Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
28/16.9Y3BRG.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
MEIOS DE PROVA
PERÍCIA MÉDICA
NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE LESÃO E SEQUELA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Não havendo razões objectivas para se discordar dos laudos médicos ou para formular pedidos de esclarecimentos aos peritos médicos, sobretudo se forem unânimes, caso estes tenham respondido com precisão a todos os quesitos de forma lógica sem deficiência, obscuridade ou contradição, não se verificará qualquer razão para que o julgador divirja do laudo, fixando incapacidade distinta ou não atribuindo incapacidade.

II - Apoiando-se no entendimento da junta médica, no caso da especialidade, para o que remete expressamente, o Mmo. Juiz a quo carecia de razão de ciência e de conhecimentos técnicos, que lhe permitissem divergir, sendo certo que a factualidade apurada não lhe permitiria fixar incapacidade distinta ou concluir pela inexistência de incapacidade.

III - À junta médica não incumbe estabelecer tal nexo de causalidade entre o acidente e as concretas lesões objectivadas, poderá fazê-lo, designadamente quando a documentação clínica o comprove ou quando não se mostre controverso nos autos, pois a perícia médica destina-se apenas a fixar a incapacidade para o trabalho, quando esta está em causa ou se revela controvertida.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

APELANTE: “X – SUCURSAL EM PORTUGAL”
APELADO: ORLANDO
Tribunal da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho, Juiz 2

ORLANDO, afinador de máquinas, residente na Rua (…) Braga, intentou acção especial emergente de acidente de trabalho contra “X – SUCURSAL EM PORTUGAL”, com sede na Avenida (…) Lisboa, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) a pensão anual e vitalícia no valor de 647,04 €, com início em 23/12/2015;
b) a quantia de 1.083,51€, a título de diferença na indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora à taxa legal;
c) a quantia de 20,00€, a título de despesas com transportes para deslocações obrigatórias a Tribunal e GML.

Para o efeito alegou no essencial que no dia 21/07/2015, quando se deslocava de motociclo da sua residência para o seu local de trabalho, foi colhido por um veículo ligeiro, o que provocou a sua queda e o projectou a alguns metros. Em consequência directa sofreu traumatismo do membro superior esquerdo e dentário, do qual resultou um período de ITA e a IPP de 3,96%.

A Ré veio contestar, alegando em resumo que aceita a sua responsabilidade transferida pela retribuição anual auferida pelo sinistrado. Mas, não aceita pagar os valores reclamados pelo Autor, uma vez que quer as queixas do foro de estomatologia, quer as do foro de ortopedia não apresentam qualquer nexo causal com o acidente sofrido pelo sinistrado.

Conclui assim pela sua absolvição do pedido.

Foi proferido despacho saneador com elaboração da matéria assente e da base instrutória, que não foi objeto de qualquer reclamação.
Foi ordenado o desdobramento dos autos, tendo corrido o apenso para determinação da incapacidade do sinistrado que foi fixada em 1%.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal e por fim, foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:

“Assim, e face a tudo o exposto, decide-se pela procedência parcial do pedido formulado e, consequentemente:

a) condenar a Ré a pagar ao Autor:
a. o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia de 163,39 €, com início em 23/12/2015;
b. o montante global de 1.083,51 € de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
c. juros de mora à taxa legal de 4% desde 23/12/2015 até integral pagamento, nos termos do art. 135º do Código do Processo do Trabalho; e
b) absolvê-la do restante peticionado pelo Autor.
Custas pelo Autor e Ré, na proporção do respectivo decaimento.
Valor: 3.238,95 €.
Registe, notifique e cumpra o disposto nos artigos 149º e 150º do CPT. “
*
Inconformada com esta decisão apelou para este Tribunal da Relação de Guimarães a Ré Seguradora que apresentou as suas alegações e formulou as seguintes conclusões:

