Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
80/18.2T8TMC.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
QUALIDADE DE CREDOR DO REQUERIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I Ao nível da legitimidade ativa para requerer o processo de insolvência, detém legitimidade quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não necessariamente quem seja, efetivamente, credor deste.

II - Ao credor só é exigido que proceda à justificação do seu crédito, fazendo corresponder a essa justificação a menção da origem, da natureza e do montante do crédito, o que corresponde a justificar a sua legitimidade processual, ou seja de demonstrar a sua qualidade de credor, que é requisito do seu direito de ação judicial.

III – Deve o credor demonstrar, contudo, no processo a existência do seu crédito, demonstração que deverá ser alcançada com uma prova sumária, compatível com a natureza própria do processo de insolvência.

IV - No artigo 20º, nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas mostram-se elencadas diversas situações que consubstanciam o que se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência.

V - Perante a alegação de qualquer facto-índice, o devedor pode opor-se à declaração de insolvência, não apenas com base na inexistência do facto-índice, mas também com base na inexistência da própria situação de insolvência (art. 30º n.º 3).

VI - O que releva essencial para a situação de insolvência é a insuscetibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO:

(…), casado, empresário, NIF (…) e residente na Rua (…), (…), Braga, veio requerer a declaração de insolvência, de (…) Lda., pessoa colectiva (…) com sede no Lugar de (…) , alegando para tanto e em síntese, que:

- a requerida é uma sociedade comercial que tem como objecto social a exploração de estabelecimentos hoteleiros com restaurante e gestão e exploração de parques aquáticos, tendo sido constituída em (…), com o capital social de €5.000,00, sendo sua gerente (…), e como sócios, para além da Sr.ª (..) o Sr. (…) e a (…).
- que por contrato de cessão de créditos, celebrado por escritura-pública, no dia (…) a Caixa (…) C.R.L., cedeu ao requerente o crédito por si detido sobre a sociedade comercial “… Lda”, no valor, àquela data, de €635.308,87 (seiscentos e trinta e cinco mil trezentos e oito euros e oitenta e sete cêntimos).
- a requerida garantiu o pagamento do crédito cedido ao requerente, através da constituição voluntária de hipoteca sobre os seus bens imóveis, descritos no Título de Mutuo com Hipoteca celebrado no … na Conservatória do Registo Predial de … no âmbito do processo Casa Pronta n.º (…).
- e sobre os bens imóveis descritos no Título de Mutuo com Hipoteca e Fiança celebrado no dia (…) na Conservatória do Registo Predial de (..), no âmbito do processo Casa Pronta n.º (…)
- desta cessão de créditos deu o requerente conhecimento, por carta, à requerida (…), Lda, que a recebeu
- o crédito cedido encontrava-se a ser peticionado pela cedente Caixa (…) C.R.L, em três diferentes processos executivos movidos contra a requerida, a saber:
a) Processo executivo n.º (…), pendente no Juízo de Execução de Coimbra, J2;
b) Processo executivo n.º (…) pendente no Juízo de Execução de Chaves; e
c) Processo executivo n.º (…), pendente no Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, J1.
- adquirido o crédito, o requerente deduziu, em cada um daqueles processos, Incidente de Habilitação de Cessionário, tendo o mesmo sido considerado habilitado, por sentenças já transitadas em julgado, a prosseguir cada uma das ações executivas em substituição da Caixa (…) C.R.L
- desde o dia 12 de Janeiro de 2007 que o requerente é dono e legítimo proprietário do Estabelecimento Comercial Parque de Diversões Aquáticas com a marca “…”, situado no Lugar de (…) Freguesia de (…) com todos os seus elementos corpóreos e incorpóreos que o integram,
- sendo que a requerida tomou posse indevidamente desse estabelecimento comercial, originando, despesa de água, luz e outros, que ascende, actualmente, a cerca de €8.609,77,
- O requerente, apesar de tentar cobrar da Requerida o valor em dívida, jamais o conseguiu.
Concluiu pelo preenchimento dos requisitos a que se alude no art.º 20º do CIRE e, nessa medida, pela declaração de insolvência da requerida.
*
A requerida deduziu oposição, defendendo-se por impugnação, refutando os factos que lhe são imputados pelo requerente.
*
Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença que declarou a insolvência de (…), Lda.
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Inconformada, apelou a requerida (…) Lda, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“CONCLUSÕES

