Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
674/21.9T8BCL.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: EXECUÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
CITAÇÃO EM PAÍS ESTRANGEIRO
CITAÇÃO POR VIA POSTAL
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- Os autos respeitam a uma declaração de executoriedade em Portugal de uma decisão proferida no Estado-Membro de origem ao abrigo do REGULAMENTO (CE) N.º 44/2001 DO CONSELHO de 22-12- 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, cuja tramitação não obedece ao figurino clássico. Por força da autoridade de que goza a decisão proferida por um Estado-Membro, o processado é extremamente simples e a prova inicial exigível ao requerente é diminuta (cópia da decisão estrangeira e certidão de reconhecimento de executoriedade).
II- O requerente foi surpreendido em fase de recurso com a alegação por parte da requerida/recorrente de que não é parte legítima e que não foi citada no processo do “tribunal de origem” (fundamento de recurso admissível pelo art. 38º do Regulamento). Sendo, portanto, de admitir que a recorrida junte documentos às alegações com vista a fazer prova da identidade da sociedade demandada e da sua citação (425º ex vi 651º CPC). Tanto mais se a requerida/recorrente também juntou documentos.
III- O artigo 659º do novo Código de Processo Civil Francês, que prevê a citação e notificação de actos “no gabinete” (formalidades que incluem novo envio de carta registada com aviso de recepção seguida de novo aviso), assegura suficientemente as garantias de defesa e não fere princípios de ordem pública.
IV- Tanto mais se a correspondência de citação e de notificação da sentença da requerida pessoa colectiva foi enviado para o endereço do estabelecimento que a sociedade portuguesa, matriculada em França como “sociedade estrangeira”, mantinha no “X”, documento oficial de matrícula das sociedades. Sendo-lhe criadas todas as condições de conhecimento dos actos. Competindo aquela actualizar os seus dados ou recolher a correspondência no domicílio. O direito interno processual português, de resto, prevê forma de citação similar (246º CPC).
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

J. F., residente em …, Avenue …, em França, veio requerer a declaração de executoriedade de uma sentença proferida em 11/09/2003 pelo Conseil de Prud’hommes de Longjumeau (Tribunal do Trabalho de Longjumeau), no processo n.º RG nº 03/00127, na qual se condenou Y & Filhos, Lda., pessoa coletiva n.º ........., com sede em Torre …, freguesia de ..., concelho de Barcelos, a pagar-lhe as quantias de 5.107,00€ a título de salários e 510,72€ a título de subsídios de férias.

Foi proferida a seguinte decisão (ora alvo de recurso):
“O tribunal é o competente – art.º 39.º e anexo II do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias n.º L 12, de 16/01/2001) – aplicável por força do disposto no art.º 66.º, n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º L 351, de 20/12/2012).
Não se verifica qualquer das situações previstas nos arts. 34.º e 35.º do Regulamento n.º 44/2001.
Mostram-se cumpridos os trâmites previstos nos arts. 53.º e ss. do citado Regulamento.
Assim, nos termos do disposto no art.º 41.º do Regulamento n.º 44/2001, declaro executória a sentença proferida em 11/09/2003 pelo Conseil de Prud’hommes de Longjumeau (Tribunal do Trabalho de Longjumeau), no processo n.º RG nº 03/00127, na qual se condenou Y & Filhos, Lda., pessoa coletiva n.º ........., com sede em ..., freguesia de ..., concelho de Barcelos, a pagar a J. F., residente em …, Avenue …, em França, as quantias de 5.107,00€ a título de salários e 510,72€ a título de subsídios de férias.
Sem custas – art.º 52.º do Regulamento n.º 44/2001.
Notifique o requerente e a requerida, esta última com cópia da decisão – art.º 42.º do Regulamento n.º 44/2001

FOI INTERPOSTO RECURSO PELA REQUERIDA

Proferido despacho de aperfeiçoamento das prolixas conclusões e, apresentadas novas conclusões, a requerida suscita as seguintes questões- EXTRACTOS DAS CONCLUSÕES:
“……A decisão recorrida enferma de erro na aplicação e na interpretação do direito por manifesta violação do direito de defesa, do contraditório e da igualdade de partes, do direito de acesso ao direito e à justiça (ínsitos no art. 20º, da C.R.P) e, bem assim, por manifesta contrariedade com a ordem pública, o que configura fundamento de revogação da sentença de declaração de executoriedade ora proferida, em virtude do vertido no art. 45.º, n.º 1 e o art. 34.º, n.º 1 e 2, ambos do Regulamento (CE) 44/2001 de 22/12/2000….
A sentença proferida contra a Recorrente no Tribunal de Trabalho de Longjumeau, França, não pode ser declarada executória, porquanto o ato que iniciou a instância não foi comunicado à Recorrente, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, o que configura fundamento de revogação da sentença de declaração de executoriedade ora proferida, em virtude do que dispõe o art. 45.º, n.º 1 e o art. 34.º, n.º 2, ambos do Regulamento (CE) 44/2001, de 22/12/2000.
A Recorrente não foi, nem demandada, nem condenada no âmbito do processo RG n.º 03/00127, antes uma sociedade de direito francês.
O processo RG n.º 03/00127 foi proposto contra uma sociedade de direito estrangeiro, matriculada no Registo do Comércio e das Sociedades, possuindo estabelecimento principal em França, na …. Logo,
A Recorrente é parte ilegítima na presente demanda.
O reconhecimento e a declaração de executoriedade da sentença proferida em 11/09/2003 pelo Conseil de Prud’hommes de Longjumeau, no âmbito do processo n.º RG n.º 03/00127, foi feita sem que tenha sido notificado ou comunicado o ato que iniciou a instância à Recorrente e Apelante, bem como não foi, nem notificado, nem comunicado à Recorrente e Apelante a decisão proferida. Na verdade,
A Requerente e Apelante só teve conhecimento da sentença contra si proferida se não com a notificação da decisão que ora impugna
….De acordo com o Regulamento (CE) n.º 44/2001 pode fundamentar o recurso a falta de qualquer dos requisitos de reconhecimento da decisão, cfr. artigos 34.º e 35.º, do Regulamento (CE) n.º 44/2001.
….Conforme consta da certidão judicial traduzida junta aos Autos, a Recorrente não foi, nem citada do ato que determinou o início da instância, nem tão pouco da decisão proferida no âmbito do processo n.º RG n.º 03/00127, datada de 11/09/2003.
A este propósito refira-se que de acordo com Regulamento (CE) n.º 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que criou o título executivo europeu para créditos não contestados, não é admitida a citação ou notificação do documento que dá início à instância ou ato equivalente feita por algum dos meios estabelecidos no n.º 1 do art.º 14.º, “se o endereço do devedor não for conhecido com segurança” – cfr. o n.º 2.
Cumpre ainda, a propósito, ter presente o que dispõe o art.º 19.º do mesmo Regulamento quanto às normas mínimas de revisão em casos excecionais: uma decisão só pode ser certificada como Título Executivo Europeu se o devedor tiver direito, segundo a legislação do Estado-Membro de origem, a requerer uma revisão da decisão quando “o documento que dá início à instância ou acto equivalente ... tiver sido notificado por um dos meios previstos no art.º 14.º” e “a citação ou notificação não tiver sido efectuada em tempo útil para lhe permitir preparar a defesa, sem que haja qualquer culpa da sua parte” (pontos i) e ii) da alínea a)).
…No que respeita à ordem jurídica interna portuguesa, são os princípios do contraditório e da igualdade das partes, consagrados, respetivamente, nos arts. 3.º e 4.º, do CPC. que saíram inobservados e consequentemente violados.
A Recorrente não teve conhecimento pessoal do conteúdo da ação contra si proposta e da sentença condenatória contra si proferida a tempo dela recorrer no Tribunal do Estado-Membro de origem. Logo,
No presente caso verificam-se as situações referidas nos n.º 1 e 2, do art.º 34.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001….
…Nos termos do n.º 5, do art.º 10º, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
Reporta-se a condição necessária da ação executiva, ao facto de não existir execução sem que exista o atinente título.
Na ação executiva a questão da legitimidade resolve-se no confronto entre as partes e o título executivo: têm legitimidade como exequente e executado, respetivamente, quem no título figura como credor e como devedor.
A aqui Recorrente e Apelante não consta do título executivo como devedora, logo a aqui Recorrente e Apelante é parte ilegítima na ação.
A decisão relativamente à qual se declarou o exequatur foi proferida contra uma sociedade de direito francês, como muito bem consta do processo n.º RG n.º 03/00127, o qual correu termos no Conseil de Prud’hommes de Longjumeau, e não contra a aqui Recorrente.
O processo RG n.º 03/00127 foi proposto contra uma sociedade de direito estrangeiro, matriculada no Registo do Comércio e das Sociedades, possuindo estabelecimento principal em França, na .... Logo,
A aqui Recorrente não foi, nem demandada, nem condenada na ação em que a sentença foi proferida.
A Recorrente é parte ilegítima na presente ação.

revogando a Decisão recorrida quanto à Recorrente e recusando-se a declaração de exequibilidade da decisão proferida em 11/09/2003 pelo Conseil de Prud’hommes de Longjumeau, no âmbito do processo n.º RG n.º 03/00127, farão Vossas Excelências a habitual e costumada JUSTIÇA…”

Com as alegações de recurso a requerida juntou um documento alegadamente destinado a comprovar que não foi citada na acção que correu em França, mas sim outra sociedade, e que é parte ilegítima na acção que nos ocupa (vd art. 17 das alegações). Refere, em abono, no artigo 16 das alegações que:

O processo RG n.º 03/00127 foi proposto contra uma sociedade de direito estrangeiro, matriculada no Registo do Comércio e das Sociedades, possuindo estabelecimento principal em França, na ..., cfr. doc. 1, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos….”

CONTRA-ALEGAÇÕES DA REQUERENTE/RECORRIDA-EXTRACTOS:

1) … Alega a Recorrente que a sociedade Y & Filhos, Lda. não é a mesma pessoa jurídica que foi parte (Ré) no processo RG n.º R 03/00127 que correu os seus termos no “Conseil de Prud’hommes de Longjumeau”, sendo esta última “uma sociedade de direito estrangeiro matriculada no Registo do Comércio e das Sociedades, possuindo estabelecimento principal em França, na ...”.
2) Contudo tal alegação, quanto à diversidade de pessoas jurídicas não é verdadeira, como facilmente se constata através de consulta da certidão comercial francesa (Documento 1 que junta e cujo teor considera integralmente reproduzido).
3) Na verdade, a pessoa coletiva/Ré que foi citada naquele Tribunal do Trabalho francês é a mesma contra quem foi proposta a presente ação neste Juízo de Trabalho,
4) A qual, para poder exercer uma atividade permanente naquele país estrangeiro, como efetivamente pretendeu fazer, teve necessidade de se fazer representar no mesmo pais estrangeiro através do registo/matrícula de pessoa coletiva, à semelhança do que acontece em Portugal.
5) Com efeito, como consta da referida certidão comercial francesa (citado documento 1), a pessoa coletiva é referenciada, quanto à sua forma jurídica como “societé de droit étranger”, ou seja, sociedade de direito estrangeiro,
6) Com morada da sede, “adresse du siege”, em Torres ..., ..., Barcelos, Portugal, ou seja, precisamente a mesma sede da sociedade Recorrente,
7) E com estabelecimento em França, em ....
8) Constata-se ainda na mesma certidão comercial que nela é identificado um “responsable en France” ou seja, um responsável em França pela sua gestão/administração, o que apenas faz sentido precisamente porque tal sociedade é reconhecida e tratada em França, como uma sociedade de direito estrangeiro.
9) Ademais, o responsável identificado é F. T., pessoa singular que dá o nome à sociedade recorrente, sendo seu fundador, gerente e sócio maioritário.
10) Facilmente se infere, pelas especificidades assinaladas, que a sociedade condenada no Tribunal do Trabalho Francês é a sociedade contra quem, nestes autos, foi declarada a executoriedade daquela decisão estrangeira.
11) Não há, pois, duas pessoas coletivas distintas, não há duas Rés, mas sim uma e tão só uma única pessoa jurídica.
12) Tal constatação também se infere quando comparamos a certidão constante do documento nº1 com uma certidão comercial de uma qualquer sociedade francesa (Documento 2 que junta e cujo teor considera reproduzido).
13) Conclui-se pois que a Ré/Recorrente é parte legítima na presenta ação.
…16) Ao contrário o que afirma a Recorrente, a sociedade Ré foi regularmente citada para ação, como é expressamente referenciado na sentença francesa (vide documento junto com a petição da presente ação), ao ser expedida comunicação para a morada constante da certidão comercial francesa, tendo sido também notificada da decisão final pela mesma via.
17) Respeitou, pois, aquele tribunal integralmente as regras de citação e notificação do seu país, pois a Ré foi citada para a ação no seu estabelecimento principal em França e notificada da decisão final para a mesma morada
18) Aliás, a anteceder a propositura da ação laboral, como também é expressamente referenciado na sentença do tribunal francês, o Autor/Recorrido, em 9 de abril de 2003, reclamou junto da Ré o pagamento dos seus créditos laborais em atraso, enviando carta para a morada do estabelecimento principal da Ré/Recorrente em França, e, inclusivamente para Portugal,
19) As quais a Ré/Recorrente não recebeu, com a menção de “não reclamada”
20) Como consta da certidão judicial traduzida, na impossibilidade de contactar a entidade empregadora, foi estabelecida uma notificação pelo Oficial de Diligências, o qual estabeleceu um auto de pesquisa, de acordo com o artigo 659º do Novo Código de Processo Civil francês.
21) Ora, como prevê o artigo 659º do CPC francês, o oficial de justiça, quando não é conseguida a citação no domicílio, residência ou local de trabalho, organiza um processo, no qual relata com precisão as diligências que efetuou para encontrar o destinatário do ato.
22) E no mesmo dia, ou dia seguinte envia para o último domicílio conhecido do destinatário carta registada com aviso de receção, contendo uma cópia do processo organizado e uma cópia do ato a notificar, ou seja, a petição proposta pelo Autor/Recorrido, e, em simultâneo avisa o destinatário através de carta simples contendo toda a documentação.
23) Por isso, na sua decisão, o Conseil de Prud’Hommes, imediatamente antes da tomada de decisão, refere expressamente que delibera publicamente, por mandado contraditório, após deliberação em direito permitido, condenando Sociedade Y & Filhos, Lda. a pagar ao Autor/Recorrido as quantia de 5.107,00 € e 510,72 €, decisão esta que foi posta em execução e notificada à Ré/Recorrente.
24) Foi, pois a Ré/Recorrente citada para a ação e notificada da decisão final proferida pelo Tribunal do Trabalho francês.
25) Nenhuma violação ocorreu de qualquer direito da Recorrente, muito menos do direito ao contraditório, antes sim, foi pura opção da Ré, que sabia ser devedora das quantias peticionadas,
26) Tendo assumido atitude passiva, não contraditando o teor da petição dirigida ao tribunal francês e não interpondo recurso, que lhe assistia, da decisão final, a qual deixou transitar em julgado.
….
31) Ora, como ficou alegado, a sociedade requerida foi citada para a ação laboral de acordo com as normas processuais que regem em matéria de citações e notificações previstas no Código de Processo Civil Francês.
32) …a requerida nessa ação laboral, de modo voluntário, não interpôs recurso da decisão e poderia tê-lo feito.
33) Não há pois, qualquer violação dos princípios da ordem pública, nem há qualquer violação do direito de defesa da sociedade demandada.
34) A Ré/Recorrente é parte legítima nesta ação, foi devidamente citada para a ação laboral em França, foi notificada da decisão ali proferida, não havendo qualquer fundamento para recusar o reconhecimento da decisão cuja executoriedade foi declarada….”

Com as alegações a recorrida juntou dois documentos, alegadamente destinados a provar que a ora ré é a mesma sociedade que foi citada na acção que correu em França.
A requerida/recorrente opôs-se à junção de documentos pedindo a sua rejeição, alegando que não estamos perante situação excecional que permita a junção em sede de alegações.
A requerente/recorrida respondeu do seguinte modo: encontra-se justificada a junção tardia do documento, dado que foi a própria recorrente que, em alegações, juntou um documento alegadamente para prova de que o processo movido pelo Recorrido em França foi proposto contra uma outra sociedade. O recorrido, ao ser confrontado com as alegações e documento junto pela Recorrente, no exercício do contraditório, juntou certidão comercial da Recorrente em França, cujo teor contraria a alegação de que a Recorrente é pessoa jurídica diversa daquela que foi condenada pelo Tribunal do Trabalho Francês. Assim, é ousada a atitude da recorrida. Ademais, o documento junto pela Recorrente é pouco percetível (aparentemente trata-se de um comprovativo de pagamento de imposto) e nada releva quanto à sua invocada ilegitimidade. Entendeu, pois, o Recorrido impugnar, com a junção de 2 documentos, o documento junto pela Recorrente, sendo o documento 1 para prova do registo comercial da Recorrente em França (sendo o documento 2 junto para evidenciar as diferenças registrais entre uma sociedade de direito francês e português com estabelecimento em França). Mostra-se justificada a superveniência de ambos os documentos juntos com as suas contra-alegações. Sendo admitida a junção do documento da recorrente deve, de igual modo, ser admitida, a junção dos documentos pela recorrida.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – propugna-se pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (segundo as conclusões do recurso (1)):

a) Questão prévia de admissão de documentos com as alegações e contra-alegações de recurso;
b) Ilegitimidade da ré, falta de citação e violação de princípios de ordem pública como causas de não reconhecimento de executoriedade de sentença estrangeira.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) Questão prévia de junção de documentos em fase de alegações:

A possibilidade de junção de documentos às alegações reveste carácter excepcional – 651º, CPC
Tirando o caso de a junção de documento se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância (decisões surpresa, que ao caso não relevam), depois do encerramento da discussão e em caso de recurso, só serão admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento- 425º CPC.
Abarca-se a superveniência objectiva (ex: documento em poder de terceiro que só posteriormente o disponibiliza) e subjectiva (a parte, pese embora tenha actuado de forma diligente, só posteriormente tem conhecimento da existência do documento) - José Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, Almedina, 4ª ed., p. 291.
A jurisprudência tem recusado a junção documentos relacionados com factos que a parte, já antes da decisão, sabia que estavam sujeitos a prova e, como tal, deveria tê-los junto - António Santos Abrantes Geraldes e outros, CPC anotado, Vol I, Almedina, 2019, p. 786.
No caso, há que reparar que não estamos perante uma acção que obedeça ao figurino clássico, em que a parte tem o ónus de, em momentos próprios, alegar e apresentar a prova dos factos constitutivos do seu direito, de modo a ser apreciada também em fases específicas, mormente no despacho saneador, no julgamento e na sentença. Tudo sob pena da sua preclusão, visando-se que as partes, com contraditório, carreiem em tempo útil, perante o juiz e em momento anterior à decisão, todos os elementos de prova.
Os autos respeitam a um pedido de declaração de executoriedade em Portugal de uma decisão proferida por um Estado-Membro (França) onde já tem força executiva – art. 38º do REGULAMENTO (CE) N.º 44/2001 DO CONSELHO de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária (2), ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (doravante, o REGULAMENTO).
De acordo com o REGULAMENTO, por força da autoridade de que a decisão proferida por um Estado-Membro já goza, o processado é extremamente simples, a prova exigível ao requerente é diminuta (cópia da decisão estrangeira e certidão de reconhecimento de executoriedade) e o controlo do tribunal é limitado aos casos taxativos ali previstos.

Atente-se nos seguintes Considerandos do REGULAMENTO:
(10) “Para efeitos da livre circulação das decisões judiciais, as decisões proferidas num Estado-Membro vinculado pelo presente regulamento devem ser reconhecidas e executadas num outro Estado--Membro vinculado pelo presente regulamento, mesmo se o devedor condenado estiver domiciliado num Estado terceiro
(16) A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, excepto em caso de impugnação.
(17) A mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua própria iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada – negrito nosso.
(18) O respeito pelos direitos de defesa impõe, todavia, que o requerido possa interpor recurso, examinado de forma contraditória, contra a declaração de executoriedade, se entender que é aplicável qualquer fundamento para a não execução. Também deve ser dada ao requerente a possibilidade de recorrer, se lhe for recusada a declaração de executoriedade.

Com interesse para a questão, atente-se ainda nos seguintes normativos do REGULAMENTO:
Artigo 33º: estabelece que as decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo e que, em caso de impugnação, qualquer parte interessada pode pedir o reconhecimento da decisão.
Artigo 36º: As decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito.
Artigo 38º1 “As decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada.”
Artigo 53º: “1. A parte que invocar o reconhecimento ou requerer uma declaração de executoriedade de uma decisão deve apresentar uma cópia da decisão que satisfaça os necessários requisitos de autenticidade.
2. A parte que requerer a declaração de executoriedade deve também apresentar a certidão referida no artigo 54º, sem prejuízo do disposto no artigo 55.
Artigo 54º “O tribunal ou a autoridade competente do Estado-Membro onde tiver sido proferida uma decisão emitirá, a pedido de qualquer das partes interessadas, uma certidão segundo o formulário uniforme constante do anexo V ao presente regulamento.”
Artigo 41º: apresentado o pedido de reconhecimento de executoriedade, a decisão será imediatamente declarada executória desde que acompanhada da certidão da decisão, sem sequer se proceder à verificação se existem ou não motivos para não reconhecer a decisão. Aliás, a parte contra a qual o reconhecimento da executoriedade é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo.
Artigos 42º, 43º - só após a declaração de executoriedade esta será notificada à parte demandada, acompanhada da decisão proferida no Estado-Membro de origem se esta não tiver sido já notificada, podendo aquela parte interpôs recurso.
Artigo 45º - Os fundamentos do recurso são muito limitados, apenas podendo ser negado o reconhecimento da executoriedade da decisão em casos especificados.

São exemplos desses fundamentos específicos:
Artigo 34º/2 “Se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer”;
Tudo para dizer que, quer pelos Considerandos, que pelas disposições citadas se alcança que o requerente, com o requerimento inicial, apenas teria de juntar certidão da sentença proferida pelo tribunal do Estado-Membro. Muito menos teria de contar com a necessidade de juntar documentos destinados a comprovar que a ora requerida era a entidade demandada na acção francesas. A necessidade só surgiu perante o alegado no recurso pela recorrente.
Ademais, foi a recorrente a começar por juntar, ela própria, um documento para o fim de comprovar que era uma sociedade distinta da que foi demandada em França. Ora, sendo esta uma questão que só agora surgiu no seguimento da sua arguição pela recorrente, igual possibilidade teria de ser dada à recorrida.
Ademais que, como vimos pelas referências normativas acima feitas, a citação da ré é também uma das poucas questões que em via de recurso podem ser aduzidas para negar a executoriedade à decisão proferida pelo tribunal francês. Como tal, os documentos devem ser admitidos. Quer os da recorrente, quer os da recorrida.
Improcede a oposição à junção de documentos que assim vão admitidos.

B) A ilegitimidade da requerida, a sua falta de citação e a violação de princípios de ordem pública:

Factos: Os factos a atender são os que constam do relatório e ainda os seguintes que resultam da prova documental junta:

a) A ré “Y & Filhos, Lda”, pessoa coletiva n.º ........., tem sede em Torre …, freguesia de ..., concelho de Barcelos.
b) A ora requerida/recorrente, desde 1-03-2001, estava matriculada em França como “societé de droit étranger” (sociedade de direito estrangeiro), constando com morada da sede (“adresse du siege”), em Torres ..., ..., Barcelos, Portugal e com estabelecimento em França, em ... - conforme certidão comercial francesa, doc. 1, junto com as alegações da recorrida e certidão emitida pelo tribunal francês junta com a petição inicial.
c) No registo de matrícula em França, a ora requerida tem identificado como “responsable en France” F. T., pessoa singular que dá o nome à sociedade recorrente.
d) Em 12 de maio de 2003, o autor intentou ação em França demandando a sociedade “ Y &Filhos”, peticionando o pagamento de salários e subsídios de férias, e indicando como domicílio de estabelecimento o registado em França (al.b).
e) A referida ação correu os seus termos no “Conseil de Prud’hommes de Longjumeau” (Tribunal do Trabalho de Longjumeau), a que foi atribuído o nº RG nº 03/00127.
f) Consta na decisão judicial que a primeira audiência marcada para 12-06-2003 foi adiada para 31-07-2003 e ” na impossibilidade de contactar a entidade empregadora, foi estabelecida uma notificação pelo oficial de diligências em 21 de Agosto de 2003 em audiência marcada para 28 de Agosto de 2003. O oficial de diligências estabeleceu um auto de pesquisa segundo o artigo 659º do Novo Código de Processo Civil. J. F. exibe um extracto “X” da sociedade a 30 de Julho de 2003 não demonstrando qualquer modificação nem observação”.
g) A demandada não compareceu na audiência de 28-08-2003, nem apresentou contestação.
h) O tribunal francês deliberou “publicamente e por mandado contraditório” e por sentença datada de 11 de setembro de 2003, proferida no citado processo, condenar a demandada sociedade a pagar ao ora Autor as quantias de 5.107,00 € a título de salários e 510,72 €, a título de subsídios de férias- certidão judicial e respetiva tradução.
i) Consta na certidão emitida pelo tribunal francês que a sociedade demandada foi notificada da decisão final pelo mesmo procedimento supra referido (incluindo c/ carta registada com aviso de recepção enviada a 11-09-2003) e para o mesmo domicilio - certidão junta à petição inicial.
j) Não foi interposto recurso daquela decisão.
k) O tribunal francês emitiu a certidão referida nos artigos 54º e 58º do REGULAMENTO preenchendo o formulário do anexo V do Regulamento, onde consta:
k.1 no ponto “4.4. Data de citação ou notificação do acto que determinou início da instância, no caso de a decisão ter sido proferida à revela : 21-08-2003
k.2 no final que “A decisão é executória no Estado-Membro de origem (art. 38ºe 58º do Regulamento”) contra Nome : sociedade Y e Filhos”.

Direito

Alega a recorrente não foi, nem demandada, nem condenada no âmbito do processo que correu em França RG n.º 03/00127, mas antes uma sociedade de direito francês. Que o referido processo foi proposto contra uma sociedade de direito estrangeiro, matriculada no Registo do Comércio e das Sociedades, possuindo estabelecimento principal em França, na .... Que Recorrente é parte ilegítima na presente demanda. Que forma violadas regras referentes à citação, ao direito ao contraditório e aos princípios de ordem pública.
A propósito da questão de junção de documentos, acima já referimos que os autos respeitam a um pedido de declaração de executoriedade em Portugal de uma decisão proferida por um Estado-Membro (França) em 11-09-2003.
Ao procedimento é aplicável o REGULAMENTO (CE) N.º 44/2001 DO CONSELHO de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária (3), ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, aplicação que, aliás, não suscita dissenso entre as partes.
Acima referenciamos também os princípios subjacentes ao dito REGULAMENTO. A saber a livre circulação das decisões judiciais, a confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade e a necessidade de estabelecimento de mecanismos capazes de lhe conferir simplicidade, celeridade e eficácia, tudo com vista ao bom funcionamento do mercado único. O que justifica o reconhecimento automático das decisões judiciais proferidas num Estado-Membro noutro Estado-Membro. Bem como a quase automaticidade da declaração de executoriedade noutro Estado-Membro das decisões que já gozem de força executiva no Estado-Membro de origem, desde que devidamente comprovada através de certidão do formulário do anexo V do REGULAMENTO – ver Considerandos e artigos acima mencionados.
Processualmente, a acção inicia-se no tribunal do Estado-Membro requerido com a apresentação pela parte interessada de pedido de reconhecimento da executoriedade da decisão proferida noutro-Estado-Membro (de origem) onde já tem força executiva, juntando cópia dessa decisão e certidão com formulário de executoriedade. O processado segue a forma do Estado-requerido. É logo proferida decisão de executoriedade desde que sejam apresentados os referidos documentos. Só depois a decisão é levada ao conhecimento do requerido que, então, pode exercer o contraditório mediante recurso para o Tribunal da Relação– 38º a 43º e anexo III do REGULAMENTO. Foi o que aconteceu nos autos.
O REGULAMENTO salvaguarda o respeito pelos direitos de defesa e a possibilidade de o requerido recorrer, pese embora sejam muito limitados e taxativos os fundamentos suscetíveis de obstaculizar a declaração de executoriedade da decisão judicial proferida noutro-Estado-Membro.
O Tribunal da Relação está impedido de conhecer do mérito da decisão estrangeira e apenas revogará a decisão de reconhecimento de executoriedade caso se verifiquem alguns dos motivos especificados/taxativos previstos no artigo 34º e 3º5, ex vi do artigo 45ºº do REGULAMENTO.
Atentos as conclusões do recurso, que delimitam o objecto do processo, ao caso relevam os seguintes dois fundamentos:

Artigo 34º do REGULAMENTO “uma decisão não será reconhecida:

1.Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido;
2.Se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer;…”
Os factos provados desmentem o alegado no que se refere ao facto de a ré ser parte ilegítima por não ser a demandada no processo que correu em França (e ali identificada nesses autos).
A ora ré, enquanto pessoa colectiva de direito privado sociedade por quotas, a fim de exercer a sua actividade em França, estava aí registada, com a mesma denominação e sede (em Portugal), devidamente identificada como sociedade estrangeira e estabelecimento em França, conforme “X” junto (documento oficial que atesta a existência de uma sociedade).
Segundo o REGULAMENTO “Se um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio no território de um Estado-Membro, mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num dos Estados-Membros, considera-se para efeitos de litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado-Membro”- 18º, 2 (norma inserida na secção da competência em matéria de contratos individuais de trabalho, sendo certo que nem sequer está posta em causa – nem esteve- o acerto da competência do tribunal francês).
Assim sendo, não restam dúvidas que a ora requerida é a mesma pessoa jurídica (sociedade) que foi demandada na acção francesa, sendo a sua denominação social igual, bem como a sede (em Portugal), tendo simplesmente um estabelecimento a funcionar em França, estando devidamente registada neste país. A pessoa colectiva não deixa de ser a mesma por ter actividade, agências e estabelecimento dispersos em diversas partes do mundo. Donde, a requerida é parte legítima por ser a identificada como demandada na acção francesa, de acordo com a cópia da decisão judicial e a certidão de executoriedade no Estado-Membro de origem. Ou seja, é aquela que no título que serve de base à acção de reconhecimento de executoriedade (sentença estrangeira) figura como devedor – 53º, 1, CPC.
Passando à falta de citação, sendo aplicável à acção que correu em França as regras processuais desse Estado-Membro de origem, decorre dos factos provados que o julgador francês considerou a ré citada para a acção e, igualmente, notificada da decisão judicial em conformidade com o novo código de processo civil francês (659º novo CPC). A ré não contestou, nem compareceu nas audiências designadas, sendo condenada à revelia. Igualmente não recorreu da decisão no Estado-Membro de origem, não obstante ter sido considerada notificada e, em condições de o poder fazer. Consequentemente, foi emitida pelo tribunal uma certidão confirmando a executoriedade da decisão no Estado-Membro de origem.
Vejamos se a lei francesa não concede garantias de defesa suficientes e se nesse Estado-Membro de origem não houve respeito pelo contraditório, ou se há ofensa de princípios de ordem pública.

Dispõe o artigo 659º NCPC francês (4):
Quando o destinatário da citação ou notificação não tiver domicílio, residência ou local de trabalho conhecidos, o oficial de justiça elabora um relatório no qual narra com exatidão a diligência que realizou para procurar o destinatário do título.
No mesmo dia ou, o mais tardar, no primeiro dia útil seguinte, sob pena de nulidade, o oficial de justiça envia ao destinatário, no último endereço conhecido, por carta registada com aviso de recepção, cópia do auto, ao qual se junta cópia do documento objeto da citação.
No mesmo dia, o oficial de justiça comunica ao destinatário, por carta simples, o cumprimento desta formalidade.
O disposto neste artigo é aplicável à citação ou notificação do acto respeitante a uma pessoa colectiva que já não tenha estabelecimento conhecido no local indicado como sede pelo registo comercial e das sociedades”.
Decorre da certidão junta que não foi conseguido o contacto pessoal com a ré no estabelecimento que consta no “X” (certidão de matrícula da sociedade), não obstante a requerida permanecer matriculada e com a indicação do estabelecimento em França no mesmo domicílio, que não cuidou de modificar, ainda que a sua ausência seja provisória (o que se desconhece).
O magistrado francês que presidiu ao julgamento e proferiu a decisão considerou que a ré foi regularmente citada segundo as modalidades previstas pelo artº 659º do NCPC e que não compareceu. Consta que o oficial efectuou as diligências necessárias e que a audiências foi adiada por duas vezes, só se realizando à terceira. Igualmente consta da certidão a notificação da sentença nos termos legais. Não está posta em causa a autenticidade do documento donde consta a sentença.
Donde se presume a citação da ré e que lhe foi dada oportunidade para se defender e, igualmente, que lhe foi comunicada a sentença e, assim, que lhe foram cridas as condições para recorrer.
O procedimento do sistema francês para citação e notificação é suficientemente completo e eficaz, protegendo adequadamente os direitos das partes. Após se ter frustrado o contacto pessoal, exige que sejam levadas a cabo pelo funcionário judicial várias investigações, com obrigatoriedade do envio no mesmo dia para o endereço conhecido de uma carta registada com aviso de recepção, seguido de uma carta simples.
Assim sendo, a requerida não provou que não teve conhecimento do acto que determinou o início da instância no tribunal de origem, nem tão pouco da sentença. Mais, só se pode presumir que da sua parte não houve diligência, nem preocupação em receber o correio no domicílio que mantinha na matrícula comercial. Sublinhe-se que não se provaram algumas circunstâncias excepcionais que permitam chegar a conclusão diversa. Seguro é que lhe foram criadas as condições para o conhecimento efectivo dos actos processuais.
Assim, pese embora o direito de defesa seja um princípio de ordem pública, enquanto vector basilar, essencial ao funcionamento da sociedade e do Estado, no caso não se provou a sua violação. Ademais, caso a recorrida não tenha recepcionado a correspondência (o que se desconhece, repete-se, é só uma hipótese para efeitos de fundamentação), tal só pode ser imputável à requerida, ao não ter o cuidado de se deslocar ao domicílio do estabelecimento que mantinha na matrícula e ao não actualizar os dados do domicílio.
Em suma, o que decorre dos factos provados e da certidão da decisão junta é que ocorreu o que no direito francês de designa de “citação/notificação no gabinete”, sendo a data do acto coincidente com o dia em que o oficial de diligência realiza as formalidades legais.