1. “Vem, a Ré X, recorrer da douta sentença que considerou o Autor portador de uma IPP de 1%;
2. Conforme consta dos autos, às perguntas 8 e 9 constantes da P.I., responderam os Senhores Peritos da Junta Médica de Estomatologia (nos autos a fls. e com a referência 156304856):
“… 8 – Admitimos que sim, poderá ter agravado a doença, digo a mobilidade dentária pré-existente.
9 – IPP de 1%, não havendo evidência que esta IPP tenha sido provocada pelo acidente…”
3. Ora, os Senhores Peritos não estabeleceram nexo causal.
4. Pelo que nenhuma incapacidade deveria ter sido atribuída ao Autor, tendo a sentença violado, nomeadamente, os artigos: 135º, C.P.T., e da 2ª parte do nº 1 do artº 8º da Lei 98/2009, de 04 de Setembro.”

Termina pedindo a revogação da sentença da 1ª Instância que deverá ser substituída por outra que acolha os seus argumentos.
O Autor/Recorrido apresentou contra-alegação concluindo pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
Admitido o recurso interposto pela Ré Seguradora na espécie própria e com o adequado regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a esta Relação.

Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta de turno emitido douto parecer, no sentido da total improcedência da apelação.

Não foi apresentada qualquer resposta ao douto parecer.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, nº 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), a questão trazida à apreciação deste Tribunal da Relação respeita ao nexo causal estabelecido entre o acidente sofrido e as sequelas de que ficou a padecer o sinistrado.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

a) O Autor trabalha(va) sob as ordens, direcção e fiscalização da sociedade “Y AUTOMOTIVE SYSTEMS PORTUGAL, S.A.”, desempenhando as funções de afinador de máquinas, mediante a retribuição base de 941,40 € x 14 meses/ano, acrescida de 123,20 € x 11 meses/ano de subsídio de refeição e de 629,08 € x 14 meses/ano de outros subsídios.
b) No dia 22/07/2015, pelas 23,30 horas, em Braga, quando o Autor conduzia a sua motorizada desde a sua residência a caminho do seu local de trabalho, onde iria trabalhar no turno das 24,00 horas às 08,00 horas, o seu motociclo foi colhido por um veículo ligeiro, o que provocou a sua queda.
c) Em consequência do acidente, o Autor sofreu traumatismo do membro superior esquerdo e dentário.
d) Submetido a exame médico no GML do Cávado, o respectivo perito fixou os períodos de incapacidade temporária absoluta de 22/07/2015 a 14/08/2015 e de 09/09/2015 a 17/09/2015, e o período de 121 dias de incapacidade temporária parcial de 20%, atribuindo-lhe ainda uma IPP de 3,96%, a partir de 22/12/2015, data da alta.
e) Mais tarde os peritos que integraram a junta médica da especialidade de estomatologia concluíram, por unanimidade, que, a ter ocorrido traumatismo dentário, ele terá actuado como factor agravante de doença pré-existente, pelo que fixaram a IPP de 1%.
f) Já os peritos que integraram a junta médica de ortopedia concluíram, também por unanimidade, não ter subsistido qualquer sequela a nível do cotovelo esquerdo, designadamente epicondilite.
g) O Autor já recebeu da Ré a quantia de 1.477,33 €, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos.
h) À data do acidente encontrava-se em vigor o contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho de trabalhadores por conta de outrem, titulado pela apólice nº 101336849, na modalidade de prémio variável, celebrado entre a Ré seguradora e a sociedade “Y AUTOMOTIVE SYSTEMS PORTUGAL, S.A.”, mediante o qual havia sido transferido para aquela, relativamente ao ora Autor, o pagamento das indemnizações a que houvesse lugar emergentes de acidente de trabalho, tendo por base a retribuição de 941,40 € x 14 meses/ano, acrescida de 123,20 € x 11 meses/ano de subsídio de refeição e de 629,08 € x 14 meses/ano de outros subsídios.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Do nexo de causalidade

A Recorrente/Apelante, Companhia de Seguros, insurge-se quanto ao facto de ter sido fixada ao sinistrado a IPP de 1% e consequentemente ter sido condenada a reparar o acidente de trabalho por aquele sofrido, uma vez que no seu entendimento não foi estabelecido pelos peritos o nexo causal entre o acidente e a incapacidade fixada, razão pela qual não deveria ter sido atribuída qualquer IPP ao sinistrado.