a) Com base na matéria de facto provada, ficam a faltar os elementos fundamentais de que depende o decretamento da insolvência, sendo que, o primeiro de todos, prende-se com a própria legitimidade activa do Requerente.
b) Jamais ficou demonstrada a existência de um crédito por parte do Requerente.
c) Tal como decorre da própria matéria provada, designadamente o ponto 3º, refere-se que o Requerente adquiriu um crédito à Caixa (…) CRL, sobre a sociedade comercial (…), SA, pessoa colectiva n.º (…) e não sobre a insolvente.
d) Tendo em conta que é este o crédito em que o requerente estriba o seu pedido e que lhe confere (alegadamente) a legitimidade processual nos presentes autos, porque inexiste, não poderia ser dado como provada a sua existência e, em consequência, ser conferida legitimidade processual ao requerente.
e) Falta, portanto, um dos requisitos essenciais de que depende o decretamento da presente insolvência.
f) Jamais se pode dar como divida da insolvente, o crédito que o requerente adquiriu à Caixa de (..).
g) Pelo que, inexistindo crédito do requerente, inexiste de igual forma, legitimidade activa.
h) De acordo com o art. 25º, nºs. 1 e 2 do CIRE, quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, devendo oferecer todos os meios de prova de que disponha.
i) Para que a insolvência venha a ser decretada, ele terá de demonstrar a sua qualidade de credor, como facto constitutivo do seu direito a requerer a insolvência do requerido.
j) E tal demonstração poderá, em regra, ser efectuada no processo de insolvência, havendo que proceder-se, em regra, a audiência de julgamento para determinação da existência de tal crédito e dos demais pressupostos de que a lei faz depender a declaração de insolvência do devedor – o que, nos autos não ocorreu (a este propósito, vide Acórdão da Relação do Porto no âmbito do processo n.º 1795/11.1TJVNF.P1, que teve como relatora MARIA AMÁLIA SANTOS, datado de 22 de Março de 2012).
k) O Tribunal decidiu lançar mão da lista de créditos reconhecidos num processo especial de revitalização, que foi apensado aos autos e que terminou antes de concluídas as negociações e, nessa medida, dar como assente a lista de créditos ali indicada;
l) Tendo-o feito em infracção do disposto no art.º 91º n.º 2 do CPC, quando se diz que a decisão das questões e incidentes não constitui caso julgado fora do processo respectivo.
m) E foi com base nesta lista que, não só reconheceu um crédito ao requerente, como todos os demais créditos sobre a insolvente.
n) Pese embora tudo ter sido impugnado nos presentes autos e não ter sido produzida aqui, qualquer prova.
o) A função relevante da lista definitiva de credores no PER é única e exclusivamente a de compor o quórum deliberativo previsto no artigo 17º-F, n.º 3 do CIRE, não tendo a decisão sobre as impugnações força de caso julgado fora do estrito âmbito do PER.
p) Em suma, tendo por base esta argumentação, jamais o Tribunal poderia fundamentar, como fundamentou, a decisão quanto à matéria de facto, em documentos/lista de créditos reconhecidos, no âmbito do PER que correu termos pelo processo sob o n.º 1(…) , agora apenso aos autos.
q) Pelo que, não podendo fundamentar desta forma a decisão tomada, deveria esta matéria constante dos pontos 14 a 18, ser dada como não provada.
r) O que terá como consequência necessária, a não verificação dos pressupostos de que depende a declaração de insolvência, sendo certo que, neste caso, já não está sequer em causa a questão da legitimidade activa para o pedido de insolvência, mas também a verificação do passivo da sociedade, necessária à apreciação sobre a eventual situação de insolvência.
s) O que, inevitavelmente, levaria à improcedência da acção.
t) Deve, em conformidade, ser revogada a sentença de declaração de insolvência.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e consequente revogação da sentença recorrida.
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O Recorrido (…), contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e deduzindo recurso subsidiário, prevenindo a possibilidade dos fundamentos de recurso aduzidos pela apelante virem a proceder, concluindo as suas contra-alegações nos seguintes termos:

A) A ilegitimidade ativa do requerente da insolvência, nunca foi fundamento da defesa da recorrente insolvente até às alegações de recurso de apelação da sentença que decretou a sua insolvência.
B) A legitimidade processual ou “ad causam” nada tem a ver com a chamada “legitimidade substantiva”, como ensinava o Professor Antunes Varela - in Manual de Processo Civil, 2ª edição revista, Coimbra Editora, páginas 128 e seguintes, especialmente páginas 132, nota 2, e 133.
C) A alegação da recorrente insolvente de não ter o requerente legitimidade para requerer a insolvência daquela por não ser seu credor, constitui um manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por contrariar flagrantemente o que, anteriormente, assumiu e reconheceu em dois momentos distintos:

