Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
53/16.0PTBGC.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: HOMICÍDIO NEGLIGENTE
CONDUTA PEÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
REENVIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – No caso particular dos acidentes de viação é essencial determinar o processo causal da verificação do sinistro: a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção.

II - Para se concluir que o arguido omitiu o dever de cuidado na circulação automóvel, e que essa omissão foi a causa adequada do resultado verificado, importa saber se o arguido tinha condições de prever a presença do peão na faixa de rodagem e, em caso afirmativo, rodear-se dos cuidados necessários para evitar o embate na vítima, designadamente, travando no espaço livre e visível à sua frente ou desviando a trajectória do veículo que tripulava.

III- Nenhuma alusão tendo sido feita na decisão recorrida, em termos de fundamentação da matéria de facto, acerca da travessia da faixa de rodagem por parte da malograda vítima, designadamente face ao dever que sobre ela impendia, decorrente do Artº 101º do Código da Estrada, ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto no Artº 410º, nº 2, al. a), do C.P.Penal, devendo decretar-se o reenvio dos autos para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, de harmonia com o estatuído nos Artºs. 426º, nº 1, e 426-A, do C.P.Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Singular nº 53/16.0PTBGC, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo Local Criminal de Bragança, foi submetido a julgamento o arguido:

R. J., casado, filho de … e de …, nascido na freguesia de …, concelho de …, a .. de … de 1973, de nacionalidade portuguesa, residente na Avenida …, Bragança.

1.1. Em 31/10/2018 foi proferida sentença, depositada no mesmo dia, em cujo dispositivo consta (transcrição 1):

“Pelo exposto, e sem outras considerações:

I. Condeno o Arguido R. J., pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º nº 1, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, o que perfaz o total de € 1.080,00 (Mil e oitenta euros).
II. Condeno o Arguido R. J., na sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 5 meses, nos termos do artigo 24.º n.º 1, 145.º, n. 1, alínea e) e 147.º, do Código da Estrada, e 20.º, do RGCO.
III. Absolvo o Arguido do remanescente.
(…).”.
*
2. Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido interpor o presente recurso, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1- A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e dada como provada na douta sentença, não permite concluir que o arguido conduzia de forma desatenta, que violou as regras de circulação, que podia prever o resultado e ter evitado o acidente, condenando-o.
2- Importa corrigir a redacção da sentença em 1 dos factos provados, para modelo “200” e em 23 retirar traumatismo crânio – encefálico direito.
3- A perna esquerda da vítima não apresenta lesões, enquanto que a perna direita apresenta hematoma externo ao nível da coxa, o que é compatível com as declarações da testemunha Conceição, deslocação em sentido contrário da viatura e desviar-se do poste.
4- As demais testemunhas oculares referem a existência do poste, que a vítima saiu / desceu para a estrada e o arguido teve tempo de parar.
5- O embate deu-se a cerca de 1,77 m do passeio e o veículo circulava a cerca de 40 Km / h.
6- Sendo certo que a vítima demoraria cerca de 2 segundos desde o passeio ao local de embate, o condutor estaria a 22,2 m do mesmo ponto.
7- O que significa que antes de 22,2 m o arguido não podia ver a vítima e parar ou desviar-se, evitando o acidente.
8- Para concluir como a douta sentença, pela sua culpabilidade, era exigível dar-se como provado que a vítima estava parada no ponto de embate.
9- Não sendo assim, como não foi, temos erro de julgamento e de apreciação da prova.
10- Acresce que a vítima violou o código da estrada, deslocando-se fora da passadeira e após esta, atenta a proveniência do veículo.
11- Um douto Acórdão da Relação do Porto, datado de 16-05-2018, condenou um peão, que fora de passadeira, decidiu atravessar uma via e provocou a morte ao condutor de um ciclomotor.
12- Deve pois o arguido ser absolvido do crime e da sanção acessória.

No entendimento do recorrente foram violadas as disposições dos artigos 124 e 127 do C. P. Penal; os artigos 15 e 137 nº 1 do Código Penal; os artigos 24 nº 1, 145 nº 1.e-) e 147 do C. Estrada, além de outros que o Venerando Tribunal entenda suprir.

NESTES TERMOS, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Bragança e em consequência
Absolver-se o recorrente da prática do crime e da sanção acessória.
Caso esse não seja o entendimento deve reduzir-se a sanção acessória de inibição de conduzir para o período de 1 mês.

