Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
793/19.1GBBCL.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROCESSO URGENTE
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIR A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Não obstante a arguida ter sido absolvida da prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado no libelo acusatório, e condenada, apenas, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, os autos mantêm a natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença.
II- Consequentemente, em tais circunstâncias, o prazo para interposição de recurso daquela sentença condenatória não se suspende no período de férias judiciais.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães
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I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Singular nº 793/19.1GBBCL, do Juízo Local Criminal de Barcelos, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foram submetidos a julgamento os arguidos:

1.1. L. C., casada, filha de V. C. e de M. D., nascida a - de Junho de 1969, residente na Rua de …, n.º …, Barcelos; e
1.2. J. G., casado, filho de M. G. e de M. F., nascido a - de Junho de 1975, residente na Urbanização do …, Barcelos.
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2. Em 09/07/2020 foi proferida sentença, depositada no mesmo dia, da qual consta o seguinte dispositivo (transcrição (1)):

“Pelo exposto, decide-se:
i) Absolver o arguido J. G. do crime de ameaça que lhe estava imputado;
ii) Absolver a arguida L. C. do crime de violência doméstica que lhe estava imputado;
iii) Ordenar o arquivamento dos autos quanto ao crime de injúria praticado pela arguida L. C., por falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, declarando-se, quanto a este ilícito, extinto o respectivo procedimento criminal;
iv) condenar a arguida L. C. como autora material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, que se substitui por 300 horas de trabalho a favor da comunidade.
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Mais se condena ainda a arguida L. C. no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 3 UCS - artigo 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais.
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Solicite aos serviços de reinserção social a elaboração do plano de execução a que alude o artigo 496.º, do Código de Processo Penal.
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Boletins à Direcção dos Serviços de Identificação Criminal.
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Comunique a presente sentença ao processo de regulação das responsabilidades parentais da menor identificado no ponto 3 dos factos provados que corre termos no Juízo de Família e Menores de Barcelos.
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Comunique ainda a presente sentença, sem dados nominativos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 37º da Lei nº 112/2009, de 16/09, para os endereços electrónicos conhecidos (de acordo com a divulgação nº 29/12, do CSM).
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Notifique e deposite.”.
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3. Em 17/08/2020 a Secção Judicial do Tribunal a quo, na ausência de qualquer recurso da aludida sentença, deu cumprimento ao ali ordenado, designadamente solicitando à DGRSP - Equipa Cávado a elaboração do plano tendo em vista a prestação do trabalho a favor da comunidade por parte da arguida, remetendo cópia da sentença, com nota de que transitou em julgado em 10/08/2020.
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4. Porém, em 28/08/2020 a arguida L. C. dirigiu ao tribunal a quo o seguinte requerimento, que se transcreve na parte que interessa considerar:

“A arguida foi contactada esta semana, pela Secção, para efeitos de cumprimento da pena que lhe foi aplicada na sentença proferida no dia 9 de Julho de 2020.

Consultados os autos, pôde verificar que, no passado dia 17, foi requerido à D.G.R.S.P – Equipa Cávado, a elaboração de um plano de execução para a prestação de trabalho a favor da comunidade tendo sido dado a conhecer que a sentença transitou em julgado no dia 10.08.2020.
Entendemos, no entanto, que, contrariamente ao declarado pela Secção, a aludida sentença ainda não transitou em julgado.
Pois, vejamos,
A arguida foi acusada da prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art. 152 nº 1 alíneas a) e b) e nº 2 do Cód. Penal.
Prevê o nº 1 do art. 103 do Cód. Proc. Penal que “os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais”.
A alínea g) do nº 2 desse mesmo artigo estabelece que o referido nº 1 não se aplica aos actos considerados urgentes em legislação especial.
Ora,
Nos termos do nº 1 do artigo 28 da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, “os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos”.
Dispondo o nº 2 que “a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal”.
Todavia,
Atendendo à prova produzida em audiência de julgamento, por despacho proferido no dia 9 de Julho de 2020, foi alterada a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação tendo na sentença proferida nesse mesmo dia, a arguida sido absolvida “do crime de violência doméstica que lhe estava imputado” e condenada “como autora material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal”.
Assim sendo,
A partir do dia 9 de Julho de 2020, os presentes autos deixaram de ter natureza urgente.
Consequentemente,
A sentença proferida nesse dia não transitou em julgado.
Em face do exposto, requer, a V.Exa, se digne revogar todos os actos processuais praticados pela Secção após o dia 10 de Agosto de 2020.”.
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5. Aberta vista ao Ministério Público, em 01/09/2020 a Exma. Procuradora da República pronunciou-se no sentido de assistir razão à arguida, dado a sentença não haver transitado em julgado.
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6. Nessa sequência, em 03/09/2020 o Mmº Juiz a quo proferiu o seguinte despacho (transcrição):