O primeiro momento, quando, no processo executivo n.º (..), pendente no Juízo de Execução de Coimbra, J2 - no qual, de acordo com o ponto 7 e 8 da matéria de facto dada como provada, a cedente do crédito hipotecário se encontrava a peticionar o crédito hipotecário cedido ao requerente e no qual este veio a ser considerado habilitado – a insolvente (ali executada), por intermédio do seu mandatário, em requerimento de 12-02-2018, ter assumido a dívida exequente e o seu pagamento ao requerente, ao referir,
“Aliás, espera a executada estar em condições, muito em breve, de proceder ao pagamento das importâncias aqui em dívida” - Cf. Doc. 19 junto com o requerimento inicial de Insolvência.
Num segundo momento, e em reforço, quando, já após a propositura da Insolvência, no requerimento inicial do Processo Especial de Revitalização que se encontra apensado ao processo de insolvência, a própria insolvente, nos itens 23.º e 24.º daquele requerimento inicial e nos documentos n.ºs 5 e 6 juntos a este, a Insolvente ali indicou o requerente (…) como seu credor no montante de €635.308,87, precisamente o valor do crédito cedido ao requerente e indicado no ponto 3 da matéria de facto dada como provada.
D) Se a sociedade devedora do crédito cedido ao requerente era uma outra sociedade com a firma (…) Lda., a insolvente, nos dois momentos processuais ante elencados, claramente que assumiu perante o requerente, nos termos do artigo 595.º do CC, a dívida a este cedida e o seu pagamento.
E) Para além do crédito invocado nos artigos 4.º a 11.º do requerimento inicial, o requerente, invocou, ainda, ser titular de um outro crédito perante a insolvente, alegado nos artigos 28.º a 38.º daquele requerimento inicial e que não gozava de qualquer garantia especial, no montante de capital de €8.609,77, para o que juntou os documentos n.ºs 13 a 18, razão suficiente para, nos termos do n.º 3 do artigo 30.º do CPC e do demais já alegado supra, conferir ao requerente legitimidade processual ativa para requerer a insolvência da recorrente.
F) A insolvente não fez a mínima prova da sua solvência, razão pela qual, desde logo, o recurso deverá improceder.
G) O requerente recorrido fez prova do seu crédito consagrado na sentença ao juntar com o requerimento inicial toda a documentação comprovativa da compra, à Caixa (…) do crédito invocado, documentação que o Tribunal a quo valorou na “Motivação de Facto” da Sentença colocada em crise.
H) A Insolvente, no PER apensado, perante a lista provisória de créditos onde foi reconhecido um crédito um crédito no valor de €673.325,49, sendo €664.418,13 como crédito garantido e €8.907,36 como crédito comum, não apresentou, nos termos do 1.ª parte do n.º 4 do artigo 17.º - D do CIRE, qualquer impugnação em relação a este crédito (ou em relação a qualquer outro), pelo que aquela lista, após a decisão, transitada em julgado, da única impugnação apresentada por um outro credor, passou a lista definitiva de créditos, nos termos da 2.ª parte do n.º 4 do artigo 17.º- D do CIRE.
I) No conhecimento do PER apensado, do que ali foi alegado pela própria requerente, ora insolvente, e da lista definitiva de créditos reclamados, não poderia o Tribunal a quo, ao contrário do que defende a recorrente, fazer tábua rasa, nomeadamente daquela lista definitiva de créditos e do Parecer do Administrador Judicial no sentido de ali requerente se encontrar em situação de insolvência.
J) Por o crédito do requerente reconhecido na lista provisória de créditos não ter sido impugnado pela ali requerente aqui insolvente, não tem aplicação ao presente dissídio os Acórdãos dos Tribunais Superiores invocados nos artigos 23.º, 24.º e 25.º das suas alegações de recurso de apelação,
K) sobremaneira, não tem aplicação o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de que a Insolvente lança mão no artº 25.º da suas Alegações, porquanto, em tal acórdão o que se decide prende-se com a possibilidade de “os demais credores” e não a insolvente, no desenvolvimento do processo de insolvência, poderem lançar mão do artigo 130.º e seguintes do CIRE, mesmo no caso de ter havido, no PER apensado, uma lista de créditos não reclamada.
L) Pelo exposto, decidiu bem o Tribunal a quo, ao dar como provada a matéria constante dos itens 14 a 18 da matéria de facto dada como provada.
M) Com a requerida ampliação do Objecto do Recurso, pretende o requerente recorrido prevenir a possibilidade, que em qualquer circunstância não se consente, de a falta de legitimidade processual ativa do requerente vir a ser julgada procedente por este Venerando Tribunal, por o requerente não deter qualquer crédito sobre a Insolvente e, por conseguinte, não poder ser considerado credor.
N) Para além do crédito adquirido à Caixa (…), o requerente alegou, no requerimento inicial de insolvência, a factualidade vertida ao longo dos artigos 28.º a 38.º, matéria que o Tribunal a quo veio a considerar, mal, pensamos, como não provada.
O) A matéria alegada e o crédito invocado pelo requerente recorrido nos itens 28.º a 38.º do requerimento inicial de Insolvência, foi, precisamente a matéria alegada e o crédito invocado pelo requerente nos itens 30.º a 40.º da reclamação de créditos que fez no âmbito do PER e este crédito foi reconhecido pelo Administrador Judicial Provisório reconhecido o crédito, no valor €8.907,36, na lista provisória de credores.
P) A recorrente insolvente, requerente do PER, não apresentou qualquer impugnação, pelo que, relativamente ao crédito de €8.907,36 não existe qualquer controvérsia, pois a Insolvente, no PER, ao não impugnar o seu reconhecimento da lista provisória de créditos, aceitou-o como devido.
Q) De acordo com a fundamentação constante do Acórdão da Relação de Guimarães, datado de 19-01-2017, P.º 823/13.0TTBCL.G1, www.dgsi.pt : “No Per apenas os créditos não controvertidos se consideram definitivamente assentes. (…) O reconhecimento de um crédito, tem que o ser “ a contento” de ambas as partes, e é, ou porque estão de acordo, não há litigio, o crédito em causa não é controverso, ou porque o mesmo é reconhecido pela autoridade que nos termos da lei tem como missão dirimir o conflito quanto à existência ou não do direito, no termo de um procedimento equitativo em que sejam garantidas as possibilidade de defesa, oferecendo e produzindo provas, com respeito pelo princípio da igualdade das partes – artigos 2º, 3º e 4º do CPC e CRP – artigo 20”.
R) Não havendo qualquer controvérsia quanto ao crédito de €8.907,36, por o mesmo constar da lista definitiva de créditos do PER e não ter sido impugnado pela Insolvente, o Tribunal a quo, também por tal ser do seu conhecimento funcional dado o PER ter sido tramitado perante si, deveria ter dado como provado, na insolvência, o crédito respeitante à utilização, pela Insolvente, de energia elétrica contratada e paga pelo requerente, devendo, consequentemente, dar como provada a matéria constante de vii, viii, ix, x, xi, xii, xii, xiii e xiv dos factos dados como não provados, requerendo-se a este Venerando Tribunal que conheça deste fundamento da ação do requerente recorrido.
S) A acrescer, o Tribunal a quo no seguimento dos factos constantes dos pontos 16 e 17 matéria de facto dada como provada, na fundamentação de direito da Sentença, consignou o crédito que o requerente invocou nos itens 28.º a 38.º do requerimento inicial de Insolvência, e que invocou nos itens 30.º a 40.º da reclamação de créditos que fez no âmbito do PER apensado,
T) razão pela qual o Tribunal a quo sempre deveria ter dado como provado o crédito respeitante à utilização, pela Insolvente, de energia elétrica contratada e paga pelo requerente, devendo, consequentemente, dar como provada a matéria constante de vii, viii, ix, x, xi, xii, xii, xiii e xiv dos factos dados como não provados,
U) sob pena de, não o fazendo, estar a retirar ao requerente um crédito que foi aceite pela insolvente no PER que requereu (e que não poderá impugnar nos termos do artigo 130.º e ss do CIRE), assim coartando ao requerente o direito que, na insolvência, o n.º 7 do artigo 17.º-G do CIRE lhe confere, como, aliás, resulta da fundamentação do Acórdão da Relação de Guimarães de 19.03.2015, P.º 6245/13.6TBBRG.G1..
V) Sem prescindir, o requerente, fez prova do por si alegado nos artigos 28.º a 38.º do requerimento inicial, ao juntar o contrato de fornecimento de energia elétrica que celebrou com o fornecedor de energia elétrica, as faturas a si emitidas por este fornecer, os comprovativos dos pagamentos desta faturas, bem como as cartas interpelatórias remetidas à insolvente a reclamar o pagamento dos valores por si suportados em proveito daquela e os comprovativos de receção por da Insolvente,
W) documentos que não foram impugnados pela Insolvente na sua Oposição, pese embora a alegação do artigo 24.º desta,
X) pelo que, outras razões não houvessem, que há, e sempre o Tribunal a quo deveria ter dado como provada a matéria constante de vii, viii, ix, x, xi, xii, xii, xiii e xiv dos factos dados como não provados, sobremaneira, deveria ter dado como provado que o requerente enviou as cartas interpelatórias para a Insolvente a requerer o pagamento da energia elétrica, dado como provado que a Insolvente as recebeu e que a Insolvente perante a receção de tais cartas nada disse ou pagou.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

Recurso do apelante:

- Da ilegitimidade ativa do Requerente da insolvência;
- Verificação dos pressupostos da situação de insolvência.

Recurso subsidiário do apelado:

- Para além do crédito adquirido à Caixa …, saber se o apelado é também titular de um crédito de €8.907,36.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. OS FACTOS

Factos considerados provados em Primeira Instância:

1. A requerida é uma sociedade comercial que tem como objecto social a exploração de estabelecimentos hoteleiros com restaurante e gestão e exploração de parques aquáticos, tendo sido constituída no (…), com o capital social de €5.000,00, sendo seus sócios (..) e (..)..
2. A gerente da requerida é a sócia, (…).
3. Por contrato de cessão de créditos, celebrado por escritura-pública, no dia (…), a Caixa(…) , C.R.L., cedeu ao requerente o crédito por si detido sobre a sociedade comercial “(…) , Lda”, no valor, àquela data, de €635.308,87.
4. O crédito referido em 3) encontra-se garantido por hipoteca voluntária, sobre os seus bens imóveis, descritos no Título de Mutuo com Hipoteca celebrado no dia (…) na Conservatória do Registo Predial de Mirandela, no âmbito do processo Casa Pronta n.º (…).
5. E sobre os bens imóveis descritos no Título de Mutuo com Hipoteca e Fiança celebrado no dia (…) na Conservatória do Registo Predial (…), no âmbito do processo Casa Pronta n.º (…).
6. Da referida cessão de créditos foi dado conhecimento, por carta, à requerida (…) Lda, que a recebeu
7. Ressalta da escritura de cessão de créditos, aludida em 2) supra, que o crédito cedido encontrava-se a ser peticionado pela cedente Caixa (…) C.R.L, em três diferentes processos executivos movidos contra a requerida, a saber:
a) Processo executivo n.º (…), pendente no Juízo de Execução de Coimbra, J2;
b) Processo executivo n.º (…), pendente no Juízo de Execução de Chaves; e
c) Processo executivo n.º (…), pendente no Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, J1.
8. Adquirido o crédito, o requerente deduziu, em cada um daqueles processos, Incidente de Habilitação de Cessionário, tendo o mesmo sido considerado habilitado, por sentenças já transitadas em julgado, a prosseguir cada uma das acções executivas em substituição da Caixa (…), C.R.L
9. Em 12 de Janeiro de 2007 que o requerente adquiriu o Estabelecimento Comercial (…) com a marca “(…) ”, situado no Lugar de (…), Freguesia de(…) , com todos os seus elementos corpóreos e incorpóreos que o integram e que que se encontram descritos, elemento a elemento, nas sete páginas anexas ao título de transmissão emitido naquele dia (…) pelo Agente de Execução, (..), no âmbito do processo executivo que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, sob o n.º (…) , o qual se junta e dá por integralmente reproduzido como DOC. 9.
10. A posse do referido estabelecimento comercial (…) , adveio aos requerentes por intermédio da diligência de tomada de posse levada a cabo pelo Sr. Agente de Execução, no dia 03 de Março de 2017
11. No dia 26 de Junho de 2017, o Sr. agente de execução, (…) , nomeado no processo executivo que, sob o n.º (…) , que corre termos no Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, J2, e em que foi exequente a sociedade comercial “(…) SA” e executada a aqui requerida (…) Lda., veio a constituir fiel depositária do prédio urbano descrito na conservatória do Registo Predial (…) freguesia de (…) Concelho de Torre de (…) , a (…) , sócia e gerente da aqui Requerida.
12. A requerida tem dividas ao “Turismo de Portugal I.P.”, a “... – Atelier de Arquitectura, Engenharia, Construção e Consultadoria, Unip. Lda” , ao Serviço de Finanças de (…) , ... – Trading & Consulting, Lda,
13. Algumas dessas dividas encontram-se garantidas por penhoras
14. Encontra-se apenso aos presentes autos, processo especial de revitalização, que correu termos por este Tribunal sob o processo nº(…) que deu entrada em Juízo no dia 5.06.2018 e em que é requerente (…), Lda.
15. Por despacho aí proferido, em 6.06.2018, foi admitida liminarmente o dito processo de revitalização da sociedade (…), Lda.
16. Foi aí apresentada lista provisória de credores pelo Sr. Administrador Judicial, concretamente:
– (…) , montante do crédito ascende a €673.325,49 (sendo €664.418,13 de créditos garantidos e €8.907,36 de créditos comuns)
– ... – Trading & Consulting, Lda, cujo montante do crédito ascende a €32.348,50 (crédito comum)
– Direcção de Finanças de (…), cujo montante do crédito ascende a €41.301,00 (sendo €41.117,81, a titulo privilegiado e €183,41, a titulo comum)
– ... – Comercialização de Energia, SA, cujo montante do crédito ascende a €5.270,71
– ... – Atelier de Arquitectura, cujo montante do crédito ascende a €315.078,78 (crédito comum)
– Instituto do Turismo, cujo montante do crédito ascende a €977.118, 72 (crédito comum)
17. O valor dos créditos relacionados na lista provisória de credores, ascende a €2.044.443,42
18. O parecer do Sr.AI nomeado no processo referido em 28), ao abrigo do disposto no artigo 17º-G, nº.4 do CIRE, refere “(…). Pelo que o processo deverá seguir para Insolvência (…)”.