Vejamos se lhe assiste razão.

Com relevo para apreciação da questão suscitada importa ter presente as respostas unânimes dadas pelo Srs. Peritos Médicos que integraram a Junta Médica aos quesitos formulados.

Foram-lhes formulados os seguintes quesitos pelo sinistrado:

E pela Seguradora foram-lhes formulados os seguintes quesitos:

Os quais obtiveram as seguintes respostas:

Acresce dizer que os Srs. Peritos Médicos também responderam ao artigo 2.º da base instrutória no qual se perguntava o seguinte:

Em consequência do acidente o Autor sofreu traumatismo do membro superior esquerdo e dentário?
Tendo os Srs. Peritos Médicos respondido
“Admitimos que sim”
Em sede de pedido de esclarecimentos aos Srs. Peritos Médicos que integraram a junta médica e no que aqui nos interessa foram formuladas as seguintes questões:

Os Srs. Peritos Médicos de novo por unanimidade vieram responder da seguinte forma:



Posteriormente foi determinada a realização de uma junta médica de estomatologia no âmbito da qual os Srs. Peritos Médicos por unanimidade vieram responder aos quesitos formulados inicialmente da seguinte forma:


Transcrita a posição assumida pelas juntas médicas que tiveram lugar importa salientar que, no caso não está em causa quer a ocorrência, quer a dinâmica do acidente, que aliás consistiu numa queda, nem está em causa que em consequência do mesmo o sinistrado sofreu um traumatismo dentário, pois dele se fez prova em julgamento e nenhuma das partes o questiona.

Na verdade, dos pontos de facto provados designadamente sob a alínea c) resulta que em consequência do acidente, o Autor sofreu traumatismo do membro superior esquerdo e dentário.
Assim a única questão a apreciar é apenas a de apurar se a IPP de 1% atribuída ao sinistrado decorre da lesão referente ao traumatismo dentário e se em consequência do mesmo o sinistrado ficou portador de sequelas merecedoras de reparação.

Como é consabido o laudo de junta médica não é vinculativo, podendo ser apreciado livremente pelo tribunal, como qualquer outro meio de prova - cfr. art.º 389.º do Código Civil e arts.º 489.º e 607.º n.º 5 do Código do Processo Civil -, no entanto tendo presente que o mesmo insere um juízo técnico-científico, para dele divergir o julgador tem de fundamentar essa divergência, impondo-se uma especial exigência da fundamentação, assente preferencialmente em opinião ou parecer cientifico ou técnico, de sinal contrário.

Assim não havendo razões objectivas para se discordar dos laudos médicos ou para formular pedidos de esclarecimentos aos peritos médicos, sobretudo se forem unânimes, caso estes tenham respondido com precisão a todos os quesitos de forma lógica sem deficiência, obscuridade ou contradição, não se verificará qualquer razão para que o julgador divirja do laudo, fixando incapacidade distinta ou não atribuindo incapacidade.

Com efeito, apoiando-se no entendimento da junta médica, no caso da especialidade, para o que remete expressamente, o Mmo Juiz a quo carecia de razão de ciência e de conhecimentos técnicos, que lhe permitissem divergir, sendo certo que a factualidade apurada não lhe permitiria fixar incapacidade distinta ou concluir pela inexistência de incapacidade.

Se por um lado é verdade que a Junta Médica, por unanimidade, ao quesito sobre se o sinistrado sofrera traumatismo dentário respondeu “Em relação ao dentário admitimos que sim, não havendo evidência documental que o comprove” e ao quesito sobre as consequências do sinistro sofrido pelo sinistrado respondeu “Admitindo que houve traumatismo dentário ele terá actuado como factor agravante de doença pré-existente”, vindo assim a atribuir ao sinistrado 1% de IPP, consignando que a mesma não foi provocada pelo acidente, mas sim é resultado do agravamento da doença preexistente provocado pelo traumatismo dentário.

