume determinadas funções, deve estar à altura de poder responder, em toda a linha.” – AcRG de 21/05/2020, processo nº 1048/19.7T8GMR-A.G1.
É manifesto que que a situação conducente à qualificação da insolvência como culposa se deve à recorrente e ao citado R. C., independentemente do grau de participação efetiva de cada uma nos destinos da sociedade. A inobservância das suas obrigações legais, designadamente à luz do artº 64º do CSC, consubstancia culpa grave: “Alegados e provados os factos que servem de base a uma, ou várias, das presunções elencadas no nº 2 do artº 186º, contanto que se verifiquem dentro do limite temporal legalmente previsto (três anos anteriores ao prazo insolvencial), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador (isto é, a insolvência será sempre considerada como culposa), prescindindo-se da verificação ou demonstração do nexo causal entre o ato legalmente tipificado e a criação ou agravamento da situação de insolvência do nº 1 do artº 186º - AcRG de 19/09/2019, processo nº 4778/15.9T8VNF-B.G1.
Assim, concluindo, tem de se considerar correta a apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, improcedendo o recurso interposto.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente (artº 527º, nº1, e 2, do CPC), sem prejuízo do hipotético benefício de apoio judiciário.
Notifique.
Guimarães, 4 de novembro de 2021.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria Eugénia Pedro.
2º Adjunto: Pedro Maurício.


1 - Processo de Insolvência, Almedina, 2016, pág. 446.