Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1154/20.5T8BCL-A.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: GERÊNCIA PLURAL
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ATO DE MERO EXPEDIENTE
PROVA POR CONFISSÃO
EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
GERENTE NÃO SÓCIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
- Se um gerente, em caso de gestão plural, se apresenta a representar a sociedade em desconformidade com os poderes concedidos na lei aos gerentes no artigo 261.º do CSC, e inexistir cláusula definindo de forma diversa, está a atuar fora dos poderes concedidos por lei, sendo a falta de poderes oponível a terceiros nos termos do artigo 260.º, 1 do CSC.
- Se resultar de uma cláusula que “nos documentos de mero expediente bastará a assinatura de um gerente efetivo ou substituto”, a sociedade ficará vinculada em relação a terceiros relativamente aos documentos assinados em seu nome por qualquer gerente, que se enquadrem em ato de mero expediente.
- A confissão constante de documento particular, conforme artigo 376.º, 2 e 352.º do CC, reporta-se a factos, constituindo uma declaração de ciência e não uma declaração de vontade. A qualificação jurídica do contrato que vigorou entre as partes não é facto, não podendo ser objeto de confissão.
- Os factos compreendidos na declaração consideram-se plenamente provados, na medida em que foram contrários aos interesses do declarante, conforme n.º 2 do artigo 376.º do CC e sem prejuízo do disposto no artigo 360.º do mesmo diploma.
- Ainda que se admita a possibilidade de exercício de gerência de sociedade mediante contrato de trabalho, tal sempre dependeria da prova da subordinação jurídica, com demonstração do circunstancialismo demonstrativo de tal subordinação, como os efetivos poderes sobre tal gerente, por parte da sociedade ou de outro gerente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

M. M., instaurou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum laboral, contra X – Panificadora ..., Lda., pedindo:

a) ser reconhecida a existência de um contrato de trabalho celebrado entre o autor e a ré com início em 29 de maio de 2004;
b) ser condenada a ré a pagar ao autor a quantia de 889,50€ (oitocentos e oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos), respeitante aos restantes créditos salariais vencidos e não pagos, tendo por referência a retribuição mensal liquida de 1000,00€;
c) ser declarada a ilicitude do despedimento do autor, promovido pela ré;
d) ser condenada a ré a pagar ao autor uma indemnização em substituição da reintegração, correspondente a 45 (quarenta e cinco) dias de retribuição de base e de diuturnidades, por cada ano de antiguidade ou fração, contada desde 29/05/2004 até à data do trânsito em julgado da presente sentença ou do acórdão que eventualmente e em definitivo venha a confirmar a ilicitude do despedimento, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da presente sentença até ao integral e efetivo pagamento, calculados à taxa legal;

Alega para tanto, em síntese, que foi contratado pela ré em 29/05/2004 para exercer as funções de gerente, mediante o pagamento da retribuição mensal de 1.000,00€, o que fez até ao dia 11/01/2020, data em que a ré dispensou os seus serviços, o que entende configurar um despedimento ilícito. Para além da indemnização em substituição deste e do pagamento das retribuições intercalares, alega estarem em falta algumas parcelas retributivas em cujo pagamento pede a condenação da ré.
*
A ré veio contestar a fls. 29 e ss. Confirma o exercício das funções de gerente por parte do autor no período alegado na petição inicial, mas nega que tenha existido qualquer contrato de trabalho, dizendo ser impossível a existência deste tendo em conta as funções de gerência exercidas pelo autor. Nega que a retribuição mensal acordada tenha sido de 1.000,00€, mas sim de 773,48€, e diz que o valor que o autor lhe deve e cuja compensação invoca na petição inicial não é de 438,94€, mas sim de 455,28€. Termina pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido e a procedência da reconvenção e a condenação do autor a reconhecer ser devedor da quantia de 455,28€ a título de aquisição de produtos alimentares.
O autor apresentou resposta a fls. 59, negando ser devedor de qualquer outra quantia para além da referida na petição inicial e pedindo a improcedência da reconvenção.

No despacho saneador foi proferida decisão nos seguintes termos:

“a) declaro que entre M. M. e X–Panificadora ..., Lda. vigorou um contrato de trabalho;
b) declaro a ilicitude do despedimento do autor M. M., promovido pela ré X – Panificadora ..., Lda. em 11/01/2020.
*
A responsabilidade por custas será determinada a final, de acordo com o decaimento global da ação.

(…)
CONTINUAÇÃO DOS AUTOS
Os autos prosseguem apenas para apreciação dos demais pedidos deduzidos na ação, para o que é necessário a produção de prova sobre a retribuição mensal acordada entre autor e ré e sobre a data de início de funções do autor.”

Inconformado a ré interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:

