Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1111/16.6T9BCL.G1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: OMISSÃO DILIGÊNCIAS
NULIDADES
REGIME DE ARGUIÇÃO
ARTºS 120º
Nº 1
AL. D)
121º E 379º
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
As nulidades por omissão de diligências, nos termos do artº 120º, nº 1, al. d), do CPP, por não constituírem nulidades de sentença, mas uma mera irregularidade do procedimento, não estão sujeitas ao regime do artº 379º, mas ao regime de invocação e sanação das nulidades em geral, decorrente dos artºs 120º e 121º, do CPP.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE GUIMARÃES:

I. RELATÓRIO

A –

Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 1111/16.6T9BCL, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz 1, o Ministério Público requereu o julgamento do arguido José, empresário, casado, filho de P. e de C., natural da freguesia de …, concelho de Barcelos, nascido em 01-10-1974 e, residente na Rua …, Barcelos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal.

A ofendida “Distribuição de energia, S.A.” deduziu pedido de indemnização civil contra o demandado/arguido, por danos patrimoniais, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 11.514,85 (onze mil, quinhentos e catorze euros e, oitenta e cinco cêntimos), acrescida de juros, desde a notificação ao arguido da dedução do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.

O arguido apresentou contestação escrita e indicou prova testemunhal.

Realizado o julgamento, veio a ser proferida pertinente sentença, na qual se decidiu condenar o arguido José, pela prática, como autor material, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, nº 1 e, 204º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à razão diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros).
Mais foi julgado procedente o pedido de indemnização formulado pela demandante “Distribuição de energia, S.A.” e, consequentemente, condeno o demandado/arguido José, no pagamento de € 11.514,85 (onze mil, quinhentos e catorze euros e, oitenta e cinco cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescido de juros de 4%, desde a data da notificação para contestação do pedido de indemnização civil, até efectivo e integral pagamento.

Inconformado com esta decisão condenatória, o arguido José da mesma interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes extensas conclusões (transcrição):

1. Por sentença proferida a 17 de Maio de 2017, foi o arguido José condenado:

a) Pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203º, nº1 e 204º nº1, al. a) do Código Penal; na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de €5,50, no montante global de €1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros);
b) No pagamento à demandante Distribuição de energia SA, de uma indemnização a título de danos patrimoniais que se fixa em €11.514,85 (onze mil, quinhentos e catorze euros e oitenta e cinco cêntimos), a que acrescem juros actualmente de 4% desde a data da notificação para contestação do pedido de indemnização cível até efectivo e integral pagamento;
c) No pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de Justiça em 2 UC;
e, por fim, condenado no pagamento das custas cíveis.
2. O presente recurso, que tem como objecto matéria de direito, pretende sindicar o mérito daquela douta sentença quanto à produção da prova, que exigia que uma das testemunhas, pelo recorrente arrolada, e notificada, tivesse sido ouvida,
3. Mesmo que o tribunal tenha entendido que aquela não tivesse sido notificada por “endereço insuficiente” não obstante a posição da defesa.
4. E, portanto, passa por saber se a rejeição do pedido de audição da testemunha consubstancia, na sua prática, a omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade e, consequentemente, dela resulta a nulidade da sentença por violação do disposto na alínea c) do artigo 379º do CPP.
5. Entende-se, pois, que o Tribunal não fez as diligências de prova que se impunham, nomeadamente com vista a determinar a inquirição da testemunha, sem ter sequer formulado um juízo acerca da sua necessidade e imprescindibilidade para a descoberta e da boa e criteriosa decisão da causa,
6. Pelo que devia a audiência de discussão e julgamento ser declarada nula, e consequentemente, serem declarados nulos todos os actos praticados posteriormente.
7. Por ali devia e, por que não foi, deverá a sentença recorrida ser declarada nula e ser ordenada a sua remessa à primeira instância a fim de ser ouvida a testemunha e, após, ser proferida nova sentença. 8. É sabido que a convicção do juiz é formada, nunca de forma arbitrária, mas livre. O que bem se compreende, até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis.
9. Salvo quando a lei dispuser em contrário, a prova será apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, e há de ser no equilíbrio destas duas vertentes que aquela vai ser apreciada.
10. Assim, releva, a este contexto, referir o procedimento probatório, e que há de permitir ao juiz as provas sobre as quais recairá a sua convicção, e que lhe concederão os fundamentos para uma decisão justa e criteriosa.
11. O procedimento probatório compreende duas fases: uma primeira implica a produção, propriamente dita, da prova, em que se vão produzir as provas admitidas; a segunda fase, por sua vez, respeita à sua apreciação e avaliação.
12. Quanto à primeira temos que, nos termos do artigo 340º do Código de Processo Penal, “o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”,
13. E que “os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.”
14. Naqueles termos, devia o tribunal a quo ter ordenado a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se afigurasse necessário à boa decisão da causa.
15. Porém, na audiência de julgamento, realizada no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Barcelos, no dia 8 de Maio de 2017, pelas 9h30, não foi ouvida a testemunha Pedro, tempestivamente arrolada e devidamente notificada, quando daquela não se prescindiu.
16. Ao não o ter feito, cometeu o juiz a omissão de um ato que influiu no exame ou na decisão da causa, podendo ter-se mostrado aquele decisivo no sentido de alterar as respostas aos quesitos que poderiam levar a uma decisão diferente.
17. Incorreu, assim, o tribunal na nulidade prevista no artigo 120º, nº2, alínea d), parte final, a qual se enquadra na omissão de diligências que possam reportar-se essenciais para a descoberta da verdade.
18. Foi dirigido requerimento ao processo a fim de se colmatar esta nulidade, requerendo que fossem realizados os actos que deveriam ser declarados nulos, na sequência da omissão daqueloutro.
19. O tribunal não se pronunciou e, desta forma, viu o arguido o seu direito de defesa violado.
20. O direito de defesa do arguido concretiza-se, fundamentalmente e sobretudo, através do exercício do principio do contraditório, ao nível da produção da prova, devendo ao arguido ser facultada a possibilidade de se fazer ouvir ou produzir contraprova sobre as provas apresentadas e exercidas relativamente a factos contra si deduzidos.
21. Devia a audiência de julgamento ter sido considerada inválida, pelo menos quando se requereu a sua legal renovação.
22. A solução consignada, além de contribuir para a busca da verdade no quadro do processo criminal, não subtraia ao arguido os meios de defesa legítimos, nem afectaria as condições da sua participação paritária na dialéctica inerente ao processo na fase de audiência de julgamento,
23. O que sempre se exigia num processo justo, em que deve haver uma imposição de meios de defesa idênticos às partes controvertidas.
24. Sem prescindir, mesmo que se entenda, nos termos do nº3 do artigo 120º, que devia a arguição da nulidade ser feita nos termos nele previsto, o que sempre exigia que fosse arguida a nulidade antes do término do ato,
25. Sabe-se que, não sendo razoável que a invocação da nulidade tivesse sido efectuada até ao termo do ato, deve aceitar-se a aplicação da regra geral de arguição de nulidades sanáveis.
26. Ou seja, arguição no prazo de dez dias, pelo disposto no artigo 105º, nº1, a contar daquele em que o interessado foi notificado por qualquer termo do processo ou teve intervenção em ato nele praticado.
27. Para que o Tribunal possa, com segurança, apurar da veracidade ou não das provas conducentes à verdade material, é necessário garantir o princípio do contraditório.
28. No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência, a menos que se afigure inútil ou procrastinatória.
29. O que não reflecte de todo a situação aqui em causa, porquanto a testemunha não foi inquirida, não porque se revelou inútil o seu depoimento, mas porque o tribunal entendeu que aquela não tinha sido notificada, pelo que, perante tal, não poderia depor.
30. A requerida audição da testemunha tornava-se necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa e não, a contrario, tratava-se de prova notoriamente irrelevante ou supérflua, de obtenção impossível ou duvidosa.
31. O arguido encontrou-se impossibilitado de exercer, na plenitude, o direito ao contraditório e direito de defesa, por não ter, através da testemunha por si arrolada, sido ouvida versão dos factos.
32. Por fim, as nulidades traduzem-se em defeitos jurídicos que tornam inválidos ou destituem o valor de um ato, de forma total ou parcial.
33. Em decorrência da declaração da nulidade cometida no processo quer o acto em que a mesma ocorreu quer os que com ela se encontram conexos ficam inválidos.
34. Deve dizer-se quais os actos que sofrem este efeito, porquanto a declaração de invalidade irá produzir a destruição dos actos imperfeitos pelo que se torna imperiosa a sua à renovação, a menos que a mesma não seja possível nem necessária.
35. A renovação surge como o único remédio para a inexistência e para as nulidades – absolutas e relativas não sanadas – sendo necessária sempre que se tratar de uma ação da qual depende o ulterior andamento do processo.
36. Na opinião do Professor Germano Marques da Silva a renovação será necessária quando os efeitos derivados do acto não tenham sido produzidos doutro modo ou o desenvolvimento do procedimento não tenha evidenciado a sua inutilidade.
37. No caso, temos que se revela necessária a renovação do acto, pois que de outro modo não seria alcançável a prova que se pretende ver valorada. Só naquele, e por tal se requer a sua renovação, pode a testemunha ser ouvida, como desde logo devia ter sido.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, e em consequência deve a decisão recorrida ser revogada. Cumprindo-se, assim, a habitual Justiça.

O Ministério Público junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso interposto, concluindo por seu turno (transcrição):

1. De tudo o atrás explanado, diremos em síntese que a douta sentença recorrida deverá ser mantida na íntegra, uma vez que não se violou qualquer das normas jurídicas e/ou Princípios Gerais do Direito invocado pelo recorrente, e consequentemente inexiste qualquer nulidade.
2. Pelo que, o Mmº Juiz “a quo“, em nosso entender, decidiu de forma correta ao proferir a douta sentença, sempre em obediência às normas jurídicas aplicáveis e cumprindo escrupulosamente todos os Princípios Gerais do Direito a que alude a presente situação factual.
3. Nesta conformidade não foram violados os art.s 120º, nº 3, al. d), parte final, 122º, nº 1, 340º, 379º, nº 1, al. c), 412º, nº 2, als. a) e c) e 412º, nº 3, al. b), ; todos do Código de Processo Penal e 32º, nºs 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
4. Já que o Tribunal “a quo” fez ajustada apreciação de todos os factos que eram imputados ao recorrente/arguido, conjugados com a análise crítica de toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, de forma convicta, assertiva e adequada, de acordo com as normas legais aplicáveis, não merecendo qualquer censura e/ou reparo.

Termos em que pugnamos pela improcedência do presente recurso, e agindo V. Exas. com saber e ponderação farão Justiça.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso interposto, conforme melhor resulta de fls. 232 e 233, dos autos.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido apresentado resposta, pugnando no sentido do recurso interposto.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:

Factos provados
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

a) O arguido José é o único sócio e gerente da sociedade “X. Café Unipessoal, Lda.”, desde a sua constituição e início de actividade, em Novembro de 2008 até à presente data.
b) A referida sociedade tem como objecto a actividade comercial de restauração e bebidas, designadamente café, pastelaria e snack-bar, sendo o seu estabelecimento situado na Rua …, Barcelos (com o Código do Ponte de Entrega PT …).
c) No âmbito da sua actividade, a sociedade “X. Café” celebrou, entre outros, contratos de fornecimento de energia eléctrica, em regime de baixa tensão, a uma potência de 20,7 KVA,, cujos efeitos se iniciaram após a instalação da correspondente instalação eléctrica, em 03/03/2009, 21/01/2014 e 11/09/2014.
d) Pelo menos no dia 5 de Fevereiro de 2013, o arguido, por si ou através de alguém a seu mando, manipulou o equipamento de telecontagem e de potência, de forma a que parte da energia consumida pelo estabelecimento comercial “X. Café”, não fosse contabilizada.
e) Para o efeito, sendo a instalação trifásica, o shunt da fase 1 foi retirado, sendo que o shunt da fase 2 aliviado e mantendo-se o da fase 3 inalterado.
f) Procedeu ainda à alteração do dispositivo de controlo de potência, adulterando-o de forma a que a potência contratada de 20,7 KVA passasse a ser fornecida a 41,4 KVA.
g) Desde essa data até ao dia 06/04/2016, data em que foi realizada a vistoria por funcionários da Distribuição de Energia, SA, a energia dessas fases foi fornecida a uma potência superior à contratada e não foi devidamente contabilizada pelo contador, sendo que a electricidade consumida e não facturada atingiu o valor de € 10.412,14 e o valor da potência suplementar utilizado atingiu e não facturado atingiu o valor de € 1.032,01.
h) Ao actuar do modo descrito, agiu o arguido de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito de se apropriar de energia eléctrica no valor de € 10.412,14, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do legítimo dono.
i) Sabia também que a sua conduta era proibida e punida por lei.
j) A Distribuição de energia, S.A. exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão no concelho de Barcelos.
k) Na qualidade de concessionária, a demandante procede à ligação à rede das instalações particulares de consumo cujos utilizadores tenham celebrado um contrato de fornecimento de energia eléctrica com um dos comercializadores.
l) Na qualidade de operador de rede, a demandante fornece e instala um equipamento de medição (contador) que mede e regista os consumos de energia eléctrica e procede à fiscalização de consumo.
m) No fornecimento da energia eléctrica referida, a Distribuição de energia, SA teve um gasto de € 1.032,01 relativos a encargos de potência suplementar utilizada no local de consumo referido em b).
n) Com a detecção e tratamento da anomalia referida a Distribuição de energia, SA gastou € 70,70.

Outros factos com relevo para a decisão da causa.
o) O arguido é empresário, gerindo o estabelecimento de café acima mencionado, de onde aufere a quantia mensal de € 585,00; a esposa é funcionária do dito estabelecimento, auferindo o vencimento mensal equivalente; têm três filhos de 12, 8 e 4 anos a seu cargo; paga para a amortização do empréstimo que contraiu para a aquisição de habitação própria e permanente a quantia de € 300,00; o arguido tem o 6.º ano de escolaridade.
p) O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos não provados

Com eventual relevo para a decisão da causa nenhum outro facto de provou.

Na motivação de facto e exame crítico das provas, consta o seguinte (transcrição):

O Tribunal estribou a sua convicção, quanto aos factos dados por provados, no teor das declarações do arguido, que reconhecendo nunca haver deixado de consumir energia eléctrica no café de que é dono, no período mencionado em g) dos factos provados, negou peremptoriamente ter procedido à remoção dos shunts e alteração da potência do contador, que permitiram o abastecimento de energia no local de consumo referido em b) dos factos provados.
O depoimento do arguido mostrou-se, no entanto, contraditado pelo das testemunhas Joaquim e Manuel, funcionários da Distribuição de Energia, SA que verificaram a remoção de um shunt do contador e a alteração de um outro, bem assim como a alteração (aumento) da potência (amperagem) contratada, tudo como fizeram constar do auto de vistoria junto a fls. 18, realizado em 06/04/2016. Referiram os depoentes que, relativamente ao contador, não obstante estivesse o mesmo selado, o selo parecia desapertado (laço). O DCP (disjuntor) mostrava-se desselado, como fizeram constar do referido auto.
A testemunha Sérgio, também ele funcionário da demandante, explicou que foi calculado o consumo abusivo com base na média de consumo respeitante ao ano imediatamente anterior àquele em que se verificou a quebra abrupta (para cerca de metade) da contagem de energia indubitavelmente causado pelas preditas alterações. Aliás, referiu a testemunha, optou neste caso a demandante por não fazer os cálculos com base nas disposições regulamentares previstas legalmente, porquanto tais contas importariam um acréscimo de valor em prejuízo do arguido. Os cálculos mostram-se documentados nos documentos juntos a fls. 19/22, que foram confirmados pelo depoente.
Já a testemunha Filipe, cliente do arguido, limitou-se a referir ter visto duas pessoas (técnicos) a mexeram na caixa do contador, sem contudo explicar cabalmente qual a intervenção dos ditos sujeitos, de que não mostrou ter conhecimento.
De facto, além do arguido, que negou os factos imputados, o sentido do depoimento das testemunhas inquiridas que mostraram ter conhecimento do sucedido é mais do que suficiente para que o Tribunal se tivesse convencido de ter sido o arguido a proceder às alterações mencionadas.
De resto, como é evidente, ninguém – a não ser o arguido, que era o único sócio e gerente da sociedade que explorava o local do consumo em causa (cfr. certidão permanente de fls. 25/27 e contrato da sociedade de fls. 108/110) – teria interesse em proceder às mencionadas alterações do contador e do DCP, não se vendo que a alteração da entidade que comercializa a energia, ao contrário do que refere o arguido, tenha algo que ver com tal circunstância. É que, como foi explicado pelas testemunhas inquiridas, o facto de o comercializador ser diverso não obsta a que a distribuição seja sempre feita (e controlada) pela sociedade Distribuição de energia, a qual aliás regista todos os contratos dos vários comercializadores de electricidade (cfr. ficha de fls. 16).
Finalmente, importa referir que o arguido foi avisado da referida utilização ilícita da energia eléctrica, por carta que lhe foi remetida em 11/05/2016 (cfr. fls. 23), não tendo regularizado a situação (relativa ao pagamento do valor dos prejuízos ali mencionados) até à presente data.
No que concerne aos factos atinentes às condições sociais e pessoais do arguido, fundou-se a convicção do Tribunal nas declarações pelo mesmo complementarmente prestadas, sendo que se valorou o CRC de fls. 147, no que tange à ausência de antecedentes criminais do mesmo.

Enquadramento jurídico-penal

Encontra-se o arguido José acusado da prática de um crime de furto, p. e p. art. 203º, nº 1, do Código Penal.
Em conformidade com a previsão incriminadora do art. 203º do Código Penal, pratica o crime de furto “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia”.
O crime de furto estrutura-se como um delito uni-ofensivo, representando uma agressão à propriedade, valor penalmente tutelado mais pela correspondência que encontra num imprescindível momento da organização da vida comunitária, do que pela essencialidade que fosse de lhe reconhecer na perspectiva do livre e harmónico desenvolvimento da pessoa humana (cfr. Faria Costa, Direito Penal Especial, Lições do 5º ano do curso de 1994-95, Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, p. 38).
Tratando-se de crime de acção, o preenchimento da factualidade típica pressupõe a prática, pelo agente, de um comportamento activo, consistente, justamente, num acto de subtracção.
A subtracção analisar-se-á, por seu turno, na retirada da coisa do poder de disposição, real ou potencial, de quem dela usufruía, e na respectiva e subsequente entrada na esfera de disponibilidade do agente ou de um terceiro, ainda que de forma precária ou passageira ou mesmo que em estado de desassossego ou intranquilidade. Do ponto de vista do sentido definitório implícito na descrição típica, supõe-se, num primeiro momento, a violação do poder de facto exercido pelo detentor, sucedendo-lhe a instituição de uma nova relação entre a coisa e o agente da subtracção ou o terceiro a quem ela venha a ser entregue por qualquer título.
Do ponto de vista da actuação do agente sobre o bem jurídico protegido, o crime de furto é, pois, um delito simétrico: à diminuição das utilidades do património da vítima corresponde um aumento de utilidades do património do agente.
Analisando-se o tipo de ilícito objectivo na prática de um acto de subtracção, o crime de furto há-de incidir sobre coisa móvel, entendida como substância ou porção do mundo externo, fisicamente apreensível, dotada de autónoma corporeidade e susceptível de ser possuída ou controlada.
Para além de móvel, a coisa subtraída tem que ser alheia, no sentido de se encontrar na disponibilidade fáctica ou no poder de detenção e guarda de pessoa diferente do agente (cfr. Carlos Alegre, Crimes contra o Património, revista do Ministério Público, Caderno 3, p. 24). Com efeito, consistindo o interesse individual penalmente tutelado no direito de gozo, fruição e guarda de coisas móveis, e aparecendo, consequentemente, a posse mobiliária como mero objecto de protecção imediata ou como simples pressuposto material da conduta, por coisa alheia há-de entender-se toda aquela sobre a qual não tenha o agente qualquer direito de guarda, gozo ou fruição (cfr. António Miguel Caeiro, BMJ 18-60).
O objecto em causa deverá ainda ter um valor juridicamente relevante, seja pela utilidade que representa para o seu dono, seja pela estima ou afeição que nele suscita.
Para que a conduta em causa possa ser reconduzida à previsão típica da norma incriminadora é necessário, por último, que o agente tenha actuado com uma ilegítima intenção de apropriação: o agente sabe que a coisa pertence a outrem, tem consciência de que não detém qualquer direito ou título para a possuir e, não obstante, actua com intenção de a vir integrar no seu património, ainda que sem qualquer propósito lucrativo.
Analisado neste seu momento subjectivo, o tipo de ilícito suporá, assim, naquele que actua, a intencional vontade de se comportar, relativamente a coisa móvel que sabe não ser sua, como respectivo proprietário, manifestando, consequentemente, uma intenção de desapropriar terceiro, animada pelo propósito de vir a integrar a coisa no seu património.

Relativamente ao furto de electricidade, importa considerar que no Código Penal Português não existe um tipo autónomo e específico que preveja e puna a apropriação ilícita, ou a fraude na utilização de energia eléctrica.
Pela Doutrina e por alguma Jurisprudência tem sido considerado que essas condutas (ou, pelo menos, parte delas) seriam susceptíveis de se integrar no tipo do crime de furto.
Assim é que, já em 1906, Caeiro da Matta, (Do furto – esboço histórico e jurídico, Coimbra, Imprensa da Univ., 1906), sintetizava as posições doutrinais a esse respeito, concluindo que na previsão do crime de furto se deveriam incluir “todas as cousas móveis que, tendo existência material ou jurídica, estão sujeitas à contrectatio (apropriação, roubo), e reclamam, consequentemente, a tutela do respectivo direito de propriedade”.
Mais recentemente, em 1988, Carlos Alegre, Crimes contra o património, Rev. MP, 3, p. 23, refere que: “Na categoria de coisas móveis estão incluídas as forças ou energias naturais, como a electricidade, o gás, o vapor ou ainda a energia nuclear. Eduardo Correia acrescenta a este rol exemplificativo de coisas móveis também as ondas hertzianas”.
Também Saragoça da Mata, Rev. O Direito, “Subtracção de Coisa Móvel Alheia”, p. 635, considera que a electricidade ou o gás são, inequivocamente, coisas corpóreas, além de serem autónomas e subtraíveis, “coisas dotadas de valor”, “susceptíveis de apropriação individual”, “que mal se compreenderia se se dissesse que caem fora da intencionalidade normativa dos tipos penais do furto”.
Faria Costa, CCCP, Coimbra Editora, 1999, p. 39/40, esclarece, porém, que noutras Legislações se sentiu necessidade de incluir norma expressa a esse respeito: “o novo Código Penal francês, para punir o furto de electricidade ainda sentiu a necessidade de contemplar legalmente uma norma de equivalência (art. 311-2; “la soustraction frauduleuse d’energie au préjudice d’autrui est assimilée au vol”). Da mesma forma é preciso não esquecer, ainda a este propósito, que o próprio art. 624º do CP italiano consagra que para “efeitos da Lei Penal considera-se também coisa móvel a energia eléctrica e qualquer outra energia que tenha valor económico”.
A nível Jurisprudencial, já no Acórdão do TRC, de 24/02/1988 (relator Pinto Bastos), considerou-se que “a energia eléctrica é uma coisa susceptível de apropriação e valiosa, cuja subtracção integra a autoria de crime de furto”.
Assim, toda esta análise se centra na inclusão, ou não, da energia eléctrica (à semelhança de outro tipo de energias), no conceito de “coisa móvel”.
No Direito Comparado, a solução Espanhola não dá azo a esta discussão, contendo o respectivo Código Penal um tipo autónomo, em que surge prevista e punida a fraude na utilização de energia eléctrica, gás, água, telecomunicações, ou outro elemento, energia ou fluído alheio – desde que o prejuízo seja superior a 400 Euros –, por algum dos seguintes meios: - instalando mecanismos, ou socorrendo-se dos mesmos para a utilização de energia eléctrica, etc.; alterando maliciosamente os contadores; ou empregando quaisquer outros meios clandestinos. (Art. 255º do C. Penal Espanhol: “Será castigado en Ia pena de multa de tres a 12 meses el que cometiere defraudación por valor superior a 400 euros, utilizando energía electríca, gas, agua, telecomunicaciones u otro elemento, energía o fluido ajenos por alguno de los medios siguientes: 1. Valiéndose de mecanismos instalados para realizar la defraudación; 2. Alterando maliciosamente las indicaciones o aparatos contadores; 3. Empleando cualesquiera otros medios clandestinos”).
Regressando ao caso, e à nossa ordem jurídica, debruçando-se, mais concretamente, sobre as formas do cometimento do crime, encontramos o Acórdão do Tribunal da relação do Porto, datado de 23/05/1990 (relator Hernâni Esteves), a seguinte jurisprudência: “O arguido que a seu mando, ou por si próprio, procede à abertura de um furo na carcaça instalada pela Electricidade de Portugal na sua residência, por contrato de fornecimento de energia eléctrica, de forma que lhe era possível fazer introduzir, através do mesmo, corpo estranho ao funcionamento do aparelho, e com ele fazer parar o disco metálico do referido contador, que se destina, pelas revoluções que efectua, a marcar a contagem das quantidades de energia eléctrica consumida, desse modo, em seu proveito, foge efectivamente ao controlo efectivo e real da empresa fornecedora de energia eléctrica e prejudicando-a na medida em que os gastos contados são, por aquele modo, inferiores aos realmente realizados. Tal conduta constitui um crime de furto, de subtracção de coisa alheia, energia eléctrica, e é prevista e punida pelos arts. 296º e 299º do CP”.
No caso dos autos, é indubitável existir uma utilização ilícita de energia eléctrica.
Essa utilização ilícita surge concretizada através da subtracção da energia realizada pela alteração do contador, que determinou a diminuição da contagem da electricidade utilizada, e da alteração do disjuntor, com o aumento da potência disponível.
Tal subtracção foi ilegítima e efectuada contra a vontade da entidade fornecedora que a detinha.
Em conclusão, o arguido praticou uma subtracção ilícita da energia eléctrica, tipificada como crime de furto pelo art. 203º, nº 1, do C.P., tomando-se como acertado o entendimento predominante, na nossa ordem jurídica, de que se trata de coisa móvel, susceptível de subtracção.
Finalmente, considerando o valor da energia subtraída (superior ás 50 UC, pois que se fixa em € 11.444,15, incluindo valor do aumento da amperagem), mostra-se preenchido o tipo qualificativo previsto na al. a) do nº 1 do art. 204º do Código Penal, por força do disposto na al. a) do art. 202º do mesmo diploma legal.

Escolha e determinação da medida concreta da pena

Uma Da conjugação do disposto no preceito-sancionador contido no art. 204.º, n.º 1, do Código Penal com os limites fixados nos arts. 41º, nº1 e 47º, nº 1 e 2, do mesmo Código, resulta que o crime de furto (qualificado, nos termos referidos) é abstractamente punido com pena de 1 mês a 5 anos de prisão ou com multa de 10 a 600 dias.
Tendo, pois, em conta o caracter alternativo das penas de prisão e multa previstas a título principal, impõe-se proceder, desde logo, à escolha da pena que concretamente irá ser aplicada.
Esta operação há-de-se deixar necessariamente orientar pelo princípio politico-criminal da preferência pelas reacções penais não detentivas ínsito no artigo 70º do Cód. Penal, de acordo com o qual, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. E uma vez que tais finalidades são exclusivamente preventivas, sob a forma de protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade (artigo 40º n.º 1 do Código Penal), serão sempre e só considerações de prevenção geral e especial a decidir da possibilidade de preferir, no caso concreto, uma medida não detentiva a uma pena de prisão (cfr. Anabela Rodrigues, em anotação ao Ac. do STJ de 21/05/90, RPCC, 2, 1991, p. 243).
Deste modo, só deverá o tribunal recusar a aplicação da pena alternativa quando, através dela, não seja possível realizar a desejável e necessária ressocialização ou fique de todo o modo comprometida a confiança da comunidade na validade do Direito e na vigência das instituições.
Ora, considerada a contida ressonância ética do comportamento ora apreciado (na perspectiva do não elevado valor dos bens subtraídos e da circunstância de a vítima ser uma sociedade comercial), que o arguido se mostra familiarmente inserido e que é a primeira vez que o arguido se vê sujeito a um julgamento, cremos que a pena de multa não tenderá, ainda, a ser comunitariamente entendida como uma prova de fraqueza e indulgência contra o crime, surgindo, além do mais, recomendável do ponto de vista das exigências especiais da prevenção.
Deste modo, decide-se optar pela aplicação ao arguido da pena de multa que no tipo alternativamente se coloca.
A medida concreta da pena.
O crime de furto é punido, em abstracto, com uma pena de 10 a 360 dias de multa, conforme o que resulta do disposto no art. 203º do Código Penal.
Dentro da referida moldura, deverá a pena ser concretamente determinada em conformidade com o sistema dos dias de multa proposto pelo legislador no n.º 2 do art.47º daquele diploma legal, procedendo-se à fixação, em primeiro lugar, do número de dias de multa de acordo com o princípio regulador formulado no art. 40º, e, seguidamente, do quantitativo diário a achar dentro dos limites definidos na lei, considerando, para o efeito, a situação económico-financeira da arguida, bem como os respectivos encargos pessoais.
Nos termos que resultam do art. 71º do Cód. Penal, deverá ser a pena determinada, na primeira das operações acima mencionadas, em função da culpa do agente e das exigências da prevenção.
O modelo mais adequado de determinação da pena é, pois, aquele que comete à culpa a função única, mas nem por isso menos decisiva, de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo corresponde às irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico; e, por último, à prevenção especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exacto de pena que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou segurança) do delinquente (cfr. Figueiredo Dias Consequências Jurídicas do Crime, pp. 114 e sgs.).
Tendo, pois, em conta o princípio geral que acaba de ser formulado, deverão ser neste momento consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado, sejam expressivas das necessidades de prevenção.
Assim, no que se reporta aos factores concretos da medida da pena concernentes à execução do facto na perspectiva das consequências produzidas, importará valorar a circunstância de o dano material efectivamente provocado ser relevante, (no total de € 11.444,15).
Salientando a necessidade do reforço punitivo, surge a intensidade da energia criminosa posta na dita execução, denunciada por uma actuação planeada e premeditada.
De relevar é ainda a modalidade do dolo (directo) manifestado no cometimento do crime.
No que respeita à sua conduta anterior aos factos que agora se julgam, há a registar que o arguido não tem antecedentes criminais, circunstância que sugere um juízo de prognose favorável acerca da sensibilidade do mesmo à aplicação da pena e susceptibilidade de por ela ser influenciada.
Em face de tudo o exposto, julga-se adequada a aplicação ao arguido de uma pena que se situe no ponto médio da moldura e, assim, se fixa em 300 dias de multa.
O arguido é empresário, auferindo cerca de € 585,00 mensais, mora com a sua esposa, que tem idêntico rendimento, e três filhos de 12, 8 e 4 anos.
Atento, pois, o descrito circunstancialismo, fixa-se o quantitativo diário a aplicar em € 5,50.
(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, a questão que se suscita é a seguinte:

- Nulidade da sentença proferida nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade.

2Decidindo:

Apreciando, argui o arguido a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade.

Cumpre decidir.
Sob a epígrafe “nulidade da sentença”, dispõe o artigo 379º, do Código de Processo Penal:
“ 1- É nula a sentença:
(…)
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (…)”.

O arguido José, alega a existência de uma nulidade da sentença, por omissão de uma diligência essencial à descoberta da verdade, por não ter sido realizada a inquirição de uma testemunha por si arrolada.

Como consequência desta alegada nulidade, requer o recorrente que a sentença recorrida deverá ser declarada nula e ser ordenada a sua remessa à primeira instância a fim de ser ouvida a testemunha e, após, ser proferida nova sentença, nos termos dos artigos 120°, n° 2, alínea d), 122°, 379°, n° 1, alínea c) e, n° 2, todos do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 340°, n° 1, do mesmo Código de Processo Penal.
Em processo penal e em matéria de nulidades, vigora o princípio da legalidade, segundo o qual, “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, artigo 118°, n° 1, do Código de Processo Penal.
As nulidades dividem-se em nulidades insanáveis — previstas no artigo 119°, do Código de Processo Penal e, as que como tal forem cominadas noutras disposições legais e — nulidades sanáveis, ou dependentes de arguição, previstas no artigo 120°, do mesmo diploma legal.

A nulidade invocada no presente recurso é uma das previstas neste artigo 120°, mais concretamente na alínea d), do n° 2, omissão, em fase de julgamento, de diligência que possa reputar-se essencial para a descoberta da verdade.

Trata-se, assim de uma nulidade do procedimento respeitante à aquisição de meios de prova, cometida pois em momento anterior à sentença, mais concretamente praticada até ao momento em que termina a produção da prova e são produzidas as alegações orais, conforme artigo 360°, n° 1, do Código de Processo Penal, ou, o mais tardar, até ao encerramento da discussão da causa, nos termos do disposto no artigo 361°, n° 2, do mesmo Código.