“O processo deixou de ter natureza urgente no dia 09.07.2020, momento em que foi proferida sentença a absolver a arguida da prática do crime de violência doméstica pela qual vinha acusada.
Nessa medida, os actos posteriormente praticados pela secção no período de férias judiciais, no pressuposto de que a urgência do processo se mantinha e de que, em consequência, a sentença havia transitado em julgado, configuram irregularidades processuais que interferem directamente com o direito ao recurso conferido a todos os sujeitos processuais, cujo prazo ainda se encontra a decorrer.
Consequentemente, ao abrigo do disposto nos artigos 118º, nº 2 e 123º, nº s 1 e 2, do Código de Processo Penal, declara-se a invalidade dos actos processuais praticados pela secção em 17.08.2020 (referências electrónicas 169276904, 169276920 e 169277301).
(…)”.
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7. E, inconformada com a aludida sentença, dela veio a arguida L. C. interpor o recurso que consta de fls. 188/197, entregue por via electrónica no dia 28/09/2020, cuja motivação rematou com seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1. Na sentença recorrida, a recorrente foi condenada “como autora material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, que se substitui por 300 horas de trabalho a favor da comunidade”;
2. Consideramos a sentença recorrida, injusta e inadequada;
3. Por ter sido dado como provado, factos que não deveriam constar da factualidade assente;
4. Por não ter sido valorado um facto que, obrigatoriamente, deveria integrar a matéria provada;
5. Foi dado como provado que “ 6. No dia 18 de agosto de 2019, J. S. encontrava-se em Viana do Castelo a trabalhar, quando a arguida se dirigiu-se junto da sua barraca de venda, dizendo-lhe o seguinte: “.. filho da puta...cabrão...”;
6. Na ausência do cumprimento das formalidades previstas no artigo 285 do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público não tem legitimidade para promover a acção penal por factos integradores de um crime de natureza particular;
7. Não pode dar-se como provado o facto descrito sob o nº 6;
8. Consequentemente, deve o mesmo ser eliminado dos factos provados;
9. Foi dado como provado que “4. No dia 24 de abril de 2019, a arguida juntamente com o arguido J. G., seu companheiro, deslocaram-se até junto da casa do ofendido” e “7. No dia 27 de agosto de 2019, pelas 8:30, a arguida voltou a deslocar-se a residência de J. S., acedendo ao logradouro da habitação”;
10. Das declarações prestadas pelo ofendido resulta, claramente, que a casa onde o mesmo reside pertence a este e à arguida, em compropriedade;
11. Sendo a arguida comproprietária da casa onde reside o ofendido, aquela tem o direito não só de aí se deslocar mas também de aceder ao logradouro da habitação;
12. Consequentemente, devem os factos descritos sob o nºs 4 e 7, eliminados dos factos provados;
13. Deve passar a constar da factualidade provada a casa onde reside o ofendido pertence em compropriedade a este e à arguida;
14. A última condenação ocorreu em 20 de Março de 2014, ou seja, há mais de seis anos;
15. Atendendo à prova produzida em sede de audiência de julgamento, à inexistência quer de lesões quer de incapacidade para o desempenho da actividade diária, o número de condenações anteriores e o tempo decorrido sobre a última condenação (há mais de seis anos) e ainda a inserção profissional e familiar da arguida, justificava-se em nosso entender, a aplicação de uma pena de multa;
16. A pena de 10 meses de prisão substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade aplicada à recorrente é injusta, inadequada e elevada;
17. A sentença recorrida violou, assim, as seguintes disposições legais:
Código Penal – artigos 40 nº 1 e 2, 70 e 71;
Código Processo Penal – artigos 50 e 285

PEDIDO

Em face do exposto e do mais que muito doutamente se suprirá, deve dar-se provimento ao presente recurso, e em consequência, deve substituir-se a pena aplicada à recorrente, na sentença recorrida, por uma pena de multa.
ASSIM SE FARÁ A MELHOR JUSTIÇA”.
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8. Com data de 12/10/2020, o Mmº Juiz a quo proferiu o despacho que consta de fls. 198, com o seguinte teor: (transcrição):

“Porque em tempo, com legitimidade, sendo legalmente admissível, admito o recurso interposto pela arguida L. C., o qual subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo - artigos 399º, 401º, nº 1, alínea b), 406, nº 1, 407, nº 2, alínea a), 408, nº 1, alínea a), 411º e 414º, nº 1, todos do Código de Processo Penal.
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Notifique - artigo 411, nº 6, do Código de Processo Penal (...)”.
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9. Na 1ª instância a Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela arguida, nos termos constantes de fls. 199/204, terminando a sua peça processual formulando as seguintes conclusões (transcrição):

“I. A arguida foi condenada na pena de 10 (dez) meses de prisão substituída por 300 (trezentas) horas de trabalho a favor da comunidade.
II. Salvo o devido respeito por melhor opinião, afigura-se-nos que a arguida/recorrente nas suas alegações de recurso incorre em lapso pois não faz distinção entre os factos praticados - que como tal devem ser levados aos factos provados –, qualificação jurídica dos mesmos e legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal.
III. Para o que aos autos importa, é indiferente saber se a casa – local da prática dos factos - pertence ou não à arguida, em compropriedade. O que releva a seu desfavor é a circunstância de aí ser a residência do ofendido, e de ter sido no seu interior que a arguida o atingiu com um murro.
IV. No caso em apreço, são manifestas as exigências de prevenção especial, considerando as circunstâncias do crime – praticado na residência do ofendido, sendo este o ex-companheiro da arguida e na presença do filho menor de ambos – e as anteriores condenações sofridas pela arguida.
V. Tudo ponderado, entendemos não merecer qualquer censura a pena aplicada à arguida.
VI. Não se vê assim, como possa esta pena concreta ser considerada excessiva, como defende a recorrente.
VII. Aplicar uma pena de multa, como pretende a recorrente, seria desadequado por insuficiente, para se alcançarem as finalidades das penas.

Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Vossas Excelências, porém, farão a costumada
JUSTIÇA.”.
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10. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal, no momento processual a que alude o Artº 416º, nº 1, do C.P.Penal (2), emitiu o douto parecer que consta de fls. 207/207Vº, que ora se transcreve:

“Pronunciando-nos, ao abrigo do disposto no art.º 416º, nº 1, do Código de Processo Penal, sobre o recurso interposto pela Arguida L. C., em 28-09-2020 ─ cf. Ref.ª 10536090 ─, da sentença depositada em 09-07-2020 ─ cf. Ref.ª 168934134 ─, que a condenou pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art.o 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, substituída por 300 (trezentas) horas de trabalho a favor da comunidade, para além das custas, com a taxa de justiça de 3 UCs; somos de parecer que, não se divisando, na nossa ótica, obstáculos à apreciação do seu objeto, após o suprimento do vício de nulidade que, de seguida, se exporá, deve improceder, nos termos propugnados na bem elaborada e exauriente argumentação que a Senhora Procuradora da República expendeu na resposta ao recurso ─ cf. Ref.ª 10701529 ─, já que vem escalonada ali argumentação adequada e suficiente para evidenciar a transversal sem-razão da recorrente, posição que, por economia dos escanifrados meios, se adota, na íntegra, dando-se aqui, em razão das circunstâncias, da própria natureza do ilícito e da linearidade e genérico acerto da decisão impugnada, por reproduzida.
Como anunciámos, parece-nos que a sentença recorrida está eivada do vício de nulidade, cominada nas disposições conjugadas dos artºs. 379º, nº 1, al. a), e 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, porquanto a sua fundamentação de facto, no que concerne aos antecedentes criminais, de capital importância para a opção pela pena de prisão, em detrimento da pena de multa ─ aliás, expressamente invocados para tal efeito ─ cf. ponto IV da sentença ─, limitou-se a uma mera remissão para o certificado do registo criminal da arguida, junto aos autos ─ cf. ponto 10 do elenco do factos provados, que, por outro lado, não teve tradução na motivação da decisão, visto que nela apenas se refere: « … no que se reporta aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal valorou o Certificado do Registo Criminal junto aos autos.».
Essa nulidade é, a nosso ver, de conhecimento oficioso (...), pela sua natureza, salvo melhor juízo, pode/deve ser suprida pelo Tribunal «ad quem», nos termos do art.º 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, através da alteração do aludido ponto 10 e da introdução especificada dos concretos antecedentes criminais da recorrente, que vêm elencados no documento com a Referência nº 168833006, e do atinente acrescento na correspondente motivação da decisão de facto.
Somos, pois, de parecer que, na sequência do aludido suprimento do vício de nulidade, o recurso improceda; ou, se assim se não entender, que se declare a referida nulidade, com a consequente devolução dos autos à primeira instância, onde deverá ser elaborada, pelo mesmo juiz, nova sentença, que supra o vício, ficando prejudicado o conhecimento do fundo do recurso.”.
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11. Por decisão sumária de 08/02/2021, constante de fls. 209/215 Vº, foi o recurso, assim interposto, rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 417º, nº 6, als. a e b), e 420º, nº 1, al. b), em virtude de, em síntese, se ter considerado ter sido extemporaneamente apresentado.
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12. Nessa sequência veio a recorrente L. C. reclamar para a conferência, nos termos do disposto no Artº 417º, nº 8, apresentando para o efeito o requerimento que consta de fls. 281/283 Vº, o qual se transcreve integralmente, na parte que ora interessa considerar:
“(...)
1º - Por despacho proferido em 8 de Fevereiro de 2021, foi rejeitado, por extemporâneo o recurso interposto pela aqui reclamante.
2º - A fundamentação consistiu em “o que, evidentemente, reforça a ideia de que, em qualquer caso, a natureza urgente neste tipo de processos, relativos a crimes de violência doméstica, só cessa com o trânsito em julgado da decisão final.
Nestas circunstâncias, e reiterando-se que, não obstante a arguida L. C. ter sido absolvida da prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado, e condenada, “apenas”, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, os presentes autos mantêm a natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença, então facilmente se conclui que o recurso por ela interposto é manifestamente extemporâneo.
Efectivamente, como se viu, a sentença que a arguida L. C. pretende impugnar por via do presente recurso, constante de fls. 176/182 Vº, foi proferida e lida publicamente em 09/07/2020, na presença, além do mais, da recorrente, e da sua Ilustre Mandatária, data em que também foi depositada na Secretaria do tribunal a quo, conforme determina o Artº 411º, nº 1, al. b).
E contando-se tal prazo (peremptório) em conformidade as regras ínsitas nos Artºs. 103º, nºs 1 e 2, al. g) e 104º, nº 1, do C.P.Penal, e 138º do C.P.Civil, constata-se que o mesmo terminava no dia 10/08/2020, sem prejuízo de o acto em causa poder ainda ser validamente praticado nos três dias úteis subsequentes, com o pagamento imediato da correspondente multa, nos termos a que alude o Artº 107º-A, do C.P.Penal, ou seja, até ao dia 13/08/2020.
Porém, como se viu, a arguida só veio a apresentar o seu recurso no dia 28/09/2020, mais de um mês após o decurso daquele prazo.
Nestas circunstâncias, torna-se manifesto e evidente que o acto praticado pela arguida L. C. deverá ser considerado extemporâneo, o que obsta ao conhecimento do recurso colocado à apreciação deste Tribunal da Relação, acarretando, consequentemente, a sua rejeição, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 417º, nº 6, als. A) e b), e 420º, nº 1, al. b)”.
3º - Discordamos do douto despacho por considerarmos que o recurso interposto pela reclamante não é extemporâneo.
4º - O fulcro da questão consiste em saber se o prazo da interposição de recurso da sentença final se suspendeu durante as férias judiciais.
5º - O Senhor Juiz Desembargador Relator entendeu que não e fundou o seu entendimento, na decisão singular da Senhora Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto proferida em 07/06/2020 no âmbito da reclamação nº 75/08.4GHVNG-A.P1 segunda a qual “enquanto toda a decisão absolutória não transitar em julgado, fazem parte do objecto do processo todos os crimes constantes da acusação e sobre os quais a sentença se pronunciou, o que significa que o processo deve continuar a ter natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença”.
Porém,
6º - A posição que defendemos é contrária àquela.

Pois,.
7º - No dia 28 de Agosto de 2020, demos a saber que “a arguida foi acusada da prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art. 152 nº 1 alíneas a) e b) e nº 2 do Cód. Penal.
Prevê o nº 1 do art. 103 do Cód. Proc. Penal que “os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais”.
A alínea g) do nº 2 desse mesmo artigo estabelece que o referido nº 1 não se aplica aos actos considerados urgentes em legislação especial.