Por outro lado, a testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento confirmou o traumatismo dentário, tendo tal facto vindo a ser dado como provado, pelo Mmº Juiz a quo.

Em suma, para além de se ter dado como provado o traumatismo dentário, também resultou apurado que a doença periodontal pré-existente de que o sinistrado era portador foi agravada pelo evento e isto resultou do exame pericial tendo os Srs. Peritos Médicos admitido que a mobilidade dentária pré-existente agravou.
Tal como se escreve no douto parecer emitido pela ilustre Procurador-Geral Adjunta:

“Sucede que não obstante a Seguradora não lhe tenha feito qualquer alusão – à doença pré-existente, a mesma resultou agravada pelo evento.
O que permite que se extraia a conclusão de que após o acidente, o sinistrado ficou a padecer mais do que já padecia. (…)
Ou seja, este – evento – funcionou neste caso, como agente ou causa próxima da ou desencadeadora da lesão, posto que pré-existente, pois que a agravou.”

Na verdade dispõe o n.º 2 do artigo 11.º da Lei n.º 98/2009 de 4/09 (NLAT doravante) que a doença anterior ao acidente não exclui nem restringe o direito à reparação, antes determina que a incapacidade seja avaliada como se tudo resultasse do acidente, salvo se por essa lesão ou doença anterior, já estiver o sinistrado a receber pensão, ou tiver recebido capital de remição.

Foi precisamente o que sucedeu no caso em apreço pois não consta que o sinistrado estivesse a receber qualquer pensão pela doença anterior ou tenha recebido qualquer capital de remição, razão pela qual o direito à reparação do sinistrado se mantém intocável.
Por fim, no que respeita ao facto da Junta Médica não ter estabelecido expressamente o nexo causal entre o acidente e as concretas lesões objectivadas, cumpre-nos dizer que à junta médica não incumbe estabelecer tal nexo de causalidade, poderá fazê-lo, designadamente quando a documentação clínica o comprove ou quando não se mostre controverso nos autos, pois a perícia médica apenas está obrigada a fixar a incapacidade para o trabalho, quando esta está em causa ou se revele controvertida, sendo ainda certo que a fixação da incapacidade corre por apenso quando haja outras questões a decidir, como sucedeu no caso em apreço.

Assim, o nexo causal entre a lesão e o acidente quando se revele controvertido tem de ser decidido no processo principal, designadamente em sede de audiência de discussão e julgamento, incumbindo ao julgador estabelecê-lo com a apreciação global de toda a prova carreada para os autos. Nestas situações a decisão a proferir no apenso de fixação de incapacidade limita-se a declarar a incapacidade e o respectivo grau nos termos previstos nos artigos 140.º do CPT e 48.º n.º 3 c) da NLAT, como sucedeu no caso, tendo sido atribuído ao sinistrado 1% de IPP, sem que tivesse sido estabelecido o nexo causal entre o acidente e as concretas lesões objectivadas, o que só veio a suceder em face da prova produzida em sede de audiência de julgamento e da sua correcta apreciação levada a cabo pelo julgador.

Por último, apenas nos resta dizer que tendo resultado apurada a dinâmica do acidente, as lesões dele decorrentes para o sinistrado, designadamente o traumatismo dentário conjugada com a prova pericial realizada, estava o julgador apto a estabelecer o nexo de causalidade entre o acidente e as sequelas resultantes do mesmo, como efectivamente veio a suceder.
Pelo exposto improcedem as conclusões do recurso, mantendo-se a sentença recorrida na qual se fez a correcta apreciação da prova, não sendo merecedora de qualquer censura.

V – DECISÃO

Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por “X – SUCURSAL EM PORTUGAL”, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Guimarães, 20 de Setembro de 2019


Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins