Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
228/17.4T8VFL-A.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTOS EM PODER DE TERCEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
“É de admitir pedido de requisição de documentos em poder de terceiro, formulado pela ré, se está em causa a salvaguarda da possibilidade de contraprova de um facto novo trazido aos autos na sequência da junção de um documento pela autora e que foi admitido pelo Tribunal”.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I.

Maria intentou contra Fátima, em 05-12-2017, ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €25.000,00, acrescida de €750,68 a título de juros vencidos e vincendos, contados desde 06-03-2017 até efetivo e integral pagamento.

Peticiona a referida quantia a título a título de restituição do montante alegadamente pertença da autora e que esta, com a colaboração da ré, sua irmã, teria depositado em conta bancária da titularidade da primeira, mais alegando, em síntese, que a ré se apropriou indevidamente de tal quantia no dia da abertura da conta, transferindo para uma conta própria o valor ali depositado, sem o seu consentimento, servindo-se para o efeito de uma alegada autorização de movimentação da conta e recusando-se a devolver-lhe o referido valor, como tudo melhor consta do da petição inicial.

A ré contestou, arguindo a exceção de ilegitimidade passiva e requerendo a condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização nunca inferior a € 2.000,00. Impugna a matéria alegada na petição inicial, sustentando, em síntese, que o referido valor pertencia ao acervo hereditário do falecido José, pai das ora autora e ré, não sendo por isso dinheiro próprio da primeira. Sustenta que todos os herdeiros, incluindo as ora autora e ré, acordaram em partilhar o referido valor, o qual estava depositado numa conta titulada pela autora, tendo sido esta a autorizá-la a movimentar a referida conta para que pudesse fazer a partilha daquele montante por todos os herdeiros, na qualidade de cabeça de casal, o que veio a fazer através de diversos movimentos que descreve, como tudo melhor consta da contestação apresentada.

Dispensada a audiência prévia, foi então proferido despacho saneador, em 04-04-2018, após o que se procedeu à identificação do objeto do litígio e à delimitação dos temas da prova, admitindo-se os meios de prova apresentados e designando-se data para a realização da audiência final, nos seguintes termos:
«(…)
Nos termos do disposto no art. 547º do Código de Processo Civil, a tramitação processual foi adequada às especificidades da causa.
*
III. Objecto do litígio

O objecto do litígio consiste em determinar:

i. se a ré pode ser condenada a pagar a quantia peticionada;
ii. Se a autora agiu de má-fé;
*
IV. Temas da prova

Sem prejuízo dos factos instrumentais e complementares que se venham a apurar, desde já se fixam os seguintes temas da prova:

1. Desabilidade da autora.
2. Acordo entre a autora e a ré:
a. Termos do acordo;
b. Processo sucessório;
c. Movimentações por parte da ré;
3. Litigância de má-fé por parte da autora.
*
Admito os documentos e róis de testemunhas indicados.

Admito o pedido de depoimento de parte da autora; providencie pela nomeação de um intérprete de língua gestual.
Notifique o balcão do Banco A de Vila Flor para remeter aos autos os documentos indicados a fls 25 e fls 50.
*
Para a realização da audiência de julgamento da causa designo o dia 30/05/2018, pelas 10h00, com continuação pelas 14h00.
Notifique. (…)»

Em 06-04-2018, a autora veio apresentar requerimento do qual consta, além do mais, o seguinte:

«(…)
como alega na petição e a R. reconhece, a aqui A. é surda-muda, sendo igualmente analfabeta, pelo que desconhece, por completo, o conteúdo dos documentos que mantém na sua posse.

Acontece que, no dia de hoje, uma sua familiar encontrou, entre pertences da A., o documento em anexo (Doc. nº 1), emitido pelo Banco A em 06/03/2018, aquando da abertura das contas bancárias e do depósito do dinheiro aqui em questão. Desse documento consta, por expressa e inevitável informação da aqui R.: “Dinheiro proveniente da pensão e acumulado em casa durante vários anos”.

Tal documento, pelos motivos atrás expostos, não pôde ser apresentado com os articulados da A.; mas porque o mesmo se afigura com interesse para a decisão da causa, requer a respectiva junção aos autos, sem condenação em multa.

Por outro lado, veio também agora ao conhecimento da A. que a R. exerceu as funções de Cabeça de Casal no Processo de Liquidação do Imposto do Selo instaurado por óbito do pai de ambas, A. e R., subscrevendo, nomeadamente, a Relação dos Bens por aquele deixados.

Porque se lhe afigura que interessará, igualmente, á boa decisão da causa a junção de tal Relação de Bens, nomeadamente para comprovar se dela consta a importância aqui em questão, que segundo a R. pertenceria ao falecido, requer se ordene a notificação desta para que junte cópia aos autos».
Em 11-04-2018 veio a ré apresentar requerimento do qual consta, além do mais, o seguinte:

«(…)
No que respeita ao teor do documento apresentado, não pode ainda a R. deixar de referir que, ao contrário do que alega a A., a informação que dele consta não é da sua lavra, pelo que desde já impugna o documento, nos termos do art.º 444 º, do C.P.C.
Contudo, não contesta a informação que consta do documento “dinheiro proveniente da pensão e acumulada em casa durante vários anos”, sendo certo que se reporta não à pensão da A., mas do seu pai.

