Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1613/17.7T8VRL.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: CASAMENTO
INEXISTÊNCIA
ANULABILIDADE
COMPETÊNCIA DO CONSERVADOR
COMPETÊNCIA DOS AJUDANTES DO CONSERVADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Segundo a regra geral de validade enunciada no art. 1627º do CC, o casamento civil é válido a menos que se verifique alguma das causas de inexistência ou anulabilidade taxativamente especificadas na lei (arts. 1628º e 1631º).
II- A situação prevista na al. c) do art. 1628º do CC distingue-se da indicada na al. b) do art. 1631º e na al. a) do art. 1635º do CC nos seus termos e efeitos: ali tem-se em vista a falta da própria declaração da vontade de um ou ambos os nubentes, que conduz à inexistência jurídica do casamento; na segunda hipótese, há declaração da vontade, mas quem a fez não tinha consciência do sentido das palavras que proferiu, porque se encontrava acidentalmente incapaz ou por outra causa, o que é fundamento de anulabilidade do casamento.
III- Sendo da competência do conservador a celebração do casamento (art. 153º, n.º 2 do CRC e arts. 2º e 3º do Dec. Lei n.º 236/2001), tal competência não é exclusiva, na medida em que a lei permite que estando o conservador indisponível possa ser designado, em sua substituição, um oficial de registos, de acordo com a hierarquia funcional.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

S. M. intentou contra M. L. a presente ação declarativa de condenação, sob a forma comum, peticionando que:

a) se declare inexistente o casamento celebrado entre a ré e S. M., pai do autor, no dia 16 de Outubro de 2013, a que foi atribuído o processo número 4596/2013, por ter faltado a declaração de vontade do nubente S. M., nos termos do disposto no ar. 1628º, alínea c), do Código Civil; em consequência, deve decretar-se e ordenar-se o averbamento dessa inexistência ao respectivo registo e procedendo-se, em consequência, às demais providências prescritas na lei do registo civil, nomeadamente, ao cancelamento do dito registo de casamento.

Ou, se assim se não ver a entender:
b) se declare inexistente o identificado casamento por ter sido celebrado por pessoa sem competência para tal ou, ainda, terem sido infringidos os preceitos imperativos da lei e, em consequência, ordenar-se o averbamento dessa inexistência ao respectivo registo e procedendo-se, em consequência, às demais providências prescritas na lei do registo civil, nomeadamente, ao cancelamento do dito registo de casamento.
Para tanto alegou, em síntese, que é filho de S. M. e de M. H..
Os pais do autor eram casados no regime da comunhão geral de bens.
A mãe do autor faleceu no dia - de fevereiro de 2013 e o pai faleceu no dia - de novembro de 2016.
No dia 16 de agosto de 2013, o pai do autor foi vítima de um acidente vascular cerebral, tendo sido internado no Hospital da Santa Casa da Misericórdia do ... no dia 28 de agosto de 2013.
No dia 16 de outubro de 2013, sem que ninguém se tivesse apercebido, o pai do autor desapareceu daquela unidade de saúde. Tal facto foi participado à guarda nacional republicana do Marco de Canaveses, vindo a desvendar que o pai do autor tinha sido retirado pela ré e dois senhores da instituição, conduzindo-o à Conservatória do Registo Civil ..., onde foi celebrado casamento com a ré.
O pai do autor, à data do casamento e muito antes, não tinha habilidade para entender o sentido da declaração de que celebrava o casamento de livre vontade.
Além de que o casamento foi celebrado perante ajudante em substituição legal, quando devia ser perante conservador, pelo que o ato é ilegal e, como tal, nulo.
*
Citada, contestou a Ré, pugnando pela improcedência da ação.
Alegou, em resumo, que a ré e o pai do autor mantiveram, durante mais de 20 anos, uma relação amorosa, que só terminou por morte deste, que era do conhecimento do autor e restante família.
Nos últimos 15 anos, o S. M. viveu permanentemente em casa da ré, para onde regressou após alta hospitalar.
A ré, por insistência do seu companheiro, aceitou casar com S. M., sendo esse casamento realizado de forma livre e consciente, e por quem tinha competência na Conservatória do Registo Civil ....
*
Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi elaborado despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância; foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os meios de prova.
*
Procedeu-se a audiência de julgamento.
*
Posteriormente, o Mm.º Julgador “a quo” proferiu sentença, nos termos da qual, julgando a ação procedente, declarou inexistente o casamento celebrado entre a ré e S. M., no dia 16 de outubro de 2013, por ter faltado a declaração de vontade deste nubente, com o consequente averbamento dessa inexistência ao assento de casamento de S. M. com a ré, bem como ao assento de nascimento de S. M. e da ré.
*
Inconformada, a Ré interpôs recurso da sentença e, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.
O profuso acervo documental junto aos autos permite colher um dado relevante para o que a esta lide importa: segundo os registos dos serviços de enfermagem respetivos, o doente deu entrada na unidade de saúde do Marco de Canaveses, em 14 de setembro de 2013, ‘consciente e orientado’ [sublinhado nosso] e assim se manteve ao longo de todo o período documentado.
2.
No jargão clínico, “doente consciente” é aquele que está lúcido, orientado no tempo e no espaço e colaborante; mesmo na linguagem vulgar, consciente diz-se de quem sente, pensa e atua com conhecimento daquilo que faz.
3.
Raciocinando ex absurdo poder-se-ia considerar que esses registos eram tabelares, se não resultassem – como resultam – expressamente corroborados no relatório psiquiátrico de 06.11. 2013;
4.
O sobredito relatório psiquiátrico foi efetuado mais de três semanas depois do casamento sub judicio e elaborado a pedido da nora do paciente, para instruir a presente ação [cfr. depoimento de M. M.: dia 12-06-2019 dos 45:28 minutos aos 45:42 minutos]R
5.
R mas, não obstante, a médica psiquiátrica, não ousando comprometer-se de forma apodítica com a tese do autor, cautelosamente refere que “dado o quadro relativamente recente de pós/AVC isquémico, compatível habitualmente com quadros de ‘delirium’, será prudente aguardar a evolução do quadro clínico para melhor caracterizar o provável quadro demencial”.
6.
A testemunha S. M., enfermeira, reportando-se à ré, afirmou a dado passo do seu depoimento, como adrede se refere na sentença recorrida: “essa senhora nunca tinha manifestado que ia casar”; e mais adiante “ele não tinha capacidade de entender que foi casar”.
7.
Por seu turno, a testemunha A. P., médica, que era a “diretora daquele serviço”, “um dia viu o Sr. S. M. vestido e essa senhora vestida e dois senhores que transportavam o doente de cadeira de rodas para a porta de saída. Viu o carro a sair do hospital. O enfermeiro sinalizou à guarda nacional republicana que tinham tirado um senhor do hospital. Suspeitaram que iam casar [sublinhado nosso] – o enfermeiro ligou para a conservatória, que lhe confirmaram que estava lá um senhor de cadeira de rodas e uma senhora de vermelho, para se casarem”.
8.
Os dois depoimentos exarados em 6 e 7 supra não se coadunam entre si e fogem à normalidade das coisas, pois, se nunca a ré tinha manifestado que ia casar, a apelante interroga-se, de forma retórica, como poderia a médica suspeitar que isso fosse acontecer, a ponto de telefonar para a conservatória, quando o paciente foi retirado do hospital; e como é que uma médica, que é diretora de um dado serviço, vê retirarem daí um paciente seu e não questiona a razão desse ato.
9.
Ainda, segundo a sentença recorrida, a identificada médica, drª A. P., refere que a sua Colega de psiquiatria, drª S. Q., avaliou o Sr. S. M. e “disse que ele tinha um quadro demencial – quadro cognitivo afetado – não tinha raciocínio lógico, coerente”....
10.
…sendo que esse diagnóstico não vem plasmado no relatório de avaliação da identificada perita, onde, ao invés, se lê que “segundo enfermagem, e pelos registos do diário clínico, o comportamento global do doente tem sido relativamente adequado, ainda que com períodos de alguma confusão mental, sobretudo à noite e quando em situação de stress.
Ao EEM, vigil, colaborante na entrevista mas progressivamente menos, com o desenrolar da entrevista e a presença dos familiares diretos (nora e filho), juntamente com a esposa legal (que entretanto chegou) = discurso coerente no global = atenção captável e mantida = alguma labilidade emocional (sobretudo quando fala da esposa, com quem casou recentemente) = Mantém relativa noção do dinheiro =Dado o quadro relativamente recente de pós/AVC isquémico, compatível habitualmente com quadros de ‘delirium’, será prudente aguardar a evolução do quadro clínico para melhor caracterizar o provável quadro demencial”.
11.
Se o Tribunal a quo tivesse cotejado os depoimentos dos familiares do autor (filho, esposa e tio) com os documentos que instruem o processo, considerá-los-ia totalmente desprovidos de credibilidade, pois nesses depoimentos quis-se fazer crer que o pai do autor estava em estado quase vegetativo; e essa situação é totalmente negada pelos registos de enfermagem, pelos registos do diário clínico e pelo relatório da médica psiquiatra juntos aos autos.
12.
Nesse conspecto, o Tribunal recorrido, à semelhança do santo que desconfia quando a esmola é grande, deveria ter desacreditado tais depoimentos, por desregramento e inverosimilhança.
13.
O Tribunal recorrido não acolheu o testemunho de A. M., que exerce funções como oficial de registos na conservatória do registo Civil ... e que foi a pessoa que celebrou o casamento, dada “a forma titubeante, hesitante, como foi prestando o seu depoimento”.
14.
Ora, esse depoimento foi prestado por videoconferência, em circunstância que, já de si, mitiga o princípio da imediação – tão encomiado nos julgamentos da 1ª instância –, dado que não permite avaliar se a testemunha ruboriza, fica inquieta ou tremelica ao depor, sendo que, à distância, o julgador só poderá apreciar a verbalização e não o contexto em que ela acontece.
15.
Na referida circunstância, o que ouviu o Mº Juiz a quo é igualmente audível na gravação que foi disponibilizada à recorrente, onde não se percebe nenhuma titubeação ou hesitação – antes, no que para este caso importa, o depoimento desconsiderado mostra-se assertivo, espontâneo e sem tergiversação alguma, como transparece na gravação áudio entre o minuto 1:18 e 5:35; e aos minutos 15:02; 15:50; 20:10 e 20:52.
16.
Compendiando tudo o que antecede, a análise critica de todos os elementos de prova existentes nos autos deveria conduzir a que se considerasse não provado que:
- O móbil que superintendeu à mencionada conduta da ré foi a concretização do plano que há muito projetava, isto é, contrair casamento com o pai do autor, apesar de saber que este nunca o quis fazer.
- À data da celebração do casamento o pai do autor não apresentava condições de saúde mental que lhe possibilitassem compreender e saber o que fazia e nunca tinha manifestado qualquer intenção de contrair casamento com a ré.
- O que era conhecimento desta.
17.
E, nas mesmas circunstâncias, deveria considerar-se provado, embora restritivamente, o facto exarado sob o nº 19º dos temas de prova, decidindo-se que:
- No ato deste seu casamento, o pai do autor preservava intactas as suas faculdades mentais.
***
18.
Também quanto à aplicação do direito merece censura a sentença sub specie.
19.
É que, com a petição inicial, o autor anexou a certidão do casamento acometido, que consta do documento n.º 7 junto com o articulado.
20.
Essa certidão é um documento autêntico, à luz do disposto nos artigos 362º e 363º, n.os 1 e 2, do Cód. Civil.
21.
Ora, “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora” (cfr. artigo 371º, n.º 1, do Código Civil).
22.
Tal força probatória “só pode ser ilidida com base na sua falsidade” (cfr. artigo 372º, n.º 1, do Código Civil).
23.
Naquela certidão refere-se que “os nubentes declararam celebrar de livre vontade o seu casamento, perante o Ajudante em substituição legal”
24.
Não foi alegado, nem foi demonstrado, que esse facto na realidade se não verificou, como se exige no nº 2 do artigo 372º do Cód. Civil, para excluir a força probatória plena do documento autêntico – é, aliás, o contrário que resulta, sem equívoco, do depoimento do oficial público que celebrou o casamento.
25.
Por isso, é matéria de prova tarifada que ambos os nubentes declararam perante o oficial público respetivo a sua vontade livre de celebrar o casamento.
26.
A sentença sub judicio fundamenta-se no disposto na alínea c) do artigo 1628º do Código Civil, onde se estatui que é juridicamente inexistente o casamento em cuja celebração tenha faltado a declaração de vontade de um ou ambos os nubentes.
27.
Porém, salvo melhor opinião em contrário, a disposição legal convocada – alínea c) do artigo 1628º do Código Civil – é inaplicável in casu., pois, parafraseando ipsis verbis o Prof. Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. IV, pág. 158, nota 7ª), aquela norma “refere-se à falta de declaração expressa da vontade dos nubentes, que não corresponde exatamente à falta de vontade.
[R] Uma vez manifestada a vontade de ambos os nubentes, o casamento ingressa na ordem jurídica, mesmo que não haja realmente vontade válida do declarante, [caso em que] fica apenas sujeito ao regime da anulabilidade”.
28.
Sendo, pois, incontroverso, em face da prova tarifada existente nos autos, que ambos os nubentes manifestaram a sua vontade de contrair matrimónio perante o oficial público, aquele casamento ingressou na ordem jurídica – não podendo, assim, ser declarado inexistente; apenas se poderia invocar a respetiva anulabilidade, por falta de vontade do nubente.
29.
Sucede, porém, que o autor, quando intentou a presente ação, não dispunha de legitimidade (cfr. artigo 1640º, n.º 2, do Cód. Civil), nem estava em prazo (cfr. artigo 287º, n.º 1, do Cód. Civil) para arguir a anulabilidade do casamento; e, por isso, capciosamente confundiu as figuras jurídicas da falta de vontade do nubente com a falta de declaração [dessa] vontade, para poder introduzir em juízo esta ação.
30.
Mas, ao dar guarida à tese do autor, o Tribunal recorrido fez uma errónea aplicação do direito.
31.
A sentença recorrida violou o disposto no artigo 607º, n.os 4 e 5, do Cód. Proc. Civil e nos artigos 363º, nos 1 e 2; 371º, n.º 1, e 1628º, alínea c), do Cód. Civil.

