Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
110/19.0PFBRG.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INCUMPRIMENTO INJUNÇÕES E REGRAS DE CONDUTA
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A revogação da suspensão provisória do processo pressupõe culpa grosseira ou reiterada no não cumprimento das obrigações impostas ao arguido.
II - Não há revogação automática da suspensão provisória do processo, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento.
III- Incumbe ao Ministério Público a verificação de incumprimento e, uma vez constatado este, averiguar dos respectivos motivos para aferir da existência e medida da culpa do arguido, em ordem a decidir pela revogação, modificação ou prorrogação da suspensão do processo.
IV - Para tal, o arguido deve ser ouvido, sob pena de violação das garantias de defesa que, em processo penal, devem ser asseguradas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Especial Abreviado nº 110/19.0PFBRG, do Juízo Local Criminal de Braga, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi submetido a julgamento o arguido:
I. S., casado, músico, filho de R. B. e de A. B., natural do Brasil, nascido em - de Março de 1983, residente na Rua Padre …, em Braga, e titular do C.C. nº ..........
*
2. Em 11/09/2020 foi proferida sentença, depositada no mesmo dia, na qual, como questão prévia, se decidiu o seguinte (transcrição (1)):

Questão prévia
Nos presentes autos, depois de obtida a concordância do Juiz de Instrução, o Ministério Público, por despacho proferido em 04/11/2019, determinou a suspensão provisória do processo, pelo período de 5 (cinco) meses, mediante o cumprimento pelo arguido das seguintes injunções:

a) Prestar 65 (sessenta e cinco) horas de serviço de interesse público em instituição a indicar pela DGRSP;
b) Abster-se de conduzir veículos a motor durante o período de 4 (quatro) meses consecutivos, devendo proceder à entrega, nos Serviços do Ministério Público, do respectivo título de condução, no prazo de 10 (dez) dias a contar da data da notificação desse despacho; e
c) Abster-se de requerer a 2.ª via da carta de condução – cfr. fls. 21/22, 24 e 26.

O arguido foi notificado do referido despacho por via postal simples com prova de depósito, ocorrido em 08/11/2019 (fls. 27 e 30), considerando-se notificado em 13/11/2019, 5º dia posterior ao depósito (art. 113º, nº 3 do CPP).
O prazo de 10 (dez) dias para entrega da carta de condução tinha o seu término em 23/11/2019. Como tal dia correspondeu a um sábado, o termo do prazo transferiu-se para o dia 25/11/2019, primeiro dia útil seguinte (art. 138º, nº 2 do CPC, ex vi do art. 104º, nº 1 do CPP), data em que o arguido entregou a sua carta de condução (fls. 31 ss).
Em 06/12/2019, a DGRSP remeteu aos autos o plano para cumprimento da injunção supra referida em a). Desse plano constava como data prevista para o início da prestação de trabalho o dia 06/01/2020 (fls. 39).
Conclusos os autos em 04/05/2020, por despacho de 05/05/2020, foi determinada a notificação do arguido para se apresentar, na data estipulada (?), nas instalações onde decorreria a prestação de serviço público, com a advertência de que o processo prosseguiria caso não cumprisse a mesma (fls. 40).
O arguido foi notificado de tal despacho por via postal simples com prova de depósito, ocorrido em 11/05/2020, considerando-se notificado em 16/05/2020, 5º dia posterior ao depósito (art. 113º, nº 3 do CPP) – fls. 41 e 45.
Por informação datada de 28/04/2020, a DGRSP veio dar conta de que, em face do plano de contingência para o COVID-19, não era possível dar continuidade à prestação de trabalho, entretanto, iniciada pelo arguido. Mais informou que o mesmo já tinha executado 8 (oito) horas de serviço de interesse público e que retomaria o cumprimento findo o referido plano de contingência (fls. 43).
Em 03/07/2020, a DGRSP informou que contactou o arguido em 28/05/2020, tendo o mesmo referido que se encontrava a realizar trabalhos esporádicos de apanha de mirtilos para sobrevivência do seu agregado familiar, não tendo disponibilidade de horário para retomar o serviço de interesse público. Nos dias seguintes, foi tentado o contacto telefónico, mas sem sucesso porquanto o arguido não atendeu. Mais informou que remeteu, por carta, convocatória para entrevista no dia 29/06/2020, mas o arguido não compareceu nem justificou os motivos da sua ausência (fls. 49/50).
Em face de tal informação, em 11/07/2020, o Ministério Público, sem que tivesse notificado o arguido para esclarecer as razões do incumprimento, concluiu pela verificação de incumprimento culposo e, ao abrigo do disposto no art. 282º, nº 4, al. a) do CPP, deduziu acusação para julgamento em processo abreviado (fls. 51 ss).

Apreciando.

A suspensão provisória do processo é um instituto jurídico-processual, previsto nos arts. 281º e 282º, ambos do CPP, imbuído do espírito dos sistemas de oportunidade, para crimes de reduzida gravidade, em que o Ministério Público, com a concordância do arguido, do assistente (se o houver) e do Juiz de Instrução, suspende provisoriamente a tramitação do processo penal e determina a sujeição do arguido a injunções ou regras de conduta durante um determinado período de tempo.

Na parte que ora nos interessa, dispõe o art. 282º do CPP que:

«(…)
3 - Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4 - O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
(…)».