Factos considerados não provados em Primeira Instância:

i. A partir do dia 03 de Março de 2017, o requerente proprietário empossado, contratou o serviço de vigilância privada para guarda do estabelecimento comercial (..), por o mesmo, pelo menos até ao início do mês de Junho, se encontrar encerrado ao público e se situar numa zona erma, assim se evitando eventuais actos de vandalismo.
ii. A requerente desde 26 de Junho de 2017, que está impedida de aceder livremente ao (…) que adquiriu.
iii. A partir do dia 26 de Junho de 2017, a requerida, por intermédio dos seus sócios e da sócia e gerente (…), ainda na qualidade de fiel depositária, iniciaram os preparativos para, em nome da requerida, explorarem e abrirem ao público o (…) – propriedade do requerente,
iv. No dia 14 de Julho de 2017, o Sr. Agente de Execução (…), Extinguiu a Execução, que sob o n.º (..) correu termos no Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, J2, e no âmbito do qual a aqui requerida, através da fiel depositária (…), entrou na posse do imóvel descrito sob o n.º (…).
v. No dia 15 de Julho de 2017, a requerida, aproveitando a anterior “estadia” enquanto fiel depositária, abriu ao público o (…), propriedade do aqui requerente,
vi. explorando-o, desde aquela data até à presente, contra a vontade do requerente, a título próprio, a seu bel-prazer, de uma forma completamente ilegal e sub-reptícia.
vii. Não contente, a requerida, pelo menos durante os meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2017, fez uso abusivo e em seu exclusivo benefício, do contrato de fornecimento de energia eléctrica que o Requerente havia celebrado, em 20 de Junho de 2017, com o fornecedor “Y Energia, SA – Sucursal em Portugal”, para abastecer de energia o .
viii. contrato de fornecimento esse que foi celebrado pelo requerente quando este ainda se encontrava na posse do seu ….
ix. É que o requerente, por conta da energia elétrica utilizada pela requerida na utilização do parque aquático durante o mês de Agosto 2017, teve de liquidar à Y a quantia de €5.540,15
x. por conta da energia elétrica utilizada pela requerida na utilização do parque aquático durante o mês de Setembro de 2017, teve de liquidar à Y a quantia de €2.454,63
xi. e por conta da energia elétrica utilizada pela requerida na utilização do parque aquático durante o mês de Outubro de 2017, teve de liquidar à Y a quantia de €614,99
xii. Por cartas dirigidas à requerida, respetivamente de 27 de Setembro de 2017 e de 23 de Novembro de 2017, e que aquela recebeu, o requerente interpelou à requerida para o pagamento das quantias por si pagas à Y e identificadas supra, num total de €8.609,77,
xiii. sendo que, recebidas aquelas cartas em 17/10/2017 e 05/1272017, a requerida nada disse ou pagou.
xiv. A requerida usou, em proveito próprio, energia eléctrica contratada e paga pelo requerente.
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3.2. O DIREITO

3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
O Recorrente considera que a matéria constante dos pontos 14 a 18, deveria ser dada como não provada.
Justifica que tendo o Tribunal a quo fundamentado a decisão quanto a esta matéria em documentos/lista de créditos reconhecidos, no âmbito do PER que correu termos pelo processo sob o n.º 106/18.0T8TMC, agora apenso aos autos, tais documentos não são idóneos a fazer a prova quer do crédito do Requerente quer dos outros credores aí identificados.

Ressalvado o devido respeito, não tem razão o impugnante.

Na verdade, o que na sentença recorrida foi dado como provado foi o que resulta do processo especial de revitalização apenso, iniciando-se justamente por consignar facticamente que se encontra apenso aos presentes autos, processo especial de revitalização, que correu termos por este Tribunal sob o processo nº.106/18.0T8TMC que deu entrada em Juízo no dia 5.06.2018 e em que é requerente ..., Lda. (facto 14º). A partir daí evoca-se a lista de credores, apresentada pelo Sr. Administrador Judicial, com enumeração dos créditos reclamados, onde consta o crédito do recorrido. Mais se consigna que nesse processo, o parecer do Sr.AI ao abrigo do disposto no artigo 17º-G, nº.4 do CIRE, foi no sentido de que o processo deveria seguir para Insolvência.
A matéria factual ínsita nos pontos 14 a 18 da factualidade dada como provada, assentou nos documentos juntos com o apenso que consubstanciam o PER.
Nenhuma censura merece, pois, a decisão sobre a matéria de facto.

3.2.2. Do mérito da decisão

A Recorrente fundamenta o seu recurso na alegação de que o Requerente da Insolvência não tinha legitimidade ativa para requerer a insolvência, por não ser titular de qualquer crédito sobre si, pelo que não se mostra verificado um dos requisitos que a lei exige para a declaração de insolvência.

A posição defendida pela apelante/requerida é a de que competia ao apelado/ requerente demonstrar a sua qualidade de credor, como facto constitutivo do seu direito a requerer a insolvência.

O ponto de vista do apelado/recorrido é o de que lhe assiste legitimidade processual para requerer a insolvência da requerida em função da invocação do seu crédito no requerimento inicial, com justificação da sua proveniência, natureza e montante, invocando ademais que o mesmo resultou demonstrado.

As posições enunciadas refletem a controvérsia que envolveu a legitimidade enquanto pressuposto processual ou pressuposto de mérito, transposta para o domínio do direito insolvencial.

Neste domínio podemos dizer que a questão mantém atualidade na medida em que o problema da legitimidade do credor para deduzir o pedido de insolvência tem merecido respostas não inteiramente consentâneas por parte da jurisprudência. Há uma orientação que sustenta que só é dotado de legitimidade para promover o procedimento de insolvência o credor cujo crédito não é controvertido e outra que defende que mesmo o credor de crédito litigioso dispõe daquela legitimidade.

Sobre a questão da legitimidade no âmbito do processo de insolvência, dispõe o art. 20º, nº1, do CIRE que a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito.

Por sua vez, estabelece o art. 25º, nº1, do mesmo diploma que o credor requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito.

O sentido que se extrai destes normativos é o de atribuir legitimidade ao titular de crédito, colocando tal legitimidade em termos gerais, isto é, entendendo como titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor, nos termos do art 30º, nº3 CPC.

O sentido consagrado na lei processual civil é o da chamada legitimidade processual ou “ad causam”.

A legitimidade processual não se confunde com a legitimidade substantiva.

A legitimidade processual constitui um pressuposto processual relativo às partes e necessário para que o tribunal possa apreciar a causa e decidir sobre o pedido formulado.

Já a legitimidade substantiva respeita à relação jurídica definidora de direitos e obrigações (de natureza material), à titularidade ativa e passiva dos mesmos pelos respetivos sujeitos e ao seu exercício.

A propósito desta distinção, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 02/06/2015, referiu que “É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objecto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade. Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas acções que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da acção, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da acção ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva.”.

O que quer dizer, ao nível da legitimidade ativa para requerer o processo de insolvência, que será dotado de legitimidade quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não necessariamente quem seja, efetivamente, credor deste (1).

Ao credor só é exigido que proceda à justificação do seu crédito, fazendo corresponder a essa justificação a simples menção da origem, da natureza e do montante do crédito. Trata-se rigorosamente de o credor requerente justificar a sua legitimidade processual, ou seja de demonstrar a sua qualidade de credor, que é requisito do seu direito de ação judicial.

Afastamo-nos, assim, da orientação substantivista, mais restritiva, no sentido de que o titular de crédito litigioso não tem legitimidade para requer a insolvência (2).

E os argumentos para a adoção de uma vertente mais processual, que a jurisprudência vem denominando de legitimidade ampla, são, na sua essência, os que vêm elencados no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/3/2012 (3) e sintetizados no acórdão da Relação de Lisboa de 20/12/2017 (4) nos seguintes termos:

“– o da interpretação da lei, na consideração de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e na da regra de que ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”- assim a própria redacção do art 20º/1 (quando nela se refere que a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida…por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito) inculca, à partida, que o legislador não coloca qualquer entrave a que a declaração de insolvência do devedor possa ser requerida pelo titular de crédito litigioso sobre o mesmo, uma vez que proclama a indiferença, em tal perspectiva, da natureza do crédito cuja titularidade é invocada como pressuposto de legitimação do requerente de tal declaração, para além, de que o entendimento contrário traduziria um tratamento discriminatório em desfavor do titular de crédito litigioso relativamente aos credores condicionais sem que qualquer atendível razão material o justificasse. Com efeito, em tal tese, o titular de crédito litigioso seria sempre desprovido de legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu invocado devedor apenas em consequência da verificada litigiosidade do crédito cuja existência real não se poderia ter por excluída, enquanto que ao titular de um crédito sujeito a condição suspensiva que acabasse por não se verificar ou ao titular de um crédito sujeito a condição resolutiva que viesse a verificar-se assistiria, sempre, tal legitimidade. O que, além do mais, violaria o princípio da “par conditio creditorum” (Cfr. art. 194º), conquanto na antecâmara do processo de insolvência;
– o princípio da auto-suficiência do processo de declaração de insolvência, quer na vertente da tutela provisória da aparência, quer na perspectiva da extensão da correspondente competência material para o conhecimento de todas as questões cuja decisão se mostre imprescindível para a sentença a proferir no processo de insolvência (Cfr. art. 96º, nº1, do CPC);
– o afunilamento grave e sem correspondente justificação plausível do acesso à tutela jurisdicional dos direitos de crédito prosseguida pelo processo de insolvência que a tese contrária encerra, pois bastaria que o devedor contestasse, em juízo, ainda que sem qualquer fundamento, o crédito invocado pelo requerente da insolvência, para retirar a este a correspondente legitimidade, o que só poderia implicar o início tardiamente indesejável do processo de insolvência.
– a não ocorrência de julgados contraditórios, entre o processo de insolvência e aquele em que tivesse sido suscitada a litigiosidade do crédito, em função do simples reconhecimento da legitimidade processual operada no processo de insolvência, acrescentando-se que serão, certamente, nulos ou muito residuais os casos em que, atento o disposto no art. 20º, nº1, al. b), o incumprimento de uma só obrigação determine, por si só, a declaração da insolvência do devedor. Além de que a magra vantagem conferida ao credor requerente pelo art. 98º, nº1 para pagamento do respectivo crédito, de longe é superada pela desvantagem da sua eventual responsabilização cível pela dedução de pedido infundado de declaração de insolvência (art. 22º), o que, sem dúvida, funcionará como grandemente inibidor daquela dedução”.

A adoção de uma conceção mais ampla da legitimidade, não consente, todavia, uma latitude que se baste com a mera alegação do crédito, desonerando o requerente da sua demonstração. Partindo do pressuposto de que o titular de crédito litigioso tem legitimidade processual para requerer a insolvência, se da prova que vier a ser produzida não resultar que o mesmo é efetivamente credor, a insolvência improcederá por ilegitimidade substantiva daquele.

Concretizando: qualquer credor constitui sujeito legitimado para requerer a abertura do processo de insolvência, mas sendo a insolvência, necessariamente restringida, na sua parte inicial, a um processo de partes, não poderá prosseguir afim de vir a ser ou não declarada, sem que se demonstre a existência desse crédito, deixando de estar em causa uma simples legitimidade processual para se passar a exigir uma legitimidade substantiva, demonstração que se deverá fazer dentro do respeito pela natureza célere e urgente do processo de insolvência.

Tal significa que, não é o caso de ser indispensável que o crédito esteja judicialmente reconhecido para justificar o requerimento de declaração de insolvência, mas a alegação sobre a titularidade do crédito, a sua proveniência, natureza e montante necessita de ser comprovada, no mínimo, através da prova de primeira aparência. Só através desta demonstração se pode chegar à consideração de que o crédito existe tal como dessa prova resulta, de que é exigível pelo credor requerente, e, por último, que se verifica o respetivo incumprimento, um dos factores índices mencionados no art. 20º, do CIRE (5).

Também Carvalho Fernandes e João Labareda (6) sustentam ser mais coerente que se reconheça ao credor litigioso legitimidade para a promoção da ação, naturalmente transportando para a fase antecedente à sentença a discussão da matéria que ela julgará, afirmado no entanto que, sem embargo, justificam-se considerações complementares, pois que a arquitetura do processo de insolvência e o ritmo que legalmente lhe é imprimido fazem com que ele não se vocacione para longas discussões nem ofereça os meios e garantias apropriados para indagações aprofundadas sobre a existência ou não do direito que o requerente se arroga.