Pelo exposto e pelo muito mais que V.as Ex.as, Venerandos Desembargadores, proficientemente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso, revogando a sentença recorrida e considerando a ação improcedente,
farão a costumada
J U S T I Ç A !».
*
Contra-alegou o autor, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão recorrida.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].

No caso, por ordem lógica da sua apreciação, apresentam-se as seguintes questões a decidir:

i) - Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
ii) - Da inexistência do casamento.
*
III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto.

- A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1º) O autor é filho de S. M. e de M. H. (alínea A) dos factos assentes).
2º) Os pais do autor eram casados entre si no regime de comunhão geral de bens (alínea B) dos factos assentes).
3º) A mãe do autor, M. H., faleceu no dia - de fevereiro de 2013, deixando como seus únicos sucessores, o cônjuge/pai do autor e este (alínea C) dos factos assentes).
4º) O pai do autor faleceu no dia 30 de novembro de 2016 (alínea D) dos factos assentes).
5º) No dia 16 de outubro de 2013, pelas 12 horas e 35 minutos, foi celebrado na conservatória do registo Civil ..., pelo 2º ajudante do conservador, casamento entre o pai do autor e a ré (alínea E) dos factos assentes).
6º) Imediatamente ao decesso da mãe do autor, o pai deste, à data com 79 anos de idade, começou a manifestar problemas de saúde, que impuseram, por diversas vezes, que fosse transportado a diferentes centros hospitalares, para ser observado, diagnosticado e medicado (artigo 1º dos temas da prova).
7º) Tais problemas de saúde foram-se agravando de dia após dia, até que no dia 16 de agosto de 2013, o pai do autor foi vítima de um acidente vascular cerebral, conhecido por “derrame cerebral”, medicamente designado pela sigla “AVC” (artigo 2º dos temas da prova).
8º) Diagnosticado pelos médicos do hospital para onde foi conduzido (artigo 3º dos temas da prova).
9º) Por via da doença que o acometeu, da sua avançada idade e ouros motivos, o médico responsável sugeriu ao autor que o pai fosse internado/hospitalizado com vista ao controlo da doença e da sua reabilitação (artigo 4º dos temas da prova).
10º) O autor acolheu a sugestão do médico responsável e internou/hospitalizou o pai no hospital da santa casa da Misericórdia do .../SCMMM, no dia 28 de agosto de 2013 (artigo 5º dos temas da prova).
11º) Durante o período em que esteve internado na referida unidade de saúde, o pai do autor foi “por alterações do comportamento e vómitos”, conduzido no dia 14 de setembro de 2013, ao “centro hospitalar do Tâmega e sousa”, tendo regressado no mesmo dia à SCMMC (artigo 6º dos temas da prova).
12º) No dia 16 de outubro de 2013, sem que ninguém se tivesse apercebido, o pai do autor desapareceu daquela unidade de saúde (artigo 7º dos temas da prova).
13º) O pai do autor foi retirado pela ré e por dois senhores da instituição sem que ninguém se apercebesse (artigo 8º dos temas da prova).
14º) A ré e aqueles senhores, para o efeito, devido à perda de mobilidade do pai do autor, utilizaram uma cadeira de rodas e um veículo automóvel (artigo 9º dos temas da prova).
15º) O móbil que superintendeu à mencionada conduta da ré foi a concretização do plano que há muito projetava, isto é, contrair casamento com o pai do autor, apesar de saber que este nunca o quis fazer (artigo 10º dos temas da prova).
16º) À data da celebração do casamento o pai do autor não apresentava condições de saúde mental que lhe possibilitassem compreender e saber o que fazia e nunca tinha manifestado qualquer intenção de contrair casamento com a ré (artigo 11º dos temas da prova).
17º) O que era conhecimento desta (artigo 12º dos temas da prova).
*
- E deu como não provados os seguintes factos:

a) A ré e o pai do autor mantiveram durante mais de 20 anos uma relação amorosa, que só terminou com a morte deste (artigo 13º dos temas da prova).
b) essa relação foi sempre do conhecimento do autor e de toda a restante família (artigo 14º dos temas da prova).
c) Nos últimos 15 anos o pai do autor viveu permanentemente em casa da ré (artigo 15º dos temas da prova).
d) E para onde regressou após a alta hospitalar (artigo 16º dos temas da prova).
e) Para “formalizar” essa longa relação, a estímulo e por insistência do seu companheiro, a ré aceitou casar com S. M. (artigo 17º dos temas da prova).
f) A doença que o acometeu apenas lhe tolheu a mobilidade (artigo 18º dos temas da prova).
g) Até à sua morte o pai do autor preservou intactas as suas faculdades mentais (artigo 19º dos temas da prova).
*
V. Fundamentação de direito.

1. Da impugnação da matéria de facto.

1.1. Em sede de recurso, a apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o/a recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, o qual dispõe que:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».

Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que a recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua ótica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, procedendo inclusivamente à respectiva transcrição de excertos dos depoimentos testemunhais que considera relevantes para o efeito, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art. 640º.
*
1.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o art. 662.º, n.º 1, do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.

O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se, resumidamente, de acordo com os seguintes parâmetros (1):

- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes).
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância.
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de reapreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão.
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com benefício da imediação e oralidade - apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
*
1.3. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a Ré/recorrente pretende:
i) - a alteração da resposta positiva para negativa dos pontos 15, 16 e 17 da matéria de facto provada da decisão recorrida (2);
ii) - a alteração da resposta negativa para positiva, embora restritivamente, do item g) da matéria de facto não provada da decisão recorrida (3).
No dizer da impugnante, a decisão da matéria de facto impugnada padece de erros de julgamento, porquanto: i) os documentos juntos aos autos apontam em sentido diverso daquele que foi apreendido pelo Tribunal recorrido; ii) os depoimentos das técnicas de saúde ouvidas como testemunhas apresentam fragilidades; iii) são parciais e inócuos os depoimentos dos familiares; iv) da essencialidade, para a boa decisão da causa, do testemunho, desprezado, do Oficial Público que celebrou o casamento.
Na apreciação da impugnação em apreço procuraremos seguir a ordem sequencial das críticas apontadas à decisão da matéria de facto.
Segundo a recorrente, o profuso acervo documental junto aos autos, dos quais se destacam os registos dos serviços de enfermagem, permitem colher um dado relevante para a presente lide, qual seja, o de que «o doente deu entrada na unidade de saúde do Marco de Canaveses, em 14 de setembro de 2013, ‘consciente e orientado’ e assim se manteve ao longo de todo o período documentado».
Acrescenta que, «no jargão clínico, “doente consciente” é aquele que está lúcido, orientado no tempo e no espaço e colaborante; mesmo na linguagem vulgar, consciente diz-se de quem sente, pensa e atua com conhecimento daquilo que faz».
Mais refere que tais registos resultam expressamente corroborados no relatório psiquiátrico de 06.11.2013, o qual, não obstante efectuado mais de três semanas depois do casamento em causa e elaborado a pedido da nora do paciente para instruir a presente acção, não suporta a tese do autor, visto ser inconclusivo quanto a um eventual quadro de demência do enfermo. Isto porque, «estando protocolado que, na sequência de um AVC isquémico, pode sobrevir um quadro de “delirium”, no caso e à data da avaliação esse quadro não se recortava com nitidez».
Dito isto e analisando os registos clínicos carreados aos autos, importa, antes de mais, destacar o relatório clínico da Santa Casa da Misericórdia de Marco de Canaveses, datado de 29/05/2017 (cfr. fls. 27 e 28), cuja informação clínica se baseou nos registos do processo 106889, referentes ao internamento do doente S. M. (pai do autor).
Aí se especificou:
«O Sr. S. M. esteve internado na nossa instituição de 28/08/2013 a 29/11/2013.
Trata-se de um doente de 79 anos, à referida data, vítima de AVC (acidente vascular cerebral) em Agosto de 2013, inicialmente abordado no HPP (Hospital da Boavista).
Admitido a 28/08/2013 na SCMMC por:
AVC isquémico da ACA (artéria cerebral anterior) direita do qual resultou disartria e hemiparesia esquerda de predomínio crural e quadro de desorientação temporo-espacial.
Antecedentes pessoais: Hipertensão arterial; Diabetes mellitus tipo 2, Cardiopatia hipertensiva.
Durante o internamento foi avaliado e iniciou tratamento por Medicina Física e de Reabilitação. Procedeu-se ainda ao ajuste da terapêutica antihipertensora e para a diabetes.
Transferido a 14/09/2013 para o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa por alterações do comportamento e vómitos, tendo sido objectivada infecção respiratória, pelo que regressou à SCMMC nesse mesmo dia, medicado com ceftriaxone e claritromicina.
Na manhã dia 16/10/2013, terá abandonado a instituição, segundo registos, na companhia de dois senhores e uma senhora, sem autorização dos familiares. Esta ocorrência terá sido comunicada aos familiares e à GNR (Guarda Nacional Republicana). Teve alta por abandono.
Readmitido nessa mesma tarde, pelas 14h, estando registado que viria acompanhado da D. M. L., com quem teria contraído matrimónio nesse dia, durante a ausência da instituição.
Foi avaliado por Psiquiatria a 6/11/2013, concluindo-se por provável síndrome demencial em contexto da doença cerebrovascular, para seguimento posterior e melhor esclarecimento do estado psicológico do Sr. S. M.».
Por sua vez, se analisarmos detalhadamente os relatórios diários de internamento do utente S. M. (cfr. fls. 80 a 92 e 145 a 152), cujo início de tratamento se reporta a 28/08/2013 e o seu termo (alta) a 29/11/2013, aquando do diagnóstico provisório, efectuado na data do internamento, foi considerado como “vigil, colaborante, orientado no espaço (cidade, hospital)», mas «desorientado no tempo”; em 2/09/2013, consta como «doente vigil, colaborante, orientado»; em 3/09/2013, “vigil, colaborante e discurso coerente”; em 4/09/2013, «doente colaborante, desorientado»; em 10/09/2013, «mantém vigil, orientado e bem disposto e colaborante»; em 11/09/2013, «clinicamente estável», «bem disposto», «pediu consulta médica para insónias»; em 20/09/2013, «doente vigil, colaborante, orientado no espaço»; em 23/09/2013, «mesmo estado clínico»; em 26/09/2013, «está vigil, colaborante, orientado»; em 27/09/2013, «está vigil e colaborante»; em 3/10/2013, «vigil, colaborante, orientado no espaço e tempo (dia, semana, mês); em 4/10/2013, «doente vigil, colaborante, bem disposto»; pelas 9h30m «desorientado»; em 10/10/2013 “mais ansioso (problemas familiares); em 16/10/2013, 9h, «doente vigil, bem disposto, desorientado», «discurso confuso»; em 23/10/2013, «vigil, colaborante, desorientado no tempo» «discurso pobre em conteúdo»; em 25/10/2013, «não sabe dia da semana; sabe ano e mês; não acerta dia do mês» «sabe onde está, sabe que está no andar da parte da rua».
E, por referência aos registos de enfermagem, constam, entre outros, os seguintes registos: no dia 28/08/2013, “doente admitido no serviço com o diagnóstico de AVC isquémico do qual resultou hemiparesia à esquerda disartria (…) está consciente e orientado”; em 30/08/2013, “doente bem disposto”; em 31/08/2013, “bem disposto”; em 6/09/2013, “doente orientado, calmo”; em 11/09/2013, “hoje mais desorientado por vezes confuso”; em 14/09/2013, “doente regressou do CHTS às 18h consciente e orientado”; “doente orientado, calmo e colaborante”; “doente consciente e orientado”; em 15/09/2013, “doente consciente e orientado”; em 18/09/2013, “doente bem disposto”; “doente consciente e orientado, calmo”; em 19/09/2013, “doente bem disposto”; em 10/10/2013, “estava calmo e sonolento”; em 14/10/2013, “apresenta no início do turno períodos de desorientação e agitação”; em 27/10/2013, em 27/10/2013, doente “consciente e orientado no T/E”; em 8/11/2013, doente “consciente, aparentemente orientado no T/E”; em 11/11/2013, “doente consciente, aparentemente orientado”; em 20/11/2013, doente “consciente, orientado no T/E colaborante”.

Por fim, no relatório de psiquiatria, na sequência da consulta ocorrida em 6/11/2013, a Dr.ª S. S., psiquiatra, exarou:
“(…) segundo enfermagem, e pelos registos do diário clínico, o comportamento global do doente tem sido relativamente adequado, ainda que com períodos de alguma confusão mental, sobretudo à noite e quando em situação de stress.
Ao EEM, vigil, colaborante na entrevista mas progressivamente menos, com o desenrolar da entrevista e a presença dos familiares diretos (nora e filho), juntamente com a esposa legal (que entretanto chegou) (…); discurso coerente no global, desorientado no espaço, sub-orientado no tempo (falta o mês, o dia do mês); (…); atenção captável e mantida (…); alguma labilidade emocional (sobretudo quando fala da esposa, com quem casou recentemente); Mantém relativa noção do dinheiro (…); Dado o quadro relativamente recente de pós/AVC isquémico, compatível habitualmente com quadros de ‘delirium’ (sind. confusional, de natureza flutuante), será prudente aguardar a evolução do quadro clínico para melhor caracterizar o provável quadro demencial (…)”.
No tocante ao teor do referido relatório da espacialidade importa deixar consignado não se mostrarem verificadas as apontadas imputações de parcialidade apontadas pela recorrente quanto à sua elaboração, posto que não é pelo facto de o referido relatório ter sido solicitado pela mulher do autor/recorrido já após a celebração do casamento objecto dos autos que lhe retira a credibilidade probatória que o mesmo é capaz de aportar.
Desde logo, porque a recorrente limita-se a invocar genericamente a falta de validade probatória desse relatório por o mesmo ter sido solicitado pela mulher do autor, mas não especifica razões concretas que abalem ou comprometam o que nele foi exarado em termos de avaliação clínica e das conclusões nele tecidas (com as quais, de resto, parece concordar, invocando-as em abono da procedência da sua pretensão impugnatória).
Sempre se dirá que, segundo a prova produzida, já antes da celebração do casamento referenciado nos autos o utente S. M. tinha agendada uma consulta de psiquiatria, que só não se realizou porque entretanto a médica teve um acidente de viação, pelo que houve necessidade de a remarcar. Aliás, se atentarmos no registo médico referente ao dia 14/10/2013 – do qual consta que «Fui contactada pelo filho e nora do doente no sentido de não permitir que o doente vá a consulta, como a CE Psiquiatria de amanhã – adia-se consulta por não poderem estar presentes” – reforçada sai a convicção no sentido da consulta na especialidade de Psiquiatria estar já agendada antes da data da celebração do casamento.
Resumidamente, dos referidos registos clínicos é possível extrair que, na sequência das lesões sofridas pelo AVC (AVC isquémico da ACA), o sr. S. M. ficou a padecer de sequelas que determinaram o seu internamento hospitalar, sendo que ao nível cognitivo (faculdades mentais) passou a apresentar oscilações, ora apresentando-se “confuso e desorientado”, ora patenteando intervalos de lucidez (“vigil, colaborante, orientado”).
De relevante o facto de, na avaliação de psiquiatria, ter-se concluído por provável síndrome demencial em contexto cerebrovascular do paciente S. M..
Sempre se dirá, por último, que os mencionados registos clínicos são documentos particulares sujeitos à livre apreciação do jugador, o que nos reconduz à conclusão de que, por si só, são manifestamente insuficientes a suportar ou acomodar a alteração dos factos impugnados, pelo que sempre seria necessário a sua articulação com a globalidade da prova produzida.
Vejamos, pois, o que resulta dos demais meios de prova invocados pela recorrente para fundar a impugnação da matéria de facto.
Insurge-se a recorrente contra a credibilidade conferida pelo Tribunal “a quo” aos depoimentos das (duas) técnicas de saúde, dizendo que os mesmos apresentam várias fragilidades (4).
Iniciando a nossa abordagem pela análise do depoimento da testemunha A. P., médica, responsável pelo serviço do hospital da Santa Casa da Misericórdia de Marco de Canaveses onde estava internado o sr. S. M. (de 28/08/2013 a 29/11/2013), constatamos que a mesma apresentou um depoimento circunstanciado sobre o estado de saúde deste paciente e da sua evolução ao longo do internamento naquela unidade Hospitalar.
A razão de ciência advém-lhe do exercício das suas funções, nomeadamente das visitas diárias que fazia ao sr. S. M., explicitando com pormenor as lesões/sequelas (físicas e cognitivas) que advieram àquele em consequência do AVC que o vitimou, indicando que, naquela idade, algumas lesões eram reversíveis a nível físico, mas não a nível cognitivo.
No tocante à (alegada incongruência da) suspeita (formada pela testemunha) de que o sr. S. M. e a Ré se iam casar (dado que nunca a Ré tinha manifestado que pretendia casar) foram as mesmas cabalmente explicitadas pela testemunha através da conjugação dos seguintes factos:
- Num determinado dia apercebeu-se do filho desse doente (no caso, o ora autor) muito alterado, a chorar, por se ter inteirado que o pai tinha uma relação extra-conjugal com uma pessoa que o tinha ido visitar naquele dia, num contexto em que ainda estavam a fazer o luto pela mãe.
- A partir de certa altura, a senhora (no caso, a ora ré), que tinha passado a visitar regularmente o doente, começou a ter atitudes de confronto com a testemunha, chegando a verbalizar, além do mais, que “eles mandam mas é por pouco tempo”, “isto vai tudo mudar”.
- Num determinado dia, ao circular no hall de entrada do hospital viu o sr. S. M. vestido (o que era raro, porque ele estava sempre de pijama) e essa senhora vestida com um fato vermelho (muito arranjada para o que era habitual, até porque usualmente trajava de preto) e dois senhores de fato preto, que transportavam o doente numa cadeira de rodas em direcção à porta de saída do Hospital.
- Tendo-se-lhes dirigido, identificou-se e referiu-lhes que o sr. S. M. não estava bem, por ter tido um AVC, pelo que não podia sair do hospital sem autorização.
- Em resposta, foi-lhe dito para chamar o responsável, o que a testemunha fez, retirando-se para chamar o enfermeiro chefe.
- Quando a testemunha regressou ao hall, juntamente com o enfermeiro chefe, o carro estava já a sair do hospital, transportando o doente (o sr. S. M.).
- O enfermeiro sinalizou, por fax, à Guarda Nacional Republicana que tinham tirado um doente do hospital sem saber quem o levou.
- Suspeitou que iam casar – pelo contexto todo, nomeadamente a roupa que trajavam e a postura antecedente da senhora verbalizando aqueles dizeres –, pelo que o enfermeiro ligou imediatamente para a Conservatória do Registo Civil de …, identificando-se e relatando o sucedido, tendo-lhe sido confirmado da Conservatória que estava lá um senhor numa cadeira de rodas e uma senhora de vermelho, para se casarem (“estavam na fila para se casarem”). O enfermeiro ainda disse que o sr. não estava bem, nem em condições de casar, porque tinha tido um AVC e que tinha sido retirado ilegalmente do hospital.
- Entretanto, desligaram a chamada e colocaram o assunto à direcção do Hospital para se informarem do procedimento a adotar.
- Cerca de meia hora/uma hora depois, o sr. S. M. e a ré regressaram ao hospital, a senhora a empurrar a cadeira de rodas, tendo esta erguido a mão para lhe mostrar o anel de noivado e dizendo-lhe: - “só me estragou o almoço, o resto não me estragou mais nada”.
- Aquando da prévia abordagem da testemunha, o sr. S. M., que estava na cadeira de rodas, não obstante o momento de tensão vivenciado com o pedido de identificação feito pela testemunha aos dois senhores e as objeções à sua saída do hospital, não disse nada.
- Por sua vez, a testemunha S. M., enfermeira, que prestou serviço no Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Marco do Canavezes, desde 1999 a 2014, foi perentória ao afirmar que, aquando dos factos ocorridos no hall de entrada do Hospital, não se encontrava ao serviço, não os tendo presenciado.
Recorda-se, sim, pela invulgaridade da situação – pois nos 20 anos de trabalho nunca tinha visto um caso assim –, de, na sala das refeições, os profissionais de saúde terem falado sobre o assunto (de o sr. S. M. ter sido levado pela senhora que o visitava para se casar, sem autorização do hospital).
Resta assim dizer que as objecções apontadas ao depoimento da testemunha A. P. são infundadas, porquanto a suspeita que esta formou – de que o pai do autor e a Ré se iam casar –, não só se veio a confirmar, como aquela, juntamente com o enfermeiro-chefe, providenciou no sentido de ser regularizada a situação, nomeadamente alertando de imediato a Conservatória do Registo Civil para o insólito da situação (chegando a falar em “rapto” do sr. S. M.) – contacto este confirmado pela testemunha A. M., funcionário daquela Conservatória, que presidiu à celebração do casamento –, factos estes que abonam no sentido da credibilidade de tal depoimento.
Essencial é, sim, frisar que os depoimentos das referidas técnicas de saúde revelam-se de primordial importância na matéria atinente à explicitação do estado de saúde, físico e psíquico, do sr. S. M. no período de internamento naquela unidade hospitalar, quer por força dos conhecimentos técnicos e específicos (médicos, no caso da Dr. A. P.) que têm, quer por terem direta e regularmente lidado com o paciente em causa, prestando-lhe assistência médica (no caso da Dr.ª A. P.) ou de enfermagem (no caso da S. M.).
Em reforço da validade probatória dos referidos depoimentos acrescente-se, também, o facto de as referidas testemunhas não terem qualquer interesse no desenlace da causa.
Questão distinta é a de saber se esses depoimentos são por si só suficientes para que o Tribunal pudesse dar como provado – como deu – que no ato da celebração do casamento o sr. S. M. não apresentava condições de saúde mental que lhe possibilitassem compreender e saber o acto praticado.
Vejamos, agora, da (falta de) credibilidade dos depoimentos dos familiares do autor (testemunhas M. M., N. M. e A. J., respectivamente, mulher, filho e tio do autor, bem como nora, neto e irmão do S. M.).
Embora se aceite que a relação de familiaridade ou de parentesco possa constituir uma circunstância impeditiva da prestação, em juízo, de um depoimento isento e credível, pois, como é sabido, um familiar ou um parente (o mesmo podendo dizer-se no caso de um amigo próximo) poderá mais facilmente ser tentado a faltar à verdade no intuito de beneficiar ou favorecer pessoa com a qual mantém tal tipo de relações, dada a existência de interesse no resultado da lide, a verdade é que a existência dessas relações não é, nos termos legais, motivo de impedimento ou de inabilidade para depor como testemunha (arts. 495º e 496º do CPC). Acresce que, dada a razão de ciência revelada, nomeadamente a relação de proximidade e de contacto que mantinham com o S. M., tendo acompanhado de um modo próximo e presente a evolução do seu estado de saúde desde que foi aquele foi vítima de AVC, visitando-o na unidade hospitalar onde estava internado (sendo praticamente diária a frequência das visitas da testemunha M. M.), esses familiares não deixam de ser relevantes para (juntamente com a valoração de outros meios de prova) habilitarem o Tribunal a formar uma convicção segura e fundada sobre o estado de saúde (físico e psíquico) da pessoa em causa. E para colocar em causa a credibilidade de tais depoimentos não basta a mera alegação genérica da menção das relações familiares ou de parentesco que tais testemunhas têm – ou tiveram – com uma das partes da causa. Esta circunstância, no caso dessas relações, foi desde logo confirmada pelas enunciadas testemunhas aquando do juramento e interrogatório preliminar nos termos e para os efeitos do disposto no art. 513º, n.º 1 do CPC, não deixando certamente de ser tomada em consideração aquando da valoração da globalidade dos meios de prova produzidos.
Situação diferente é, mais uma vez, a de indagar se tais depoimentos testemunhais eram aptos à demonstração da facticidade impugnada, designadamente no tocante a saber se no acto da celebração do casamento o sr. S. M. não apresentava condições de saúde mental que lhe possibilitassem compreender e saber o que fazia, dado o inerente juízo de cariz técnico que subjaz a essa materialidade fáctica.
Importa, por fim, atentarmos no depoimento da testemunha A. M., 2º ajudante na Conservatória do Registo Civil …, o qual presidiu (“em substituição legal”) à celebração do casamento ora impugnado.
Insurge-se a recorrente contra o juízo formulado pelo Mm.º Juiz “a quo” relativamente à valoração desse depoimento, posto que na motivação da matéria de facto foi exarado que a referida testemunha “prestou um depoimento em que se verificou apenas a sua preocupação em que não fosse, de alguma forma, responsabilizado pela celebração do casamento do pai do autor com a ré, pois é manifesto, ao longo do seu depoimento, a forma titubeante, hesitante, como foi prestando o seu depoimento”.
Contrapõe a recorrente, que “esse depoimento foi prestado por videoconferência, em circunstância que, já de si, mitiga o princípio da imediação – (…) –, dado que não permite avaliar se a testemunha ruboriza, fica inquieta ou tremelica ao depor, sendo que, à distância, o julgador só poderá apreciar a verbalização e não o contexto em que ela acontece», e, «na referida circunstância, o que ouviu o Mº Juiz a quo é igualmente audível na gravação que foi disponibilizada à recorrente, onde não se percebe nenhuma titubeação ou hesitação – antes, no que para este caso importa, o depoimento desconsiderado mostra-se assertivo, espontâneo e sem tergiversação alguma (…)».
Tendo procedido à integral audição do referido depoimento, temos de convir não se vislumbrar nenhuma titubeação na sua prestação, mostrando-se o mesmo assertivo.
Tais considerações não equivalem, porém, a que se deva considerar como credível o depoimento em apreço.
Como bem se refere na sentença recorrida, a testemunha ao longo do seu depoimento denotou especial preocupação em que não fosse, de algum modo, responsabilizado pela celebração do casamento do pai do autor com a ré, afirmando e reiterando ter cumprido todos os trâmites legais.
Ao antecedentemente afirmado acrescentaremos que a testemunha optou estrategicamente por prestar um depoimento de cariz defensivo, pois está em causa a possibilidade de a mesma ter presidido a um ato jurídico praticado por um incapaz.
A nosso ver, o depoimento prestado enferma de duas fragilidades que atingem crucialmente a sua credibilidade.
Em 1º lugar, e como mais relevante, face à invulgaridade da situação em apreço – tendo sido telefonicamente contactado pelo Hospital de Marco de Canavezes a fim de ser questionado se aí se encontrava uma pessoa de cadeira de rodas para se casar e, em face da resposta afirmativa, tendo-lhe sido dado conta de que a pessoa em causa havia sido retirada sem autorização do Hospital (falando-se inclusivamente em “rapto”) e que não se encontrava em condições (físicas e psíquicas) para se casar, já que havia sofrido um AVC com sequelas a nível cognitivo, patenteando momentos de falta de lucidez e de consciência, pelo que não tinha capacidade de entender a prática do acto em causa, tendo-se inclusivamente deslocado uma patrulha da GNR à Conservatória por estar em causa a retirada não autorizada de um doente do Hospital –, perante esta equivocidade e as dúvidas surgidas sobre a sanidade mental de um dos nubentes, ao arrepio do que o senso comum aconselhava, a prudência exigia e as funções públicas impunham, ou seja, ao invés de, por exemplo, sobrestar na prática do acto e exigir aos nubentes a apresentação de um atestado médico que atestasse que o nubente S. M. era portador de capacidades cognitivas que o habilitassem a compreender a declaração de vontade que se aprestava a prestar, a testemunha (sem que seja portadora de conhecimentos especializados no âmbito da ciência médica ou clínico) ainda assim decidiu levar a cabo a celebração do referido casamento.
Em 2º lugar, sobreleva-se o facto de a testemunha ter sido lacónico, exíguo e parco na versão que deu quanto à conversa que diz ter tido com o nubente S. M. para aquilatar se este reunia, ou não, capacidades cognitivas para compreender o sentido do acto em causa.
Perante uma situação tão incomum ou insólita, certamente inolvidável em termos de memória, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade da vida seria de esperar que o depoimento prestado pela testemunha se revelasse circunstanciado e rico em pormenores sobre o teor da conversa mantida com o nubente S. M. prévia ao acto para aquilatar se este se encontrava no uso das suas faculdades mentais e de que estava consciente do relevante e solene acto que se propunha realizar (casamento), de modo a poder formar uma convicção segura e inequívoca no sentido de infirmar e refutar as objeções que anteriormente lhe haviam sido relatadas pelo Hospital quanto à falta de consciência do referido nubente.
Daí que também este Tribunal entenda que o referido depoimento careça de credibilidade.
Feita esta explicitação em função das concretas objeções colocadas pela recorrente quanto aos meios de prova em que fundamenta o seu dissenso sobre a matéria de facto impugnada, importa dizer que a factualidade objecto do ponto 15 dos factos provados não poderá manter-se nos precisos termos em que foi dada como provada, visto o seu segmento final não se mostrar suportado pela prova produzida.
É certo que as testemunhas N. M. e M. M. explicitaram que o S. M., após o falecimento da mulher, nunca manifestou a vontade de contrair casamento com outra pessoa; mas não menos certo é também que, contrariando o depoimento daquelas testemunhas, outras (as arroladas pela ré) depuseram no sentido de que o Sr. S. M. exteriorizou o propósito de que queria casar com a R., o que torna duvidosa a prova feita pelas testemunhas arroladas pelo A..
Por outro lado, relativamente ao ponto 16 dos factos provados, não obstante os elementos clínicos juntos aos autos não permitirem, por si só, concluir com segurança no sentido da sua demonstração, certo é que, da sua conjugação com o depoimento da testemunha A. P., médica, responsável pelo internamento, que, nos termos supra explicitados, revelou ter conhecimento da evolução do estado de saúde do sr. S. M. e com ele se cruzou no hall de entrada do hospital quando este estava prestes a ser retirado da unidade hospitalar para ser levado à Conservatória do Registo Civil a fim de se casar, o qual, não obstante a oposição manifestada pela referida médica e o momento de tensão vivenciado não manifestou qualquer reação, mostrando-se apático e alheio à situação – o que não é condizente com alguém que está no uso das suas faculdades mentais, com capacidade de entendimento ou de compreensão, pois a reação natural seria a de verbalizar a sua concreta posição face ao impasse surgido –, a que acresce o registo clínico referente ao dia em causa, do qual consta como «doente vigil, bem disposto, desorientado», «discurso confuso», bem como o facto de se tratar de um doente hospitalizado em convalescença por ter sido vítima de AVC isquémico da ACA, que apresentava um quadro psíquico flutuante, marcado por momentos de desorientação com intervalos de lucidez, a que se soma o facto de, em consulta de psiquiatria, ter-se concluído por provável síndrome demencial em contexto cerebrovascular do paciente S. M., admite-se como plausível a manutenção da 1ª parte da resposta do ponto 16 dos factos provados; o mesmo já não sucede, porém, quanto ao excerto final dessa resposta (de que o pai do autor nunca havia manifestado qualquer intenção de contrair casamento com a ré) dado ter sido produzida prova de sinal contrário, o que torna duvidosa a realidade sobre esse facto (art. 414º do CPC).
Já quanto aos demais pontos fácticos impugnados (ponto 17 dos factos provados e al. g) dos factos não provados) não foram apresentados motivos capazes de invalidar a valoração em que o tribunal recorrido se alicerçou, pelo que nessa parte tem-se essa impugnação como improcedente.

Assim, impõe-se a alteração dos pontos 15 e 16, passando a valer com a seguinte redacção:
15º) O móbil que superintendeu à mencionada conduta da ré foi a concretização do plano que há muito projetava de contrair casamento com o pai do autor (artigo 10º dos temas da prova).
16º) À data da celebração do casamento o pai do autor não apresentava condições de saúde mental que lhe possibilitassem compreender e saber o que fazia (artigo 11º dos temas da prova).

Consequentemente, dá-se como não provado que:

h) A ré sabia que o pai do autor nunca quis contrair casamento com ela.
i) O pai do autor nunca tinha manifestado qualquer intenção de contrair casamento com a ré.
*
Em suma, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto nos termos supra explicitados (5).
*
2. - Da reapreciação da matéria de direito.
2.1 - Da inexistência jurídica do casamento.

O Autor, na petição inicial, sustentou (e peticionou) a inexistência jurídica do casamento celebrado entre o Sr. S. M. e a Ré, por falta da declaração de vontade daquele nubente, nos termos do disposto na al. c) do art. 1628º do Código Civil (CC), ou, assim não se entendendo, a sua inexistência por ter sido celebrado por pessoa sem competência para tal ou, ainda, terem sido infringidos os preceitos imperativos da lei.
O tribunal recorrido, face à factualidade provada, e após indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluiu pelo preenchimento dos requisitos de inexistência do casamento previstos no aludido art. 1628º, al. c), do CC, pelo que, julgando procedente o pedido principal, declarou inexistente o casamento celebrado entre a ré e S. M., no dia 16 de outubro de 2013, por ter faltado a declaração de vontade do nubente S. M., mais julgando prejudicada a apreciação do pedido subsidiariamente formulado pelo autor.
Insurge-se a Ré contra o assim decidido, sustentando para o efeito que a sentença recorrida enferma de erro quanto à aplicação do direito, porquanto, tendo os nubentes manifestado a sua vontade de contrair matrimónio perante o oficial público, o casamento em apreço não pode ser declarado inexistente, podendo, quando muito, ser invocada a respetiva anulabilidade, por falta de vontade do nubente, sendo certo tratar-se de figuras jurídicas que não são confundíveis.
Adiantando a solução, consideramos assistir-lhe razão.
Senão vejamos.
O casamento é uma das fontes das relações jurídicas familiares (art. 1576º do CC), sendo definido como “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código” (art. 1577º).
É de salientar que o direito a contrair casamento é um direito fundamental, com proteção constitucional consagrada no n.º 1 do art. 36º da Constituição da República Portuguesa, preceito que consagra o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de perfeita igualdade, competindo ao legislador ordinário a disciplina jurídica do casamento no que concerne aos seus requisitos, efeitos e dissolução, independentemente da forma de celebração (cfr. n.º 2).
O nosso ordenamento jurídico reconhece duas modalidades de casamento: o católico e o civil (art. 1587º, n.º 1 do CC).
No que diz respeito ao casamento civil, segundo a regra geral dos impedimentos matrimoniais, estipula o art. 1600º do CC que “[t]êm capacidade para contrair casamento todos aqueles em quem se não verifique algum dos impedimentos matrimoniais previstos na lei”.
São impedimentos dirimentes, obstando ao casamento da pessoa a quem respeitam com qualquer outra, entre outros, a demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a decisão de acompanhamento, quando a sentença respetiva assim o determine (art. 1601º, al. b) do CC).
A celebração do casamento é pública e está sujeita, segundo a vontade dos nubentes, à forma fixada no Código Civil e nas leis do registo civil (cfr. art. 1615.º, al. a) do CC).
A vontade dos nubentes só é relevante quando manifestada no próprio acto da celebração do casamento” (cfr. art. 1617º do CC) e “é estritamente pessoal em relação a cada um dos nubentes” (cfr. art. 1619º do CC).
No que respeita à invalidade do casamento civil, regem os arts. 1627º e ss. do CC.
Segundo a regra geral prevista no art. 1627º do CC, é “válido o casamento civil relativamente ao qual não se verifique alguma das causas de inexistência jurídica, ou de anulabilidade, especificadas na lei”.
O citado normativo consagra o princípio “pas de nulité pour le mariage sans un texte”, pois, ao contrário do que sucede no direito comum (art. 294º do CC), não há, neste domínio, invalidades tácitas, mas só expressas (6), devendo, portanto, considerar-se válidos todos os casamentos civis relativamente aos quais não se verifique alguma das causas de inexistência jurídica ou de anulabilidade especificadas na lei.
No regime jurídico do casamento civil foi suprimida a categoria dos casamentos nulos (7), reduzindo-se a invalidade do casamento aos casos da inexistência jurídica deste e aos casos da sua anulabilidade taxativamente indicados (8).

Nos termos do art. 1628º do CC (“Casamentos inexistentes”):
É juridicamente inexistente:
a) O casamento celebrado perante quem não tinha competência funcional para o acto, salvo tratando-se de casamento urgente;
b) O casamento urgente que não tenha sido homologado;
c) O casamento em cuja celebração tenha faltado a declaração da vontade de um ou ambos os nubentes, ou do procurador de um deles;
d) O casamento contraído por intermédio de procurador, quando celebrado depois de terem cessado os efeitos da procuração, ou quando esta não tenha sido outorgada por quem nela figura como constituinte, ou quando seja nula por falta de concessão de poderes especiais para o acto ou de designação expressa do outro contraente”.

Prevendo sobre o regime da inexistência, estipula o art. 1630.º do CC:

1. O casamento juridicamente inexistente não produz qualquer efeito jurídico e nem sequer é havido como putativo.
2. A inexistência pode ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, independentemente de declaração judicial”.

Já no tocante à anulabilidade do casamento, dispõe o art. 1631.º CC (“Causas de anulabilidade”):
É anulável o casamento:
a) Contraído com algum impedimento dirimente;
b) Celebrado, por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de vontade ou com a vontade viciada por erro ou coacção;
c) Celebrado sem a presença das testemunhas, quando exigida por lei”.

Segundo o art. 1632.º do CC, a “anulabilidade do casamento não é invocável para nenhum efeito, judicial ou extrajudicial, enquanto não for reconhecida por sentença em acção especialmente intentada para esse fim”.

Inserto ainda na subsecção respeitante à anulabilidade do casamento, mas na divisão referente à “falta ou vícios da vontade”, e sob a epígrafe “Presunção da vontade”, prescreve o art. 1634º do CC:

A declaração da vontade, no acto da celebração, constitui presunção não só de que os nubentes quiseram contrair o matrimónio, mas de que a sua vontade não está viciada por erro ou coacção”.

E o art. 1635.º do CC (“Anulabilidade por falta de vontade”) estabelece:
O casamento é anulável por falta de vontade:
a) Quando o nubente, no momento da celebração, não tinha a consciência do acto que praticava, por incapacidade acidental ou outra causa;
b) Quando o nubente estava em erro acerca da identidade física do outro contraente;
c) Quando a declaração da vontade tenha sido extorquida por coacção física;
d) Quando tenha sido simulado”.
Sem vontade de casar, da parte de ambos os nubentes, e sem que esta vontade tenha sido manifestada, nos termos da lei, não pode haver casamento válido” (9).
Como é sabido, o consentimento matrimonial deve possuir certas propriedades ou características: o consentimento deve ser pessoal, puro e simples, perfeito e livre (arts. 1617º e segs.) (10).
Como afirma J. Rodrigues de Bastos (11), a "manifestação da vontade dos nubentes de contraírem casamento, produzida no próprio acto da celebração deste, é que constitui o seu núcleo essencial. Sem essa declaração conjunta de vontades não há casamento, ou por outras palavras, verifica-se a inexistência jurídica deste. Esta situação não deve confundir-se com a de a declaração ter sido feita, por um ou por ambos os cônjuges, com falta de vontade ou com a vontade viciada por erro ou coacção. Neste caso houve casamento, embora este seja anulável [art. 1631º, alínea. b)]”.
Acrescenta o citado autor (12) que no acto do casamento os nubentes devem declarar a vontade de o contraírem. Sem essa declaração o casamento é juridicamente inexistente (art. 1628º, al. c) do CC). Feita ela, o casamento pode ainda ser anulado quando se verificar que a vontade verdadeira dos cônjuges não correspondia à vontade que expressaram.
Delineada se mostra, assim, a diferenciação entre a hipótese prevista na al. c) do art. 1628º do CC – em que falta a própria declaração expressa de vontade dos nubentes e que é causa de inexistência do casamento – e a situação de falta de vontade contemplada na al. b) do art. 1631º do CC – em que, a despeito da declaração emitida, não existe a vontade ou consentimento correspondente (13) –, sendo que esta conduz apenas à anulabilidade do casamento, nos termos da al. a) do art. 1635º do CC.
Na situação do casamento inexistente o que está em causa é a falta de declaração de vontade expressa, de uma declaração feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação de vontade, como vem definida no art. 217º do CC, a falta, portanto, da exteriorização da vontade, a falta de transmissão do pensamento (14).
Portanto, “a inexistência é a sanção correspondente à falta de declaração expressa da vontade de ambos os nubentes, de um deles apenas, ou até do procurador de um deles. Uma vez manifestada a vontade de ambos os nubentes, o casamento ingressa na ordem jurídica, mesmo que não haja realmente vontade válida do declarante, e fica apenas sujeito ao regime da anulabilidade" (15).
A exigência da declaração expressa de vontade não significa que os nubentes (ou o procurador) se tenham de exprimir, exata e formalmente, com as palavras mencionadas na al. d) do n.º 1 do art. 155.° Código do Registo Civil (CRC), “que não devem ser havidas, hoc senso, como termos sacramentais. Os nubentes podem ter manifestado a vontade por outros termos, contanto que a declaração seja expressa, no sentido definido pelo artigo 217.°" (16). A declaração de vontade deve, sim, corresponder a uma manifestação de vontade cujo sentido (propósito de casar) seja apreensível (17).
Ao invés do que sucede na anulabilidade em que a declaração manifestada em contrair casamento não corresponde à vontade de contrair casamento [(seja porque essa vontade falta devido a causa que determine a falta de consciência do acto praticado, seja por erro acerca da identidade física do outro nubente, por ter sido extorquida por coacção física ou ainda devido a simulação do acto - cfr. art. 1635° do CC), seja porque essa vontade se acha viciada devido a erro relevante (cfr. art. 1636° do CC)], na inexistência não há qualquer manifestação de declaração de vontade em contrair casamento.
A situação prevista na al. c) do art. 1628º do CC distingue-se, portanto, da indicada na al. a) do art. 1635º do CC nos seus termos e efeitos: ali tem-se em vista a falta da própria declaração de vontade de um ou de e ambos os nubentes que conduz à inexistência jurídica; na segunda situação há declaração da vontade, mas esta não tem qualquer conteúdo porque quem a fez não tinha consciência do sentido das palavras que proferiu, porque se encontrava acidentalmente incapaz ou por outra causa. Proferida a declaração há uma aparência de normalidade que subtrai o casamento à sanção da inexistência jurídica; mas, porque essa aparência não corresponde a uma manifestação de vontade consciente, o ato é anulável (18).
O regime fixado para estes casos nos arts. 1635º e ss. diverge do estabelecido nos arts. 246º e 257º do CC para o comum dos negócios jurídicos. A relevância da falta de vontade, no casamento, não depende do seu conhecimento pela outra parte, nem da sua notoriedade. Por outro lado, a falta de consciência do acto matrimonial releva tanto quando proceda de incapacidade acidental, como quando provenha de outra causa (por ex., sonambulismo, acção hipnótica, influência de drogas, embriaguez ou acesso de febre). Por fim, o casamento realizado em tais circunstâncias não é absolutamente ineficaz (art. 246º do CC), mas simplesmente anulável (19).
E, quanto ao regime da inexistência, “basta dizer que o casamento inexistente não produz efeitos – nem mesmo putativos -, e que a inexistência do casamento pode ser invocada a todo tempo, e por qualquer interessado, independentemente de declaração judicial" (20). Significa isto que, ao contrário do que sucede com a anulabilidade do casamento (art. 1632º do CC), a inexistência pode ser reconhecida por sentença em ação que não seja especialmente intentada para esse fim, pode ser invocada por via de excepção e declarada oficiosamente pelo tribunal.
Em suma, não deve confundir-se o regime da inexistência do casamento decorrente da falta da declaração de vontade, com o regime de anulabilidade do casamento, nos termos dos arts. 1631°, al. b), 1635°, 1640° e 1641° do CC, resultante da falta de vontade de um dos nubentes ou a ocorrência de alguns dos vícios que são relevantes do consentimento.

No caso concreto, como se referiu, foi pedida a declaração de inexistência do casamento com fundamento na al. c) do art. 1628º do CC, invocando-se a falta da declaração de vontade do nubente S. M. no acto do casamento.
Argumentou o autor que o nubente S. M., seu pai, à data do casamento e mesmo muito antes, não estava em juízo perfeito; era visível que o pai do autor não podia declarar a sua intenção/vontade de casar fosse de que forma fosse, com livre consciência, posto que, àquela data, encontrava-se numa situação psíquica/mental tão frágil/débil, bem perceptível de que não possuía as condições exigíveis para formar ou manifestar a sua vontade; face às lesões que a doença lhe tinha causado, se o pai do autor manifestou/declarou/verbalizou de alguma forma o seu assentimento para a produção daquele acto, o que se duvida, fê-lo sem consciência bastante/suficiente/necessária (cfr. arts. 28º a 34º da p.i.).
Da audiência de julgamento resultou provado que, imediatamente após o decesso da mãe do autor, o pai deste, à data com 79 anos de idade, começou a manifestar problemas de saúde, os quais se foram agravando dia após dia, até que, no dia 16 de agosto de 2013, foi vítima de um acidente vascular cerebral (“AVC”) (pontos 6 e 7 dos factos provados).
Por via da doença que o acometeu e de sugestão médica, o autor internou/hospitalizou o pai no hospital da Santa Casa da Misericórdia do .../SCMMM, no dia 28 de agosto de 2013, com vista ao controlo da doença e da sua reabilitação (pontos 9 e 10 dos factos provados).
No dia 16 de outubro de 2013, sem que ninguém se tivesse apercebido, o pai do autor desapareceu daquela unidade de saúde, tendo sido retirado pela ré e por dois senhores da instituição, os quais, para o efeito, devido à perda de mobilidade daquele, utilizaram uma cadeira de rodas e um veículo automóvel (pontos 12 a 14 dos factos provados).
O móbil que superintendeu à mencionada conduta da ré foi a concretização do plano que há muito projetava de contrair casamento com o pai do autor (ponto 15 dos factos provados).
Acresce que, à data da celebração do casamento, o pai do autor não apresentava condições de saúde mental que lhe possibilitassem compreender e saber o que fazia, o que era do conhecimento da ré (pontos 16 e 17 dos factos provados).
Não obstante a demonstração da antecedente matéria fáctica, a verdade é que o A. não logrou provar, como lhe competia (art. 342º, n.º 1 do CC), a falta da declaração da vontade por parte do nubente S. M. no acto da celebração do casamento.
Importa ter presente que se mostra junta aos autos a certidão do casamento impugnado (21), na qual se refere que “os nubentes declararam celebrar de livre vontade o seu casamento, perante o Ajudante em substituição legal”.
E, quanto a menções especiais, consta: “Declaração prestada perante oficial público”.
Essa certidão é um documento autêntico (art. 363.º, n.º 2, do CC).
Dispõe o art. 371.º, n.º 1, do CC, no que concerne à força probatória, que os “documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
Decorre deste preceito que o valor probatório pleno dos documentos autênticos não respeita a tudo o que nele se refere ou contém, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e, quanto a estes, os com base nas perceções da entidade documentadora.
O mesmo é dizer que o documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes. De igual modo, os meros juízos pessoais (simples apreciações) do documentador não gozam da força probatória plena do documento, porque transcendem a área das perceções do documentador (22).
Assim, a força probatória material de tais documentos tem por limite o alcance das percepções da entidade documentadora.
A força probatória plena dos documentos autênticos só pode ser ilidida mediante a arguição e prova da respectiva falsidade, sendo que o documento é falso quando nele se atesta como tendo sido objeto da perceção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi (art. 372º, n.ºs 1 e 2 do CC).