A propósito do artigo 659º do CPC francês, consta no resumo extraído do Ponto de contacto para a Rede Judiciária Europeia, tema “Citação e notificação – comunicação de actos processuais”, em e-justice.europa.eu:
“ No caso de o destinatário do ato não ter domicílio, residência ou local de trabalho conhecidos, o oficial de justiça pode, validamente, depositar o ato no seu gabinete. Para o efeito, elabora um auto em que relata com precisão todas as diligências efetuadas para tentar encontrar o interessado. No mesmo dia ou, o mais tardar, no primeiro dia útil seguinte, envia para o último endereço conhecido do destinatário, por carta registada com aviso de receção, uma cópia do auto e do ato objeto da citação. No mesmo dia, o oficial de justiça avisa o destinatário, por carta simples, do cumprimento dessa formalidade.”
Mais, se inclusivamente atentarmos no direito interno português encontramos norma semelhante relativamente à citação de pessoas colectivas com obrigatoriedade de inscrição no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletiva, conforme artigo 246º do CPC português.
Efectivamente, também no nosso direito interno, nos casos em que vem devolvida a carta registada com aviso de recepção, endereçada para a sede constante no ficheiro central das pessoas colectivas do RNPC, é repetida a citação enviando-se nova carta com aviso de recepção com determinadas menções, advertindo-a de que a citação se considera efectuada decorridos que esteja certo prazo.
Como se refere, no ac. da RL de 5-04-2016: “Recai, portanto, sobre as pessoas coletivas (mormente sobre as sociedades) o ónus de garantir a correspondência entre o local inscrito como sendo a sua sede e aquele em que esta se situa de facto, a fim de evitar que à sua citação se venha a proceder em local que por qualquer razão se encontre (temporária ou permanentemente) encerrado/inativo. …deixou de ser tolerada uma situação de "clandestinidade", com a manutenção indefinida, voluntariamente ou por simples negligência dos órgãos competentes, de uma sede desatualizada, em prejuízo de terceiros ou do Estado.”
Uma palavra final quanto ao invocado Regulamento (CE) n.º 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que criou o título executivo europeu para créditos não contestados, para dizer que não é aplicável aos autos. A decisão em causa data de 11-09-2003 e o Regulamento só entrou em vigor em 21-01-2005 (art. 33º).

Ainda que fosse temporalmente aplicável, o artigo 14º permite a citação ou notificação sem prova de recepção do devedor por:….
c) Depósito do documento na caixa de correio do devedor;
d) Depósito do documento num posto de correios ou junto das autoridades competentes e notificação escrita desse depósito na caixa de correio do devedor, desde que a notificação escrita mencione claramente o carácter judicial do documento ou o efeito legal da notificação como sendo uma efectiva citação ou notificação, e especificando o início do decurso do respectivo prazo;
e) Citação ou notificação por via postal sem a prova prevista no n.º 3, quando o devedor tenha endereço no Estado-Membro de origem;

É certo que o nº 2 do artigo 14º invocado nas conclusões de recurso refere: “2. Para efeitos do presente regulamento, a citação ou notificação nos termos do n.o 1 não é admissível se o endereço do devedor não for conhecido com segurança.
Esse não seria, contudo, o caso dos autos, em que o endereço do devedor é bem conhecido, é referenciado no “X”, documento oficial de matrícula da sociedade e onde consta o estabelecimento com domicílio no local para onde foi enviada a correspondência e no qual foi considerada citada, sem que a requerida tenha tido o cuidado de actualizar ou modificar esses dados.
Termos em que se conclui que não ocorre fundamento para negar o reconhecimento da executoriedade da decisão proferida pelo tribunal francês.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida - 87º do C.P.T. e 663º do Cód. de Proc. Civil.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
4-11-2021

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s salvo as questões de natureza oficiosa.
2. Publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias n.º L 12, de 16/01/2001) – aplicável por força do disposto no art.º 66.º, n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012.
3. Publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias n.º L 12, de 16/01/2001) – aplicável por força do disposto no art.º 66.º, n.º 2 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012.
4. https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGISCTA000006135900/