Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
453/18.0T9VVD.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
PROVA INDICIÁRIA
IN DUBIO PRO REO
ARTºS 283
Nº 2 E 308º
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. Nos termos das disposições conjugadas do art. 308º com, entre outros, a do art. 283º/2 do CPP, a pronúncia do arguido no fecho da instrução depende de terem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação àquele de uma pena ou medida de segurança, devendo considerar-se tal suficiência com o sentido de ser necessário que resulte de todos os elementos de prova a valorar na decisão (produzidos no inquérito e na instrução) uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.

II. Apesar de essa “possibilidade razoável” ser ainda compatível com um certo grau de dúvida, uma vez que a lei se basta com indícios suficientes, tudo depende da intensidade desse grau de dúvida, devendo a persistência de dúvida fundada e séria quanto à suficiência dos indícios ser decidida a favor do arguido, porquanto da valoração das provas que subjaz à decisão de pronúncia ou não pronúncia não está arredado o princípio in dubio pro reo, com aplicação em todas as fases do processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. Nos autos supra identificados, a arguida M. F. foi pronunciada pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, no termo da instrução por esta requerida, na sequência da dedução de acusação pela assistente C. F., não acompanhada pelo Ministério Público.

1.2. Inconformada com a referida decisão, a arguida interpôs recurso cuja motivação rematou com as seguintes conclusões (sic):

«1º) Nem no Inquérito, nem na Instrução, se apuraram factos suscetíveis de prova que pudessem constituir indícios de a Recorrente ter praticado o crime de injúrias, objecto da acusação particular e da pronúncia.
2º) A admitir-se que tais factos indiciários foram apurados, jamais os mesmos podem ter-se por certos, seguros, e considerar-se suficientes, deles não resultando uma possibilidade razoável ou uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição de, à recorrente, vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
3º) No quadro circunstancial em presença, nem as regras da experiência, nem a livre apreciação do julgador, poderiam ter conduzido à ilação, lógica, congruente e minimamente segura, no quadro de factos indiciários suficientes e bastantes, de modo a que logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade da recorrente, de onde possa extrair-se com normal probabilidade que esta tenha chamado “ ladra” à recorrida ou que conduzissem à comprovação indiciária e suficiente do “animus injuriandi”.
4º) O tribunal recorrido interpretou e aplicou erradamente o disposto nos artigos 127º. 283º, nrº2 e 308º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, não tendo acolhido interpretação e aplicação daqueles preceitos legais de harmonia com os princípios legais e constitucionais da presunção da inocência da arguida – recorrente e do princípio “ in dubio pro reo”, com os quais não se conformou, e, antes, violou.
5º) A douta decisão instrutória que pronunciou a recorrente, pelo crime de injúrias, violou o disposto dos artigos 124º nº1, 127º, 283º, nsº 1 e 2, 308º nº1, do Código Processo Penal, e bem assim, o disposto do artigo 32º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, designadamente os princípios da presunção da inocência da arguida e o princípio “ in dubio pro reo”, que interpretou e aplicou por forma a não se compaginar, ou conformar, com aquela norma constitucional e princípios garantísticos da arguida-recorrente que nela se contêm, enfermando tal interpretação e aplicação, com o sentido plasmado no douto despacho impugnado, de inconstitucionalidade material.».

1.3. O recurso foi admitido por decisão que apreciou a reclamação deduzida pela arguida para este Tribunal da Relação.

1.4. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, respondeu ao recurso, acompanhando e subscrevendo integralmente os fundamentos do recurso, dizendo, em síntese, que «qualquer juízo actual sobre a validade e suficiência dos indícios recolhidos nos autos, que se resumem às declarações da arguida e marido e da assistente e marido, para além de alguns documentos que ajudam a perceber o contexto em que os factos ocorreram, terá de concluir que, quanto muito, não há motivos que permitam dar prevalência à versão da assistente e, consequentemente, afirmar que a probabilidade de uma condenação em julgamento é maior do que a de uma absolvição.»

1.5. A assistente também respondeu, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela arguida, considerando sem fundamento o apelo ao princípio in dubio pro reo, na medida em que é perfeitamente possível, com os dados e com os elementos constantes dos autos, apurar, pelo menos indiciariamente, que aquela incorreu na prática do crime imputado na acusação particular.

1.6. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer acolhendo a argumentação do Sr. Procurador de 1ª Instância, asseverando que os indícios colhidos nos autos são de tal ordem ténues que não resta qualquer dúvida de que se a arguida fosse submetida a julgamento seria certamente absolvida, devendo ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, revogada a decisão de pronúncia.

1.7. Cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, a assistente apresentou resposta sustentando a pronúncia da arguida e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscita-se neste recurso a questão de aferir se a decisão recorrida fez uma correcta apreciação da prova indiciária recolhida à luz dos pressupostos do ilícito criminal em causa e, consequentemente, concluir pela sua suficiência ou insuficiência para sujeitar a arguida a julgamento.

Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os elementos considerados no seguinte trecho da decisão instrutória:

«(…) Os autos tiveram início com a queixa inicial, na qual a ora assistente dava conta de que no dia 10/5/2018 pelas 16H00 num terreno anexo à casa da queixosa, a arguida, dirigindo-se-lhe disse: “ladra, deves-me 1000 euros”, o que fez com o fito de ofender a honra e consideração da queixosa.
Foi interrogada a arguida a fls. 21 e ss. e disse que não chamou ladra à queixosa, embora lhe tenha dito que lhe devia 1000€ relativos a uma dívida não paga de custas de parte reclamadas pela ora arguida numa outra ação judicial.
A assistente, a fls. 39 e ss., confirma o teor da queixa.

Constam dos autos os seguintes elementos com relevo para a decisão a proferir: Foram inquiridas as testemunhas:

• M. B., marido da queixosa, disse que a sua vizinha M. F. apareceu numa sacada da sua residencial e em tom agressivo, depois de uma troca de palavras entre ambas, disse à mulher: tu és uma ladra, deves-me 1000€.
• J. N., marido da arguida, a fls. 123 e disse que se apercebeu de um barulho no exterior e veio fora da casa e ouviu a assistente a dizer à mulher: “és uma ladra que me roubaste o terreno”, ao que a arguida respondeu “eu não sou ladra, tu é que me deves 1000€”.

A fls. 105 junta-se um requerimento de execução de decisão judicial condenatória que deu entrada judicial em 24/9/2018, e onde a ora arguida reclama o pagamento de quantia de €1100, 87 devida pela ora assistente a título de custas de parte nos autos 1097/13.9TBVVD.

Ora, procedendo à análise conjugada da prova assim elencada, resulta evidente que se opõem nos autos as versões de arguida e assistente. A primeira nega a prática dos factos. Já a segunda afirma que foi insultada pela arguida nos termos constantes da acusação particular.
Resulta também evidente que a versão dos factos é trazida aos autos pela assistente (por via da queixa e das suas declarações e da confirmação por parte do marido M. B.) mas não pode deixar de considerar-se que, a merecerem credibilidade as declarações da assistente, o cenário que se configura como mais provável é o da condenação e não o da absolvição da arguida em julgamento.
Note-se que a circunstância de a versão da assistente e marido ser contrariada pela da arguida e marido desta, não permite, por si só, desvalorizar a solidez indiciária dos respectivos depoimentos, não apresentando incongruências nos seus termos, nem se revelando contrário às regras da experiência, porquanto assistente e arguida viveram situação de litígio judicial a terminar em clima de crispação e até execução judicial por custas, pelo que existe a séria probabilidade de, merecendo a credibilidade do tribunal, em sede de audiência de julgamento e no pleno do princípio da imediação, vir a sustentar, de forma suficientemente sólida, uma futura condenação pela prática do crime de injúria.
Agora, em sede de instrução pretende a arguida fazer uso enviesado e a todos os títulos intolerável do disposto no nº 2 do artigo 180º do Código Penal. Pretendendo demonstrar que a assistente lhe devia de facto 1000€. Mas não é esse o verdadeiro conteúdo ofensivo, mas sim a palavra “ladra” que dirigiu à assistente.

Mesmo assim, vejamos.

Cotejado tal normativo, resulta não punível a conduta quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.
Os requisitos referidos são cumulativos, como bem se deduz do uso da conjunção e a interligá-las.
Ora, não se vislumbram, desde logo, que interesses legítimos pretende a arguida realizar com tal imputação à assistente, já que sempre poderia recorrer ao tribunal para ver paga a dívida, o que veio a fazer por requerimento de setembro de 2018.
O que não lhe é admitido é que chame ladra à assistente, dado que, com tal conduta, não realiza qualquer interesse legítimo, antes tem intuito claramente ofensivo da honra da pessoa visada. Ou seja, não carecia de tal conduta, para solucionar o litígio com a assistente.
Falhando desde logo este requisito da causa de justificação, não se vislumbra ser de aplicar, in casu, a causa de justificação prevista no art. 180º nº 2 do CP.
Conclui-se pois que a arguida incorre, indiciariamente, na prática do crime imputado na acusação particular embora a assistente tenha acrescentado facto novo para demonstrar que houve propalação da injúria, o que não constava da queixa inicial, nem se indiciou ao longo do inquérito. Desde logo porque também a assistente não o referiu a fls. 39.

Assim, inexistem indícios de que tenha sido cometida injúria com publicidade (nem sequer por ter ocorrido junto a um caminho público, o que também não se indicia).

Portanto não se indiciam os seguintes factos da acusação particular:

• Os factos ocorreram junto a um caminho público e a arguida agiu de forma a que, por via disso, pudesse ser ouvida e assim facilitada a divulgação da frase proferida.

Razão pela qual tem de considerar-se que existem, nesta fase, indícios suficientes nos autos, da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena à arguida pelos factos constantes da acusação particular, susceptíveis de integrar a prática do crime de injúria, impondo-se, por isso, a prolação de despacho de pronúncia pela forma simples.

Nesta conformidade,

• Não pronuncio M. F. pela prática de um crime de injúria com publicidade, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1 e 183º nº 1 al. a) do Código Penal;
• Pronuncio M. F. a fim ser julgada, em processo comum, perante Tribunal Singular:

Porquanto:

1. No dia 10 de Maio de 2018, cerca das 16H00, no decurso de uma discussão entre a assistente e a arguida no lugar da …, da freguesia de …, do concelho de Vila Verde, esta, dirigindo-se àquela, em voz alta, chamou-lhe "ladra, deves-me mil euros".
2. Assistente é e sempre foi séria, de porte irrepreensível e como tal reconhecida por todas as pessoas da freguesia onde reside e sempre residiu.
3. Aquela imputação é gravemente injuriosa e lesiva da consideração, reputação, dignidade e bom nome e honra da requerente
4. A arguida, ao agir da forma como agiu, quis ofender a honra e a dignidade da assistente não se coibindo de o fazer, bem sabendo ser ilícita essa conduta e que o fazia com o propósito de lesar o direito ao bom nome da assistente e de atingir interesses e um bem jurídico penalmente protegidos.
5. Agiu de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei, incorrendo na prática em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1 do Código Penal.»
*
III - O Direito.

1. Os indícios recolhidos nos autos.

A resolução da questão enunciada, passará, necessariamente, por determinar se os indícios colhidos nos autos são, ou não, suficientes para suportar a materialidade inserta na acusação particular deduzida pela assistente e acolhida em parte no despacho de pronúncia e se a mesma integra, ou não, os elementos típicos do ilícito penal por cuja verificação aí se concluiu, por forma a sustentar a possibilidade razoável de condenação futura da arguida. No contexto dessa aferição, impor-se-á uma breve alusão ao princípio in dubio pro reo.

Vejamos então.

Preceitua o art. 286º, n.º 1, do CPP, ao cuidar da finalidade e âmbito da instrução, que esta fase do processo se destina, exclusivamente, à comprovação judicial das decisões de acusação ou de arquivamento formuladas pelo MP, no fim do inquérito (1). Trata-se de uma fase jurisdicional (facultativa) em que o juiz de instrução investiga autonomamente o caso que lhe é submetido, praticando os actos necessários a fundear a convicção que lhe permita proferir a decisão final de submeter ou não a causa a julgamento, ou seja, de pronunciar ou não pronunciar o arguido (2).
A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente e, quando o for pelo arguido, como aqui sucede, visa a obtenção da comprovação judicial negativa da decisão de acusar, em ordem, ao invés, a lograr a não submissão da causa a julgamento (3) e não tem de estar sujeita a qualquer formalidade especial, porquanto, havendo já uma acusação deduzida no processo, basta que o juiz de instrução criminal perceba as razões e a pretensão do arguido. Para tanto, finda a fase da instrução, terá de ser possível realizar um juízo de controlo negativo no que concerne à verificação dos pressupostos necessários à submissão da causa a julgamento.
Nos termos do art. 308º, n.º 1 do CPP, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
E o n.º 2 deste dispositivo remete, entre outros, para o art. 283º, n.º 2 do mesmo Código, o qual dispõe «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Quanto ao que se deva considerar como suficiência dos indícios, perfilhamos o entendimento que vem sendo, em geral, apontado pela jurisprudência e pela doutrina no sentido de ser, para tanto, necessário que resulte de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução, a valorar na decisão instrutória, uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, como se extrai imediatamente da expressão “razoável” usada na lei.

Nessa linha de orientação, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2011 (4): «a suficiência dos indícios (…) pressupõe a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade: Indícios suficientes são assim, os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que (o arguido) virá a ser condenado. Eles constituem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado».

O Prof. Figueiredo Dias, citado por aquele aresto, pronunciou-se nos seguintes termos: «os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição» (5).

E o Sr. Conselheiro Vinício Ribeiro (Ex-Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal), ponderou (6): «(…) quem acusa (ou quem pronuncia) fá-lo por que está convencido, pela sua análise do manancial probatório constante dos autos, que o arguido muito provavelmente irá ser julgado e condenado. A certeza absoluta nunca existe pois há imponderáveis que podem surgir e fazer com que o processo nem sequer chegue a julgamento. E mesmo que chegue a julgamento, tal não significa, pese embora a forte, muito forte, ou fortíssima indiciação probatória, que o arguido seja condenado».

Já o Professor Castanheira Neves (7) vai mais longe, defendendo que «na suficiência de indícios está contida a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final” ou “um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção)» (8).
É certo que, como já lembrou o Desembargador Cruz Bucho (9), não é pedido ao juiz de instrução a convicção do crime para pronunciar o arguido, sendo a “possibilidade razoável” ainda compatível com um certo grau de dúvida, uma vez que a lei se basta com indícios suficientes.

Entendemos, porém, que tudo depende da intensidade desse grau de dúvida. Na verdade, acompanhamos o afirmado no acórdão da Relação de Coimbra de 9-03-2016, proferido no p. 436/14.0GBFND.C1 (sendo nosso o realce): «A existência de dúvida fundada e séria quanto à suficiência dos indícios deve ser decidida a favor do arguido, porquanto o princípio in dubio pro reo tem aplicação em todas as fases do processo» (10).
Em apoio desse entendimento, pode também convocar-se o ajuizado pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 439/02, de 23-10-2002 (DR II de 29-11-2002), sobre a conformidade constitucional dos preceitos em questão, ao considerar que «a interpretação normativa dos arts. 286.º, n.º1, 298.º e 308.º, n.º1, todos do Código de Processo Penal, que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32.º, n.º 2, da Constituição».
Em suma, da valoração das provas que subjaz à decisão de pronúncia ou não pronúncia não está arredado o princípio in dubio pro reo.
Após esta incursão pelas normas que regem a fase da instrução, quanto ao que deve ser entendido por indícios suficientes e com o enquadramento que daí colhemos, com a inerente actuação do princípio in dubio pro reo, podemos já asseverar, sem tibiezas, que não podemos aderir à fundamentação da decisão impugnada, pois entendemos que os elementos juntos aos autos apontam, claramente, para o seu desacerto.
Assim, atendo-nos, apenas, ao que se nos afigura ser o núcleo central da questão de saber se foram recolhidos indícios suficientes da matéria de facto controvertida, afinal, o pressuposto fundamental da prolação do despacho de pronúncia, sintetizamos a nossa pronúncia sobre o assunto com umas sinópticas ponderações sobre os elementos obtidos.
Estando em causa, alegadamente, ter a arguida endereçado à assistente a expressão “ladra”, na sequência de um litígio entre ambas relacionado com questões de propriedade sobre terrenos, não resultam da prova produzida em inquérito (11) mais do que meras dúvidas quanto à possibilidade de essa putativa injúria se ter verificado nas circunstâncias de tempo e espaço descritas na acusação particular e no despacho de pronúncia.
Como se reconhece na decisão recorrida, sobre tal matéria, foram apresentadas duas versões inconciliáveis, unicamente sustentadas em declarações das pessoas directamente envolvidas no conflito e respectivos cônjuges, não corroboradas por quaisquer outros contributos, ou seja, sem outras provas ou elementos que se conjugassem entre si e/ou com a experiência comum para, indiciariamente, afirmar a prevalência de uma delas ou para erigir um critério de probabilidade lógica da sua preponderância, de modo a superar a dúvida razoável sobre a indiciação de tais factos.

Por isso, não sufragamos a conclusão do Tribunal a quo de que «a circunstância de a versão da assistente, e marido ser contrariada pela da arguida e marido desta, não permite, por si só, desvalorizar a solidez indiciária dos respectivos depoimentos, não apresentando incongruências nos seus termos, nem se revelando contrário às regras da experiência, porquanto assistente e arguida viveram situação de litígio judicial a terminar em clima de crispação e até execução judicial por custas, pelo que existe a séria probabilidade de, merecendo a credibilidade do tribunal, em sede de audiência de julgamento e no pleno do princípio da imediação, vir a sustentar, de forma suficientemente sólida, uma futura condenação pela prática do crime de injúria.».

Como, pertinentemente, contrapôs o Ministério Público em primeira instância, «num contexto em que uma das partes – a ora assistente – foi vencida em acção de preferência e condenada a abrir mão da coisa em favor da preferente que havia sido preterida – a ora arguida – é da natureza humana que seja a parte derrotada a ficar com sentimentos amargos e a nutrir uma certa acrimónia em relação à parte vencedora. Ora, se a arguida poderia ter, em tese, bom motivo para chamar ladra à assistente – por causa das custas de parte em dívida, melhor motivo tinha ainda a assistente para chamar ladra à arguida: é que, no caso do dinheiro, a assistente ainda não pagara o que devia à arguida, mas não se pode considerar que a tivesse desapossado do dinheiro; já no caso do terreno, a arguida, através da longa manus da Justiça, desapossou a assistente do terreno. Daí que, para nós, seja mais plausível que tenha sido a assistente quem chamou ladra à arguida do que o contrário.».

Realmente, se a prova produzida convergiu no sentido de que efectivamente existiu uma troca de palavras entre a arguida e a assistente decorrente da referida acção judicial, como se extrai dos depoimentos de ambas e dos respectivos maridos, e se é incontornável que a arguida reconheceu ter dito à assistente que esta ainda não lhe havia pago a quantia dos € 1000 referente a custas de parte, todavia, não há indícios seguros de que, no apontado contexto, a arguida também tenha chamado ladra à assistente.

Contrariamente ao afirmado pela Exma. Sra. Juíza, não se vê motivo para reconhecer predominância à versão da assistente. Aliás, sem se descurar que a assistente já se encontra acusada com base em indícios de que foi ela quem proferiu a expressão em causa, o certo é que, tendo em conta o ganho que a arguida e seu marido obtiveram na acção que intentaram contra a assistente, as regras da experiência comum até conferem, em termos relativos, uma maior solidez aos depoimentos daqueles.

Em conclusão, procede a pretensão da recorrente, porquanto, ao invés do que se afirmou na decisão censurada, não se encontram indiciariamente comprovados, com suficiência bastante, os elementos objectivos típicos em que se realiza o crime de que a arguida se encontra particularmente acusada e pronunciada, não se verificando indiciariamente de que tenha actuado no interesse próprio reclamado pela norma a que alude a decisão recorrida (12).
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Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se totalmente procedente o recurso, decide-se revogar a decisão recorrida e, por consequência, despronunciar a recorrente pelos factos e pelo crime que aí lhe era imputado.

Sem tributação.
Guimarães, 9/03/2020

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 Cfr. José Souto de Moura, “Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal”, Almedina, 1989, p. 125.
2 Cfr. art. 308º, nº 1, do CPP.
3 Cfr. arts. 286º, nº 1 e 287º, nº 1, al. b) e 2, ambos do C.P.Penal.
4 P. 22/09.6YGLSB.S2 - Santos Cabral). No mesmo Acórdão também se expendeu: «Estamos em crer que foi propósito deliberado e firme do legislador o de fornecer ao intérprete um instrumento adequado a ultrapassar as derivas jurisprudenciais e doutrinárias e, assim, ao consagrar no artigo 283º nº2 do Código de Processo Penal que se consideram indícios suficientes sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de aplicação de uma pena ou medida de segurança consagrou o ensinamento de Figueiredo Dias no sentido de que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição».
5 In “Direito Processual Penal”, I, 1984, p. 133.
6 In “CPP Notas e Comentários”, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 837.
7 In “Sumários de Processo Criminal”, lições policopiadas, 1968, p.38-39 .
8 Jorge Noronha e Silveira (in “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”) também refere que «A expressão indícios suficientes exige uma possibilidade particularmente qualificada de futura condenação, pressupondo a formação de uma verdadeira convicção da probabilidade dessa condenação».
9 Na comunicação «NOTAS SOBRE O PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO REO”», apresentada em 6-05-1998 no CEJ.
10 No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos da Relação de Évora de 16-10-2012, proc. 76/08.2.MAPTM.E1 e da Relação do Porto de 12-02-2014, proc. 253/12.1GAVLC.P1
11 Na fase de instrução não foi produzido qualquer meio de prova suplementar.
12 Art. 180º, n.º 2 do C. Penal.