Podemos ainda descortinar uma outra posição, muito mais ampla, que também tem merecido acolhimento na jurisprudência (7), e que é defendida por Catarina Serra no seu estudo “O Fundamento Público do Processo de Insolvência e a Legitimidade do titular de Crédito Litigioso para Requerer a Insolvência do Devedor” (8). Esta autora advoga que ainda que venha a apurar-se a final que o requerente da insolvência não é credor, demonstrados os requisitos legais, a insolvência deverá prosseguir os seus termos, em nome dos interesses públicos e sociais que presidem ao processo de insolvência.

Argumenta-se que o poder de requerer a declaração de insolvência não é poder executivo mas poder de ação declarativa, aquilo que o credor pretende é a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência e desencadeie o funcionamento dos mecanismos jurisdicionais adequados às necessidades especiais de tutela criadas por aquela situação. Por isso mesmo, provando-se a inexistência do direito invocado, a insolvência deve deixar de correr no interesse do sujeito que o invocou, o que implica no contexto do processo de insolvência, que o credor reclamante não seja pago pelo crédito alegado. A apreciação desta faculdade ocorre, todavia, em momento posterior – na fase da reclamação e verificação de créditos – e não pode confundir-se com o momento da apreciação do início do poder de ação declarativa em que se consubstancia o pedido de declaração da insolvência. Logo, a descoberta de que o requerente não é, afinal, credor deverá considerar-se irrelevante, o processo deve continuar o seu curso, com o fito de satisfazer os múltiplos interesses (restantes) que a insolvência convoca.

Refuta-se o argumento de que o requerente pode estar a instrumentalizar o processo de insolvência utilizando-o para alcançar fins alheios a esse processo, considerando que esse risco é comum a muitos outros exercícios de direitos, assim como o argumento do excesso de litigiosidade, concluindo que o hipotético excesso de litigiosidade do crédito não tolhe a legitimidade do credor para pedir a declaração de insolvência do devedor.

Postas estas considerações, e assumindo a posição já antes anunciada, defendemos que a circunstância de o crédito invocado assumir natureza litigiosa não constitui obstáculo à legitimidade do respetivo credor para requerer o processo de insolvência, devendo demonstrar, contudo, no processo a existência do seu crédito, demonstração que que deverá ser alcançada com uma prova sumária, compatível com a natureza própria do processo de insolvência.

Revertendo ao caso, havemos de distinguir duas situações:

1ª – O recorrido, requerente da insolvência, afirmando-se credor e justificando a proveniência do seu crédito, sua natureza e montante, tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência;
2ª – Da prova produzida resultou provada a existência do crédito alegado pelo requerente.
É este segundo ponto que merece alguns considerandos.
Analisada a oposição deduzida à insolvência contra si requerida, em momento algum a apelante contesta a qualidade de credora da apelada/requerente.
Nem, em boa verdade, o poderia fazer, em face dos elementos documentais juntos aos autos.
Por contrato de cessão de créditos, celebrado por escritura-pública, no dia (…), a Caixa (…) C.R.L., cedeu ao requerente o crédito por si detido sobre a sociedade comercial “(…), Lda”, no valor, àquela data, de €635.308,87.
O crédito referido encontra-se garantido por hipoteca voluntária, sobre os seus bens imóveis, descritos no Título de Mutuo com Hipoteca.
Da referida cessão de créditos foi dado conhecimento, por carta, à requerida (…), Lda, que a recebeu.

O crédito cedido encontrava-se a ser peticionado pela cedente Caixa (…) C.R.L, em três diferentes processos executivos movidos contra a requerida, a saber:

a) Processo executivo n.º (…), pendente no Juízo de Execução de Coimbra, J2;
b) Processo executivo n.º (…), pendente no Juízo de Execução de Chaves; e
c) Processo executivo n.º (..), pendente no Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, J1.
Adquirido o crédito, o requerente deduziu, em cada um daqueles processos, Incidente de Habilitação de Cessionário, tendo o mesmo sido considerado habilitado, por sentenças já transitadas em julgado, a prosseguir cada uma das acções executivas em substituição da Caixa de (…) C.R.L
Sustenta a apelante que o requerente adquiriu um crédito à Caixa (..), CRL, sobre a sociedade comercial (…) SA, e não sobre a insolvente.
É certo. Mas não é tudo.
A apelante (…), Ldª constitui-se garante e hipotecária daqueles créditos, figurando como devedora/executada no âmbito das ações executivas.
O requerente sucedeu na posição jurídica da cedente, tendo-se habilitado legalmente no âmbito dos processos executivos em que a cedente visa a cobrança coerciva do crédito, agora adquirido pelo requerente.
Não obstante a alegação recursiva do apelante, pode-se até dizer que no caso concreto o credor dispõe de título executivo, não sendo o seu crédito sequer litigioso.

Tem, pois, razão a apelada quando afirma que a insolvente sempre lhe reconheceu a qualidade de credor - e o seu crédito - destacando dois momentos distintos:

O primeiro no âmbito do processo executivo n.º (..), ao referir, “Aliás, espera a executada estar em condições, muito em breve, de proceder ao pagamento das importâncias aqui em dívida” - Cfr. Doc. 19 junto com o requerimento inicial de Insolvência.
Num segundo momento, quando, já após a propositura da Insolvência, no requerimento inicial do Processo Especial de Revitalização que se encontra apensado ao processo de insolvência, a própria insolvente, nos itens 23.º e 24.º daquele requerimento inicial e nos documentos n.ºs 5 e 6 juntos a este, indicou o requerente (…) como seu credor no montante de €635.308,87.
Acrescenta-se que no PER que se encontra apensado ao processo de insolvência, o Administrador Judicial, na lista provisória de créditos veio a reconhecer ao requerente aqui recorrido, um crédito no valor de €673.325,49. A aqui insolvente e ali requerente do PER, perante a lista provisória de créditos apresentada e perante o crédito nela reconhecido ao requerente, não apresentou qualquer impugnação em relação a este crédito de sorte que, a lista provisória de créditos apresentada pelo Administrador Judicial Provisório, passou a lista definitiva de créditos, nos termos da 2.ª parte do n.º 4 do artigo 17.º - D do CIRE.
Decidiu, bem, deste modo, o Tribunal a quo, ao considerar provado o crédito do requerente.
A segunda questão posta no recurso prende-se com a existência dos fundamentos alegados com vista à declaração do estado de insolvência da requerida.
É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas - art. 3º do CIRE.

