Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2553/19.0T8VNF-A.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE PARTILHA
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- A sentença homologatória de partilha alcançada em inventário, pela qual se constituiu o direito de usufruto sobre um imóvel não impede que noutro processo se discuta a interpretação das cláusulas desse título constitutivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante e embargante:
L. M.

Apelado e embargado:
Condomínio da Rua …, Lisboa

Autos de: apelação (em oposição à execução por embargos)

I- Relatório

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, a ora apelante deduziu oposição por meio de embargos de executada, pedindo que seja absolvida do pedido de pagamento da quantia peticionada, alegando, em síntese, que é proprietária da raiz relativa à fração autónoma que determinou o pagamento da prestação exequenda, a qual adquiriu por partilha judicial, tendo o usufruto do imóvel sido atribuído a M. D. com “todos os direitos e obrigações decorrentes da lei, e sendo que no âmbito das últimas se inclui o pagamento das prestações devidas a título de condomínio.” Visto que a quantia exequenda tem como origem uma obra de conservação da coisa, é legalmente considerada uma reparação ordinária e, como tal, da responsabilidade do usufrutuário.
O exequente contestou, invocando, além do mais e em súmula, que o título constitutivo remete para a lei e determina o pagamento das prestações devidas a título de condomínio, ou seja, as denominadas quotas condominais, que se vencem mensalmente. A dívida que aqui está em causa não se reporta a prestações devidas a título de condomínio mensal, mas sim a obras extraordinárias nas partes comuns do edifício e que resultaram num pagamento adicional a cada condómino, as quais são da responsabilidade da Embargante, nos termos conjugados dos artºs 1472º e artº 1473º do Código Civil.
Foi proferida sentença, na qual se decidiu “Julgar a executada/embargante parte ilegítima para a execução e, em conformidade, absolvo-a da instância executiva, com a inerente extinção da execução e consequente levantamento de qualquer penhora.”

É desta decisão que a embargante apela, apresentando) as seguintes
conclusões:

1. A decisão de que agora se recorre proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo assentou na interpretação, da ata de conferencia de interessados homologada por sentença e proferida no processo nº 2247/15.6T8PRT-B, que correu os seus termos na Comarca do Porto – Instância Central – 1º secção de Família e Menores – J2.
2. Da referida ata resulta, para que ao presente recurso interessa que, “3. A cabeça de casal, L. M., constitui a favor da aqui interessada, M. D., usufruto vitalício sobre o imóvel relacionado e que ora lhe é adjudicado, cabendo à usufrutuária os direitos e obrigações decorrentes da lei, e sendo que no âmbito das ultimas se inclui o pagamento das prestações devidas a título de condomínio”.
3. Considera a Recorrente que o Meritíssimo Juiz a quo, proferiu uma decisão que violou o caso julgado, pois foi tomada em clara contradição com o que resulta do texto da acta da conferência de interessados, já transitada em julgado.
4. O Meritíssimo Juiz a quo reconhece que as obras que se encontram em causa e que dão origem à divida em execução são obras extraordinárias e que de acordo com a lei seriam da responsabilidade do nu proprietário, a aqui Recorrida.
5. Mas, a fundamentação que deu suporte à decisão do Meritíssimo Juiz a quo de considerar a embargante parte ilegítima na execução assentou numa leitura extensiva do que consta do título constitutivo do usufruto aqui em causa e acabou por determinar a ilegitimidade da Recorrida, com a consideração de que a responsabilidade pelo pagamento das obras em causa caberiam assim à usufrutuária.
6. Pois, se no título constitutivo do usufruto se pode ler “A cabeça de casal, L. M., constitui a favor da aqui interessada, M. D., usufruto vitalício sobre o imóvel relacionado e que ora lhe é adjudicado, cabendo à usufrutuária os direitos e obrigações decorrentes da lei, e sendo que no âmbito das ultimas se inclui o pagamento das prestações devidas a título de condomínio”, a leitura que deve ser feita do mesmo é uma leitura literal, do que as partes quiseram efectivamente estabelecer.
7. Mas o Meritíssimo juiz a quo, vem fazer uma leitura extensiva das responsabilidades que foram assumidas pela usufrutuária, ou seja, interpreta a clausula como se “a usufrutuária, para além das obrigações decorrentes da lei, assumisse igualmente o pagamento das prestações do condomínio sem qualquer exceção, designadamente, sem discriminar as contribuições ou prestações ordinárias das despesas ou prestações extraordinárias.”, acrescentando ainda que “tendo as partes o cuidado de explicitar a responsabilidade da usufrutuária por todas as “prestações devidas ao condomínio”, para além daquelas obrigações que já resultam da lei – cfr. artigos 1468.º a 1475.º, do Código Civil-, temos como indiscutível que essa sua decisão visou incluir todas as prestações ordinárias e extraordinárias reclamadas pelo condomínio.”
8. Mas, tal leitura, por extensiva, constitui uma ofensa do caso julgado, pois as partes apenas quiseram determinar as responsabilidades de cada uma delas remetendo diretamente para a Lei e a final reforçando que as quotas mensais do condomínio ficariam a cargo da usufrutuária, para que duvidas sobre essa matéria concreta não houvessem.
9. Pelo que no título constitutivo do usufruto, não consta que as obras de cariz extraordinária fiquem a cargo da usufrutuária, logo e como refere até na sua própria decisão o Meritíssimo Juiz a quo, da leitura direta da lei resulta que “(…) é da responsabilidade do proprietário da fracção o pagamento de obras que incidam sobre a estrutura do seu imóvel.”.
10. Pelo que deve a presente decisão, de que agora se recorre, ser revogada e substituída por outra, por violação do artº 580º, nº 2 e do artº 619º, nº 1 ambos do CPC, que considere a Recorrida parte legitima na acção executiva, correndo a mesma os legais termos até final.
Não foi apresentada resposta.

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou sejam de conhecimento oficioso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Por outro lado, tendo em conta o valor da causa, que não admite recurso ordinário (artigo 629º nº 1 do Código de Processo Civil) e que o mesmo apenas foi deduzido e pode ser recebido por ter sido invocada a violação do caso julgado (nos termos da alínea a) do nº 2 deste preceito), apenas é possível aqui discutir se a decisão ofende esse instituto, não nos podendo debruçar, no mais, sobre o bem ou mal fundado da decisão. (1)

Face teor das conclusões importa verificar:

-- se a decisão proferida nestes autos ofende o caso julgado formado no processo nº 2247/15.6T8PRT-B que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto- Inst. Central- 1.ª Secção de Família e Menores.

III- Fundamentação de Facto

No saneador recorrido não se fixaram os factos relevantes para a decisão, podendo este tribunal suprir tal nulidade, o que se impõe, sob pena de também esta decisão padecer de tal nulidade, aditando-os, por serem todos de natureza documental:

1 -- A execução de que estes autos são apenso foi deduzida contra a ora executada na qualidade de nua proprietária do imóvel sito na Rua … à Rua do …, correspondente ao … andar … em Lisboa;
2 -- Em ata da conferencia de interessados que teve lugar no processo nº 2247/15.6T8PRT-B, que correu os seus termos na Comarca do Porto – Instância Central – 1ª secção de Família e Menores – J2, que foi homologada por sentença transitada em julgado em 26/01/2017, o acordo ali alcançado, pelo qual o imóvel em causa foi adjudicado à cabeça-de-casal, ora embargante, a qual constituiu a favor de M. D. usufruto vitalício sobre o imóvel, mais se especificando que cabiam à usufrutuária os direitos e obrigações decorrentes da lei e que no âmbito das últimas se inclui o pagamento das prestações devidas a título de condomínio.
3 -- Por ata datada de 06 de julho de 2018 e numerada como ata nº 2, decidiu a administração do condomínio do prédio onde se insere tal fração autónoma submeter à assembleia de condóminos a discussão e deliberação sobre orçamentos para realização de obras nas fachadas do prédio, tendo sido aprovado um orçamento com um valor total para as obras em causa de 38.556,11 €uros (trinta e oito mil quinhentos e cinquenta e seis euros e onze cêntimos).
4 -- Face à necessidade de se reunir tal valor para a obra poder ser adjudicada deliberou também a assembleia de condóminos que esse pagamento seria realizado a título de pagamento extraordinário a partir de julho de 2018 e durante um período de doze meses, correspondendo cada pagamento à quantia de 150 € mensais por fração.
(Inexistem factos não provados, com relevo para a boa decisão da causa.)

IV- Fundamentação de Direito

a) Do caso julgado e força de autoridade de caso julgado

Como decorre dos artigos 576º n.º 2, 577º, alínea i), 578º, 580º, n.º 2 todos do Código de Processo Civil, quer a litispendência, quer o caso julgado, são exceções que pressupõem a repetição de uma causa. Têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Entende-se que se repete a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, como o define o artigo 581º nº 1 do Código de Processo Civil. E também nos termos da citada norma verifica-se que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, sendo pacífico que “Para que haja identidade de sujeitos as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que elas assumam em ambos os processos, podendo ser autores numa ação e réus na outra”. (2)
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. A causa de pedir é constituída pelos factos jurídicos essenciais de que procede a pretensão deduzida, considerando os seus efeitos jurídicos de um ponto de vista prático. (3)
O caso julgado é exceção dilatória de conhecimento oficioso: impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, como impõem os artigos 578.º e 576.º, nº 2, do Código de Processo Civil.
A invocação do caso julgado traduz-se pois, na “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgado por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”, cf Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 307.
A identidade da questão submetida a julgamento encontra-se pela comparação da análise dos fundamentos da decisão transitada com os fundamentos alegados na ação que ainda decorre, apurando-se se aquela decide a questão apresentada como um antecedentes lógico indispensável à decisão desta.
A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique, esclarece ainda o artigo 621º do Código de Processo Civil.
Tem uma função positiva e uma função negativa, como escreveu Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol III, págs. 93 e 94. Pela função positiva visa-se a imposição do decidido. Pela negativa, impede-se que a mesma causa seja novamente apreciada uma segunda vez nos tribunais. (4)
Enquanto numa vertente o fenómeno do caso julgado impede de que volte a suscitar-se no futuro a questão decidida, na outra, trazendo à baila a sua autoridade, impõe a vinculação à solução adotada na decisão transitada. (5)
Há que realçar que, em qualquer caso, é essencial que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos, embora para a vertente positiva exista quem prescinda da verificação cumulativa dos três elementos em que se fixa a coincidência da causa elencada no artigo 581º nº 1 do Código de Processo Civil e encontre esta identidade nos casos em que “o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida…” (6), integrando nesta situação ainda a figura da preclusão.
Isto posto, mostra-se-nos claro que no presente caso não se verificam os pressupostos necessários para que se verifique qualquer violação do caso julgado ou da sua autoridade.
Não se verificam, claramente, nenhum dos três requisitos supra enunciados, que permitam sequer vislumbrar uma repetiçao : enquanto aqui as partes são o condomínio e uma das intervenientes no inventário, nessa partilha não teve qualquer intervenção o aqui exequente. Nenhuma coincidência se verifica.
Aqui discute-se se a nua proprietária está obrigada a pagar, perante o condomínio, as prestações que lhe eram exigidas por esta, ali discutiu-se a partilha de determinados bens: também não existe qualquer coincidência quanto ao pedido.
Por fim, enquanto ali a causa de pedir se situava no direito sucessório, aqui estamos no âmbito das obrigações propter rem, também em nada coincidindo os autos.
A total inexistência de um centro comum nestes três campos (identidade de pessoas, pedido e causa de pedir) logo demonstra a irrelevância de uma ação para a outra: não se decidiu no inventário como deviam ser interpretadas as cláusulas do título constitutivo do usufruto, pelo que a interpretação que delas aqui foi efetuada nunca poderia ir contra o que naqueles autos foi decidido e que se resumiu à criação desse título.
Enfim, é patente que a sentença proferida nestes embargos de executado, mesmo que tivesse efetuado uma errónea interpretação do título constitutivo do usufruto (o que como se viu não se pode aqui apreciar), nunca poderia pôr em causa o caso julgado formado no processo de inventário em que foi proferida a decisão que se limitou a homologar ao acordo de partilhas ali alcançado, sem entrar na apreciação do mesmo, mais a mais quando estão em causa diversas partes.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente apelação, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil)
Guimarães, 2020-03-05

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes


1. Com efeito, pretendendo-se com esta exceção à inadmissibilidade dos recursos de decisões cuja importância económica ou pessoal não tenha tradução suficiente no valor da causa salvaguardar os efeitos de decisões transitadas, não é possível nesses recursos discutir o que vá para além da necessidade de defesa de tais decisões, aproveitando-se essa exceção para, por meio da sua alegação, se poder contornar tal limitação recursiva.
2. como se salientou no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo 3435/16.3T8VIS-A.C1 de 12/12/2017, na senda de pacífica doutrina e jurisprudência (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano).
3. cf acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/30/2019 no processo 4435/18.4T8MAI.S1 e de 09/18/2018, no processo 21852/15.4T8PRT.S1.
4. cf, neste sentido, entre muitos, sem distinção quanto ao código vigente, por se manter o mesmo o quadro normativo, pela manutenção das regras relevantes, com diferente numeração: Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág.320, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/01/2015, no processo 227/12.2TBSAT.C1.S1, do Supremo Tribunal de Justiça de 3/04/2014, no processo nº 5928/04.6TBCSC.L1.S1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/04/2014, no processo n.º 5928/04.6TBCSC.L1.S1., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/30/2017 no processo 1375/06.3TBSTR.E1.S1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/19/2016 no processo 126/12.8TBPTL.G1.S1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/12/2011 no processo nº 129/07.4TBPST.S1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/08/2011 no processo 407/04.4TBCDR.P2.S1.
5. Enfim, “I. A força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte disposi­tiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário da predita parte do julgado. II. A função negativa do caso julgado é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas, implicando a tríplice identidade a que se reporta o art. 581º do CPC. III. A autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a função positiva do caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade, pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.” –cf Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/01/2017 no processo 97/14.6T8VPA.G1. “A intangibilidade (tendencial) do caso julgado é um princípio do nosso ordenamento jurídico com que se pretende evitar, não uma colisão teórica de decisões, mas a contradição de julgados, a existência de decisões, em concreto, incompatíveis” (cf Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (relator Alexandre Reis) no processo nº 101/14.8TBMGL.C1 22-09-2015).
6. (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 354) citados no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-05-2014 no processo 1722/12.9TBBCL.G1.S1