Os factos que ocorridos na sessão da audiência de julgamento do dia 8 de Maio de 2017, conforme melhor consta da acta de fls. 176 e 177, no decurso da qual e no decurso da produção da prova testemunhal arrolada pelo arguido, após ter sido dada a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido, para se pronunciar sobre a ausência da arrolada testemunha Pedro, foi proferido despacho judicial, “não obstante a posição da defesa relativamente à inquirição da testemunha Pedro, certo é que já a mesma foi notificada por duas para a morada indicada pelo arguido nos autos, sendo que, nessas duas vezes vieram as notificações devolvidas com a indicação de que a pessoa era desconhecida e, numa das vezes, de que o endereço era inclusivamente insuficiente, confrontar fls. 151 e 161.
Considerando a impossibilidade de se notificar a testemunha arrolada pela defesa, torna-se inviável a sus audição, pelo que nada resta senão determinar o prosseguimento da audiência de julgamento com a inquirição da testemunha (…).
Notifique”.

Sendo certo que em 10 de Maio de 2017 e, já após o encerramento da audiência de julgamento, foi junta aos autos certidão da notificação da referida testemunha pela PSP, o que havia sido solicitado oficiosamente pela secretaria do Tribunal.
Sendo certo que em processo penal vigora o princípio da investigação ou da oficiosidade, devendo o tribunal ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade, artigo 340°, n° 1, do Código de Processo Penal, decidiu o tribunal sem a invocada inquirição por impossibilidade da sua realização.

A sentença proferida nos presentes autos, ora recorrida, foi depositada em 17 de Maio de 2017 e, nesse mesmo dia veio o Mandatário do arguido, arguir a nulidade da audiência de julgamento por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade, a inquirição da referida testemunha arrolada pela defesa, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal.

Tal arguição de nulidade foi objecto de despacho judicial, proferido em 14 de Junho de 2017, onde se considerou extemporânea a arguição, porque arguida após o termo do acto onde a mesma eventualmente haveria ocorrido, conforme disposto no artigo 120º, nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal.

Contudo e retornando ao presente recurso, consta-se que a nulidade arguida no mesmo, não se reporta a nenhuma nulidade da sentença, das previstas no artigo 379°, n° 1, alíneas a) a c), do Código de Processo Penal e, nenhuma outra podendo ser aditada, face ao princípio da legalidade.

Por outro lado, só as nulidades da sentença devem ser arguidas e conhecidas em recurso, nos termos do n° 2, da supra citada disposição legal, não podendo este regime ser extensivo às demais nulidades, que têm um regime próprio.

Ou seja, as nulidades por omissão de diligências, nos termos do artigo 120°, n° 1, alínea d), do Código de Processo Penal, por não constituírem nulidades da sentença, mas uma mera nulidade do procedimento, não estão sujeitas ao regime do artigo 379°, mas ao regime de invocação e sanação das nulidades em geral, decorrente dos artigos 120° e 121°, do Código de Processo Penal, pelo que tinha de ser invocada até ao encerramento da audiência de julgamento, conforme artigo 120º, nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal, ou seja a nulidade deve ser arguida "antes que o acto esteja terminado", tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista.

Constata-se, que a aludida nulidade, foi invocada muito para além do termo da audiência de julgamento, ou seja, fora de prazo, quando já estava sanada e, por acaso foi invocada em 17 de Maio de 2017, mas se os factos que fundamentam essa nulidade apenas fossem conhecidos em data muito posterior, ainda assim poder-se-ia invocar tal nulidade, obviamente que não e, o regime legal não poderá variar conforme varia a data do conhecimento do fundamento da nulidade arguida, se for pouco tempo depois poderá ser arguida, mas se for muito tempo depois já não o poderá ser.
O que não viola qualquer garantia de defesa, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do disposto no 14º, nº 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, do disposto no artigo 6º, nº 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal ad quem não pode deixar de julgar improcedente a invocada nulidade da sentença proferida nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por omissão de diligência essencial à descoberta da verdade.

É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal.
Conforme supra referido, a alteração da factualidade assente na 1ª instância também poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, local supra mencionado.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra e local mencionados.
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada.
Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício - cfr. Acórdãos do S.T.J. de 19-09-1990, BMJ 399, pág. 260 e de 26-03-1998, Proc. nº 1483/97.
Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados na acusação e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.
Então do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê, por isso, que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal a quo decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.

Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal a quo, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal ad quem.

Por tal, não resulta existir qualquer dos vícios constantes do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) ou, c), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificado qualquer nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.

Assim, em face de tudo o que se deixa exposto, improcede pois na sua globalidade, o recurso interposto.

Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido José, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.


III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido José e, consequentemente, confirmar na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente que se fixam em 4 UC (quatro unidades de conta), sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto.

Guimarães, 20-02-2018

(Fernando Paiva Gomes M. Pina)
(Maria José dos Santos de Matos)