A declaração de insolvência de um devedor ocorrerá verificando-se algum dos factos elencados no art. 20º, nº1, do CIRE:

a) a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) a fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou o abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) a dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e a constituição fictícia de créditos;
e) a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) o incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do artigo 218º;
g) o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de alguns seguintes tipos:
i) tributárias;
ii) de contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação desse contrato;
iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
(…)”
Mostram-se elencadas neste preceito diversas situações que consubstanciam o que, correntemente, se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência, tendo em conta “a circunstância de pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações” (9).
A lei atribui a qualquer credor o direito de, por sua iniciativa, requerer a insolvência do devedor desde que verificadas algumas das referidas situações que indiciam a situação de insolvência do devedor; trata-se contudo de meras presunções da situação de insolvência, podendo ser as mesmas elididas, no sentido de que não obstante a verificação do facto-índice a situação de insolvência se não verifica.

Por isso, será de afirmar que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas pode ocorrer sem a verificação das situações previstas no referido art. 20º n.º 1, da mesma forma que a sua verificação poderá não corresponder concretamente à impossibilidade de cumprir as suas obrigações mencionada no n.º 1 do art. 3º.

Como refere Pedro de Albuquerque, os factos enunciados no artigo 20º n.º 1 “são meros indícios ou presunções de insolvência, podendo demonstrar-se que não obstante a respectiva verificação se não está perante uma hipótese de insolvência” (10).

Assim, perante a alegação de qualquer facto-índice, o devedor pode opor-se à declaração de insolvência, não apenas com base na inexistência do facto-índice, mas também com base na inexistência da própria situação de insolvência (art. 30º n.º 3).

O que se revela essencial é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Com efeito, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.

Do exposto decorre que o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice quando, pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, devendo resultar dos autos as circunstâncias de onde seja possível deduzir aquilo que Carvalho Fernandes e João Labareda designam de “penúria generalizada do devedor” (11).

Assim, o requerente deve alegar não só o incumprimento mas as circunstâncias em que o incumprimento ocorreu e que permitam concluir que se trata de uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria generalizada.

No caso em apreço, o requerente lançou mão, nomeadamente, do disposto na al. a) b), g) do n.º 1 do art.º 20º do CIRE, no sentido de ver declarada a insolvência da requerida.

A requerida não conseguiu especificamente quanto ao facto índice plasmado na referida al. b) do n.º 1 do art.º 20º do CIRE afastar a presunção.

Resulta apurada a existência de dívidas que ascendem a € 2.044.443,42, dívidas que pelo seu montante, quer pelas circunstâncias prolongadas dos incumprimentos das obrigações em causa, deixam evidente a incapacidade da devedora de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Como se evidenciou na sentença recorrida, se ao exposto acrescentarmos que o património imobiliário da requerida (que esta todavia não chegou a alegar, especificando-o minimamente) se mostra onerado, decorre com meridiana clareza que a requerida se mostra, de forma progressivamente agravada, impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.

Donde, em virtude da impossibilidade financeira da devedora em cumprir as suas obrigações vencidas, sendo o seu património insuficiente por onerado e não liquidável a curto prazo e face ao valor das dívidas que sobreleva o dos ativos, temos que a situação da requerida é configuradora de uma situação de insolvência.

Por todas estas razões, impõe-se concluir pela improcedência de todos os fundamentos de recurso deduzidos pelo apelante e pela consequente improcedência da presente apelação, o que determina que o conhecimento do recurso subsidiário da apelada fique, necessariamente, prejudicado, impondo-se a confirmação da sentença recorrida.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 19 de Junho de 2019

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º - Adj. - Des. Heitor Gonçalves

1. Neste sentido, pode ver-se o Acórdão do STJ 17/11/2015 que refere “O art. 20º, nº1, do CIRE legitima a requerer a insolvência “qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”, o que bem se coaduna com a natureza do processo de insolvência, e a sua matriz de processo especial de execução universal e concursal do património do devedor insolvente – art. 1º, nº1. II. Mais incerto que o crédito litigioso é o crédito “condicional”, sobretudo, se a condição for suspensiva – art. 270º do Código Civil – mas, tendo o credor cujo crédito está sujeito a tal condição, legitimidade para requerer a insolvência, por maioria de razão o credor de crédito litigioso dispõe de igual legitimidade ad causam”, disponível em www.dgsi.pt.
2. São neste sentido os acórdãos da Relação de Lisboa de 5/6/2008 e de 15/10/2009 e o acórdão da Relação do Porto de 20/4/2009 defendendo-se neste último aresto que carece de legitimidade para requerer a insolvência quem, arrogando-se credor, justifica a existência do seu crédito pelo facto de ter intentado ação para o reconhecimento desse direito onde a respectiva existência foi contestada sem ter sido proferida sentença.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. Disponível em www.dgsi.pt.
5. Entendimento seguido no acórdão do STJ de 4/7/2002, à luz das disposições do CPEREF, disponível em www.dgsi.pt.
6. In Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed , 2013, nota 6, ao artigo 20º, pag. 203.
7. É neste sentido o acórdão da Relação de Guimarães de 08/05/2014 e o acórdão da relação de Lisboa de 20/02/2017, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
8. Estudo publicado na Revista do Ministério Público, Ano 34, nº 133, Janeiro-Março/2013, págs. 97 a 133.
9. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Edição, página 201.
10. Declaração da situação de insolvência, O Direito, 2005/III, pág. 514.
11. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Edição, pág. 205.