Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4704/15.5T8GMR
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
CONTRATO DE EMPREITADA
DIRECÇÃO EFECTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O contrato por virtude do qual uma oficina de reparação automóvel efectua a reparação de uma avaria num veículo que obrigou à sua imobilização configura uma empreitada, que segundo o artigo 1207º do Código Civil, é «o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço», referindo P. de Lima e A. Varela que “como realização de uma obra deve entender-se não só a construção ou criação, como a reparação, a modificação ou a demolição de uma coisa…do que não pode prescindir-se é dum resultado material, por ser esse o sentido usual, normal, do vocábulo obra e tudo indicar que é esse sentido visado pelo artigo 1207º.
II- Assim, sendo a responsabilidade da Ré pela deficiente reparação do veículo de índole contratual, a questão de saber quem tinha a direcção efectiva do veículo não assume real interesse dado o litígio não se situar no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e na consequente determinação da entidade que deveria ser chamada a pagar a indemnização face à falta de seguro de garagista.
III- Sendo que, contudo, a direcção efectiva do veículo pertenceu à Ré, oficina reparadora que, no exercício da sua profissão, detinha e experimentava o veículo em plena execução dum contrato de empreitada, ou seja, era o garagista o detentor do poder de facto sobre o veículoe do correlativo interesse profissional em repará-lo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Maria Amélia de Carvalho Pereira pede nesta acção declarativa que a ré AA, lda., seja condenada a pagar €29.500,00(23.500,00€ pela perda/incêndio da viatura GCquando se encontrava depositado nas instalações da ré, e 6.000,00€ pela impossibilidade da sua utilização desde a data do incêndio) ejuros moratórios até integral pagamento, e a indemnização pela privação do uso entre a propositura da acção e o trânsito em julgado da decisão final, em montante a fixar em incidente de liquidação.

Em síntese, atribui à ré a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos decorrentes da perda do seu veículo GC, que se incendiou aquando da realização de um teste de estradaem virtude das intervenções mecânicas não terem sido realizadas pela ré segundo as normas recomendadas.

2. Na contestação, a ré arguiu asua ilegitimidade por o sinistro ter ocorrido na via pública e não dispor do seguro obrigatório de responsabilidade civil; por impugnação, diz que actuou com respeito de todas as legisartis, e que o incêndio da viatura se deveu à avaria de uma peça mecânica, a qual não foi por ela, demandada, intervencionada, nem tendo a sua intervenção tido qualquer interferência na mesma.

3. O despacho saneador julgou improcedente a arguida ilegitimidade da ré, e oprocesso prosseguiu para julgamento depois de enunciados os temas de prova, culminando com a prolação da sentença final de condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 23.500,00€, acrescida dos juros desde a citação até integral pagamento, e de absolvição do demais peticionado.

II. A ré recorre da sentença, concluindo no essencial:

1- A Mmª Juiz “a quo” não podia responsabilizar a R. pelo incêndio, quando o próprio perito afirma não ter certezas sobre o motivo do incêndio, determinando que se deveu a uma causa acidental, pelo rompimento de uma peça mecânica, sem qualquer intervenção humana.
2- Resulta provado que a culpa do incêndio do veículo não pode ser imputada à Ré, mas que ocorreu por defeito de peça mecânica do veículo, ou seja, o incêndio ocorreu por rutura do filtro (fadiga da peça face à idade avançada do veículo), peça que não sofreu qualquer intervenção da Ré;
3- Assim sendo, este facto, designadamente que o incêndio do veículo se deveu à ruptura do filtro de partículas (peça mecânica), e que decorre inequivocamente do relatório do perito, devia ter sido dado como provado pela Mmª Juiz;
4- No que tange, ao facto dado como provado pela Mmª Juiz “a quo” em j), referente à boa conservação do veículo, a sua motivação teve por base os depoimentos do marido, do filho e de um amigo de vários anos da A.
5- Por outro lado, a Mmª Juiz “a quo” deu como provado os factos 1.1 l) e m), nomeadamente que a A. utilizava habitualmente o veículo nas suas deslocações de e para o emprego, bem como, que a A. se socorreu do empréstimo de viaturas de familiares durante cerca de 6 meses.
6 - Porém, erroneamente a Mmª Juiz não deu como provado que a R. disponibilizou um carro à A., após o incêndio, para esta utilizar no seu dia a dia, e para seu uso pessoal, facto que deveria ter sido dado como provado pela Mmª Juiz, pois o mesmo é inequivocamente confirmado pelo próprio marido da A..
7- Impugnamos o facto em 1.2 f), que deu como não provado que o incêndio do GC se tenha devido a uma avaria acidental de uma peça mecânica, não correlacionada com a reparação em 1.1 g), já que o mesmo é contraditório, pois não resultou provado a razão do incêndio.
8 - Como pode a Mmª Juiz, ter dado como não provado que o incêndio no veículo se tenha devido a uma avaria acidental de uma peça mecânica, não correlacionada com a reparação em 1.1 g), quando em bom rigor não resulta provado a razão do incêndio?
9- Pelo que a sua fundamentação é contraditória com a matéria dada como provada e como não provada, não tendo consistência na mesma, assentando a sua convicção e decisão em matéria não alegada pelas partes.
10- Ou seja, não há um fio condutor do raciocínio lógico do julgador, pois a motivação desde logo falece e é ela própria contraditória nos seus argumentos, e os factos julgados como provados e não provados colidem inconciliavelmente entre si e, ainda, com a fundamentação da decisão.
11- Por tudo o exposto, ocorre o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão; contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada e como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto e a decisão.
12- No que reporta à matéria de direito, nos termos do disposto no art. 799º, nº 2 e 487º, nº 2 - a culpa é avaliada em abstrato - ou seja, em função do comportamento exigível a um bom pai de família.
13- Com efeito, a R./apelante foi diligente em toda a atuação de reparação do veículo, tendo efetuado o autodiagnóstico, concluindo que o filtro de partículas estava obstruído, a pressão diferencial demasiado alta e o nível do óleo do motor também alto.
14- Neste sentido, a R. limitou-se a proceder à respetiva reparação, que consistiu apenas na substituição do óleo do motor, do filtro de óleo e sensor de pressão diferencial, bem como introduziu um produto de limpeza no filtro de partículas.
15- Acontece que, é prática corrente, e procedimento normal de todas oficinas que antes de se entregar a viatura ao respetivo proprietário, se faça um teste de regeneração em estrada, o que foi feito pelo funcionário da R. que experimentou a viatura na estrada (circulou 3 a 4km), e só depois de estar parado, deflagrou o incêndio.
16- A R. atuou diligentemente, pois face ao autodiagnóstico empregou os meios adequados e necessários, já que encontrando-se o filtro de partículas parcialmente obstruído, não era necessária a substituição do filtro, optando-se antes por um produto de limpeza, devidamente certificado e de plena confiança, usando-o habitualmente em avarias como a do veículo da A., sendo um método utilizado e um procedimento padrão em qualquer oficina certificada, e de fácil resolução.
17- A presunção de culpa da R. foi ilidida, já que não estava na disponibilidade da R., atuar de outra forma, se não aquela como atuou, por ser o procedimento adequado e utilizado por qualquer oficina.
18- A R. fez tudo o que lhe era exigível face ao autodiagnóstico realizado, tanto que aquando do teste em estrada, e introduzidos os primeiros parâmetros na máquina, tudo indicava que os valores do veículo estavam estabilizados e normalizados. E foi, já depois de parado, que o veículo começou a arder.
19- Acresce que, o empreiteiro é responsável pelos defeitos da obra, salvo em caso fortuito ou de força maior. Assim o disse Pessoa Jorge, quanto a qualquer relação jurídica de crédito, desde que verificadas a imprevisibilidade e a inevitabilidade do sucedido - cfr. Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pg. 135. (sublinhado e negrito nossos)
20- Mais uma vez, se ilide a presunção de culpa do devedor (apelante), visto que o relatório menciona que o incêndio decorreu de uma causa acidental, pelo rompimento numa componente mecânica, componente que já vinha no veículo e que não foi substituída nem desmontada pela apelante, sendo por isso imprevisível e inevitável pela R., o incêndio.
21- Por outro lado, determina o art.1227º do CC, que “Se a execução da obra se tornar impossível por causa não imputável a qualquer das partes, é aplicável o art.790º do CC (…)”.O art.790º do CC, prevê que a “obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.”.
22- Com efeito, a R. só não cumpriu com a sua obrigação (entrega do veículo), por causa que não lhe é imputável, já que a obrigação se tornou objetivamente impossível devido ao incêndio que deflagrou, em virtude do rompimento de uma peça mecânica, que não foi nem substituída, nem reparada pela R., e por isso a sua obrigação extingue-se.
23- Não decorre qualquer nexo de causalidade adequada entre a reparação que a apelante efetuou no veículo da A./apelada, e o incêndio que deflagrou e consumiu o mesmo.
24- No caso em apreço, a conduta da R./apelante não foi adequada ao prejuízo que a A./apelada sofreu, pois tal incêndio não deflagrou em virtude da atuação e reparação que aquela efetuou, mas antes, por motivos alheios, nomeadamente o rompimento de uma peça mecânica do veículo.
25- Além disso, decorre do disposto no art. 1228º nº1 do CC, que “Se, por causa não imputável a qualquer das partes, a coisa perecer ou se deteriorar, o risco corre por conta do proprietário.”.
26- Acontece que, a transferência da propriedade no âmbito da empreitada apresenta um regime especial estatuído no art.1212º, nº1 do CC, que distingue consoante a empreitada abranja coisas móveis ou coisas imóveis.
27- Todavia, e como refere Menezes Leitão, “É manifesto, no entanto, que essa disposição apenas se aplica às empreitadas de construção, uma vez que, ocorrendo uma empreitada de modificação ou reparação de coisa pertencente ao dono da obra, não se colocam questões de transferência da propriedade, a qual permanece no dono da obra.” (Direito das Obrigações, Volume III, Almedina, 6ª edição, pág. 532). (sublinhado nosso)
28- Por sua vez, Américo Marcelino entende que “Ora, a experimentação do carro deve enquadrar-se na reparação, de tal forma que, segundo as leis da experiência corrente, sem, ela, não pudesse considerar-se completada a reparação.” (Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 7ª edição, Livraria Petrony, pág. 191).
29- Efetuada a reparação, e que consistiu apenas na limpeza das partículas que obstruíam o filtro, o teste realizado em estrada pelo funcionário da R./apelante é manifestamente adequado e indispensável para concluir a reparação.
30- Pelo exposto, não restam dúvidas, que mantendo-se a propriedade do dono da obra, ou seja, na A. /apelada, é por conta desta que corre o risco previsto no art.1228º do CC.
31- Tanto que, Américo Marcelino defende que “Nesse caso o uso do carro já se processará no interesse do proprietário, assumindo ele o inerente risco.”(Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 7ª edição, Livraria Petrony, pág. 192). E continua, ao dizer que “Se o garagista agiu sem culpa, mantêm-se as regras do risco e o proprietário responderá, mas apenas ele, como detentor que nunca deixou de ser da direção efetiva do veículo. Não parece que se possa sustentar que o garagista, pelo simples facto de o carro lhe ter sido confiado para reparação, passe com isso a ter a sua direcção efetiva e a usá-la no seu próprio interesse. Ao reparar o carro e ao experimentá-lo está claramente a usá-lo no interesse do cliente.”. (págs. 195 e 196).
32- Em bom rigor, e como bem explica Américo Marcelino, não é pelo facto de o garagista reparar e experimentar o carro, que passa a ter a direção efetiva do veículo. Pelo contrário, a direção efetiva nunca deixa de ser do proprietário, uma vez que ao experimentar o carro, o funcionário da R./apelante está apenas a servir o interesse da A./apelada.
33- Por outro lado, a imputabilidade ou a suscetibilidade de ser responsabilizado é um pressuposto necessário da culpa. “Não pode haver culpa sem imputabilidade” (Vaz Serra, BMJ 68-69).
34- Segundo Américo Marcelino, “É o conjunto do conhecer e do querer: conhecer, discernir que certo ato tem, juridicamente, determinado valor ou desvalor; querê-lo, mesmo assim, ou por isso mesmo, livremente, quando livremente se podia não o querer. Por isso, quando o resultado não é previsível, não pode haver culpa, pois não poderia haver juízo de censura em que ela se traduz”. (Américo Marcelino, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 10º Edição, Livraria Petrony, pág.151).
34- Ora, o resultado não foi de todo previsível para a apelante, tanto que os seus funcionários, seguiram os trâmites normais, realizando o autodiagnóstico, e mediante o mesmo, serviram-se do conhecimento técnico, e da ciência mecânica, utilizando as medidas de reparação que para estas avarias são as adotadas.
35- Nunca, e em tantos anos de prática de profissão, e em tantas outras avarias que já passaram pela oficina da apelante semelhantes à avaria que apresentava o veículo da A./apelada, ocorreu um incêndio, nem tal era previsível de acontecer, nem controlável pela R..
36- De tal modo, que os danos ocorridos no veículo, designadamente a destruição do mesmo, não podem ser imputados à R. /apelante, uma vez que esta não previu tal incêndio, já que este se deveu a causa acidental, sem qualquer intervenção humana.
37- Sem prescindir, a A., incorreu em manifesto abuso de direito, visto que a R. colocou à disposição da A. um veículo para seu uso pessoal e diário, tendo esta recusado, vindo agora mais tarde e contrariando a decisão anterior, pedir à R. uma indemnização pela privação do uso do veículo;
38- In casu, ao afirmar o primeiro comportamento, de que não queria a viatura que a R. disponibilizava, a A. deu azo a uma confiança legítima, que não devia, depois mais tarde desamparar e contrariar, como fez, ao vir pedir a indemnização pela privação do uso do veículo, atuando visivelmente com má-fé, perante a R..

III.Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Ressuma das conclusões formuladas que a recorrente visa a impugnação da sentença nos segmentos de facto e de direito.

Da impugnação da matéria de facto.

1.Que a origem do incêndio está na ruptura do filtro de partículas sobre isso as partes estão de acordo nos articulados, o que permite a aquisição processual desse facto nos termos do artigo 607º, nº5 do Cód. Proc. Civil, embora devendo ser complementado com uma resposta explicativa sobre a causa dessa ruptura(matéria que é tratada/alegadapelas partes nos articulados, reproduzindo e/ou remetendo para o teor do relatório técnico junto aos autos).
As partes divergem no entanto sobre a origem dessa ruptura, mas nesse aspecto oquea prova produzida permite captar e temos como explicação técnica mais razoável e verosímil é que a ruptura do filtro de partículas do veículo deveu-se à fadiga do material, potenciada pelo aumento de pressão interior causada pelo líquido de limpeza que a ré aí introduziu.

Estamos assim em sintonia com a convicção que o tribunal a quo deixou explicitada na motivação da decisão, e acompanhamosem termos globais os fundamentos e argumentos aí aduzidos, elegendo-se como elementos probatórios determinantes o relatório pericial junto com a contestação (fls 47 e sgs, que admite as referidas causas a explicação mais plausível) e o depoimento de Gustavo Daniel, convincente em função da objectividade, razão de ciência e conhecimentos técnicos revelados.





Essa conclusão não é contrariada pelos depoimentos das testemunhas que a recorrente evoca em abono da sua versão - note-se que BB (funcionário da firma fornecedora da ré) admitiu que «há uma altura em que o acumular de situações torna ineficaz o produto»; e o EngºCC referiu que em certos casos é necessário desmontar o filtro de partículas para se poder verificar se há “zonas de fragilidade mecânica”, e neles inclui os carros de utilização citadina, como o da autora.Podemos conceder que o uso de líquido de limpeza wurt como solução das anomalias no filtro de partículas como a diagnosticada no veículo da autora (v.g. níveis demasiados altos da pressão do diferencial e do óleo do motor) seja uma prática habitual da ré e de outras oficinas do ramo, quiçá por ser menos onerosa que a desmontagem ou substituição do filtrocontudo nada permite afirmar que traduza osprocedimentos impostos ou recomendados pelas marcas automóveis ou pela legisartis.
Em face das considerações expostas, impõe-se a aquisição processual da seguinte matéria, sob a alínea n/: “O incêndio do veículo deveu-se à ruptura do filtro de partículas provindo da fadiga do material, potenciada pelo aumento da pressão no seu interior causado pela introdução do produto de limpeza”.
Essa factualidade afasta a tese de que o incêndio se tenha devido a avaria acidental de uma peça mecânica ou a circunstância alheia à reparação efectuada pela ré, matéria bem relegada para o acervo não provado.

2. A recorrente impugna a decisão do tribunal recorrido ao ter dado como provado o facto constante da al. j): «O GC, à data do incêndio (14.04.2015), tinha percorrido cerca de 94.000km e estava em excelente estado de conservação, tendo passado a última inspecção técnica periódica obrigatória sem qualquer falha ou observação», com o argumento de que teve por base o depoimento de marido, filho e amigos da autora, que o bom estado do veículo não é consentâneo com a realidade física e mecânica do mesmo, e adianta que veículos da mesma marca e modelo têm tido incidentes similares como é do conhecimento público.
Cremos que a recorrente não está a por em causa a quilometragem do veículo e a sua aprovação técnica na última inspecção, tanto mais que são circunstâncias reconhecidas nos articulados. A discordância incide tão só sobre a circunstância de se ter dado provado que o veículo estava em «excelente estado de conservação», mas não indica provas em sentido contrário ou vícios da fundamentação, não bastando a vaga evocação da proximidade familiar ou de amizade dos depoentes à autora, e ademais a referida conclusão está relacionada com os cuidados no uso diário da viatura, revisões periódicas e outros aspectos que definiam o seu valor, e não com quaisquer mazelas ocultas.

3. A recorrente conclui ainda pelo incorrecto julgamento da matéria de facto dado o tribunal não ter dado como provado que após o incêndio a ré disponibilizou à autora um carro para poder utilizar no seu dia-a-dia, contudo constata-se que essa circunstância impeditiva da procedência do direito da autora não foi alegada nos articulados.
Cabe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir, e os que se baseiam em excepções invocadas, e só desses o tribunal pode conhecer, salvo as situações expressamente previstas no artigo 5º, nº2, do Código de P. Civil. Com o princípio do dispositivo está conexionado o princípio da auto-responsabilização das partes - “a negligência ou inépcia das partes redunda inevitavelmente em prejuízo delas porque não pode ser suprida pela iniciativa e actividade do juiz” (Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil -376), e a determinação dos factos a apreciar, pois o Juiz “deve, especialmente, abster-se de admitir como existentes factos relevantes para a decisão da causa que não constem do processo (quod non est in actis non est in mundo)”- cfr. Prof. A. dos Reis in CPC Anotado, V-95.
Soçobra desse modo o único fundamento evocado pela recorrente para poder obviar à condenação no pagamento da indemnização atribuído à autora a título de privação do uso do veículo.

A matéria de facto provada fica estabilizada nos seguintes termos(1):
a) A A. é proprietária do veículo da Marca Mercedes-Benz, modelo C220 Cdi, do ano de 2008, com a matrícula GC;
b) No dia 11.04.2015, quando a autora conduzia a referida viatura na A3, em direcção ao Porto, junto ao nó da Trofa, o GC começar a soluçar e a emitir um fumo negro pelo escape, pelo que a A. de imediato imobilizou a marcha do automóvel na berma da faixa de rodagem;
c) Na sequência do referido em b) o GC foi transportado por camião-reboque para a oficina da ré, sita na Rodovia de Covas-Urgezes;
d) À chegada à oficina da R., e após descarga do veículo, este foi colocado em funcionamento, tendo entrado a funcionar para o interior da oficina;
e) A R. fez o autodiagnóstico ao GC, concluindo que tinha o filtro de partículas obstruído, a pressão de diferencial demasiado alta e o nível do óleo do motor também alto;
f) A R. comunicou à A. em 13.04.2015 que a reparação do referido em e) ascenderia a €250/€300, preço que a A. aceitou;
g) Para reparação do referido em e) a ré:substituiu o óleo do motor; Substituiu o filtro do óleo; Substituiu o sensor de pressão diferencial: Introduziu 400 ml de um produto de limpeza no filtro de partículas, da marca wurth, referência 5861014500;
h) Após o referido em g) a R. resolveu proceder a um teste de estrada;
i) Percorridos 3 a 4 km o GC começou a arder, tendo o incêndio destruído totalmente o veículo;
j) O GC, à data do incêndio (14.04.2015), tinha percorrido cerca de 94.000km e estava em excelente estado de conservação, tendo passado a última inspecção técnica periódica obrigatória sem qualquer falha ou observação;
k) O GC valia à data do incêndio cerca de €19.000;
l) A autora utilizava habitualmente o GC nas suas deslocações de e para o emprego;
m) A A. socorreu-se do empréstimo de viaturas de familiares durante cerca de 6 meses após o incêndio e, decorridos esses 6 meses, adquiriu outro veículo automóvel.
n/O incêndio do veículo deveu-se à ruptura do filtro de partículas provindo da fadiga do material, potenciada pelo aumento da pressão no seu interior causado pela introdução do produto de limpeza.

O direito.
A recorrente AAconclui pela não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente a culpa e nexo de causalidade entre a sua actuação e os danos, pois que o incêndio se deve a uma causa acidental (nessa sequência invoca a extinção da sua obrigação nos termos do artigo 790º do Código Civil), e que o perecimento do veículo é por isso um risco que correu por conta dasua proprietária, que nunca perdeu a direcção efectiva do veículo.Quanto à privação do uso do veículo, conclui que há abuso de direito por parte da autora ao peticionar a indemnização depois de ter recusado o veículo disponibilizado pela ré.

A autora depositou o seu veículo GC nas instalações da ré a fim de ser reparada a avaria que obrigou à sua imobilização na A3, e uma vez diagnosticada a anomalia e aceite o orçamento de reparação apresentado, a AA procedeu à intervenção programada (substituiu o óleo do motor, o filtro do óleo e o sensor de pressão diferencial, e ntroduziu 400 ml de um produto de limpeza no filtro de partículas, marca wurth, referência 5861014500),mas ao fazer um teste de estrada o veículo incendiou-se e ficou destruído.

Esta situação configura uma empreitada, que segundo o artigo 1207º do Código Civil, é «o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço», referindo P. de Lima e A. Varela que “como realização de uma obra deve entender-se não só a construção ou criação, como a reparação, a modificação ou a demolição de uma coisa…do que não pode prescindir-se é dum resultado material, por ser esse o sentido usual, normal, do vocábulo obra e tudo indicar que é esse sentido visado pelo artigo 1207º” (Código Civil anotado, II-pág. 703).

Os factos apurados não são de molde a ilidir a presunção de culpa da ré no incumprimento definitivo da obrigação de devolver o veículo à autora (a presunção de culpa estabelecida pelo artº 799º, nº1, do Cód. Civil é também aplicável à impossibilidade de cumprimento a que alude o artigo 801º, nº1 – cfr. Professor Galvão Teles in Obrigações pág. 313), anotando-se que o incêndio que destruiu o veículo teve origem na ruptura do filtro de partículas, a peça mecânica intervencionada, evento esse causado pela fadiga do material e potenciado pelo líquido para limpeza introduzido pela ré no decurso da reparação. E a propósito, já referimos que o uso do líquido de limpeza é quiçá uma prática corrente menos dispendiosa que a desmontagem ou substituição do filtro, mas não o procedimento tecnicamente correcto em face das específicas anomalias do veículo e da sua quilometragem.

A questão de saber quem tinha a direcção efectiva do veículo só assumia real interesse se o litígio se situasse no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e na consequente determinação da entidade que deveria ser chamada a pagar a indemnização face à falta de seguro de garagista(2),no entanto a responsabilidade da ré é de índole contratual. Sempre é de referir que a direcção efectiva do veículo pertenceu à ré que, no exercício da sua profissão, detinha e experimentava o veículo em plena execução dum contrato de empreitada, ou seja, era o garagista o detentor do poder de facto sobre o veículoe do correlativo interesse profissional em repará-lo - como referem alguns arestos do Supremo do Tribunal de Justiça, essa direção efectiva radica na plena autonomia no processo de reparação (entre outros, cfr. os ac. de 06.02.1991, 20.01.2004, 28.96.2007, 21.04.2009 e de 05.07.2007; no mesmo sentido Vaz Serra, no estudo publicado no BMJ, nº90, e Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, I-pág. 486).
Decisão.
Acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pela recorrente.

TRG, 18 de Maio de 2017

(1)Factos que a 1ª instância considerou não provados:
a) Que a quantidade de fluído referida em 1.1.g) seja superior à adequada; b) Que tenha sido esse excesso de fluído que, sujeito ao aquecimento normal do filtro de partículas, tenha aumentando de volume, levando à cedência do referido filtro de partículas e dando origem ao incêndio; c) Que o teste referido em 1.1.h) e 1.1.i) tenha sido realizado a velocidades demasiado baixas (porque utilizadas vias citadinas) o que não permitiu o adequado arrefecimento do filtro neste período de regeneração; ao invés devia ter sido utilizado uma via do género auto-estrada que permitisse uma circulação do veículo a velocidades a rondar os 100 Km/hora por períodos de tempo nunca inferiores a 10 minutos; d) Que o GC, à data do incêndio, valesse cerca de €23.500; e) Que o filtro de partículas do GC não carecesse de substituição; f) Que o incêndio do GC se tenha devido a uma avaria acidental de uma peça mecânica, não correlacionada com a reparação referida em 1.1.g); g) Que o custo do aluguer de um veículo com características semelhantes à do GC ascenda a €4.728,78.
(2)A propósito, vale a pena evocar o que refere o acórdão desta Relação de 7 de Janeiro de 2016 (do mesmo relator), proferido no processo 128/12.4TBBRG: “o garagista é obrigado a segurar a responsabilidade civil emergente da utilização de veículos automóveis quando os utilizem, por virtude das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional – nº3, do artigo 6º do DL nº. 292/2007. Sendo o garagista incumpridor dessa obrigação e detendo à data do acidente a direcção efectiva do veículo, quem deve ser chamado a ressarcir os danos causados a terceiros lesados é o Fundo de Garantia Automóvel, solidariamente com os responsáveis civis (arts 47º, nº1, e 62º, nº1, do DL 292/07), e não a seguradora do proprietário do veículo.