Atente-se que a pensão irrisória que a A. aufere, mal lhe permite fazer face às suas próprias despesas básicas e a manter um nível de vida minimamente digno, situação que infelizmente afecta uma grande parte da população portuguesa, quanto mais acumular as quantias aqui em discussão.

Mas como forma de dissipar qualquer dúvida que possa subsistir acerca da proveniência daqueles montantes, diligenciará V. Exa. certamente, nos termos do art.º 436º, do C.P.C., por notificar a Segurança Social para que venha juntar aos autos informação acerca das datas entre as quais a A. e o seu pai beneficiaram de pensão e quais os montantes que cada um deles auferiu mensalmente».

Por despacho de 07-05-2018, foi indeferido o requerido pela ré, nos termos seguintes:

« Fls 64 e ss
Atentos os motivos alegados, admito a junção do documento pela autora, não condenando em multa (art. 423º, n.º 2 do Cód de Proc Civil).
Notifique a ré para fazer chegar aos autos, no prazo de 10 (dez) dias, a documentação peticionada pela autora (art. 436º do Cód de Proc Civil).
No que diz respeito ao documento peticionado pela ré, indefere-se por não se vislumbrar qualquer relevância do mesmo na boa decisão da causa.
Vila Flor, ds».

Inconformada, a ré apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação do despacho recorrido, devendo ser determinada a notificação da Segurança Social para que venha juntar ao processo documentos comprovativos dos montantes auferidos, quer pela autora, quer pelo seu pai, a título de pensão pela Segurança Social, e o período de tempo durante o qual tal ocorreu, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«a) Versa o presente recurso sobre o Despacho proferido em 07-05-2018, que decidiu pelo indeferimento da pretensão da Ré Apelante. a notificação da Segurança Social para junção aos autos de documento que visava para contrariar um facto novo que a A. acabara de trazer ao processo.
b) A R. havia requerido a notificação da Segurança Social para junção aos autos de documentos comprovativos da pensão que a A. e o seu pai auferiam e indicação do período de tempo durante o qual tal ocorreu.
c) Isto porque a A., apenas no acto imediatamente anterior e por via de requerimento, havia trazido ao processo um novo facto, ou seja, que a quantia em discussão havia sido acumulado fruto da pensão que auferia.
d) O deferimento do requerimento da R. visava contrariar um facto que apenas naquele momento havia sido trazido ao processo.
e) E por isso apenas naquele momento se justificava que tal se requeresse, em benefício da descoberta da verdade.
f) O Tribunal a quo, ao desconsiderar a fundamentação apresentada pela R., prejudicou a boa descoberta da verdade, a boa decisão da causa e causou uma limitação ao seu direito de defesa.
g) O Tribunal a quo ao entender que o peticionado pela R. Apelante não era essencial à boa decisão da causa, violou por erro de interpretação art.º 423º, n.º 3, in fine, do C.P.C.

Para efeitos de cumprimento do previsto no artigo 646.º n.º 1 do CPC, desde já se indica como peças do processo para instruir o presente recurso as seguintes:

a. Requerimento da A. de 06-04-2018, com a ref.ª 28753297;
b. Requerimento da R. de 11-04-2018, com a ref.ª 28804925;
c. Despacho de 07-05-2018, com a ref.ª 21105457.

Nestes termos e nos mais de Direito deve o presente Recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e deferindo-se o requerimento apresentado pela R. Apelante de 11-04-2018, com a ref.ª 28804925.
Assim decidindo, farão Vªs Exªs, Aliás como sempre, JUSTIÇA!»
Não foram apresentadas contra-alegações.

II.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o objeto do presente recurso circunscreve-se à questão de saber se é de determinar a diligência probatória requerida pela ré.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III.

1. Os factos

Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra.

2. O direito

A recorrente insurge-se contra o despacho que indeferiu o requerimento apresentado junto do Tribunal a quo visando a requisição de informações junto da Segurança Social, com fundamento na irrelevância do mesmo para a boa decisão da causa.
A requisição de documentos pelo tribunal encontra-se prevista nos artigos 429.º e 436.º do Código de Processo Civil (CPC), prevendo-se no n.º 2 deste último, de forma mais alargada, a possibilidade de tal requisição ser feita aos organismos oficiais ou a terceiros, para além das partes.

Neste domínio, o citado 436.º, n.º 1 do CPC, com a epígrafe Requisição de documentos, dispõe o seguinte:

«1 - Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade».

O que está em causa na presente apelação é saber se se justifica a requisição das informações pretendidas pela ré junto dos serviços da Segurança Social, não se mostrando controvertida nos autos a oportunidade ou o momento da dedução de tal pretensão pela recorrente, tanto mais que, conforme resulta das ocorrências supra elencadas em I., a pretensão probatória aqui em apreciação surgiu na sequência da informação resultante de documento apresentado pela autora e admitido pelo Tribunal recorrido em momento posterior ao da apresentação do articulado respectivo, bem como à prolação do despacho que procedeu à identificação do objeto do litígio, à delimitação dos temas da prova e admitiu os meios probatórios.