A. Ora, com o devido respeito, o entendimento sufragado na Sentença recorrida merece ser censurado. O presente recurso interposto versará sobre a impugnação da matéria de Direito.
B. Na referida petição inicial, o A. juntou, para além de outros documentos, – o documento nº 3, intitulado por “CERTIFICADO DE TRABALHO”, onde refere que o A. “desempenhou na empresa, durante esse período, a seguinte função: 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente”.
NULIDADE DA SENTENÇA
– FUNDAMENTOS ESTÃO EM OPOSIÇÃO COM A DECISÃO (art. 615º, nº 1, al. c) do CPC):
C. De acordo com o disposto na al. c), do n.º 1, do citado art. 615º, do C. P. Civil, a sentença será nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
D. Aqui fica demonstrado, de acordo com as alíneas transcritas (FACTOS DADOS COMO PROVADOS), que há uma evidente nulidade da Sentença, ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. c) – por não ter sido provado que o A. foi trabalhador da R., e que exerceu a sua atividade sob a direção e fiscalização da R., bem como, nada aponta nos factos dados como provados que entre a Ré e o Autor vigorou um contrato de trabalho.
E. Contrariamente: conforme se vislumbra através dos factos dados como provados, apenas se extrai que o Autor foi gerente da Ré, sendo certo que, tendo em conta a matéria de facto dada como provada (al. F) e G) e a decisão em causa, corresponde a um vício de nulidade, uma vez que a matéria de facto e os fundamentos de facto invocados – conduzem logicamente ao resultado oposto àquele que integra o respetivo segmento decisório.
F. Compulsada a Douta Sentença recorrida resulta, a nosso ver, evidente que ocorre a alegada contradição, pois que a fundamentação de facto – EM QUE NÃO APONTA PARA QUALQUER RELAÇÃO/VINCULO LABORAL ENTRE AUTOR E RÉ, só podia conduzir para Decisão diversa que foi proferida – nomeadamente a improcedência da ação.
G. NADA APONTA DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO QUE ENTRE AUTOR E RÉ VIGOROU UM CONTRATO DE TRABALHO! Assim, foi violado o art. 615º, nº 1, al. c) do CPC, sendo a Sentença nula, por oposição entre a matéria de facto, a fundamentação de facto com a decisão.
SEM PREJUÍZO, E CASO, NÃO SEJA ESSE O ENTENDIMENTO - NÃO ESPECIFIQUE OS FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO QUE JUSTIFICAM A DECISÃO (art. 615º, nº 1, al. b) do CPC):
H. Conforme os factos dados como provados, é clarividente que o Tribunal a quo não especificou que entre Autor e Ré vigorou um contrato de trabalho, ou seja, por outras palavras, o Tribunal a quo não incluiu nos factos dados como provados que existiu contrato de trabalho. Apenas resultou provado que o Autor era Gerente da Ré. Por sua vez, o Tribunal a quo reconheceu que entre o Autor e Ré vigorou um contrato de trabalho.
I. A nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão não se basta com a existência de uma fundamentação abreviada ou que seja incompleta ou deficiente ou que, por qualquer modo, não seja convincente, casos em que se poderá questionar o mérito da própria decisão e a procedência dos seus argumentos, mas não afirmar a sua nulidade.
J. Assim, foi violado o art. 615º, nº 1, al. b) do CPC, sendo a Sentença nula.

II – DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO

K. Destarte, o Tribunal a quo proferiu Saneador/Sentença – sem prévia realização de Julgamento –, porquanto a Ré, aqui recorrente, não impugnou o teor do documento nº 3 apresentado.
L. Ademais, a R. – na sua Contestação, “confirma o exercício das funções de gerente por parte do autor no período alegado na petição inicial, mas nega que tenha existido qualquer contrato de trabalho, dizendo ser impossível a existência deste, tendo em conta as funções de gerência exercidas pelo autor. Nega que a retribuição mensal acordada tenha sido de 1.000,00€, mas sim de 773,48€, e diz que o valor que o autor lhe deve e cuja compensação invoca na petição inicial não é de 438,94€, mas sim de 455,28€. Termina pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido e a procedência da reconvenção e a condenação do autor a reconhecer ser devedor da quantia de 455,28€ a título de aquisição de produtos alimentares”.
M. Contudo, o Tribunal a quo deu como provado os pontos F) e G) dos Factos dados como provados:
F) A partir de 11/01/2020, a ré não permitiu que o autor continuasse a exercer as funções de gerente.
G) Por carta enviada pela ré e recebida pelo autor, datada de 07/05/2020, a ré remeteu ao autor o documento junto a fls. 13, assinado e carimbado pela gerência, datado de 17 de abril de 2020 e intitulado “certificado de trabalho”, com o seguinte teor: “A empresa X Panificadora ..., Lda., contribuinte n.º ........., com sede no Lugar ..., na cidade de Esposende, pela presente declara, nos termos e para os efeitos previstos no número 1 ao artigo 341º do Código do Trabalho (Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro), que o trabalhador M. M., foi funcionário desta empresa entre 18/06/2004 a 11/01/2020, data esta em que o contrato de trabalho cessou mediante iniciativa do empregador.

Desempenhou na empresa, durante esse período, a seguinte função:

• 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente;”.
NORMA JURÍDICA VIOLADA – ARTS. 352º E SS. DA CÓDIGO CIVIL N. O Tribunal a quo proferiu Sentença parcial, e considerou que entre Autor e Ré vigorou um contrato de trabalho, porquanto, de acordo com o teor do documento nº 3 junto com a petição inicial, a Ré não impugnou a sua autoria, letra, assinatura ou teor.
O. POIS BEM: vislumbrando o documento nº 3 junto com a PI, resulta apenas que: O Autor apenas desempenhou na empresa, durante esse período (18/06/2004 a 11/01/2020), a função de Gerente, cfr. somos a transcrever:
Desempenhou na empresa, durante esse período, a seguinte função:
• 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente;”.
P. Ademais, caso o Autor fosse considerado trabalhador, a Ré colocaria a seguinte menção no referido documento:
“Desempenhou na empresa, durante esse período, as seguintes funções:
• 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente;
• 18/06/2004 a 11/01/2020 – Trabalhador com a categoria de …”
Q. In casu, o representante legal da Ré, aqui recorrente apenas confessou que o Autor apenas desempenhou exclusivamente na empresa, durante esse período, a função de Gerente. Ora, o representante legal da Ré, não almejou identificar, nem almejou confessar, na parte final do documento nº 3, junto com a Petição Inicial, que o Autor era trabalhador da Ré, as apenas e tão-só “Gerente”!
R. O referido documento não é suscetível de gerar natureza confessória, devido à sua contradição. Mais, vislumbra-se na Contestação que a Recorrente, aqui Ré, JAMAIS ASSUME que o Autor aqui recorrido foi trabalhador/funcionário da Recorrente, porque nunca o foi.
S. Por outra banda, caso o documento nº 3 junto com a Petição Inicial se encontrasse redigido da seguinte forma: “Desempenhou na empresa, durante esse período, as seguintes funções: • 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente; * 18/06/2004 a 11/01/2020 – Trabalhador com a categoria de …” … Certamente que a R. teria impugnado o seu teor e alcance, … Contrariamente, o “famigerado” documento, apenas apresenta a seguinte conclusão:
T. - E, com base nessa declaração, é de concluir que a categoria do Autor é a de gerente, e nunca de trabalhador!
U. Decidindo de modo diverso, fez a Douta Sentença, má aplicação do Direito aos factos provados e violou, além de outras, as normas dos artigos 352º e ss. e arts. 362º e ss. do Código Civil,