A opção pela dedução da acusação em vez do arquivamento compete ao Ministério Público e ocorre quando o arguido não cumpre – total ou parcialmente – as injunções ou regras de conduta, ou quando, durante o período da suspensão do processo, comete crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
Interessa-nos a primeira das situações acabadas de mencionar (incumprimento das injunções ou regras de conduta).
É pacífico o entendimento de que a revogação da suspensão provisória do processo e dedução de acusação não decorre automaticamente de qualquer incumprimento – muito menos quando o incumprimento é parcial -, envolvendo, antes, um juízo de culpa por parte do arguido quanto a esse incumprimento.
O incumprimento das injunções ou regras de conduta pode conduzir à revogação da suspensão provisória do processo, à revisão das injunções ou regras de conduta decretadas, optando-se pela imposição de outras, ou à prorrogação do prazo das anteriores até ao limite legalmente admissível, sendo que, nestas duas últimas hipóteses, é necessário o prévio acordo do arguido, do assistente e do Juiz de Instrução.
Trata-se aqui de aplicar, por analogia, as regras previstas nos arts. 55º e 56º do CP para o incidente de incumprimento da suspensão da execução da pena.
Assim, a revogação da suspensão provisória do processo, à semelhança da revogação da suspensão da execução da pena, prevista no art. 56º, nº 1, al. a) do CP, pressupõe uma actuação indesculpável, em que o comum dos cidadãos não incorreria e que, por isso, não mereça ser tolerada nem desculpada, pressupondo culpa grosseira ou reiterada no não cumprimento das obrigações impostas.
Como refere PAULO PINTO DE ALBURQUERQUE, «[n]ão há revogação automática da suspensão provisória do processo, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento. O critério estabelecido é o do incumprimento das injunções e regras de conduta com culpa grosseira ou reiterada do arguido, tal como prevê o artigo 56.º do CP» - in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, p. 741.
E como afirma MAIA COSTA, «o incumprimento deverá ser culposo, ou repetido, em termos idênticos aos que o Código Penal prevê para a revogação da suspensão da pena, no art. 56º, nº 1, a). Ou seja, o incumprimento não terá que ser doloso, mas deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido, ou então repetidamente assumido (…)» - in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 989.
Deste modo, incumbe ao Ministério Público averiguar da verificação de incumprimento e, uma vez verificado este, averiguar dos respectivos motivos para aferir da existência e medida da culpa do arguido, em ordem a decidir pela revogação, modificação ou prorrogação da suspensão do processo.
A prossecução do processo com a dedução de acusação pressupõe, assim, que o Ministério Público se pronuncie sobre o incumprimento e conclua pelo incumprimento das injunções ou regras de conduta com culpa grosseira ou reiterada do arguido.
Para tal, o arguido deve ser ouvido, sob pena de violação das garantias de defesa que, em processo penal, devem ser asseguradas (art. 32º, nº 1 da CRP). Com efeito, o exercício do contraditório, é, no nosso ordenamento jurídico, um princípio natural, uma exigência fundamental do Estado de Direito e, em processo penal, abrange as decisões susceptíveis de afectar pessoalmente o arguido (art. 61º, nº 1, al. b) do CPP), ressalvadas as excepções previstas na lei (corpo do nº 1 do art. 61º do CPP).
No caso concreto, o processo ficou suspenso pelo período de 5 (cinco) meses, mediante o cumprimento pelo arguido das injunções supra referidas, período que se iniciou em 13/11/2019, com a notificação ao arguido do despacho que determinou a suspensão, com término em 13/04/2019.
O arguido procedeu à entrega da carta de condução no prazo estipulado, não havendo notícia do incumprimento das injunções supra referidas em b) e c).
Relativamente à injunção supra referida em a), constata-se que o arguido iniciou o seu cumprimento mesmo antes de notificado para o efeito pelo Ministério Público. Na verdade, o arguido apenas foi notificado para dar início à prestação de trabalho em 16/05/2020. Sucede que, nessa altura, já o mesmo tinha iniciado a prestação de trabalho e cumprido 8 (oito) horas de serviço de interesse público, conforme decorre da informação da DGRSP datada de 28/04/2020. Repare-se, ainda, que, aquando do despacho proferido em 05/05/2020, já tinha decorrido o período da suspensão, pelo que se impunha uma decisão acerca da prorrogação do referido período.
A prestação de trabalho, iniciada pelo arguido mesmo antes de notificado para o efeito, foi interrompida na sequência da implementação do plano de contingência da doença COVID-19, que o impossibilitou de continuar a cumprir a injunção fixada.
Entretanto, como decorre da informação da DGSRP datada de 03/07/2020, ficaram reunidas as condições para reinício da prestação de trabalho, mas o arguido deu conta da indisponibilidade de horário para o efeito, na medida em que se encontrava a trabalhar na apanha de mirtilos para assegurar a sobrevivência do seu agregado familiar; ulteriormente, a DGRSP não conseguiu contactá-lo telefonicamente, sendo que o arguido não compareceu à entrevista, entretanto, agendada e para cuja comparência havia remetido convocatória.
Perante tal informação, o Ministério Público imediatamente concluiu que o arguido não cumpriu a injunção porque não quis e, portanto, pela existência de culpa no não cumprimento, deduzindo acusação para julgamento em processo abreviado. E chegou a tal conclusão sem sequer ouvir o arguido acerca das razões do não cumprimento, diligência que se impunha, por ser fundamental para aferir da culpa do arguido, sendo também fundamental para aferir da medida da culpa que, eventualmente, se viesse a constar existir, tudo com vista a poder decidir pela revogação, modificação ou prorrogação da suspensão do processo. Não se percebe como se pode concluir pela existência de culpa no incumprimento (muito menos pela culpa grosseira exigida para a revogação da suspensão provisória do processo) com base no não atendimento de chamadas telefónicas e no não comparecimento a uma entrevista agendada por carta, sem se cuidar de indagar a razão pela qual o arguido não atendeu as chamadas e não compareceu à entrevista, sendo evidente a possibilidade de existência de razões justificativas para tal.
E note-se que este arguido iniciou o cumprimento da prestação de trabalho antes mesmo de notificado para o efeito, viu a sua prestação interrompida por causa que não lhe foi imputável e informou a DGRSP de circunstâncias supervenientes que o impossibilitaram de dar continuidade à prestação de trabalho, circunstâncias essas que, a verificarem-se, deveriam ser atendidas pelo Ministério Público na decisão a tomar.
Entendemos que a omissão da audição do arguido em momento prévio à decisão de prosseguimento do processo integra a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d), por violação do art. 61º, nº 1, al. b), ambos do CPP, tendo tal omissão sido, tempestivamente, invocada pelo arguido (cfr. art. 120º, nº 3, al. d) do CPP).