Mais se verifica que não foi posta em causa em nenhum momento, muito menos na decisão recorrida, a necessidade de recurso à intervenção do Tribunal para obtenção do documento em causa, resultando notória e justificada a dificuldade ou mesmo a impossibilidade para a parte em aceder às referidas informações, atendendo à sua natureza e à da entidade detentora das mesmas, porquanto em princípio só serão acessíveis com o consentimento dos beneficiários em causa.

Resta, então, verificar se as informações cuja requisição foi requerida são ou não necessárias ao esclarecimento da verdade.

Comentando o regime emergente do citado artigo 436.º do CPC, em anotação ao referido preceito, referem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, 2.º Volume, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 256): «Designadamente, perante o requerimento da parte, o juiz deve decidir sobre a requisição considerando todas as circunstâncias atendíveis e tendo em conta a boa instrução do processo», esclarecendo depois, na anotação ao artigo 443.º do CPC, para o qual remetem no local antes citado (ob. cit.,p. 263): «o juiz rejeita os documentos impertinentes, isto é, que representem factos irrelevantes para a decisão da causa (…) ou desnecessários, isto é, que representem factos já provados (designadamente por admissão)».

A aferição da relevância dos documentos, enquanto meios probatórios, deve passar pela delimitação concreta, em cada causa, do respetivo objeto da instrução, o que nos remete para o que dispõe o artigo 410.º do CPC, com a epígrafe Objeto da instrução, o qual prevê que «a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova».

Ora, a propósito da atual redação do artigo 410.º do CPC, antes citado, diz-nos José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 207): «Assim, é com incorreção terminológica que o art. 410 diz que a instrução tem por “objeto” os temas da prova enunciados e, pleonasticamente, que, só na falta dessa enunciação o seu objeto são os factos “necessitados de prova”. Provam-se factos; não se provam temas». E, neste domínio, esclarece ainda o referido Autor (ob. cit.,p. 206): «os temas da prova (…) constituem apenas quadros de referência, dentro dos quais há que recorrer, como no CPC de 1961, aos factos alegados pelas partes.

Estes factos são, em primeira linha, os factos principais da causa. Mas, com os factos instrumentais se constituindo a via a seguir, de acordo com as regras da experiência para a tingir a prova dos factos principais, também eles são objeto de prova.

(…) Ponto é que os factos instrumentais se situem na cadeia dos factos probatórios que permitem chegar aos factos principais que as partes tenham alegado, ou constituam factos acessórios relativamente a esses (…)».

Feito este enquadramento, e revertendo ao caso concreto, verifica-se que o objeto do litígio foi já identificado pelo Tribunal recorrido, elencando ainda os temas da prova, nos termos que já resultam das ocorrências elencadas em I. supra. Posteriormente à delimitação do objeto do litígio, à enunciação dos temas da prova e à admissão dos meios probatórios, veio o referido Tribunal a deferir um requerimento apresentado pela autora no sentido de juntar aos autos um documento emitido pelo Banco A aquando da abertura das contas bancárias e do depósito do montante pecuniário em causa na ação, consubstanciando o referido documento uma alegada declaração da ré, na qual alude a «Dinheiro proveniente da pensão e acumulado em casa durante vários anos».

Verifica-se, assim, que o pedido da ré surge na sequência da junção de um outro documento apresentado pela autora e admitido pelo Tribunal já após a admissão dos meios probatórios, sendo indiscutível, por outro lado, que os factos em causa consubstanciam factos instrumentais, indiciários ou presuntivos dos factos essenciais estruturantes da causa de pedir, como tal dotados de pertinência e relevância para a decisão da causa, tal como prevê o artigo 5.º, n.º 2, al. a) do CPC.

Neste contexto, julgamos que não podem suscitar-se reservas quanto à admissibilidade do pedido de requisição de documentos em poder de terceiro, tal como formulado pela ré, destinado à contraprova de um facto novo trazido aos autos pela autora - o de que a quantia em discussão havia sido acumulada em resultado da pensão auferida por esta - só assim se salvaguardando a possibilidade de contraprova desses factos e o princípio da aquisição processual atualmente consagrado no artigo 413.º do CPC.
Em consequência, é manifesto que a pretendida requisição de informações junto da Segurança Social não se revela impertinente nem dilatória em face do objeto do processo, devendo a mesma ser deferida pelo Tribunal
Cumpre, assim, julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida.

Sumário:

É de admitir pedido de requisição de documentos em poder de terceiro, formulado pela ré, se está em causa a salvaguarda da possibilidade de contraprova de um facto novo trazido aos autos na sequência da junção de um documento pela autora e que foi admitido pelo Tribunal.

IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, devendo ser proferido novo despacho que determine a realização das diligências de prova requeridas pela recorrente.
Sem custas.
Guimarães, 27 de setembro de 2018

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar
Eva Almeida