SEM PREJUÍZO, E CASO, NÃO SEJA ESSE O ENTENDIMENTO – e só por mero dever de patrocínio se exige:
V. Deste modo, de acordo com a al. H) dos factos dados como provados, salienta-se que a aqui recorrente é constituída por dois membros efetivos e dois substitutos.
W. Destarte, de acordo com o documento nº 3, junto com a Petição Inicial, vislumbra-se que APENAS UM (1) GERENTE ASSINOU O DOCUMENTO, quando na verdade, era imperioso e imprescindível a assinatura de dois gerentes.
X. Na verdade, de acordo com o ponto § 5 do artigo 14ª do Pacto Social da Ré – junto como documento nº 1 da PI, resulta que:
“ § Quinto: - Nos documentos que envolvam responsabilidade para a sociedade, designadamente letras, cheques e contratos, a sociedade só ficará obrigada com a assinatura de dois gerentes efetivos ou de dois substitutos e um efetivo”.
Y. Nunca se olvidando que, no Pacto Social junto pelo Autor, encontra-se expressamente consignado que os documentos que envolvem responsabilidade para a Ré – como é o caso do documento nº 3 junto com a petição inicial – apenas produziria efeito ou vinculava a Ré, se fosse assinado por:
- Dois gerentes efetivos, ou - dois gerentes suplentes e um efetivo.
Z. O Código das Sociedades Comerciais no artº 260º/1 dispõe que: “Os atos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios.
AA. Decidindo de modo diverso, fez a Douta Sentença, má aplicação do Direito aos factos provados e violou, além de outras, as normas dos artigos 260º e 261º do Código das Sociedades Comerciais, e 352º e ss. e arts. 362º e ss. do Código Civil.

SEM PREJUÍZO
DA NULIDADE DO DOCUMENTO Nº 3 JUNTO COM A PI:
BB. Deflui do Pacto Social da Ré – junto como documento nº 1 da PI, que para obrigar a sociedade, se exige a assinatura dos dois gerentes efetivos ou dos dois gerentes suplentes e um efetivo da Ré.
CC. Ora, a assinatura de apenas 1 Gerente, demonstra que o mesmo não tinha legitimidade nem poderes para – desacompanhado de outro sócio gerente – obrigar a Ré.
DD. Assim, o documento assinado pelo Gerente da Ré – intitulado sob o documento nº 1 – junto com a petição inicial está viciado e é nulo – cfr. arts. 286º e 289º do Código Civil!

NESTES TERMOS e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência, deverá ser revogada a Douta Sentença, substituindo-o por outro Acórdão, que determine o prosseguimento dos autos, tudo conforme supra explanado.
Em contra-alegações sustenta-se o julgado.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da inexistência de nulidades, e pela improcedência.
Colhidos os vistos das Ex.mas Srªs. Des. Adjuntas, há que conhecer do recurso.
***
Factualidade:

A) A ré é uma sociedade comercial por quotas, que tem como escopo lucrativo o exercício da indústria e comércio de pão e seus afins;
B) A administração da sociedade é constituída por dois membros efetivos (gerência plural) e dois substitutos, escolhidos em Assembleia Geral de entre os sócios ou pessoas estranhas à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena;
C) Sendo que o mandato da gerência é fixado pelo período de dois anos, podendo renovar-se sucessivamente;
D) Por deliberação aprovada em Assembleia Geral de 29/05/2004, a ré nomeou o autor para o cargo de gerente efetivo (documento junto a fls. 39 e 40);
E) Por deliberação aprovada em Assembleia Geral de 11/01/2020, a ré nomeou para o cargo de gerentes efetivos M. C. e M. D. (documento junto a fls. 10v. e ss.);
F) A partir de 11/01/2020, a ré não permitiu que o autor continuasse a exercer as funções de gerente;
G) Por carta enviada pela ré e recebida pelo autor, datada de 07/05/2020, a ré remeteu ao autor o documento junto a fls. 13, assinado e carimbado pela gerência, datado de 17 de abril de 2020 e intitulado “certificado de trabalho”, com o seguinte teor:
“A empresa X Panificadora ..., Lda., contribuinte n.º ........., com sede no Lugar ..., na cidade de Esposende, pela presente declara, nos termos e para os efeitos previstos no número 1 ao artigo 341º do Código do Trabalho (Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro), que o trabalhador M. M., foi funcionário desta empresa entre 18/06/2004 a 11/01/2020, data esta em que o contrato de trabalho cessou mediante iniciativa do empregador.
Desempenhou na empresa, durante esse período, a seguinte função:
- 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente;”.
- Aditado (resulta do documento):
O documento é assinado em representação da sociedade pelo gerente M. C..
***
Conhecendo do recurso:

Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.

Questões colocadas.
- Nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, al. c) do CPC) e por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito - (art. 615º, nº 1, al. b) do CPC).
- Impugnação da matéria de direito, por errada interpretação do alcance da confissão constante do documento de fls. 3.
- Erro de julgamento por errada interpretação das normas dos artigos 352º e ss. e arts. 362º e ss. do Código Civil, quanto à confissão.
- Nulidade do documento de fls. 3 e errada interpretação dos artigos 260º e 261º do Código das Sociedades Comerciais, quanto à vinculação da sociedade relativamente a tal documento.
***
Nulidade da sentença.
Refere a recorrente que ocorre nulidade por não ter sido provado que o A. foi trabalhador da R., e que exerceu a sua atividade sob a direção e fiscalização da R., bem como, nada aponta nos factos dados como provados que entre a Ré e o Autor vigorou um contrato de trabalho, antes resultando que foi gerente. Invoca o artigo 615º, 1, c) do CPC.
Invoca ainda nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito, por falta de referência a factos no sentido de que entre autor e ré vigorou um contrato de trabalho, referindo a al. b) do mesmo normativo.

Refere o artigo 615.º do CPC:
Causas de nulidade da sentença
1 - É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
(…)
A fundamentação de facto e de direito a que se reporta o artigo 668, nº 1, al. b), exige uma falta absoluta de fundamentação e não uma simples deficiência. Reporta-se tal fundamentação à referência, à concretização dos factos considerados provados, e sua análise crítica no processo dialético que culmina na decisão. A exigência respeita essencialmente à “estrutura” da sentença. A nulidade consiste na falta absoluta de descriminação dos factos a considerar na sentença (os que resultam da base instrutória e outros a que deva atender-se - confissão escrita, acordo das partes, por documento com força probatória plena) e/ou à absoluta falta de indicação dos fundamentos de direito, não bastando a mera deficiência nessas indicações.
Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual do Processo Civil, Coimbra ed., pág. 669, defendem que é suficiente a “concretização dos fundamentos de facto”, “feita mediante simples referências à especificação ou às respostas do tribunal coletivo”. Em sentido diverso – Ex: Ac. STJ de 18/1/74, BMJ de 233, 140. Quanto aos fundamentos de direito têm-se entendido bastar, não incorrendo a decisão em nulidade, a simples indicação das normas aplicáveis. A eventual falta de uma “circunstância” factual que a recorrente possa entender estar em falta para a decisão tomada, tem a ver com o erro de julgamento e não com a nulidade da decisão. Esta respeita a vício alheio ao mérito, reporta-se a vício que por si impede a perceção da decisão e seus fundamentos, quer como elemento legitimador, quer por forma a que a mesma possa ser contestada, e eventualmente reapreciada em sede de recurso.
Esta nulidade não ocorre de todo, pois na decisão vêm descritos os factos assentes e faz-se a sua analise à luz do direito, numa fundamentação de quase cinco páginas. Não existe igualmente contradição no sentido pressuposto nesta norma. A contradição a que a norma se reporta é aquela que impede a perceção do porquê do decidido. Trata-se de contradição entre a fundamentação e a decisão, não se confundindo com erro de julgamento. Ocorre quando na fundamentação o julgador discorre num sentido, e acaba por decidir em sentido contraditório. Assim por exemplo, discorre-se que o contrato não é de trabalho e decide-se condenando em indemnização por despedimento. Trata-se de um erro no raciocínio lógico, um erro no silogismo judiciário, em moldes tais que o mesmo resulta incongruente, em virtude de o decidido não ser a conclusão lógica dos fundamentos, a conclusão de todo o processo argumentativo. A contradição entre os factos e a decisão não implicam – em princípio, salvo algum caso específico -, este tipo de nulidade, se partindo desse facto se fundamenta de forma congruente com o decidido. O que ocorre então é erro de julgamento.
Improcedem as nulidades invocadas.
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- Impugnação da matéria de direito, por errada interpretação do alcance da confissão constante do documento de fls. 3.
- Erro de julgamento por errada interpretação das normas dos artigos 352º e ss. e arts. 362º e ss. do código civil, quanto à confissão.
- Nulidade do documento de fls. 3 e errada interpretação dos artigos 260º e 261º do código das sociedades comerciais, quanto à vinculação da sociedade relativamente a tal documento.
Comecemos pela invocada nulidade do documento.
Refere a recorrente a nulidade do documento, por ter sido assinado apenas por um dos gerentes e sendo que nos termos do pacto social, artigo 14º, § 5º, a sociedade se obriga pela assinatura de dois gerentes efetivos ou de dois suplentes e um efetivo, referindo os artigos 286º e 289º do CC. Reportam-se estes artigos respetivamente, à invocabilidade da nulidade a todo e tempo e aos seus efeitos.
Quanto à nulidade em si, refere o artigo 294º do CC que os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei. Por sua vez o artigo 295º do mesmo diploma manda aplicar o normativo e seu regime, aos atos jurídicos, na medida em que a analogia das situações o justifique.
Refere o recorrido que a recorrente não impugnou a autenticidade do documento nos termos do artigo 444º do CPC. O normativo refere-se à impugnação da genuinidade do documento. Ora o documento não é invocado de falso, a ré aceita que o documento é verdadeiro, foi subscrito pela pessoa que o subscreve. Não é caso de aplicação do citado artigo, o que a ré defendeu é que o mesmo a não vincula por falta de poderes do subscritor para, agindo sozinho, a vincular. Seja, a ré questiona a legitimidade do subscritor para a vincular. Também não é caso para aplicação do nº 1 do artigo 260º do CSC, como veremos, já que a norma se refere a restrições constantes do pacto, e não às a que resultam da lei.

Vejamos a questão:
Sobre a vinculação das sociedades por quotas, sua responsabilização perante terceiros (atos externos), no que respeita à sua representação orgânica, regula o CSC. O regime em causa resulta da ponderação dos diversos interesses em jogo, os interesses da sociedade, dos sócios e de terceiros.

Consta dos artigos:
Artigo 260.º
(Vinculação da sociedade)
1 - Os atos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios.
2 - A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objeto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias que o ato praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos sócios.
3 - O conhecimento referido no número anterior não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade.
(…)
Resulta do normativo e quanto aos atos praticados pelo gerente fora dos poderes que a lei lhe confere, que não vinculam a sociedade.

Os atos praticados dentro dos poderes conferidos por lei, mas fora do quadro de poderes fixado no contrato social, podem ser opostos a terceiros se se verificarem três requisitos:
- O ato praticado, fora dos poderes estatutariamente fixados, deve referir-se a (violar), limitações de poderes resultantes do objeto social.
Compete à sociedade demonstrar que o ato viola tais limites, sendo que nos termos do nº 3 do normativo, o facto de o objeto social estar publicitado (já que consta do contrato social) por si só não basta. O ato deve ser espúrio em relação ao objeto social, não tendo relação com este nem sequer uma relação de instrumentalidade seja direta ou indireta - Vd. Menezes Cordeiro, (coord.), Código das Sociedades Comerciais anotado e Regime Jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação das sociedades comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 6.
- Deve demonstrar-se que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o ato praticado não respeitava essa cláusula.
- Não ocorreu a confirmação do ato pela sociedade, por deliberação expressa ou tácita dos sócios.
Pode assim retirar-se que nos termos do artigo 260º do CSC, os atos praticados em violação das limitações constantes da lei são sempre oponíveis a terceiros – Veja-se Tiago Miguel Esteves, Vinculação das sociedades anónimas e por quotas: notas sobre o seu regime jurídico, RDS 2010, 1 e 2, pág 386 e 387, com indicação de doutrina, aludindo aos sistema criado pela primeira diretiva 68/151/CEE do Conselho sobre Direito das Sociedades, que influenciou o CSC (atualmente vigora a Diretiva (UE) 2017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, relativa a determinados aspetos do direito das sociedades); Raul Ventura, “Sociedade por Quotas”, vol. III, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 1991, p. 170.
Vejamos se um gerente atuando sozinho pode vincular a sociedade.

Quanto à gerência o artigo 252.º refere:
(Composição da gerência)
1 - A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.
(…)

Havendo gerência plural, refere a lei, supletivamente:
A artigo 261.º
(Funcionamento da gerência plural)
1 - Quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respetivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados.
(…)
Os poderes assim fixados, na falta de estipulação em contrário, enquadram-se para efeitos do artigo 260º, nº 1 no conceito de “poderes que a lei lhes confere”, ainda que o pacto ou estatutos reproduzam o modelo legal. Tal reprodução não transforma os poderes conferidos por lei em poderes conferidos por contrato ou deliberação dos sócios.
Nesta circunstância, encontra-se fora dos poderes conferidos por lei a pratica de ato por um gerente agindo sozinho, se a gerência for plural e nada em contrário for clausulado quanto à forma de vincular a sociedade.
Se o ato é praticado fora dos poderes conferidos por lei é oponível a terceiros, estes não podem invocar que agiam na convicção de estar a relacionar-se com a sociedade, se esta não é representada de acordo com o que a lei dispõe, nem se vê que possam ter qualquer expetativa fundada e merecedora de proteção no sentido da vinculação da sociedade. No nosso direito, o ato dos gerentes é o ato da sociedade, pelo que a manifestação de vontade desta deve proceder-se de acordo com a lei, devendo, quem se relaciona com as sociedades, cuidar de se inteirar sobre quem “integra” o órgão com poder para manifestar essa vontade.
Conquanto não se desconheça opiniões em contrário, se um gerente, em caso de gestão plural, se apresenta a representar a sociedade em desconformidade com os poderes concedidos na lei aos gerentes, - no que tange à manifestação de vontade, tal como prescrito no artigo 261º do CSC -, está a atuar fora dos poderes concedidos por lei. Isto independentemente de os estatutos reproduzirem ou não a norma.
O gerente pode praticar o ato em nome da sociedade, mas não sozinho. A vontade da sociedade só se manifesta com o exercício plural do mesmo. Vd. Tiago Esteves, obra referida, pág. 394; Coutinho de Abreu, Vinculação das sociedades comerciais, in Estudos em Homenagem ao Professor Oliveira Ascensão, vol. I., 2007; pág. 1225; Raul Ventura, Sociedade por Quotas, Comentário ao CSC, Vol. III, pág 191. O terceiro não fica desprotegido, porquanto a representação conjuntiva resulta da lei. Se uma cláusula estatutária dispuser de forma diferente, ao abrigo da possibilidade referida no nº 1 do artigo 260º do CSC, não resultam prejuízos para o terceiro, que pode inteirar-se do modo de vinculação da sociedade estatutariamente fixada de forma diversa - artigos 70. ° nº 1, a), e 2, 73. ° e 74. ° do CRC e artigos 166. °, 167. ° e 168. ° CSC. Veja-se o regime do artigo 168º do CSC na falta de registo. No sentido da não vinculação da sociedade ainda, Alexandre Soveral Martins, Os poderes de representação dos administradores das sociedades anónimas, Coimbra Editora, 1998; pág. 118.
Contudo importa ter em atenção no caso presente o que dispõe § 4 do artigo 14º do contrato social. Refere esta cláusula que “nos documentos de mero expediente bastará a assinatura de um gerente efetivo ou substituto”.
Trata-se de atos de gestão corrente, atos do dia a dia, como refere Ricardo Candeias, in ROA, Ano 60, (janeiro, 2000), vol. I, p. 261. trata-se de atos que podendo ter embora efeitos externos, as respetivas “consequências económicas são de menos importância para a sociedade. São atos essencialmente executivos, no sentido de concretizarem o que já foi previamente estabelecido” – autor e obra referida, pág. 263. A razão de ser destas estipulações tem a ver com a necessária fluidez que a sociedade deve ter no seu dia a dia, que ficaria fortemente limitada com a exigência da intervenção do conjunto dos gerentes para tal tipo de atos. São atos com “pequeno relevo económico para a sociedade e/ou rotineiros praticáveis com reduzida margem de liberdade ou discricionariedade administrativo-representativa” – Coutinho de Abreu, “Diálogos com a jurisprudência, IV – Vinculação das sociedades”, in Direito das Sociedades em Revista, Almedina, outubro 2014, Ano 6, vol. 12, p. 103, dando como exemplos, “a emissão de faturas/recibos ou de notas de remessa, o depósito de dinheiro da sociedade em bancos, pagamento de salários, distribuição de tarefas pelos trabalhadores”.
São atos de gestão corrente da sociedade, no qual se insere a passagem ao trabalhador dos documentos a que alude o artigo 341º do CT, ou a passagem a colaborador dispensado de um documentando tal como o que está em causa nos autos. A recorrente não questiona a decisão dela própria em dispensar o autor. A passagem do documento, como resulta do mesmo com a referência normativo efetuada, visa dar execução a essa dispensa. Trata-se consequentemente de documentando que não envolve em si mesmo esse ato, não é por ele que o colaborador é dispensado, antes dá execução a essa dispensa. Não obsta a este entendimento o facto de o ato poder ter consequências no plano externo, designadamente enquanto declaração de ciência, enquanto declaração confessória, se essa declaração não constituir em si um ato de relevo económico, ou de outro modo, se no computo da vida da sociedade, tendo em conta designadamente a sua dimensão, tais consequências forem de considerar com pequeno relevo económico.
O documento não enferma de qualquer vicio, vinculando a sociedade.
***
Já quanto ao alcance da confissão assiste razão à recorrente.

Sobre a matéria importam os artigos 352º e 376º do CC.

Artigo 352.º
(Noção)
Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Artigo 376.º
(Força probatória)
1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
3. Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.

Como resulta das normas, a confissão refere-se a factos, não a meras valorações ou questões de direito. A confissão é uma declaração de ciência e não uma declaração de vontade, daí, nas palavras de Anselmo de Castro Processo, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, p. 324, “ser desnecessária a consciência e a representação dos seus efeitos, tanto bastando a vontade de a emitir”. A confissão de direito tem o seu próprio campo de aplicação, como confissão do pedido, mediante o qual a parte dispõe da situação jurídica em litígio, tratando-se de um ato de vontade – artigo 283º, 284º, 290º, 3 do CPC. Sobre o objeto da confissão Vd. Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pag. 44 ss, referindo a pág 51, “sendo indubitável que, não constitui o facto a que se refere o artigo 352º do C.C., um direito ou outra situação jurídica não pode constituir objeto da figura da confissão nele configurada… A confissão tal como resulta da lei civil só pode incidir sobre factos”, e a pág 54, “já não é de admitir como confissão a declaração de que se é ou não…titular de uma determinada situação jurídica, ainda que referida a um conceito de direito de fácil compreensão e correntemente utilizada por não especialistas em direito, a menos que ela seja referenciada aos factos concretos que a originam…”
Não compete às partes decidir de direito, fazer o direito – sem prejuízo da possibilidade de confissão do pedido ou desistência deste, quando possíveis tendo em conta a natureza disponível ou não dos direitos ajuizados -. Quanto ao reconhecimento extrajudicial de direitos ou situações jurídicas, Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório…, pág. 383 e seguintes.
A qualificação jurídica que as partes possam dar a determinado negócio pode servir como elemento a ponderar, mas não implica que tenha de haver-se juridicamente tal contrato como aquele que as partes indicam. Será o caso de o negócio celebrado se mostrar espúrio em relação ao à qualificação indicada. Assim por exemplo o caso de se “nomear” um contrato como prestação de serviços, tendo a relação todas as características e desenvolvendo-se como um verdadeiro contrato de trabalho. Deverá ser aplicado o regime do contrato de trabalho.

Vejam-se a propósito da prova por confissão, os artigos 452º e 454º, 1 do CPC que referem o termo “factos”. Quanto à prova por confissão veja-se o Ac. RP de 22/3/2021, processo nº, 717/20.3T8AGD-A.P1, no qual se refere:

“… esclareça-se mais uma vez, na medida em que, socorrendo-nos dos ensinamentos de Alberto dos Reis [Código de Processo Civil, Anotado, III, pág. 212], ainda hoje plenamente válidos, a prova “só pode ter por objeto factos positivos, materiais e concretos” e que “tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é atividade estranha e superior à simples atividade instrutória”. Ainda neste âmbito, agora por apelo aos ensinamentos de Anselmo de Castro [Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra – 1982; pág. 26], importa ter presente que “toda a norma pressupõe uma situação da vida que se destina a reger, mas que não define senão tipicamente nos seus caracteres mais gerais”, pressupondo assim a aplicação da norma, “primeiro, a averiguação dos factos concretos, dos acontecimentos realmente ocorridos, que possam enquadrar-se na hipótese legal”, sendo que “esses factos e a averiguação da sua existência ou não existência constituem, respetivamente, o facto e o juízo de facto – juízo histórico dirigido apenas ao ser ou não ser do facto”, “segundo, um juízo destinado a determinar se os factos em concreto averiguados cabem ou não efetivamente na situação querida pela norma, típica e abstratamente nela descrita pelos seus caracteres gerais – juízo este já jurídico (o chamado juízo de qualificação ou subsunção), visto pressupor necessariamente interpretação da lei, isto é, do âmbito ou alcance da previsão normativa”.
De resto, por último, a propósito desta mesma questão, importa lembrar que, em conformidade com o regime antes exposto, mesmo em sede de recurso, no âmbito dos poderes da Relação no que diz respeito à apreciação da matéria de facto, acentuados com a Reforma de 2013 do CPC (artigo 662.º), não obstante a revogação com a mesma reforma do anterior artigo 646.º, em que se previa que no julgamento da matéria de facto ter-se-ão por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito – solução que como é entendimento doutrinário e jurisprudencial se aplica, por analogia, às respostas que constituam conclusões de facto, designadamente quando as mesmas têm a virtualidade de, por si só, resolverem questões de direito a que se dirigem…”
Assim a confissão, seja judicial seja extrajudicial, refere-se sempre a um facto, desfavorável ao confitente, não abrangendo o direito.

Do documento consta:
“A empresa X Panificadora ..., Lda., contribuinte n.º ........., com sede no Lugar ..., na cidade de Esposende, pela presente declara, nos termos e para os efeitos previstos no número 1 ao artigo 341º do Código do Trabalho (Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro), que o trabalhador M. M., foi funcionário desta empresa entre 18/06/2004 a 11/01/2020, data esta em que o contrato de trabalho cessou mediante iniciativa do empregador.

Desempenhou na empresa, durante esse período, a seguinte função:

• 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente;”.
O documento e nos termos do nº 1 faz prova plena quando às declarações atribuídas ao seu autor. O autor fez as declarações que constam do documento.
Nos termos do nº 2 os factos constantes dessa declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão. Esta força probatória decorre do facto de se estar perante uma verdadeira confissão, daí que a mesma apenas se verifica em relação ao declaratário e não relativamente a terceiros, nos termos do artigo 358º, 2 do CC. Vd. Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, 2ª ed., Almedina, 1984, pág., 55 e 56; Gonçalves Sampaio, A Prova por Documentos Particulares, Almedina, 2004, pág. 69 em nota.

Da declaração plenamente provada nos termos do nº 1 do artigo 376º do CC resultam como factos confessados e plenamente provados, conforme nº 2 do artigo 358º do CC, os seguintes:
- O autor trabalhou na empresa ré entre 18/06/2004 a 11/01/2020, desempenhando nesta durante esse período as funções de gerente.
- A relação terminou por iniciativa da empresa.
Temos assim que a ação deve prosseguir para apuramento de factualidade tendente a habilitar o julgador a dirimir o conflito relativamente à qualificação do contrato, à determinação do tipo de relação contratual que existe.
***
Saliente-se ainda que a prova deve fazer-se tendo em atenção as diversas soluções plausíveis da questão de direito. E fazemos esta referência dada a posição pressuposta na decisão sob recurso, no sentido da possibilidade de exercício da gerência mediante contrato de trabalho, posição que é minoritária na doutrina e relativamente à qual pouca adesão descortinamos na jurisprudência, conquanto alguns acórdãos não descartem a possibilidade. Veja-se o Ac. STJ de 14/2/1995, processo nº 086242, no qual se referiu:
“Temos, pois, que a qualidade dos gerentes advém dum contrato celebrado entre a sociedade e o gerente: o contrato de administração.
Como se qualifica, porém, este contrato?
Quanto a nós, sufragando a posição tomada a este respeito pelo Professor Duarte Rodrigues, no seu estudo sobre "A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas", onde o tema que vimos abordando é largamente tratado (páginas 260 e seguintes) - "o contrato de administração constituirá um contrato de trabalho sempre que, tendo o administrador direito a retribuição, tenha sido atribuído à sociedade, o poder de organizar a execução do seu trabalho, particularmente pela fixação do tempo de trabalho a prestar e do modo de o executar; constituirá um contrato de prestação de serviço sempre que não seja remunerado ou, sendo-o caiba ao próprio administrador organizar a execução do seu trabalho (cfr. também, Professor Raul Ventura, ob. cit. [Sociedades por Quotas, III] páginas 28-29)…”
No acórdão do STJ de 19/12/2018, processo nº 2353/13.1TBVFX.L2.S1, refere-se que; “ admitindo-se que o clausulado do contrato dos autos tenha sido inspirado na figura do contrato de trabalho, julga-se que isso não basta para lhe conferir natureza laboral, pois, não se reconhece, no clausulado contratual em que a ação se funda, a existência de subordinação jurídica do Autor em relação a qualquer das Rés, sendo certo que o Autor foi contratado para exercer as funções de administrador das sociedades Rés. Mais adiante o acórdão, não esclarecendo embora de forma cabal a sua posição, parece propender para a não admissão do exercício da gerência por contrato de trabalho, ao relevar a circunstância de o autor ter sido contratado apenas para exercer funções de administrador.

No Ac. STJ de 30/9/2004, processo nº 03S2053, refere-se:
“A situação dos administradores, gerentes e diretores das sociedades e cooperativas, que praticam atos em nome das pessoas coletivas que representam e são por estas retribuídos, apresenta uma configuração especial que merece alguma reflexão.
Deduz-se do preceituado no art. 986º, n.º 3 do Código Civil que os administradores das sociedades civis devem ser qualificados como mandatários, sendo também o regime do mandato aquele para que remete o art. 987º, n.º 1 daquele diploma.
Da mesma forma os gerentes comerciais, mas também os auxiliares, os caixeiros e os comissários (ou comissionistas) são considerados pelo Código Comercial como mandatários pois as disposições que aos mesmos se reportam (arts. 248º e ss. e 266º e ss.) estão inseridas respetivamente nos capítulos II e III, ambos do Título V do Código Comercial sob a epígrafe "Do Mandato".
Todavia, não é o facto de os Códigos Civil e Comercial estabelecerem que são mandatários que impede a referida qualificação como trabalhadores subordinados já que é o próprio art. 5º, nº3 da L.C.T. que estabelece a possibilidade de um trabalhador ter também um mandato com representação e, por outro lado, o conceito de mandato utilizado no C. Comercial (arts. 231º, 248º, 256º, 259º, 260º, 263º e 264º) não coincide exatamente com o utilizado no C.Civil (arts. 1155º e 1157º), referindo-se a atos de comércio - que abrangem quer atos materiais, quer atos jurídicos - e podendo ter por objeto tanto um resultado como uma atividade (7).
Assim, esta qualificação como mandatários por parte da lei não obsta a que se deva considerar que os comissários, caixeiros, etc., exercem uma relação laboral e que em determinadas circunstâncias os gerentes das sociedades por quotas também o exerçam, desde que estejam preenchidos no caso concreto os pressupostos do contrato de trabalho.”

Na jurisprudência e doutrina maioritárias, tem-se entendido ser possível a acumulação das funções de gerente e de trabalhador, conforme aliás com clareza e de forma bem fundamentada se expõe na decisão recorrida. Assim o ac. STJ e 29/09/1999, processo nº 98S364, referido na decisão recorrida. Ali se refere:

“Diz-se - e bem - que os sócios gerentes, constituindo os órgãos diretivos e representativos da sociedade participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado.
Este, como já se adiantou, pressupõe a existência de uma situação de dependência (jurídica e económica), resultando impossível de compatibilizar na mesma pessoa as duas qualidades.
Como é possível - dir-se-á - que a mesma pessoa funcione, a um tempo, como fonte de poder e seu destinatário, subordinado de si mesmo, em suma, empregador e empregado?
Todavia, a questão não pode ser resolvida de modo tão simplista - como escreve LUÍS BRITO CORREIA, em "Os administradores de sociedades anónimas", 1993, página 575, acrescentando:
- "Em primeiro lugar, o facto de o administrador representar a sociedade não significa que a sua pessoa se confunda juridicamente com a da sociedade: são pessoas distintas a sociedade e o administrador, podendo aquela ser representada também por outros administradores, ou pela vontade coletiva de vários administradores, em cuja formação o administrador - trabalhador pode não ter um voto decisivo ou até não votar de todo.
E, por outro lado, a lei admite, em certas condições, o negócio consigo mesmo (C.C. artigo 261/II).
De resto, como acentua o mesmo Autor, há interesses atendíveis e razoáveis, quer da sociedade, quer do trabalhador, na cumulação das duas qualidades.
A sociedade, pode ter interesse em aproveitar melhor as aptidões do seu trabalhador, promovendo-o a administrador, sem lhe provocar a perda dos benefícios resultantes da legislação do trabalho ou confiar a um administrador também funções técnicas especiais distintas das funções de administração, em posição de subordinação ao Conselho de Administração.
O trabalhador, solicitado a exercer funções de administração, hesitará se isso implicar a perda das vantagens do estatuto de trabalhador subordinado, designadamente advenientes da sua antiguidade e da proteção contra a destituição sem justa causa.
Além de que - como entre nós acontece com a Lei n. 46/79, de 12 de setembro - pode aos trabalhadores ser reconhecido o direito de elegerem representantes seus para os Órgãos Sociais da empresa, conservando a sua qualidade de trabalhadores - cfr. o artigo 30 daquela Lei 46/79…”
Trata-se, pois, de uma situação de cumulação e não de exercício da própria gerência por contrato de trabalho. Vejam-se ainda o Ac. RE de 6/4/2017, processo nº 127/15.4T8STR-B.E1, admitindo a possibilidade de acumulação, designadamente nas situações em que anteriormente existia um contrato de trabalho, nas situações em que existem sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes e o exercício de tarefas que não de gerência. Neste concreto caso o tribunal considerou incompatível a acumulação, sem grandes dúvidas dado tratar-se de gerente único, pelo menos em parte considerável do exercício, e com pelo menos metade do capital social. O Ac. STJ de 21/1/2019, processo nº 12602/16.9T8PRT.P1, admitindo a acumulação mesmo sendo o gerente, sócio da empresa, referindo a necessidade de demonstrar os indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo.
Paulo de Tarso Domingues, in “Administradores Trabalhadores, Breves notas”, https://revistas.ucp.pt/index.php/catolicalawreview/article/view/2001/1925, aludindo à circunstância de a pedra de toque do contrato de trabalho ser a subordinação jurídica, apesar dos termos atualmente constantes do artigo 11º do CT; e aludindo ao fenómeno da representação orgânica de que participam os administradores e gerentes, refere a relação jurídica complexa que se estabelece entre a sociedade e o administrador ou gerente, defendendo a impossibilidade de ser exercida por contrato de trabalho. Já admite a cumulação, desde que não se trate de gerente único e exista uma “clara definição das funções exercidas pelo gerente na sua veste de trabalhador, i. é, seja possível distinguir claramente os dois espaços funcionais do sujeito” – pág. 22.
No sentido da impossibilidade de exercício da gerência por contrato de trabalho, mas defendendo-se a possibilidade de cumulação das duas condições no caso dos gerentes, não sendo aplicável por analogia o disposto no artigo 398º, 2 do CSC às sociedades por quotas, Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13.ª ed., págs. 171 e 171; Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 3.ª ed., pág. 320; Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. III, Coimbra, 1991, págs. 33 a 38; Coutinho de Abreu, «Administradores e trabalhadores de sociedades (Cúmulos e não)», Temas societários, IDET, Almedina, Coimbra, pp. 14 e ss; Irene Gomes, “Jurisprudência e requisitos materiais do contrato de trabalho em comissão de serviço - diferentes registos tonais.” Revista do Ministério Público, Out-Dez 2012: 285-301. pág. 292; Carla Soares, A designação de administradores com contrato de trabalho: solução a (re)pensar?, https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/28541/1/A%20designacao%20de%20administradores%20com%20contrato%20de%20trabalho.pdf, pág. 36ss.
Já no sentido de que a própria gerência pode ser exercida mediante contrato de trabalho, aludindo a que a qualificação da relação não deve ser apriorística, mas analisada caso a caso tendo em conta as suas particulares circunstâncias, designadamente o modo como é exercida, Júlio Gomes, Direito do trabalho, vol. I, Relações individuais de trabalho, pág. 167; Ilídio Duarte Rodrigues, A administração das sociedades por quotas e anónimas. Organização e Estatuto dos Administradores, Petrony, Lisboa (1990), pág. 72; Pinto Furtado, Código Comercial Anotado. Vol. II (Tomo I e II). Coimbra: Almedina, 1979, pág. 180, relativamente a administrador/gerente não acionista ou sócio. Circunstâncias como por exemplo a existência de um gerente, até de facto, com efetivos poderes sobre os restantes, por força da sua posição maioritária na sociedade, organizando o trabalho destes, fixando tempos de prestação, dando ordens, poderiam no quadro concreto de circunstâncias sustentar a existência de relação laboral.
Voltado ao caso, o autor na petição refere as funções de gerente e trabalhador. Em 4 do petitório refere que em 29/05/2004, o Autor foi contratado para trabalhar sob a autoridade e direção e da Ré, tendo nessa mesma data sido nomeado gerente, e em 7º refere que durante esse período compreendido entre o dia 29/05/2004 e o dia 11/01/2020, o Autor cumulou as funções de gerente (não sócio) e trabalhador. Nessa linha e nos artigos 9 e seguintes refere que para além das funções de gerente (não sócio), exercia igualmente funções de trabalhador, cuja subordinação jurídica perante a sociedade Ré assume a natureza de contrato de trabalho. O autor defende, pois, e na linha do entendimento maioritário, que cumulou as duas funções, esclarecendo nos artigos 21 e seguintes quais as atividades que exercia como trabalhador. No artigo 19º defende que a sua ligação à ré deve qualificar-se como contrato de trabalho e não como mandato ou de administração, parecendo aqui escudar-se naquela tese minoritária.
Consequentemente, sem descartar desde já a tese da admissibilidade de exercício de gerência por contrato de trabalho, designadamente por se tratar de gerente não sócio e estarmos perante gerência plural, e não se impor no atual estado do processo tal opção, e considerando que o direito deve dar resposta à vida, e não o contrário, impõe-se a produção de prova sobre a factualidade alegada pelas partes e tendente a demonstrar qual o tipo de relação que cada uma defende.
Procede consequentemente a apelação, devendo os autos prosseguir nos termos referenciados.
*
DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, anulando-se a decisão e posteriores termos dela dependentes, e determinando-se a produção de prova nos termos referidos.
Custas pelo recorrido.
16/12/2021

Antero Veiga
Alda Martins
Vera Sottomayor