Neste sentido aponta o Acórdão da Relação do Porto de 09/12/2015, onde se pode ler que:

«I - Com vista à decisão sobre o prosseguimento do processo, previsto no artº 282º 4 CPP há que averiguar da culpa do arguido ou da sua vontade de não cumprir, na ocorrência dos factos que a tal possam conduzir.
II - Por isso, o arguido deve ser ouvido previamente à decisão, sob pena de nulidade dos artºs 120º2d) e 61º1 b) CPP» – proferido no processo n.º 280/12.9TAVNG-A.P1, pelo relator Nuno Ribeiro Coelho, in www.dgsi.pt.

As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, os actos que dele dependerem e os que puderem ser afectados pelo vício, aproveitando-se os actos que ainda possam ser salvos daquele efeito. A declaração de nulidade deve determinar quais os actos que passam a considerar-se inválidos, ordenando, quanto a estes, sempre que possível, a sua repetição e quais os actos que podem ser aproveitados (art. 122º do CPP).

No caso, a nulidade em causa torna inválido o despacho proferido em 11/07/2020 e o subsequentemente processado, com excepção da nomeação de defensor.

Por tudo quanto se expôs, ao abrigo do disposto nos arts. 120º, nº 2, al. d) e 122º, ambos do CPP, decide-se declarar a invalidade do despacho proferido em 11/07/2020, que determinou o prosseguimento dos autos, deduzindo acusação, e dos actos processuais subsequentes dependentes da acusação deduzida, com excepção da nomeação de defensor.
Notifique, deposite e dê baixa.
Após trânsito, remeta os autos aos DIAP para os efeitos tidos por convenientes.
(...)”.
*
3. Inconformado com tal decisão, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos constantes de fls. 96/102 Vº, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1. Por despacho proferido a 4 de Novembro de 2019, foi determinada a suspensão provisória do processo, pelo período de cinco meses.
2. Ficando o arguido sujeito ao cumprimento das seguintes injunções: prestar 65 horas de serviço de interesse público em instituição a indicar pela DGRSP; abster-se de conduzir veículos a motor durante o período de 4 meses consecutivos, devendo proceder à entrega nos Serviços do Ministério Público do respectivo título de condução, no prazo de 10 dias a contar da notificação; e abster-se de requerer a 2ª via da carta de condução.
3. O termo da suspensão dos autos estava previsto para o dia 14 de Abril de 2020
4. O arguido apenas executou 8 horas do trabalho a favor da comunidade.
5. Para verificação do cumprimento ou não da injunção imposta, atenta a sua natureza, a prestação de trabalho a favor da comunidade, foi o Ministério Público coadjuvado pela DGRSP, conforme prescreve o artigo 281º, nº 5, do Código de Processo Penal.
6. O arguido violou culposamente os deveres que lhe foram impostos, inviabilizando a retoma da prestação do trabalho a favor da comunidade determinado nos autos.
7. Pois não atendeu os telefonemas efectuados pelos serviços da DGRSP.
8. Não compareceu à entrevista agendada para o dia 29 de Junho de 2020 e para a qual foi convocado por via postal, nem justificou a sua falta.
9. E comunicou à Sr.ª técnica da DGRSP que não tinha disponibilidade de horário para retomar o serviço de interesse público.
10. Os autos não podem aguardar indefinidamente a disponibilidade de horário do arguido, que tinha perfeito conhecimento que o trabalho a favor da comunidade nunca seria executado em prejuízo da sua vida pessoal ou profissional.
11. Era conhecido o motivo pelo qual o arguido não retomou a prestação do trabalho a favor da comunidade – a sua indisponibilidade de agenda.
12. Nessa sequência, foi determinada a revogação da suspensão provisória do processo e o consequente prosseguimento dos autos com a dedução de acusação pública.
13. Tal decisão não foi automática, encontrando-se devidamente fundamentada e cumprindo o disposto no artigo 97º, nº 5, do Código de Processo Penal.
14. E não se bastou com a mera constatação do incumprimento das 57 horas de trabalho socialmente útil por parte do arguido.
15. Em sede de Inquérito e concretamente no âmbito do instituto da suspensão provisória do processo, é ao Ministério Público que incumbe aferir se o arguido cumpriu, ou não, as injunções a que estava obrigado.
16. O comportamento manifestamente ostensivo do arguido em se furtar aos contactos dos serviços da DGRSP, quer por via de contacto telefónico, quer por via postal, assim obviando ao retomar das citadas horas de trabalho socialmente útil, afigurou-se culposo/censurável e imputável em exclusivo ao arguido.
17. Tornado, como tal desnecessária, a prévia audição do mesmo arguido em momento anterior à citada revogação da aludida suspensão provisória do processo.
18. Inexistindo qualquer violação do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
19. Ademais, tal conduta do arguido veio a ter lugar já na sequência da sua notificação (e inerente advertência), do teor do despacho de 5 de Maio de 2020, em sede do qual se veio a comunicar ao arguido que o mesmo se deveria apresentar “na data estipulada, nas instalações onde decorrerá a prestação de serviço de interesse público respectivo, advertindo-o de que o processo prosseguirá caso não cumpra a mesma.”.
20. Face ao teor de tal despacho, o arguido sempre teria, como teve, oportunidade de explanar e explicar nos autos (assim exercendo o seu contraditório e, na prática, o seu “direito de audição”) as razões pelas quais não poderia cumprir as aludidas remanescentes horas de trabalho socialmente útil que se encontravam por cumprir.
21. O despacho do Ministério Público não enferma de qualquer nulidade, designadamente, a prevista no artigo 120º, nº 2, al. a), por violação do art. 61º, nº 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal.
22. Nesta senda, urge concluir que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 120º, nº 2, alínea a), 122º, 282º, nº 4, alínea a) e 338º, todos do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por decisão que julgue não verificada a nulidade suscitada e condene o arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez que lhe foi imputado no libelo acusatório.
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.”
*
4. Na 1ª instância respondeu ao recurso o arguido I. S., nos termos constantes de fls. 115/117 Vº, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida, terminando a sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1. A DOUTA SENTENÇA EM CRISE NÃO É MERECEDORA DE QUALQUER REPARO OU CENSURA, DEVENDO SER INTEGRALMENTE MANTIDA.
2. A SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO NÃO VIOLOU NENHUMA DAS NOÇÕES JURÍDICAS OU DAS NORMAS INVOCADAS PELO RECORRENTE, TENDO DELAS FEITO UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO.
3. CARECE DE QUALQUER FUNDAMENTO O RECURSO ORA INTERPOSTO, PELO QUE DEVE SER MANTIDA E CONFIRMADA A DECISÃO QUE JULGA VERIFICADA A NULIDADE ARGUIDA PELO ARGUIDO, AO ABRIGO DO DISPOSTO NO ARTIGO 120º Nº 2 AL. D) E 122º, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL”.
*
5. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal da Relação emitiu o seu douto parecer, nos termos constantes de fls. 120/121 Vº, defendendo a bondade da decisão recorrida, com a inerente improcedência do recurso.
5.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal (2), não foi apresentada qualquer resposta.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (3).

Assim sendo, no caso vertente, a única questão que importa decidir é a de saber se enferma ou não de invalidade o despacho do Ministério Público que revogou a suspensão provisória do processo sem que o arguido tivesse sido previamente ouvido a fim de esclarecer das razões do eventual incumprimento das injunções que ali lhe foram impostas.
*
2. Mas, para uma melhor compreensão da questão colocada, e uma visão exacta do que está em causa, atentemos, antes de mais, nas principais incidências processuais que os autos nos revelam.

Com efeito:

2.1. No âmbito do Inquérito que deu origem aos presentes autos, nos quais se indiciava que o arguido, no dia 24/10/2010, pelas 01H20, na Rua ..., em Braga, tripulava o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula JC, sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,434 g/l, correspondente à taxa registada de 1,5 g/l, e, concomitantemente, havia incorrido na prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos Artºs. 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, o Digno Magistrado do Ministério Público, pelo despacho de 24/10/2019, exarado a fls. 21/22, por entender que se verificavam os respectivos pressupostos, e após a anuência do arguido, preconizou a aplicação ao mesmo da medida de suspensão provisória do processo, pelo prazo de 5 meses, nos termos do disposto no Artº 281º, nºs. 1 e 2, e 282º, ambos do C.P.Penal, mediante o cumprimento das seguintes injunções e regras de conduta:

a) Prestar 65 (sessenta e cinco) horas de serviço de interesse público em instituição a indicar pela DGRSP;
b) Abster-se de conduzir veículos a motor durante o período de 4 (quatro) meses consecutivos, devendo proceder à entrega, nos Serviços do Ministério Público, do respectivo título de condução, no prazo de 10 (dez) dias a contar da data da notificação do pertinente despacho; e
c) Abster-se de requerer a 2ª via da carta de condução.

2.2. Cumprido o disposto nos Artºs. 281º, nº 1, e 384º, nº 1, o Mmº JIC, pelo despacho de 29/10/2019, exarado a fls. 24/24Vº, deu a sua concordância à mencionada suspensão provisória do processo.

2.3. Pelo que, pelo despacho de 04/11/2019, exarado a fls. 26/26 Vº, a Digna Magistrada do Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo, pelo período de 5 (cinco) meses, contando a partir da notificação do arguido I. S., mediante a imposição das seguintes injunções:

a) Prestar 65 (sessenta e cinco) horas de serviço de interesse público em instituição a indicar pela DGRSP;
b) Abster-se de conduzir veículos a motor durante o período de 4 (quatro) meses consecutivos, devendo proceder à entrega, nos Serviços do Ministério Público, do respectivo título de condução, no prazo de 10 (dez) dias a contar da data da notificação desse despacho; e
c) Abster-se de requerer a 2.ª via da carta de condução.

2.4. O arguido foi notificado do referido despacho por via postal simples com prova de depósito, ocorrido em 08/11/2019, considerando-se notificado em 13/11/2019, 5º dia posterior ao depósito.
2.5. O prazo de 10 (dez) dias para entrega da carta de condução tinha o seu término em 23/11/2019. Como tal dia correspondeu a um sábado, o termo do prazo transferiu-se para o dia 25/11/2019, primeiro dia útil seguinte, data em que o arguido entregou a sua carta de condução (fls. 31 ss).
2.6. Em 06/12/2019, a DGRSP remeteu aos autos o plano para cumprimento da injunção supra referida em 2.3.a), do qual constava como entidade beneficiária da prestação de trabalho a “Junta de Freguesia de ...”, como data prevista para o início da prestação de trabalho o dia 06/01/2020, e como data prevista para o termo da mesma prestação o dia 30/04/2020 (cfr. fls. 39).
2.7. Conclusos os autos em 04/05/2020, por despacho da Digna Magistrada do Ministério Público, de 05/05/2020, foi determinada a notificação do arguido para se apresentar, na data estipulada, nas instalações onde decorreria a prestação de serviço público, com a advertência de que o processo prosseguiria caso não cumprisse a mesma (fls. 40).
2.8. O arguido foi notificado de tal despacho por via postal simples com prova de depósito, ocorrido em 11/05/2020, considerando-se notificado em 16/05/2020, 5º dia posterior ao depósito.
2.9. Por informação datada de 28/04/2020, a DGRSP veio dar conta de que, em face do plano de contingência para o COVID-19, não era possível dar continuidade à prestação de trabalho, entretanto, iniciada pelo arguido. Mais informou que o mesmo já tinha executado 8 (oito) horas de serviço de interesse público e que retomaria o cumprimento findo o referido plano de contingência (fls. 43).
2.10. Por ofício de 01/07/2020, constante de fls. 49/50, a DGRSP informou que havia contactado o arguido em 28/05/2020, tendo o mesmo referido que se encontrava a realizar trabalhos esporádicos de apanha de mirtilos para sobrevivência do seu agregado familiar, não tendo disponibilidade de horário para retomar o serviço de interesse público. Acrescentando que, nos dias seguintes, foi tentado o contacto telefónico, mas sem sucesso, porquanto o arguido não atendeu. E que remeteu, por carta, convocatória para entrevista no dia 29/06/2020, mas o arguido não compareceu nem justificou os motivos da sua ausência.
2.11. Em face de tal informação, em 11/07/2020, a Exma. Magistrada do Ministério Público proferiu o seguinte despacho, que consta de fls. 51/53 (transcrição):
“No âmbito dos presentes auto de inquérito foi aplicado a arguido o Instituto de Suspensão Provisória do Processo pelo período de 5 meses mediante o cumprimento, além do mais, da seguinte injunção: prestar 65 horas de trabalho a favor da comunidade.
Decorrido que se mostra o praza de suspenso, o arguido apenas cumpriu 8 das 65 horas de trabalho a favor da comunidade, não atendendo o telemóvel quando contactado pela DGRSP para a retoma.
O cumprimento da injunção aplicada ao arguido exige empenhamento da sua parte, o que não existiu uma vez que, após a suspensão provisória do processo, o arguido não zelou pelo cumprimento daquilo que lhe havia sido imposto.
Assim se conclui que o arguido só porque não quis não cumpriu a injunção que lhe foi aplicada, declarando-se esta culposamente incumprida.
Nessa medida, e ao abrigo do disposto no artigo 282º, nº 4, alínea a) do Código de Processo Penal, deve o processo prosseguir com a dedução de acusação pública.
**
O Ministério Público, nos termos do art. 391-A, n.º 1 e 391-B, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, acusa em Processo Abreviado e para julgamento com intervenção do Tribunal Singular:
I. S., filho de R. B. e de A. B., natural de Brasil, nascido a -.03.1983, casado, musico, titular do cartão de cidadão n.º ........., residente na Rua …, n.º …, Braga (TIR a fls. 8)

Porquanto indiciam suficientemente os autos que:

a) No dia 24/10/2019, pelas 01H20, na Rua ..., em Braga, o(a) arguido(a), sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,434 g/l, correspondente à taxa registada de 1,51 g/l, tripulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula JC.
b) Tal taxa resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas por parte do(a) arguido(a).
c) Quando se sentou ao volante do referido veículo, o(a) arguido(a) sabia estar sob o efeito do álcool e que a TAS que o afectava era igual ou superior a 1,20 g/l.
d) Indiferente, porém, a tal situação, não se coibiu de tripular o veículo na situação supra descrita, sabendo que não o podia fazer.
e) Agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por lei.

Cometeu, assim, com dolo directo, um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. no art. 292.º, n.º 1, do Cód. Penal, sancionado com a pena acessória de inibição de conduzir, p. e p. pelo art. 69.º, n.º 1, al. a), do mesmo código.

Prova:
(...)”.
2.12. Tal despacho foi notificado ao arguido por via postal simples com prova de depósito, ocorrido em 15/07/2020, considerando-se notificado em 22/07/2020, 5º dia posterior ao depósito.
2.13. Pelo requerimento expedido via email no dia 22/07/2020, constante de fls. 59/67, veio o arguido suscitar “nulidade do inquérito”, nos termos do Artº 120º, nº 2, al. d), do C.P.Penal, em virtude de, em síntese, a supra mencionada decisão de revogação da suspensão provisória do processo ter sido proferida sem que antes o mesmo tivesse sido ouvido, ou mesmo sem que se tivesse aferido da sua culpabilidade no alegado incumprimento das injunções.
2.14. Remetidos os autos à distribuição, sem apreciação do requerimento aludido no ponto anterior, pelo despacho de 28/07/2020, exarado a fls. 71/71 Vº, foi recebida a acusação pública proferida contra o arguido, e designada data para a audiência de discussão e julgamento.
2.15. Pelo requerimento expedido via email no dia 31/07/2020, constante de fls. 72/76, veio o arguido “alertar” o tribunal para o facto de o seu requerimento mencionado em 2.12. ainda não ter sido apreciado, solicitando que sobre ele seja fosse preferida pronúncia e que fosse dada sem efeito a audiência de discussão e julgamento.
2.16. No exercício do contraditório, no dia 05/08/2010 o Digno Magistrado do Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da pretensão do arguido, pugnando pela não verificação da invocada nulidade (Fls. 79/79 Vº).
2.17. No dia 03/09/2010 realizou-se a audiência de discussão e julgamento, como se atesta na acta que consta de fls. 84/85, e no dia 11/09/2020 procedeu-se à leitura da respectiva sentença, com o teor supra mencionado em I.2.
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3. Posto isto.

Como se viu, está em causa no presente recurso a apreciação da decisão da Mmª Juíza a quo que, como questão prévia, na sentença recorrida decidiu declarar a invalidade do despacho proferido pelo Ministério Público em 11/07/2020, que determinou o prosseguimento dos autos, deduzindo acusação contra o arguido, e dos actos processuais subsequentes dependentes da mesma acusação, com excepção da nomeação de defensor, em virtude de, em síntese, ter sido omitida a audição do arguido em momento prévio àquela decisão de prosseguimento do processo.
Sustentando o Ministério Público, ora recorrente, em abono da sua tese, em síntese, que em face do comportamento manifestamente ostensivo do arguido em se furtar aos contactos dos serviços da DGRSP, quer por via de contacto telefónico, quer por via postal, assim obviando ao retomar das citadas horas de trabalho socialmente útil, afigurou-se culposo/censurável e imputável em exclusivo ao arguido, tornando, como tal, desnecessária a prévia audição do mesmo arguido em momento anterior à citada revogação da aludida suspensão provisória do processo, inexistindo qualquer violação do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal.

Vejamos, pois.

Como assertivamente elucida o Exmo. Sr. Conselheiro Maia Costa, in “Código de Processo Penal” Comentado, Almedina, 2ª Edição Revista, 2016, págs. 938/939, “O instituto da suspensão provisória do processo constitui, a par do arquivamento em caso de dispensa de pena e do processo sumaríssimo, uma manifestação do principio do consenso, que não se opõe ao princípio da legalidade da acção penal, e não se confunde com o princípio da oportunidade, pois este concede necessariamente um espaço autónomo, não vinculado, de decisão de acusar ou não acusar ao Ministério Público. Pelo contrário, a suspensão provisória está sujeita a pressupostos legalmente fixados, sendo nesse caso obrigatória. É, pois, ainda dentro dos limites da legalidade que a suspensão provisória se situa. Uma legalidade mais flexível, por razões, materialmente justificadas, de política criminal, por incidir sobre um segmento de criminalidade em que a lógica de conflito, que é inerente ao processo penal, deve ceder algum espaço ao consenso, para realização de fins de política criminal, como a não estigmatização do arguido, que se insere nos fins das penas, na vertente da ressocialização (...)”.

O regime do instituto em causa está regulado nos Artºs. 281º e 282º, resultando da sua análise que não pode haver suspensão sem imposição de injunções e/ou regras de conduta, as quais o arguido é livre de aceitar, ou não, mas que, aceitando-as, torna o seu cumprimento obrigatório, sob pena de o processo prosseguir, como claramente resulta do disposto no Artº 282º, nº 4:

“O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:

a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pela qual venha a ser condenado.”

Daqui poderá extrair-se também que, terminado o prazo de suspensão do processo, a autoridade judiciária que preside à respectiva fase em que é aplicado o instituto da suspensão provisória do processo (o Ministério Público ou o Juiz) deve apreciar e averiguar, sponte sue, procedendo às diligências necessárias para o efeito, o cumprimento das injunções e/ou regras de conduta, sem estar à espera da colaboração do arguido.

Na situação em apreço, como se viu, no âmbito da suspensão provisória do processo estava o arguido obrigado a prestar 65 (sessenta e cinco) horas de serviço de interesse público em instituição a indicar pela DGRSP, a abster-se de conduzir veículos a motor durante o período de 4 (quatro) meses consecutivos, devendo proceder à entrega, nos Serviços do Ministério Público, do respectivo título de condução, no prazo de 10 (dez) dias a contar da data da notificação desse despacho, e a abster-se de requerer a 2ª via da carta de condução.
Ora, se quanto à entrega da carta de condução por banda do arguido dúvidas não há de ter o mesmo cumprido a respectiva injunção, pois que procedeu a essa entrega no dia 25/11/2019, dentro do prazo que lhe foi concedido, já quanto à prestação das 65 (sessenta e cinco) horas de serviço de interesse público em instituição a indicar pela DGRSP, aparentemente, o arguido violou essa sua obrigação, pois que, objectivamente, apenas executou 8 (oito) horas do trabalho a favor da comunidade.
Porém, salvo o devido respeito, não cremos que esse facto, por si só, permita concluir, como o fez o Ministério Público no aludido despacho de 11/07/2020, e sem que ao arguido tivesse sido dada a oportunidade de explicar das razões para esse pretenso incumprimento, que estejamos perante um violação culposa daquela injunção.
Na verdade, relembrando o iter processual, há que sublinhar, desde logo, que o plano elaborado pela DGRSP com vista ao cumprimento daquela injunção foi transmitido aos autos em 06/12/2019, através do fax que consta de fls. 38/39, nele se descrevendo as funções que o arguido iria exercer na Junta de Freguesia de ... (tarefas de recolha, embalamento e distribuição de bens alimentares por pessoas carenciadas), bem como as datas previstas para o início e para o termo das mesmas, a saber, 06/01/2020 e 30/04/2020, respectivamente.
Mais se constatando que, por razões que não nos cumpre sindicar, os autos estiveram “parados” nos serviços do Ministério Público desde aquela data (06/12/2019) até 04/05/2020, altura em que foram conclusos à Digna Magistrada titular, a qual, no dia 05/05/2020, reportando-se àquela comunicação da DGRSP, incompreensivelmente proferiu o despacho que consta de fls. 40, determinando a notificação do arguido “para se apresentar, na data estipulada, nas instalações onde decorrerá a prestação de serviço de interesse público respectivo, advertindo-o que o processo prosseguirá caso não cumpra a mesma”, e bem assim se informasse a “D.G.R.S.P. do teor do presente despacho, solicitando o acompanhamento da prestação de interesse público fixado ao arguido I. S. e a oportuna elaboração de relatório final”.
Que, por registo de 06/05/20202, cuja cópia consta de fls. 41, o arguido foi notificado naqueles exactos termos, o mesmo sucedendo com a DGRSP, conforme consta de fls. 42.
Que, não obstante a singularidade da situação, traduzida na notificação ao arguido para cumprir um plano cujas datas de início e de termo há muito estavam ultrapassadas, o arguido ter-se-á apresentado na aludida instituição. Pois, pelo ofício de 28/04/2020, constante de fls. 43, a DGRSP veio dar conta nos autos que, em face do plano de contingência para o COVID-19, não era possível dar continuidade à prestação de trabalho entretanto iniciada pelo arguido, informando, também, que o mesmo já tinha executado 8 (oito) horas de serviço de interesse público e que retomaria o cumprimento findo o referido plano de contingência.
E que, na sequência do despacho de 02/06/2020, exarado a fls. 47, por ofício de 01/07/2020, constante de fls. 49/50, a técnica da DGRSP informou: ter contactado o arguido em 28/05/2020, e que mesmo referiu que se encontrava a realizar trabalhos esporádicos de apanha de mirtilos para sobrevivência do seu agregado familiar, não tendo disponibilidade de horário para retomar o serviço de interesse público; ter tentado o contacto telefónico com o arguido nos dias seguintes, mas sem sucesso, porquanto o mesmo deixou de atender o telemóvel que havia disponibilizado; e ter convocado o arguido por carta, para entrevista no dia 29/06/2020, mas que o mesmo não compareceu nem justificou os motivos da sua ausência.
Ora, em face dessa informação da técnica da DGRSP, o Ministério Público, sem mais, ou seja, sem que tivesse dado ao arguido a oportunidade para, querendo, esclarecer as razões do incumprimento, concluiu pela verificação de incumprimento culposo das injunções determinadas na suspensão provisória do processo e deduziu acusação para julgamento em processo abreviado.

Salvo o devido respeito, não cremos que esse tenha sido o procedimento mais correcto, concordando-se inteiramente com a Exma. Procuradora Geral Adjunta quando, no seu douto parecer, afirma:

“(...) a revogação da suspensão provisória assentou numa informação sucinta da DGRSP e elaborada a primeira num período de total contingência e a segunda numa fase em que a vida do país estava pouco a pouco a ser retomada, sendo certo que nos autos se desconhece qual o instituto onde o arguido devia prestar o seu trabalho a favor da comunidade, quando teve o seu início e em que consistia e se o mesmo se podia realizar em pleno período de contingência. Estas medidas apanharam todos os serviços de surpresa, causando grandes perturbações, desconhecendo-se mesmo que tipo de acompanhamento foi efectuado durante a sua ocorrência. Por outro lado, o arguido, segundo se informa, referiu que por motivos profissionais não podia continuar a prestar o trabalho a favor da comunidade, que motivos profissionais eram esses? Mas o que é certo é que o arguido num dos contactos que teve com a DGRSP informou que para sobrevivência da família andava na apanha dos mirtilos. Não se apurou se esta informação era ou não verdadeira, mas a sê-lo, até se nos afigura que o arguido demonstrou uma preocupação com o bem estar da sua família, o que se nos afigura ser de louvar.
O arguido atravessou um período conturbado e de grande instabilidade a todos os níveis, daí que pensemos que se tinha que apurar com alguma segurança se o seu incumprimento era efectivamente culposo, o que salvo o devido respeito não foi a nosso ver apurado, devendo ter-se permitido o exercício constitucional do contraditório (...)”.
Na verdade, face à situação vivenciada, importaria averiguar das causas do incumprimento da injunção por banda do arguido, aferindo-se da sua censurabilidade, à semelhança do que acontece com a suspensão da execução das penas (cfr. Artºs. 55º e 56º do Código Penal), garantindo-lhe o direito de ser ouvido e de se pronunciar sobre os motivos do incumprimento, dessa forma dando tradução ao exercício do direito do contraditório.
Pois, como refere Maia Costa, ibidem, pág. 946, "o incumprimento deverá ser culposo, ou repetido, em termos idênticos aos que o Código Penal prevê para a revogação da suspensão da pena, no art. 56º, nº 1, a). Ou seja, o incumprimento não terá que ser doloso, mas deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido, ou então repetidamente assumido (...). Assim, a constatação do incumprimento não pode conduzir automaticamente à “revogação” da suspensão, devendo o Ministério Público (ou o juiz de instrução, se a suspensão tiver sido decretada nessa fase) indagar das razões do incumprimento, em ordem a decidir-se pelo prosseguimento do processo para julgamento ou pelo decurso do prazo da suspensão, consoante apure, ou não, comportamento culposo, ou repetido, por parte do arguido”.
Ora, no caso vertente, não foi concedido ao arguido o direito básico de exercer o contraditório relativamente às razões do alegado incumprimento da injunção em causa, o que, obviamente, afecta de forma grave os seus direitos, tendo em conta a consequência daí decorrente, traduzida no prosseguimento dos autos, com a respectiva submissão a julgamento.
Subscrevendo-se a afirmação da Mmª Juíza a quo quando aduz, no despacho recorrido, que “Não se percebe como se pode concluir pela existência de culpa no incumprimento (muito menos pela culpa grosseira exigida para a revogação da suspensão provisória do processo) com base no não atendimento de chamadas telefónicas e no não comparecimento a uma entrevista agendada por carta, sem se cuidar de indagar a razão pela qual o arguido não atendeu as chamadas e não compareceu à entrevista, sendo evidente a possibilidade de existência de razões justificativas para tal.”.
Cumprindo sublinhar, aliás, a este propósito, que no requerimento em que suscitou a nulidade em causa, aludido em 2.13., o arguido nega ter deixado de atender telefonicamente os contactos dos serviços da DGRSP ou deixado de comparecer quando convocado, conforme é alegado no relatório de 03/07/2020 (mais propriamente do relatório de 30/06/2020). Afirmando, ainda, que durante a situação pandémica e numa clara situação de aperto financeiro, com vista a sustentar a sua família iniciou um novo trabalho (apanha de mirtilo), sendo que, durante esta nova jornada laboral foi contactado telefonicamente, por duas vezes, por aquele serviço, não tendo conseguido atender as chamadas, e quando tentava retribuir as mesmas o número registado não o permitia, sendo que, após estes contactos, apenas em 13/07/2020 recebeu uma carta da DGRSP a convocá-lo para comparecer naquele serviço no dia 21/07/20220, o que fez, tendo explicado à técnica responsável pelo seu acompanhamento que não tinha recebido qualquer comunicação anterior à de 13/07/2020.
Ora, a simples existência dessa carta da DGRS, cuja cópia se encontra junta a fls. 64, indicia claramente a verosimilhança da versão do arguido. Pois, caso contrário, não faria qualquer sentido que aquela entidade, após a prestação nos autos da informação de 30/06/2020, na qual, em bom rigor, dava o assunto como encerrado, tivesse diligenciado por novo contacto com o recorrido, convocando-o para comparecer no dia 21/07/2020, tendo em vista o cumprimento da “decisão do Tribunal”.
Assim, e repetindo-nos, antes de concluir pelo não cumprimento culposo da injunção aplicada ao arguido (prestação de 65 hortas de trabalho a favor da comunidade) no âmbito da suspensão provisória do processo, e pela sua submissão a julgamento, com a dedução da acusação pública, impunha-se que o Ministério Público, ora recorrente, apurasse com o mínimo de segurança das razões desse incumprimento, permitindo ao recorrido pronunciar-se sobre o assunto, o que não sucedeu, ocorrendo uma clara violação das garantias de defesa do arguido e do princípio do contraditório.
Nestas circunstâncias, ponderando a situação concreta colocada nos presentes autos, entendemos não merecer qualquer reparo a decisão recorrida, não se vislumbrando que a mesma tenha violado alguma das normas legais invocados pelo recorrente.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, deverá improceder o presente recurso.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o recorrente – Artº 522º do C.P.Penal.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 11 de Janeiro de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª Edição, pág. 347, e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação obrigatória que ainda hoje mantém actualidade.