Ora,
Nos termos do nº 1 do artigo 28 da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, “os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos”.
Dispondo o nº 2 que “a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal”.
Todavia,
Atendendo à prova produzida em audiência de julgamento, por despacho proferido no dia 9 de Julho de 2020, foi alterada a qualificação juridica dos factos descritos na acusação tendo na sentença proferida nesse mesmo dia, a arguida sido absolvida “do crime de violência doméstica que lhe estava imputado” e condenada “como autora material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal”.
Assim sendo,
A partir do dia 9 de Julho de 2020, os presentes autos deixaram de ter natureza urgente.
Consequentemente,
A sentença proferida nesse dia não transitou em julgado”.
8º - O parecer do Ministério Público na primeira instância foi de concordância com a aqui reclamante.
9º - O douto despacho proferido no dia 3 de Setembro de 2020 consistiu em “o processo deixou de ter natureza urgente no dia 09.07.2020, momento em que foi proferida sentença a absolver a arguida da prática do crime de violência doméstica pela qual vinha acusada.
Nessa medida, os actos posteriormente praticados pela secção no período de férias judiciais, no pressuposto de que a urgência do processo se mantinha e de que, em consequência, a sentença havia transitado em julgado, configuram irregularidades processuais que interferem directamente com o direito ao recurso conferido a todos os sujeitos processuais, cujo prazo ainda se encontra a decorrer.
Consequentemente, ao abrigo do disposto nos artigos 118.º, n.º 2 e 123.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, declara-se a invalidade dos actos processuais praticados pela secção em 17.08.2020 (referências electrónicas 169276904, 169276920 e 169277301)”.
10º - Prevê o nº 3 do artigo 358 do Cód. Proc. Penal que “o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”.
11º - Dispondo o nº 1 que “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.
12º - Relativamente a esta disposição legal, os Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto esclareceram que “o nº 3 trata da alteração da qualificação jurídica, questão que não deve confundir-se com a da alteração não substancial dos factos, desde logo por a primeira das mencionadas figuras pressupor que a matéria factual descrita na acusação ou na pronúncia permanece inalterada. Trata-se, assim, de uma questão exclusivamente de direito.
(...)
Anteriormente à entrada em vigor da lei n.º 59/98, era entendimento dominante da doutrina e jurisprudência de que havia total liberdade de qualificação juridica, não havendo lugar a qualquer comunicação obrigatória ao arguido ou à concessão imperativa de prazo para a defesa a requerimento daquele.
Entendimento que fixou expresso no Assento n.º 2/93, de 27-01-1993, DR, I Série, de 210-03-1993 (...)
A doutrina do assento, contudo, veio a ser posta em crise por alguma doutrina, nomeadamente TERESA BELEZA (...)
O TC, à semelhança do que vinha defendendo Teresa Beleza, divergia do assento por entender que a solução aí preconizada deixava insuportavelmente fragilizados os direitos de defesa do arguido, confrontando-o com uma nova qualificação jurídica para a qual não tinha tido qualquer hipótese de defesa.
Assim, em face da jurisprudência constitucional, o STJ veio a proferir o Assento n.º 3/2000, de 15-12-1999, DR, I Série-A, de 11-02-2000 (...)
Esta é a solução que veio a ser expressamente consagrada pela Lei n.º 59/89, ao fazer aplicar o regime da alteração não substancial dos factos à alteração da qualificação juridica” (Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas, Coimbra Editora, p. 902).
13º - Defende o Dr. Paulo Pinto de Albuquerque que “a comunicação ao arguido da possibilidade da convolação tem lugar durante a audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, isto é, antes da decisão de convolação propriamente dita, que tem lugar na sentença. E isto porque a comunicação visa permitir ao arguido a modificação da “estratégia de defesa” no que esta pode comportar de “escolha deste ou aquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros (acórdão do TC nº. 519/98). A comunicação deve ser precisa, com indicação exacta da nova qualificação jurídica ou do novo facto (CLAUS ROXIN / HANS ACHENBACH; 2006: 193). A notificação deve ser feita ao defensor do arguido, mesmo que se trate de uma alteração da qualificação para uma incriminação menos grave (acórdão Saddak e Outros v. Turquia (N.º 1), de 17.7.2001)” (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, p. 908).
14º - O Dr. Germano Marques da Silva pronunciou-se no sentido de “a orientação da jurisprudência que era dominantemente no sentido de que o tribunal tinha plena liberdade de qualificação jurídica dos factos, ressalvada a necessidade de conceder ao arguido tempo para reformular a sua defesa em função da nova qualificação.
A reforma do Código introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, parece ter pretendido consagrar aquela orientação jurisprudencial, ao acrescentar o n.º 3 do art. 358.º.
II. Parece ir neste sentido não só o aditamento do n.º 3 do art. 358.º, mas também o n.º 4 do art. 339.º, acrescentado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
Com efeito, poderia entender-se que, estabelecendo a lei que a discussão da causa tem por objecto todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação juridica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, o sentido da alteração do Código foi no sentido da admissão da liberdade de qualificação jurídica por parte do tribunal” (Direito Processual Penal Português – Do procedimento (Marcha do Processo), p. 262, Universidade Católica Editora).
15º - Neste caso concreto, no dia 9 de Julho de 2020 foi proferido despacho com o seguinte teor: «Entende o tribunal que através da prova produzida em audiência de julgamento, mais concretamente dos factos que essa prova permite evidenciar, a conduta da arguida poderá ser subsumível não ao crime de violência doméstica que lhe estava imputado, mas sim à prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
Tratando-se de mera alteração da qualificação jurídica de factos que já constavam da acusação pública, comunica-se tal alteração à defesa, nos termos e para os efeitos do art.º 358º, n.º 3 do C.P.Penal.
Notifique.»
16º - Consigna o nº 5 do artigo 32 da CRP que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
17º - Na sentença proferida pela primeira instância é dito, expressamente, que “ a alteração da qualificação juridica dos factos constantes da acusação pública já foi devidamente comunicada à defesa, nos termos e para os efeitos constantes do artigo 358.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal, nada tendo sido requerido a este respeito”.
Ora,
18º - Ao abrigo do contraditório, nada foi requerido pela reclamante.
Mas também,
19º - Nada foi requerido pelo Ministério Público.
20º - Não tendo este interposto recurso da douta sentença.
21º - Tal sentença veio a ser impugnada apenas e somente pela reclamante tendo-o feito por discordar da pena que lhe foi aplicada.
22º - Consideramos por isso, que a convolação operada transitou em julgado.
23º - O acórdão do STJ de 18 de Maio de 2006 defende que “I - Para efeito de se aferir da admissibilidade de recurso para o STJ, não tendo o MP impugnado a decisão, se o arguido foi acusado da prática de três crimes puníveis com pena de prisão de 2 a 10 anos e veio a ser condenado pela prática de dois crimes puníveis com pena de prisão de 1 a 8 anos, deve atender-se à imputação de crimes efectuada na condenação da 1.ª instância, pois os direitos de defesa do arguido incidem sobre a nova qualificação jurídica dos factos, mais favorável.
II - Tudo se passa como se ab initio tivesse sido feita a imputação pela prática dos crimes pelos quais o arguido veio a ser condenado.
III - E, na verdade, tendo-se apurado, após produção de prova em audiência de julgamento, que os factos praticados integram outros crimes que a constarem da acusação não consentiriam a interposição de recurso de acórdão da 2.ª instância deve aplicar-se a mesma solução.
IV - Daí não resulta qualquer compressão inadmissível das garantias de defesa do arguido, designadamente o direito ao recurso, consagradas no art. 32.º, n.º 1, da CRP, pois o recurso para o STJ estaria também vedado se a acusação tivesse incidido sobre os factos que se vieram apurar.
V - A possibilidade de recurso tem de se aferir em função da pena aplicável em abstracto no momento processualmente relevante, olvidando realidades jurídicas ultrapassadas.
VI - Perante o quadro supradescrito, se a Relação confirmou a condenação da 1ª instância, embora in mellius, pois reduziu as penas, verifica-se uma situação de dupla conforme, prevista no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, impeditiva de recurso para este Supremo Tribunal”. (06P1042 - https://www.direitoemdia.pt/document/s/e0d469).
24º - No caso em apreço, com a alteração da qualificação juridica, os direitos de defesa da reclamante incidiram sobre o crime de ofensa à integridade física simples.
25º - Tudo se passando com se esta viesse acusada do crime que veio a ser condenada.
26º - Com a nova qualificação juridica, mais favorável à reclamante e não tendo o Ministério Público impugnado tal despacho, ficou para sempre arredado o crime de violência doméstica.
27º - Não tendo o crime em que a reclamante veio a ser condenada, natureza urgente, o prazo de recurso da sentença final suspendeu-se durante as férias judiciais.
Razão pela qual,
28º - Entendemos que o recurso interposto pela reclamante deveria ter sido admitido pelo Senhor Juiz Desembargador Relator tal como o foi pelo Meritíssimo Juiz “a quo”.

Em face do exposto, requer, a V.Exa, se digne deferir a presente reclamação devendo ser alterada a douta decisão sumária proferida em 8/02/2021 no sentido do recurso interposto pela reclamante ser admitido.”.
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13. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação em causa, o Ministério Público nada disse.
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14. Colhidos os vistos foram os autos submetidos à conferência, dela procedendo o presente acórdão.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão sumária

A decisão sumária de rejeição do recurso interposto pela arguida L. C. da sentença proferida em 09/07/2020 pela 1ª instância, por extemporaneidade, assenta nos seguintes fundamentos, que se transcrevem ipsis verbis, na parte que ora interessa considerar:
“(...)

Em matéria de recursos prescreve o Artº 411º, nº 1, al. b), que o prazo para a respectiva interposição é de 30 dias, prazo esse que se conta a partir do depósito da sentença (ou do acórdão) na secretaria.
Ora, os actos processuais, por princípio, praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais, nos termos prescritos no Artº 103º, nº 1.
Porém, excepcionam-se a essa regra os actos previstos no nº 2, do mesmo preceito legal, designadamente “Os actos considerados urgentes em legislação especial”, a que alude a alínea g), como é o caso dos processos relativos a crimes de violência doméstica.

Efectivamente, acerca da celeridade processual nos processos por crime de violência doméstica, prescreve o Artº 28°, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro (diploma que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas), sob a epígrafe “Celeridade processual”:

“1 - Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.
2 - A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no nº 2 do artigo 103º do Código de Processo Penal”.

Nesta conformidade, neste tipo de processos, respeitantes a crimes de violência doméstica, os prazos processuais, para todos os sujeitos e intervenientes processuais, e para a própria secretaria do tribunal, nomeadamente para efeitos de interposição de recurso, e respectiva tramitação, correm em férias judiciais.
Pois, o que o legislador pretendeu com a redacção do transcrito preceito legal, como consta da sua epígrafe, foi imprimir celeridade processual aos processos em causa, atribuindo-lhe a natureza urgente, mesmo não havendo arguidos presos.
E o que determina a qualificação do processo como “urgente”, com a consequente aplicação do regime previsto no Artº 103º, nº 2, é o processo referir-se a crime de violência doméstica, ou seja, é o processo ter por objecto a imputação ao arguido de (pelo menos) um crime de violência doméstica.
Ora, compulsando os autos, constata-se que na acusação pública oportunamente deduzida pelo Ministério Público foi imputada à arguida L. C. a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal.
Mais se constata que essa acusação pública foi recebida pelo tribunal a quo, e que a arguida L. C. foi submetida a julgamento pela prática de tal ilícito criminal.
E que, na sentença ora impugnada pela recorrente, o tribunal a quo, analisando detalhadamente os elementos constitutivos desse ilícito criminal, concluiu que, em face dos factos que deu como provados, as condutas da arguida “não revestem gravidade suficiente para justificar a punição nos termos especialmente qualificados do crime de violência doméstica”, acabando por subsumir tal factualidade na previsão do Artº 143º, nº 1, do Código Penal (tendo ocorrido comunicação prévia dessa alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no Artº 358º, nºs. 1 e 3, do C.P.Penal, como resulta da acta da sessão de 09/07/2020, que consta de fls. 183), absolvendo e condenando a arguida em conformidade com tal entendimento.
Sucede que, contrariamente à posição do Mmº Juiz a quo, constante do despacho de 03/09/2020, supra referido em I.6., a circunstância de a arguida ter sido absolvida da prática do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado, e condenada apenas pela prática de um crime de ofensa à integridade física, não retira ao processo a sua natureza urgente, designadamente para efeitos de recurso, a qual se mantém até ao trânsito em julgado da sentença.
É que, como bem sublinhou a Exma. Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto na decisão singular de 07/06/2010, proferida no âmbito da Reclamação nº 75/08.4GHVNG-A.P1, disponível in www.dgsi.pt, numa situação similar à ora em apreciação, “se é certo que o recurso em processo penal pode limitar-se, em caso de concurso, a cada um dos respectivos crimes (art. 403º, 2, c) do CPP), também é verdade que essa limitação não prejudica o dever de retirar da procedência do recurso “todas as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida” (art. 403º, 3 do CPP).”. E, “se (como diz a lei) “toda a decisão recorrida” pode vir a sofrer modificações, tal significa que, apesar da limitação do objecto do recurso a alguns dos crimes do concurso, não se pode afirmar que o crime de violência doméstica já não faça parte do processo.”.
Concluindo, depois, de forma assertiva, que “enquanto toda decisão absolutória não transitar em julgado, fazem parte do objecto do processo todos os crimes constantes da acusação e sobre os quais a sentença se pronunciou, o que significa que o processo deve continuar a ter natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença.”.
Posição que ganha mais consistência se pensarmos naquelas situações em que o tribunal ad quem, apercebendo-se oficiosamente da existência dos vícios referidos no nº 2 do Artº 410º do C.P.Penal, manda baixar o processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio, nos termos do disposto no nº 1 do Artº 426º do mesmo diploma legal.
Ademais, convém não olvidar, na esteira da jurisprudência emanada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 158/2012, de 28/03/2012 (3), que “A tramitação dos processos referentes a este tipo de ilícito sempre segundo o regime dos processos urgentes integra-se nos objectivos visados pelo legislador, de clara inspiração vitimológica.”

Subscrevendo-se inteiramente as considerações ali expendidas, quando a esse propósito se afirma:
“A finalidade desta opção, desta busca de especial celeridade, não é a tutela do arguido, mas a protecção do ofendido. Neste domínio o ofendido identifica-se como um tipo de vítima especialmente fragilizada e que motiva a atribuição de um estatuto juridicamente regulado, com reconhecimento de específicos direitos e deveres (artigo 14.º a 52.º da Lei). O regime de tramitação urgente dos atos processuais, com as suas consequências em matéria de contagem dos prazos, integra formal e funcionalmente esse estatuto da vítima. O legislador tomou em conta que, de um modo geral, a vítima de violência doméstica, pelo contexto relacional, de proximidade espacial e ligação (se não dependência) económica com o agente em que se encontra e frequentemente se mantém no decurso do processo, fica especialmente exposta às consequências da sua duração, não sendo raras as situações de reiteração ou agravamento das condutas agressivas, exacerbadas pela própria pendência do litígio judicial.”.
Não sendo despiciendo relembrar também que, em consonância com aquela filosofia legislativa, o próprio “estatuto de vítima” de violência doméstica [estatuto esse que, nos presentes autos, foi atribuído ao ofendido J. S., como se alcança de fls. 14] só cessa, para além de outras situações que ora não interessa considerar, “após o trânsito em julgado da decisão que ponha termo à causa, salvo se, a requerimento da vítima junto do Ministério Público ou do tribunal competente, consoante os casos, a necessidade da sua protecção o justificar” - Artº 24º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, sendo o sublinhado da nossa autoria.
O que, evidentemente, reforça a ideia de que, em qualquer caso, a natureza urgente neste tipo de processos, relativos a crimes de violência doméstica, só cessa com o trânsito em julgado da decisão final.
Nestas circunstâncias, e reiterando-se que, não obstante a arguida L. C. ter sido absolvida da prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado, e condenada, “apenas”, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, os presentes autos mantêm a natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença, então facilmente se conclui que o recurso por ela interposto é manifestamente extemporâneo.
Efectivamente, como se viu, a sentença que a arguida L. C. pretende impugnar por via do presente recurso, constante de fls. 176/182 Vº, foi proferida e lida publicamente em 09/07/2020, na presença, além do mais, da recorrente, e da sua Ilustre Mandatária, data em que também foi depositada na Secretaria do Tribunal a quo, conforme determina o Artº 372º, nº 5, do C.P.Penal.
Ora, a partir dessa data dispunha a arguida do prazo de 30 dias para interpor o respectivo recurso, conforme prescreve o Artº 411º, nº 1, al. b).
E contando-se tal prazo (peremptório) em conformidade as regras ínsitas nos Artºs. 103º, nºs 1 e 2, al. g) e 104º, nº 1, do C.P.Penal, e 138º do C.P.Civil, constata-se que o mesmo terminava no dia 10/08/2020, sem prejuízo de o acto em causa poder ainda ser validamente praticado nos três primeiros dias úteis subsequentes, com o pagamento imediato da correspondente multa, nos termos a que alude o Artº 107º-A, do C.P.Penal, ou seja, até ao dia 13/08/2020.
Porém, como se viu, a arguida só veio a apresentar o seu recurso no dia 28/09/2020, mais de um mês após o decurso daquele prazo.
Nestas circunstâncias, torna-se manifesto e evidente que o acto praticado pela arguida L. C. deverá ser considerado extemporâneo, o que obsta ao conhecimento do recurso colocado à apreciação deste Tribunal da Relação, acarretando, consequentemente, a sua rejeição, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 417º, nº 6, als. a) e b), e 420º, nº 1, al. b).”.
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2. A reclamação para a Conferência

O Artº 417º, nº 6, atribuiu ao relator poderes de decisão sumária sobre o recurso, tendo-se já reconhecido que esta competência (do relator) é compatível com o direito ao recurso do arguido, o direito do ofendido de participação no processo e de acesso aos tribunais e os direitos das partes civis e dos outros participantes processuais de acesso aos tribunais e, designadamente, de acesso aos tribunais de recurso previstos nos Artºs. 20º, nº 1, e 32º, nºs. 1 e 7, da Constituição da República Portuguesa - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica, 2011, pág. 1157.
Ora, os poderes do relator de decisão sumária sobre o recurso incluem o conhecimento dos fundamentos de rejeição do recurso, ou seja, os previstos no Artº 420º, nº 1, do C.P.Penal, como decorre da alínea b) do nº 6 do Artº 417º.
E da decisão sumária do relator cabe reclamação para a conferência, conforme prescreve o Artº 417º, nº 8, sendo, então, o recurso julgado em conferência.
Pois, como claramente dispõe o Artº 419º, nº 3, al. a), o recurso é julgado em conferência quando tenha sido apresentada reclamação da decisão sumária prevista no n.º 6 do artigo 417º
Assim, como sublinha Paulo Pinto de Albuquerque (4) “o poder de cognição da conferência tem uma natureza originária e não derivada. Isto é, a conferência não está vinculada nem à decisão do relator nem à reclamação do sujeito ou participante afectado pela decisão do relator”.

Posto isto, e apreciando a reclamação, constata-se que a recorrente, ora reclamante, manifesta a sua discordância quanto à decisão sumária reclamada, aduzindo, em síntese, os seguintes argumentos:

- No dia 28 de Agosto de 2020 entregou nos autos um requerimento no qual defendia que a sentença proferida não havia transitado em julgado pois, face à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação levada a cabo pelo despacho proferido no dia 9 de Julho de 2020, e tendo (ela, arguida) sido absolvida do crime de violência doméstica que lhe estava imputado, e condenada como autora material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo Artº 143º, nº 1, do Código Penal, a partir dessa data os presentes autos deixaram de ter natureza urgente;
- O parecer do Ministério Público na primeira instância foi de concordância com a reclamante;
- O despacho proferido no dia 3 de Setembro de 2020 considerou que o processo deixou de ter natureza urgente no dia 09/07/2020, momento em que foi proferida sentença a absolver a arguida da prática do crime de violência doméstica pela qual vinha acusada;
- No dia 9 de Julho de 2020 o tribunal a quo comunicou à arguida que, através da prova produzida em audiência de julgamento, mais concretamente dos factos que essa prova permitia evidenciar, a sua conduta poderia ser subsumível não ao crime de violência doméstica que lhe estava imputado, mas sim à prática de um crime de ofensa à integridade física simples, tratando-se de mera alteração da qualificação jurídica de factos que já constavam da acusação pública, comunica-se tal alteração à defesa, nos termos e para os efeitos do art.º 358º, nº 3 do C.P.Penal;
- Consigna o nº 5 do artigo 32 da CRP que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”;
- Na sentença proferida pela primeira instância é dito, expressamente, que “a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pública já foi devidamente comunicada à defesa, nos termos e para os efeitos constantes do artigo 358º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal, nada tendo sido requerido a este respeito”;
- Ao abrigo do contraditório, nada foi requerido pela reclamante, e nada foi requerido pelo Ministério Público, que não interpôs recurso da sentença;
- Tal sentença veio a ser impugnada apenas e somente pela reclamante tendo-o feito por discordar da pena que lhe foi aplicada, pelo que a convolação operada transitou em julgado;
- Com a alteração da qualificação jurídica, os direitos de defesa da reclamante incidiram sobre o crime de ofensa à integridade física simples, tudo se passando com se esta viesse acusada do crime que veio a ser condenada;
- Com a nova qualificação jurídica, mais favorável à reclamante e não tendo o Ministério Público impugnado tal despacho, ficou para sempre arredado o crime de violência doméstica;
- Não tendo o crime em que a reclamante veio a ser condenada, natureza urgente, o prazo de recurso da sentença final suspendeu-se durante as férias judiciais, razão pela qual o recurso interposto pela reclamante deveria ter sido admitido pelo relator.

Salvo o devido respeito, liminarmente se adianta que a argumentação esgrimida pela reclamante não tem a virtualidade de, minimamente, infirmar os fundamentos em que assentou a decisão sumária proferida pelo relator.
Com efeito, no que tange ao primeiro aspecto da tese ora trazida à liça pela arguida, há que dizer que se afigura irrelevante para o caso a posição da arguida expressa no dito requerimento de 28/08/2020, segundo a qual, a partir de 09/07/2020 os autos deixaram de ter natureza urgente. Como irrelevante se afigura a posição do Ministério Público junto da primeira instância, de concordância com a reclamante, e bem assim a posição do Mmº Juiz a quo, que através do despacho proferido no dia 03/09/2020 considerou que o processo deixou de ter natureza urgente naquele dia 09/07/2020, momento em que foi proferida sentença a absolver a arguida da prática do crime de violência doméstica pela qual vinha acusada.

Na verdade, a consideração da natureza urgente ou não urgente do processo está intimamente conexionada com a questão da contagem do prazo para a interposição de recurso da sentença proferida, e para a aferição da tempestividade do mesmo recurso, sendo certo que na decisão sumária, ora posta em crise pela arguida, explicaram-se devidamente as razões pelas quais se considerou que, mau grado a arguida ter sido absolvida da prática do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado, e condenada apenas pela prática de um crime de ofensa à integridade física, os autos continuaram a ter natureza urgente a partir de 09/07/2020. Pelo que, tendo-se considerado que o prazo de 30 dias para a interposição de recurso corria em férias judiciais, que tal prazo poderia ser praticado até ao dia 13/08/2020 (já com o pagamento da multa a que alude o Artº 107º-A, do C.P.Penal), e que a arguida apenas apresentou o seu recurso no dia 28/09/2020, considerou-se que o mesmo era extemporâneo, devendo ser rejeitado.
Por isso, as aludidas posições, maxime a posição do Mmº Juiz a quo, na sequência da qual acabou por admitir o recurso da arguida, considerando-o tempestivo, não vinculam minimamente este tribunal superior [cfr. Artº 414º, nº 3], pois que cabe ao relator, após exame preliminar, o poder/dever de verificar se existe alguma circunstância que obste ao conhecimento do recurso, e o poder/dever de aferir se o recurso deve ser rejeitado, proferindo, então, decisão sumária [Artº 417º, nº 6, als. a) e b)] em conformidade, o que sucedeu, na situação em apreço.
Aduz também a arguida que, com a alteração da qualificação jurídica, os direitos de defesa da reclamante incidiram sobre o crime de ofensa à integridade física simples, tudo se passando como se esta viesse acusada do crime pelo qual veio a ser condenada, e que, em face dessa nova qualificação jurídica, mais favorável à reclamante, e não tendo o Ministério Público impugnado tal despacho, transitou em julgado a convolação operada, ficando “para sempre arredado o crime de violência doméstica”.
Uma vez mais, não lhe assiste razão.
Efectivamente, através do despacho de 09/07/2020 o Mmº Juiz a quo limitou-se a comunicar à arguida, nos termos e para efeitos do disposto no Artº 358º, nº 3, que, face à prova produzida em audiência de julgamento, mais concretamente dos factos que essa prova permitia evidenciar, a conduta da arguida poderia ser subsumível não ao crime de violência doméstica que lhe estava imputado, mas sim à prática de um crime de ofensa à integridade física simples.
Ora, salvo o devido respeito, essa concreta comunicação da eventual subsunção da conduta da arguida na previsão do Artº 143º, nº 1, do Código Penal, não teve, nem tem, os efeitos que a arguida ora traz à liça, sendo certo que não coarctou sequer a possibilidade de o tribunal a quo apreciar, em sede de sentença final, se efectivamente a mesma integrava, ou não, a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. b), e nº 2, al. a), do Código Penal, nos termos que lhe vinham imputados no libelo acusatório.
Pois, como se sublinhou na decisão reclamada [e mau grado a arguida nada ter então requerido, tal qual sucedeu com o Ministério Público], “na sentença ora impugnada pela recorrente, o tribunal a quo, analisou detalhadamente os elementos constitutivos desse ilícito criminal, concluindo que, em face dos factos que deu como provados, as condutas da arguida “não revestem gravidade suficiente para justificar a punição nos termos especialmente qualificados do crime de violência doméstica”, e acabando por subsumir tal factualidade na previsão do Artº 143º, nº 1, do Código Penal, nos termos da aludida comunicação prévia.
Nessas circunstâncias, não têm base legal as afirmações da arguida segundo as quais, a partir daquela comunicação da alteração da qualificação jurídica, tudo se passou como se esta viesse acusada do crime que veio a ser condenada, e que, com a nova qualificação jurídica, mais favorável à reclamante, e não tendo o Ministério Público impugnado tal despacho, transitou em julgado a convolação operada, ficando para sempre arredado o crime de violência doméstica (5).
Pois que, e reiterando-se o entendimento expresso na decisão sumária, “enquanto toda decisão absolutória não transitar em julgado, fazem parte do objecto do processo todos os crimes constantes da acusação e sobre os quais a sentença se pronunciou.”.
O que significa que, in casu, tal como ali também se afirmou, o processo deva continuar a ter natureza urgente até ao trânsito em julgado da sentença, sendo manifesta a extemporaneidade do recurso.
Assim sendo, e porque a reclamante não apresenta argumentos susceptíveis de, consistentemente, colocarem em crise a decisão reclamada, sem necessidade de outras considerações, por totalmente despiciendas, reafirmam-se e corroboram-se as razões de facto e de direito explicitadas na decisão sumária que fundamentaram a rejeição do recurso, que se confirma e mantém, indeferindo-se a reclamação.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em indeferir a reclamação apresentada pela arguida L. C..

Custas pela arguida/recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 12 de Abril de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120158.html.
4. Ibidem, pág. 1160.
5. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem, pág. 931, trazendo à colação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31/01/1990, nenhuma irregularidade se verifica se o juiz, pressupondo uma alteração não substancial dos factos, suspende a audiência, adverte disso a defesa e concede-lhe prazo e, a final, vem a condenar pelo crime constante da acusação. Efectivamente, escreveu-se em tal douto aresto do nosso mais Alto Tribunal, proferido no âmbito do Proc. nº 040413, cujo sumário se encontra disponível in www.dgsi.pt, que a alteração prevista no Artº 358º, nº 1, do C.P.Penal [o que é aplicável, evidentemente, às situações de mera alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, nos termos do nº 3 do mesmo preceito legal], e o formalismo aí prescrito, não tem a virtualidade de afastar uma possível condenação do arguido pelos factos descritos na acusação ou na pronúncia, não havendo qualquer violação das garantias do processo criminal nos casos em que foi dada ao arguido a oportunidade de se defender de uma alteração factual que em dado momento parece existir.