Assim se fazendo Justiça.”
*
3. Na 1ª instância a Exma. Procuradora-Ajunta respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, rematando a sua peça processual com as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O recorrente não impugna verdadeiramente a matéria de facto dada como provada, nem aduz nenhum argumento válido que permita concluir que o Tribunal «a quo» apreciou a prova incorrectamente.
2. Não ocorreu qualquer erro de julgamento, sendo que tal não se verifica se, simplesmente, o Tribunal não acolheu a versão dos factos apresentada pelo arguido/recorrente.
3. O recorrente não justifica por que razão o Tribunal «a quo» não devia ter dado como provado que a falecida sofreu, além do mais, um traumatismo crânio-encefálico, tanto mais que tal resulta de prova pericial e do registo clínico da vítima, e cujo teor não foi posto em causa pelo arguido.
4. Da globalidade da prova produzida, mormente da prova testemunhal e da inspecção judiciária, resultou provado que o arguido colheu a falecida quando a mesma já se encontrava a atravessar a faixa da direita, o que fez por circular no veículo distraído e a ocupar parcialmente a faixa da esquerda.
5. Tal distracção surgiu demonstrada, além da primeira justificação dada pelo arguido ao agente de autoridade (dizendo que se distraiu com o filho que seguia atrás), do facto de inexistirem marcas de travagem no local e do próprio local onde a vítima ficou caída.
6. Não obstante a vítima não se encontrar a atravessar a via na passadeira mas a uns escassos metros da mesma, não afasta a responsabilidade criminal do arguido que, colhendo-a violentamente, causou-lhe lesões que determinaram a sua morte.
7. Atenta a condenação do arguido no crime de homicídio negligente, forçosa era também a sua condenação na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor, p. e p. pelo art. 69.º, n.º 1, al. a) do CP.
8. Considerando a moldura do citado artigo (inibição de 3 meses a 3 anos), carece de fundamento legal a redução de tal pena para o período de 1 mês.
9. Não foi violado o disposto nos arts. 124º e 127º do CPP, 15º e 137º do CP e 24º, 145º, nº 1, al. e) e 147º do CE.
10. A decisão tomada deve ser mantida nos seus exactos termos.”.
*
4. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e fundamentado parecer, o qual remata do seguinte modo (transcrição):

“Em conclusão: salvo melhor e mais avisada opinião, o recurso interposto pelo arguido deverá ser julgado procedente, não pelo que oferece em argumentação, mas pela verificação de uma precisa e relevante circunstância, a existência do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão – art.º 410, nº 2, al. a) do CPPenal, porquanto o tribunal a quo, podendo e devendo caracterizar a conduta do peão ofendido na dinâmica do acidente que o vitimou, visando identificar a sua génese, não o fez, até porque a decisão recorrida anuncia que o mesmo iniciou uma travessia da faixa de rodagem a pouco mais de 5 metros de uma passadeira para peões, em colisão com o disposto no art.º 101 do Código da Estrada, devendo, por isso, ordenar-se o reenvio do processo sobre todo o seu objecto, nos termos previsto no artº 426, nº 1 do CPPenal.”.
*
4.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal, veio o arguido apresentar a sua resposta, sustentando, em síntese, não pretender contraditar o douto parecer do Ministério Público, mas esclarecer que também ele próprio faz alusão ao vício em causa, de insuficiência para a decisão da matéria de facto nos pontos 10 e 11 das suas conclusões, sendo certo que, o que afirma nos pontos 6 a 9 das mesmas conclusões (independentemente de a vítima ir atravessar ou a desviar-se do poste) é que, descontado o tempo de chegar ao local do embate, cerca de dois segundos, atenta a baixa velocidade a que circulava, não a podia ver em tempo útil, porque lá não estava, sendo certo que, se lá estivesse parada (ele, arguido) podia vê-la a 50 m, 100 m ou mesmo mais.
Termina a sua resposta aduzindo que, face à simplicidade do que está demonstrado, deve o recorrente ser absolvido, sem necessidade de repetição do julgamento.
*
5. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Como se sabe, é hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (2) (3).

Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, este coloca a este Tribunal as seguintes questões essenciais que importa apreciar e decidir:

- Erro de julgamento quanto aos factos dados como provados e identificados nos pontos 25 e 26;
- Necessidade de proceder a precisas correcções na matéria de facto provada (no ponto 1, quanto ao modelo do veículo interveniente no acidente, e no ponto 23 relativamente a uma errada referência a uma consequência traumática); e
- Erro notório na apreciação da prova (pois, para se concluir pela sua culpabilidade, era exigível dar-se como provado que a vítima estava parada no ponto de embate, o que não sucedeu).
*
2. Para uma melhor compreensão das questões colocadas e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, por ora, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e não provados, e bem assim a fundamentação acerca de tal factualidade.

2.1. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

“1. No dia 15 de Novembro de 2016, cerca das 18:00 horas, na Avenida …, em Bragança, o Arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca mercedes, modelo 190, com a matrícula XX no sentido Sul-Norte, parcialmente, pela via de trânsito da esquerda, atento o seu sentido de marcha, levando como passageiro o seu filho, que tinha nessa data, dois anos de idade e que tinha recolhido no Infantário …, sita no …, em Bragança, deslocando-se para a sua residência;
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, M. T. atravessou apeada a Rua da …, no sentido sul-norte, acedeu o passeio da Avenida … e iniciou o atravessamento da Avenida das …, no sentido Este-Oeste;
3. Fê-lo a cerca de 5,40 metros a norte da passadeira para atravessamento de peões existente no local;
4. A Avenida das ..., no local, é constituída por duas faixas de rodagem, separadas por separador central;
5. A faixa de rodagem em que circulava o Arguido e atento o seu sentido de marcha, naquele local, tem 6,75 metros de largura, comporta duas vias de trânsito, no mesmo sentido, devidamente demarcadas no pavimento e divididas por linha descontínua (marca longitudinal M2 do Regulamento de Sinalização de Trânsito), tendo a do lado direito a largura de 3,55 metros e a do lado esquerdo a largura de 3,20 metros, ladeadas no lado direito por passeio em betão com a largura de 1,10 metros, seguido de edificações e no lado esquerdo por separador central com 4,80 metros de largura;
6. O pavimento era de aglomerado asfáltico, flexível, em regular estado de conservação, sem anomalias e encontrava-se seco;
7. O local é de boa visibilidade em toda a sua largura e extensão;
8. Atenta a hora dos factos, fim de tarde, já estava a anoitecer, mantendo o local boa visibilidade pela iluminação artificial existente no local;
9. A velocidade máxima permitida no local era de 50 km/h, por se encontrar dentro de localidade;
10. O Arguido circulava a velocidade não concretamente apurada, mas inferior a 50 Km/h;
11. Não existiam quaisquer obstáculos na via e o trânsito no local tem pouca intensidade;
12. O Arguido conhecia as características da via, sendo o percurso em causa usado habitualmente pelo mesmo;
13. No momento em que o Arguido circulava na recta referida, fê-lo, parcialmente, pela via esquerda de trânsito, sem que houvesse razões para tal;
14. O Arguido não viu o peão a atravessar parte da via de trânsito da direita, atento o seu sentido de marcha, e a situar-se na trajectória do veículo;
15. O Arguido não conseguiu fazer travar no seu espaço livre o veículo, não evitando o embate;
16. O Arguido não fez qualquer travagem ou manobra evasiva;
17. No momento do acidente não havia outros veículos a circular na faixa de rodagem;
18. Assim, embateu com a parte frontal direita, junto ao farol frontal direito, no corpo de M. T., quando se encontrava o peão a cerca de meio da via da direita e o Arguido parcialmente na via da direita e da esquerda, atento o sentido de trânsito do veículo do Arguido;
19. Atingindo o peão na zona da bacia, e fazendo com que o seu corpo embatesse ainda na parte de cima do capot e fosse cair junto do passeio do lado direito da via de trânsito, onde ficou caído;
20. Após embater no peão, o Arguido imobilizou a viatura alguns metros mais à frente, tendo, posteriormente, estacionado a mesma cerca de 30 metros à frente;
21. O veículo conduzido pelo Arguido, na sequência do embate, ficou com o farol frontal direito partido e o capot do lado direito com a chapa amolgada;
22. No local do acidente havia vestígios de vidros partidos;
23. M. T. foi conduzida de imediato à Unidade Local de Saúde do Nordeste – Unidade Hospitalar de Bragança, onde foi admitida e observada com trauma da bacia e traumatismo crânio-encefálico direito e onde veio a falecer, ainda nesse dia, pelas 23:56m;
24. Em consequência do embate, sobrevieram a M. T. diversas lesões pélvicas, nomeadamente fractura cominutiva da bacia com hemorragia massiva que condicionou coagulação intravascular disseminada e que foram causa directa e necessária da sua morte;
25. O Arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, conhecia as características da via, sabia que devia conduzir pela via mais à direita da sua faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha, que deveria abster-se da prática de quaisquer actos susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança e ainda que deveria regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, possa em condições de segurança executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, e que, se o não fizesse, estava a violar as regras de circulação rodoviária;
26. Não obstante isso, porque conduzia desatento e de forma descuidada, não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, causando a morte a M. T., bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

Mais se apurou que,

27. O Arguido exerce a função de operador de máquinas, auferindo o ordenado mínimo;
28. É casado, auferindo a sua esposa o ordenado mínimo;
29. Tem duas filhas, de 3 e 9 anos;
30. Vivem em casa dos pais do Arguido;
31. São proprietários de duas viaturas;
32. O Arguido tem o 12.º ano de escolaridade;
33. O Arguido é pessoa calma e tido como condutor responsável;
34. Não tem antecedentes criminais;
35. Nada consta no registo individual do Arguido (RIC);”.
*
2.2. Considerou não provados os seguintes factos (transcrição):

“a) Nas circunstâncias de tempo referidas em 1., o Arguido ouviu o seu filho a chamá-lo e olhou para trás pelo retrovisor, distraindo-se da condução e da estrada;
b) Sem que o peão pudesse fazer algo para evitar tal embate;
c) Não obstante o referido embate e barulho daí decorrente, o Arguido, nem então travou ou imobilizou o seu veículo, tendo prosseguido em linha recta e o estacionado a 30 metros do local do embate, do seu lado direito;
d) Só então se terá apercebido que teria atropelado o peão;”.
*
2.3. E motivou essa decisão de facto nos seguintes moldes (transcrição):

“A matéria de facto acima mencionada resultou da análise crítica e conjugada dos vários meios probatórios produzidos em sede de audiência final, apreciados de acordo com as regras de experiência comum e de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova.

Cumpre concretizar como se formou a convicção do Tribunal.

Como ponto prévio, refira-se que as declarações do Arguido, relativas à descrição do contexto espácio-temporal, confirmaram, praticamente na íntegra, o que vem descrito na acusação.

Com efeito, o Arguido descreveu a data/hora da ocorrência, o local (Av. Das ...) da mesma, as características da via, o veículo em que seguia e a direcção do mesmo.

O Arguido confirmou, ainda, o embate com o peão.

Neste sentido as declarações do Arguido foram concordantes com a restante prova testemunhal, designadamente os elementos da Policia de Segurança Pública que prestaram declarações, J. P. (Agente responsável pela elaboração do relatório técnico de acidente de viação de fls. 34 a 71) e J. F. (Agente que se deslocou ao local na sequência do acidente).

Por outro lado, o Tribunal observou o relatório fotográfico de fls. 65-66, e esteve presente no local para efectuar a inspecção judicial.

Desse modo, a factualidade de 1. a 11. é consensual entre os vários intervenientes (com excepção do ponto onde se deu o embate e da faixa pela qual circulava o Arguido).

Relativamente ao concreto ponto da via onde o veículo/Arguido circulava e onde ocorreu o embate, existem duas versões contraditórias.

O Arguido defende que seguia na via mais à direita (atento o seu sentido) e que o embate se deu nessa via, junto ao passeio, tendo o peão caído no solo em local muito próximo do embate.

Mais refere o Arguido que ia atento à condução e que o peão surgiu inesperadamente, por detrás de um poste, e não conseguiu evitar o embate, não tendo travado nem desviado atento que foi muito repentino. Afirma ter parado o carro mais à frente para não embaraçar o trânsito e fazê-lo de forma segura, atento que tinha criança no carro.

A testemunha J. F., agente da PSP que se dirigiu ao local, refere que nesse momento, e ao registar as declarações dos intervenientes para efeitos de elaboração da participação e respectivo croqui, tomou declarações ao Arguido e observou que existiam vestígios de vidros da óptica do veículo do Arguido no ponto de conflito assinalado no croqui de fls. 15 (não existindo noutros locais) e que o peão se encontrava caído no ponto assinalado no mesmo documento.

Confirma que o Arguido não tinha o carro no local de embate, tendo estacionado 20 a 30 metros mais à frente.

Sobre a dinâmica do acidente prestaram, ainda, depoimento Maria, M. P. e M. F., professoras, e que se encontravam num café em frente ao local onde ocorreu o acidente.

Todas estas testemunhas relataram que viram o embate e que este ocorreu na faixa direita (atento o sentido de circulação do Arguido), sendo que o peão vinha no passeio e atravessou para a estrada sendo embatida e tendo caído ao solo, mas sem projecção.

Uma vez que o depoimento de J. F. e destas três testemunhas não era inteiramente coincidente, o tribunal realizou inspecção ao local, tendo estes intervenientes assinalado no local a zona que, na sua perspectiva ocorreu o embate, mais tendo o Agente J. F. assinalado o local onde relata ter visto vestígios da óptica do carro do Arguido.

Posto isto.

Face à prova produzida, e conjugando a mesma entre si, o Tribunal ficou convencido que o embate entre o peão e o veículo se dá a cerca de meio da faixa da direita, no sentido de marcha do Arguido.

Tal resulta, directamente, do depoimento prestado pelas testemunhas Maria, M. P. e M. F., as quais afirmaram, de forma que não mereceu reservas, que viram o embate entre o veículo e o peão, tendo acorrido ao local em momento imediato.

Não podemos descurar que estas testemunhas se encontravam no café, do outro lado da estrada, separadas do local dos acontecimentos por duas faixas de rodagem (com cerca de 6 metros de largura) e pelo separador central (com cerca de 4,80 metros de largura), tendo fixado na sua memória o embate entre o peão e o veículo, mas naturalmente não se recordando com tanta precisão a zona da estrada onde tal terá ocorrido.

De qualquer modo, em sede de inspecção ao local, assinalaram o local do embate, ainda que com ligeiras diferenças, no mesmo local, a cerca de metade da faixa direita, paralelamente ao poste existente no local.

Tal descrição é ainda compatível com o depoimento, uniforme, prestado por estas testemunhas segundo o qual o peão não foi projectado (pelo ar, entenda-se), embora tenha caído para o pavimento, empurrado no sentido da marcha do veículo (como é perfeitamente natural após um embate com um veículo, mesmo que a pouca velocidade).

E temos por certo que o peão ficou caído no chão, junto ao passeio, logo após o poste no sentido de marcha do Arguido (como é visível pelas fotografias de fls. 70-71).

Não se olvida que a testemunha J. F., Agente da PSP, que chegou ao local do sinistro momentos após o mesmo ter ocorrido, veio relatar ao tribunal que na sua opinião o ponto de embate ocorreu junto à linha separadora no meio das duas faixas existente no sentido de circulação do Arguido. Para o afirmar a testemunha socorre-se do croqui de fls. 15 por si elaborado com base nas declarações prestadas pelo Arguido e com base nas observações que efectuou.

Neste conspecto merece referência os vestígios de vidros a que fez referência no croqui e que tal testemunha voltou a reafirmar em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como na inspecção judicial (cfr. foto 1).

No entanto, não existem quaisquer registos fotográficos de tais vestígios de vidros, ou do local onde os mesmos se encontravam, sendo certo que existem registos fotográficos do local onde o peão estava caído (cfr. fls. 71 – fotografia 17 e 18).

Nas fotografias 13 e 14 (de fls. 69) são visíveis pedaços de vidro, embora em local diferente do indicado pelo Agente J. F., mas não se sabe se são os mesmos pela testemunha referidos.

Eventualmente até serão os mesmos, mas com o decurso do tempo já se teriam deslocado de sitio, o mesmo se podendo afirmar dos vestígios vistos pela testemunha após o embate, sobretudo tendo em conta que após o sinistro várias pessoas se deslocaram para junto da vitima, inclusivamente ambulância e VMER, e que estas pessoas ali chegaram antes da testemunha.

Desse modo, e em conclusão, o Tribunal ficou convencido que o embate ocorreu a meio da faixa direita, pelo que tendo o mesmo sido com a parte frontal direita do veiculo do Arguido (cfr. fotografias de fls. 67 e 68), obrigatoriamente que o veiculo em que seguia o Arguido ia, ainda parcialmente, na faixa esquerda atento o seu sentido de marcha. Para concluir de tal forma, basta atentar nas localizações apresentadas pelas testemunhas em sede de inspecção ao local.

Já quanto à velocidade a que o Arguido conduzia, o mesmo declarou que ia a 35-40 Km/h, sendo que as testemunhas com conhecimento directo confirmaram que o veículo ia a uma velocidade abaixo do limite legal. Com efeito, a testemunha Maria afirmou que ia a uma “velocidade normal”, sendo que todas afirmaram que o Arguido parou o veículo imediatamente após o embate, e a poucos metros.

Ora, sendo assim, e não se tendo apurado a concreta velocidade a que o Arguido circulava, temos por certo que o não fazia a mais de 50 km/h.

Sobre o descrito em 14., 15., 16. e 17., designadamente sobre o facto de o Arguido não ter visto a vítima, não ter efectuado qualquer manobra evasiva nem ter conseguido travar, foram as próprias declarações deste que assumiu tal comportamento, de forma que não mereceu reservas ao Tribunal, até porque se mostra compatível com as restantes declarações testemunhais (de Maria, M. P. e M. F.), bem como com a restante factualidade.

Relativamente ao embate e à forma como decorreu (18. e 19.), sem prejuízo do acima exposto, a factualidade provada resulta das declarações, coerentes entre si, de Arguido e testemunhas Maria, M. P. e M. F., bem como dos danos causados na viatura e ferimentos na vítima (cfr. relatório médico-legal de fls. 100 a 104 e relatório fotográfico de fls. 67 a 68).

Apurou-se, ainda, que após o embate o Arguido parou o veículo uns metros mais à frente (5 a 7 metros segundo Maria, 2 metros segundo M. P. e 1 a 2 metros segundo M. F.), tendo posteriormente estacionado o veículo cerca de 30 metros mais à frente, conforme admite o Arguido e constatou o Agente J. F. após chegar ao local.

A existência de vestígio de vidros no local (22.) também não oferece dúvida, pois tal seria forçoso atento os danos provocados no veículo (21.), e perfeitamente visíveis nas fotografias atrás mencionadas, além de o Agente J. F. disso fazer referência.

Quanto ao encaminhamento da vítima para o hospital e às lesões sofridas pela mesma, as quais lhe causaram a morte, e descritas no ponto 23. e 24., o tribunal teve em consideração a informação clínica de fls. 4 e 5, o relatório médico-legal (autópsia) de fls. 100 a 104, participação de óbito de fls. 3, de fls. 5 e, fundamentalmente, o “relatório de autópsia – patologia forense” de fls. 47-50.

Os factos vertidos em 25. e 26., resultam, antes de mais, das próprias declarações do Arguido, uma vez que o mesmo admitiu durante o seu depoimento que conhecia a via e conhecia a conduta a adoptar enquanto condutor de um veículo.

De outrossim, sempre tais factos resultariam do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo/negligência e o conhecimento são realidades não directamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.

Com efeito está provado que o embate se deu a meio da faixa direita de rodagem, não tendo o Arguido travado ou tentado evitar o embate com a vítima, o que demonstra que seguia de forma desatenta ou a velocidade superior à aconselhada face às circunstâncias do local (embora inferior aos 50 Km/h), pois de outra forma não se explicará o embate com o peão no local onde ocorreu.

No respeitante às condições pessoais e socioeconómicas do Arguido, relevaram, além do depoimento das testemunhas M. G. (prima do Arguido) e A. M. (amigo de infância), as próprias declarações do Arguido, que na medida do dado como provado mereceram a credibilidade do Tribunal.

Quanto à inexistência de antecedentes criminais relevou o certificado de registo criminal junto aos autos e a informação da ANSR (fls. 87).

Quando à factualidade não provada, ficou-se a dever ao facto de nenhuma prova idónea e sustentada ter sido produzida.”.
*
3. Posto isto, cumpre apreciar e decidir.

Como se viu, no seu douto parecer, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto invoca o vício a que alude o Artº 410º, nº 2, al. a), de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, em virtude de, na sua perspectiva, o tribunal a quo, podendo e devendo caracterizar a conduta do peão ofendido na dinâmica do acidente que o vitimou, visando identificar a sua génese, não o fez, até porque a decisão recorrida anuncia que o mesmo iniciou uma travessia da faixa de rodagem a pouco mais de 5 metros de uma passadeira para peões, em colisão com o disposto no Artº 101º do Código da Estrada.

Também o recorrente havia aludido – cfr. conclusões 11 e 12 –, de alguma forma, esta problemática, sustentando que a vítima violou o Código da Estrada, pois que se deslocava fora da passadeira, e após esta, atenta a proveniência do veículo.

Vejamos.

Conforme jurisprudência pacífica e constante dos nossos tribunais superiores, o recurso em matéria de facto admite duas vias distintas: a dos erros de julgamento, com impugnação da matéria de facto nos termos previstos no Artº 412º, e a dos vícios da decisão, previstos no Artº 410º, nº 2, em cujo âmbito se prevêem três situações:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e
c) O erro notório na apreciação da prova.

Há que sublinhar, antes de mais, que na tarefa de detecção dos vícios apontados no nº 2 do citado Artº 410º os tribunais superiores devem ater-se, imperativamente, apenas e só, ao teor do texto da decisão recorrida e, se necessário, também às regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. neste sentido, Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 323 e sgts., e Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal”, Comentado, 2ª Edição Revista, 2016, Almedina, pág. 1272 e sgts.).

Por outro lado, é hoje pacífico que o conhecimento dos aludidos vícios, para além de poderem ser suscitados pelos recorrentes na fundamentação dos recursos que interponham, é também de conhecimento ou indagação oficiosa (4).

Pois, como sublinha o Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, na citada obra, “mandam a prudentia e o bom-senso que nenhum tribunal, seja ele qual for, possa ser obrigado a aplicar o direito a uma matéria de facto ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por se revelar a priori - e pela simples leitura da decisão impugnada - uma matéria de facto erroneamente apreciada. Claramente, em tais casos, qualquer que fosse o edifício jurídico que aí assentasse seria uma edificação em perigo constante de derrocada por falta dos indispensáveis alicerces. Como sustentar a validade de uma decisão judicial séria, condenatória ou absolutória, sendo intuído imediatamente, pela simples leitura do texto respectivo, que os factos elencados ou indagados pelo tribunal, no seu conjunto, são insuficientes, contraditórios (entre si ou com a conclusão a que se chegou), ou notória e erroneamente adquiridos?”.

No que tange ao vício previsto na alínea a), do nº 2 do Artº 410º o mesmo ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito, e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final; ou, por outras palavras, quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito (Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 324).

Outrossim, o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão de 04/10/2006, proferido no âmbito do Proc. nº 06P2678 , in www.dgsi.pt).

Ora, voltando ao caso vertente, e como se viu, foi o arguido, ora recorrente, condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo Artº 137º, nº 1, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, e bem assim na sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 5 meses, nos termos dos Artºs. 24º, nº 1, 145º, n. 1, alínea e) e 147º, do Código da Estrada, e 20º, do RGCO.

E para atingir tal desiderato, o tribunal a quo considerou provados, no que ora interessa considerar, os seguintes factos:

- No dia 15 de Novembro de 2016, cerca das 18:00 horas, na Avenida das ..., em Bragança, o Arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca mercedes, modelo 190, com a matrícula XX no sentido Sul-Norte, parcialmente, pela via de trânsito da esquerda, atento o seu sentido de marcha, levando como passageiro o seu filho, que tinha nessa data, dois anos de idade e que tinha recolhido no Infantário da …, sita no …, em Bragança, deslocando-se para a sua residência;
- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, M. T. atravessou apeada a Rua da …, no sentido sul-norte, acedeu o passeio da Avenida das ... e iniciou o atravessamento da Avenida das ..., no sentido Este-Oeste;
- Fê-lo a cerca de 5,40 metros a norte da passadeira para atravessamento de peões existente no local;
- A Avenida das ..., no local, é constituída por duas faixas de rodagem, separadas por separador central;
- A faixa de rodagem em que circulava o Arguido e atento o seu sentido de marcha, naquele local, tem 6,75 metros de largura, comporta duas vias de trânsito, no mesmo sentido, devidamente demarcadas no pavimento e divididas por linha descontínua (marca longitudinal M2 do Regulamento de Sinalização de Trânsito), tendo a do lado direito a largura de 3,55 metros e a do lado esquerdo a largura de 3,20 metros, ladeadas no lado direito por passeio em betão com a largura de 1,10 metros, seguido de edificações e no lado esquerdo por separador central com 4,80 metros de largura;
- O pavimento era de aglomerado asfáltico, flexível, em regular estado de conservação, sem anomalias e encontrava-se seco;
- O local é de boa visibilidade em toda a sua largura e extensão;
- Atenta a hora dos factos, fim de tarde, já estava a anoitecer, mantendo o local boa visibilidade pela iluminação artificial existente no local;
- A velocidade máxima permitida no local era de 50 km/h, por se encontrar dentro de localidade;
- O Arguido circulava a velocidade não concretamente apurada, mas inferior a 50 Km/h;
- Não existiam quaisquer obstáculos na via e o trânsito no local tem pouca intensidade;
- O Arguido conhecia as características da via, sendo o percurso em causa usado habitualmente pelo mesmo;
- No momento em que o Arguido circulava na recta referida, fê-lo, parcialmente, pela via esquerda de trânsito, sem que houvesse razões para tal;
- O Arguido não viu o peão a atravessar parte da via de trânsito da direita, atento o seu sentido de marcha, e a situar-se na trajectória do veículo;
- O Arguido não conseguiu fazer travar no seu espaço livre o veículo, não evitando o embate;
- O Arguido não fez qualquer travagem ou manobra evasiva;
- No momento do acidente não havia outros veículos a circular na faixa de rodagem;
- Assim, embateu com a parte frontal direita, junto ao farol frontal direito, no corpo de M. T., quando se encontrava o peão a cerca de meio da via da direita e o Arguido parcialmente na via da direita e da esquerda, atento o sentido de trânsito do veículo do Arguido;
- Atingindo o peão na zona da bacia, e fazendo com que o seu corpo embatesse ainda na parte de cima do capot e fosse cair junto do passeio do lado direito da via de trânsito, onde ficou caído;
- Após embater no peão, o Arguido imobilizou a viatura alguns metros mais à frente, tendo, posteriormente, estacionado a mesma cerca de 30 metros à frente;
- O veículo conduzido pelo Arguido, na sequência do embate, ficou com o farol frontal direito partido e o capot do lado direito com a chapa amolgada;
- No local do acidente havia vestígios de vidros partidos;
- M. T. foi conduzida de imediato à Unidade Local de Saúde do Nordeste – Unidade Hospitalar de Bragança, onde foi admitida e observada com trauma da bacia e traumatismo crânio-encefálico direito e onde veio a falecer, ainda nesse dia, pelas 23:56m;
- Em consequência do embate, sobrevieram a M. T. diversas lesões pélvicas, nomeadamente fractura cominutiva da bacia com hemorragia massiva que condicionou coagulação intravascular disseminada e que foram causa directa e necessária da sua morte.

E com base em tal factualidade, o Mmº Juiz concluiu, em termos de enquadramento jurídico-penal, que o arguido conduzia o veículo que tripulava de uma forma imprudente e desadequada à actividade de condução, quer porque circulava parcialmente pela via da esquerda, quer porque nada fez para evitar o embate na vítima, designadamente não se tendo desviado nem tendo travado ou tentado qualquer manobra evasiva, quer porque, mau grado circulasse a velocidade abaixo do máximo permitido para aquele local, fazia-o a velocidade superior àquela que se mostrava aconselhável.

Ou seja, o tribunal a quo concluiu que o arguido actuou de forma negligente, omitindo o dever objectivo de cuidado na condução automóvel, comportamento esse que foi causal da morte da vítima.

A negligência encontra-se definida no Artº 15º, do Código Penal, nos seguintes termos:

“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”.

Como se extrai da citada norma legal, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto (negligência inconsciente).

Ou seja, a negligência é antes de mais a violação de um dever objectivo de cuidado, exigindo-se, em qualquer uma daquelas modalidades, a capacidade do agente para proceder com os cuidados que, segundo as circunstâncias, estariam indicados.

Mas em que se traduz concretamente esta capacidade?

Segundo a lição de Figueiredo Dias (in “Pressupostos da Punição”, Jornadas de Direito Criminal do Centro de Estudos Judiciários, Fase I, 1983, pág.. 71, “Há hoje uma grande unanimidade de pontos de vista (mesmo entre aqueles para quem a culpa é capacidade de motivação pela norma) em que não está aqui em causa o indiscernível poder de agir de outra maneira na situação, e portanto uma tentativa de resposta à questão do concreto livre-arbítrio; mas também em que não será lícito ficar-se por uma resposta meramente objectiva, que fosse buscar para padrão a capacidade normal ou do homem médio. Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa da negligência e fundamentar, assim a respectiva punição”.

Acresce que, como se já salientava no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2009, preferido no âmbito do Proc. nº 2414/05.0TBVCD.S1, in “A culpa nos acidentes de viação na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça” - Sumários de Acórdãos do Gabinete de Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça (5), também entendemos que, “No caso particular dos acidentes de viação o que importa essencialmente determinar é o processo causal da verificação do acidente: a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção.”.

Ora, no caso vertente, transcorrendo a sentença recorrida, verifica-se que o Mmº Juiz, em termos de fundamentação da matéria de facto relativamente à imputação criminosa ao arguido, expendeu o seguinte, a fls. 256/257:

“(...) está provado que o embate se deu a meio da faixa direita de rodagem, não tendo o arguido travado ou tentado evitar o embate com a vítima, o que demonstra que seguia de forma desatenta ou a velocidade superior à aconselhada face às circunstâncias do local (embora inferior aos 50 Km/hora), pois de outra forma não se explicará o embate com o peão no local onde ocorreu”.

Ou seja, e como bem sublinha o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, a decisão recorrida tem como assente que a responsabilidade do arguido decorreu destas concretas circunstâncias:

a) Que o seu embate na vítima aconteceu a meio da faixa direita rodagem;
b) Que o arguido não travou;
c) Que não tentou evitar o embate na vítima; e
d) Que sem estas circunstâncias não haveria explicação para o embate no peão.

Sucede que, também na nossa perspectiva, as aduzidas razões não satisfazem totalmente a racional compreensão da dinâmica do acidente sub-judice.

É certo que o sinistro em causa pode ter acontecido pelas razões invocadas nas antecedentes alíneas b) e c), tanto mais que o condutor do veículo automóvel está obrigado a deveres de cuidado, de atenção e de respeito pelas regras estradais, designadamente de velocidade, que lhe permitam evitar um qualquer atropelamento.

Na verdade, o princípio básico da lei estradal, aplicável à condução automóvel e aos peões, é no sentido de as pessoas deverem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias (Artº 3º, nº 2, do Código da Estrada).

Acresce que, no que concerne aos veículos, o respectivo trânsito deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes, sendo certo que, sempre que no mesmo sentido sejam possíveis duas ou mais filas de trânsito, este deve fazer-se pela via de trânsito mais à direita, podendo, no entanto, utilizar-se a outra se não houver lugar naquela e, bem assim, para ultrapassar ou mudar de direcção (Artº 143, nºs. 1 e 3, do Código da Estrada).

E relativamente à problemática da velocidade a que os veículos automóveis podem rodar, a regra é a de que a devem regular de modo a que, atendendo às características e ao estado da via e do veículo, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possam, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (Artº 24º, nº 1, do Código da Estrada).

Sendo certo que a regra de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente significa dever o mesmo assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar. Regendo tal regra especialmente para o caso de os condutores circularem com veículos automóveis à sua vanguarda e pressupondo a mesma a não verificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, não lhe sendo exigível que contem com eles, sobretudo os derivados da imprevidência alheia.

Finalmente, o dever geral de regulação da velocidade dos veículos automóveis em conformidade com as respectivas características, estado da via, condições meteorológicas ou ambientais, intensidade do trânsito e outras circunstâncias relevantes, é um corolário do dever objectivo de cuidado, com base na ideia de que a acção ou a omissão inadequada do agente implica o aumento da probabilidade do dano, naturalmente para além do risco permitido em função das exigências da vida em sociedade. Estabelecendo a lei, a par dele, a obrigatoriedade de os condutores de veículos automóveis circularem com velocidade especialmente moderada nas localidades (Artº 25º, nº 1, al. f), do Código da Estrada).

Sucede que, as razões aduzidas pelo Mmº Juiz a quo podem não ser a única explicação para o acidente sub-judice, ao invés do que assevera a decisão recorrida, afigurando-se-nos que, por si só, não são decisivas para a afirmação de um juízo de censura exclusivo relativamente à condução estradal do arguido.

É que convém não olvidar que também os peões estão onerados com certas regras de conduta quando utilizam as vias.

Pois, para além da regra geral supra citada, ínsita no Artº 3º, nº 2, do Código da Estrada, segundo a qual devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias, há que atentar, também, na norma prevista no Artº 99º, nº 1, do mesmo diploma legal, que prescreve que (os peões) devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinadas ou, na sua falta, pelas bermas, só podendo transitar pela faixa de rodagem, com prudência e de forma a não prejudicar o trânsito de veículos, além do mais, que aqui não releva, na falta dos locais referidos no nº 1 ou na impossibilidade de os utilizar – nº 2, al. b).

Sendo também de primordial as regras ínsitas no Artº 101º, do mesmo diploma legal, que sob a epígrafe “Atravessamento da faixa de rodagem”, prescreve:

“1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.
3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.
(...)”.

Ora, no caso vertente, nenhuma alusão se faz na decisão recorrida, em termos de fundamentação da matéria de facto, acerca da travessia da faixa de rodagem por parte da malograda vítima, M. T., designadamente face ao dever que sobre ela impendia, decorrente do supra citado Artº 101º do Código da Estrada.

Assim sendo, em conformidade com o citado normativo, urge apurar, necessariamente, o seguinte:

a) Antes de iniciar a travessia, a que distância o peão podia avistar o veículo?
b) A que distância estava o veículo quando iniciou a travessia?
c) A que distância o arguido poderia avistar o peão?
d) Este surgiu-lhe como algo inesperado, insólito e improvável?
e) Que necessidade se apresentava para o peão fazer a travessia naquele local?
f) Este iniciou uma travessia da faixa de rodagem, ou pretendeu contornar o obstáculo que estava no passeio (o poste de iluminação), indo, assim, colocar-se na faixa de rodagem? e
g) Que largura o passeio para peões possui no local onde o peão iniciou a travessia?

É que, para concluirmos que o arguido omitiu o dever de cuidado na circulação automóvel, e que essa omissão foi a causa adequada do resultado verificado, importa saber se o arguido tinha condições de prever a presença do peão na faixa de rodagem e, em caso afirmativo, rodear-se dos cuidados necessários para evitar o embate na vítima, designadamente, travando no espaço livre e visível à sua frente ou desviando a trajectória do veículo que tripulava.

E a resposta a essa fulcral questão passa, necessariamente, pela averiguação daquela factualidade, de molde a que, então, o tribunal a quo, munido de todos esses elementos, possa determinar o processo causal da verificação do sinistro, ou seja, a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção, decidindo, então, com toda a segurança, se o arguido cometeu, ou não, o ilícito criminal que lhe vem imputado.

Está-se, pois, perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto no Artº 410º, nº 2, al. a), verificando-se, face ao concreto circunstancialismo apontado, a impossibilidade de sanação do mesmo por banda deste tribunal de recurso.

Deste modo, outra alternativa não resta senão a de decretar o reenvio dos autos para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, incluindo as concretas questões supra identificadas, de harmonia com o estatuído nos Artºs. 426º nº 1 e 426-A (6), ficando obviamente prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães, no provimento do recurso, em determinar, nos termos dos Artºs. 426º e 426-A, ambos do C.P.Penal, o reenvio dos autos para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, incluindo as concretas questões, supra identificadas.

Sem custas (Artº 513º, nº 1, a contrario sensu, do C.P.Penal).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 29 de Abril de 2019

(António Teixeira)
(Nazaré Saraiva)


1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Ao qual se reportam todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995 (em interpretação que ainda hoje mantém actualidade), no qual se afirmou: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
4. Cfr. o já supra citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de nº 7/95, de 19 de Outubro de 1995.
5. Disponível in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/culpanosacidentesdeviao1996asetembrode2014.pdf
6. Note-se que, nos casos de reenvio, o julgamento compete ao mesmo tribunal (ou juízo que resultar da distribuição sendo vários), estando, porém, impedido de nele participar o juiz que presidiu ao anterior julgamento – Cfr. Artºs. 426º-A, nºs. 1 e 2 e 40º, al. c).