Ora, no caso em apreço, como bem refere a recorrente, não foi alegado, nem demonstrado, que o facto atestado perante o ajudante que celebrou o casamento – de que “os nubentes declararam celebrar (…) o seu casamento, perante o Ajudante (…)” (23)– se não verificou.
Efetivamente, perante a matéria de facto provada, nada permite concluir que tenha faltado “a manifestação do mútuo consenso dos nubentes” no acto do casamento.
Como já vimos, a falta de declaração da vontade, o mesmo é dizer, a falta de manifestação da vontade [sendo causa de inexistência do casamento – art. 1628º, al. c) do CC], não é confundível com os casos de falta de vontade por o nubente, no momento da celebração, não ter consciência do acto praticado, porquanto neste caso houve uma exteriorização, que, contudo, não corresponde à vontade real, sendo que este apenas é fundamento de anulabilidade do casamento (arts. 1631º, al. b) e 1635º, al. a), do CC).
A matéria adquirida nos autos não permite, por conseguinte, concluir que foi completamente omitida a declaração da vontade, no momento da celebração, por parte do nubente S. M.; habilita, sim, a inferir que a declaração de vontade deste nubente estava afectada por vício de vontade, concretamente por falta de consciência do acto praticado, que o impedia de compreender o sentido dessa mesma declaração.
Aliás, se atentarmos no modo como, na petição inicial, o autor delineou a causa de pedir que serve de fundamento à presente acção, constata-se ser já percetível que, apesar de pedir a inexistência do casamento, centralizou essencialmente a sua alegação na falta de consciência da declaração (24) do nubente S. M., e não na falta da declaração da vontade no acto do casamento.
Excluída está, portanto, a demonstração do invocado fundamento de inexistência do casamento (art. 1628º, al. c) do CC), o que, em princípio, impõe a revogação da sentença recorrida.
Contudo, face à factualidade provada (25), sempre se poderia questionar se seria lícito ao Tribunal, ao invés da declaração da inexistência do casamento (peticionada pelo autor), concluir antes pela verificação e reconhecimento do fundamento de anulabilidade do casamento previsto nos arts. 1631º, al. b) e 1635º, al. a), do CC (pedido de anulação que não foi formulado pelo autor), o que pressuporia a admissibilidade da requalificação jurídica da pretensão material deduzida.
Sobre o tema, e como se decidiu no Ac. do STJ de 7/04/2016 (relator Lopes do Rego), in www.dgsi.pt., “não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica”.
No mesmo acórdão precisa-se que o grupo de situações em que vem sendo mais frequentemente admitida a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor situa-se no campo dos valores negativos do acto jurídico (v,g. nulidade, anulabilidade, ineficácia e inoponibilidade).
Na situação específica, adiantamos desde já que a resposta à questão supra colocada não pode deixar de ser negativa.
Isto porque os dois regimes de invalidade do matrimónio civil obedecem a regras específicas e diferenciadas, que impedem que se possa proceder a uma requalificação ou reconstituição normativa do específico pedido formulado pelo autor.
Na verdade, diversamente do que sucede com o regime da inexistência do casamento (art. 1630º do CC) – em que não existe qualquer limitação quanto às pessoas que podem invocar a inexistência, tão pouco se colocando requisitos temporais para a sua invocação, pelo que o decurso do prazo não é susceptível de consolidar ou convalidar o acto inexistente, além de que a inexistência pode ser reconhecida por sentença em acção que não seja especialmente intentada para esse fim, podendo ser invocada por via de excepção e declarada oficiosamente pelo tribunal (26) –, a anulabilidade do casamento está sujeita a regras particulares, na medida em que não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal e só pode ser invocada após ser reconhecida por sentença em acção especialmente intentada para esse fim (27) (art. 1632º do CC); além disso, quanto à legitimidade, a acção de anulação só pode ser proposta por certo círculo de pessoas (arts. 1639º-1642º do CC) e dentro de certos prazos, sob pena de caducidade (arts. 1643º-1646º do CC).
A isto acresce inexistir, por parte do autor, qualquer erro de configuração normativa do efeito prático-jurídico pretendido, sendo inequívoco pela configuração da lide (causa de pedir e pedido) que pretendeu ver reconhecida a inexistência do casamento, e não a sua mera anulabilidade.
Deste modo, tendo-se o autor limitado a formular um pedido de inexistência do casamento, sob pena da violação do disposto no art. 609º, n.º 1 (28) do CPC e do cometimento da nulidade (de acórdão) prevista no art. 615º, n.º 2, als. d) e e) (29) “ex vi” do art. 665º, n.º 1, ambos do CPC, não é lícito ao tribunal proferir sentença de anulação do casamento,.
Nestes termos e pelos fundamentos apontados concede-se provimento à apelação.
*
2.2 - Da (falta) de competência para a celebração do casamento civil e da inobservância dos preceitos imperativos da lei (30).
A título subsidiário, o autor (ora recorrido) pediu a declaração de inexistência do identificado casamento por ter sido celebrado por pessoa sem competência para tal ou, ainda, terem sido infringidos os preceitos imperativos da lei.
Como se disse, é juridicamente inexistente o casamento celebrado perante quem não tinha competência funcional para o acto, salvo tratando-se de casamento urgente (art. 1628º, al. a), do CC).
Repristinando o que anteriormente explicitámos, e dado o que resulta da regra da validade do casamento civil enunciada no art. 1627º do CC, os casos de inexistência de casamento estão taxativamente enumerados no citado art. 1628º do CC, não admitindo extensão analógica.

Vejamos os normativos legais com relevância previstos no Código do Registo Civil e atinentes à celebração do casamento civil:
«Artigo 153.º
Dia, hora e local
1 - O dia, hora e local da celebração do casamento devem ser acordados entre os nubentes e o conservador.
2 - Qualquer conservador do registo civil é competente para a celebração do casamento, independentemente da freguesia e concelho onde aquele deva ser celebrado.
Artigo 154.º
Intervenientes
1 - No acto da celebração do casamento devem estar presentes os nubentes, ou um deles e o procurador do outro, e o conservador.
2 - No mesmo acto podem intervir entre duas a quatro testemunhas.
3 - A presença de duas testemunhas é obrigatória sempre que a identidade de qualquer dos nubentes ou do procurador não seja verificada por uma das seguintes formas:
a) Pelo conhecimento pessoal do conservador;
b) Pela exibição dos respectivos documentos de identificação;
c) Pela exibição do título ou autorização de residência, do passaporte ou documento equivalente, se os nubentes forem estrangeiros.
4 - Considera-se celebrado na presença do funcionário do registo civil o casamento realizado perante quem, não tendo competência funcional para o acto, exerça publicamente as respectivas funções, salvo se ambos os nubentes conheciam, no momento da celebração, a falta daquela competência.
Artigo 155.º
Solenidade
1 - A celebração do casamento é pública e feita pela forma seguinte:
a) O conservador, depois de anunciar que naquele local vai ter lugar a celebração do casamento, lê, da declaração inicial, os elementos relativos à identificação dos nubentes e os referentes ao seu propósito de o contrair, bem como o despacho final previsto no artigo 144.º;
b) (…).
c) Em seguida, o conservador interpela as pessoas presentes para que declarem se conhecem algum impedimento que obste à realização do casamento;
d) Não sendo declarado qualquer impedimento e depois de referir os direitos e deveres dos cônjuges, previstos na lei civil, o conservador pergunta a cada um dos nubentes se aceita o outro por consorte;
e) Cada um dos nubentes responde, sucessiva e claramente: «É de minha livre vontade casar com F. [indicando o nome completo do outro nubente].»
2 - Prestado o consentimento dos contraentes, o conservador diz, em voz alta, de modo a ser ouvido por todos os presentes: «Em nome da lei e da República Portuguesa, declaro F. e F. [indicando os nomes completos de marido e mulher] unidos pelo casamento».
Por sua vez, segundo o regime previsto no Dec. Lei n.º 236/2001, de 30/08, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 324/2007, de 28/09:
«Art. 1.º
Objecto
“A celebração de casamentos civis fora do horário de funcionamento dos serviços e aos sábados, domingos e feriados, nas conservatórias ou em qualquer outro lugar a que o público tenha acesso, pode ter lugar sempre que o acto seja expressamente solicitado e acordado com os nubentes”.
Artigo 2.º
Competência
1 - A competência para a celebração de casamentos nos termos previstos no artigo anterior é atribuída a qualquer conservador dos registos, por acordo com os nubentes e independentemente da área de circunscrição territorial a que o conservador pertença.
2 - Na falta do acordo previsto no número anterior, a competência para a celebração do casamento é atribuída ao conservador do registo civil da conservatória da área da celebração do casamento.
Artigo 3.º
Substituição
1 - Quando não haja disponibilidade ou possibilidade por parte dos conservadores referidos no artigo anterior para celebrar o casamento, devem aqueles designar o respectivo substituto para esse efeito, de acordo com a seguinte ordem de preferência:
a) Conservador auxiliar;
b) Adjunto de conservador;
c) Substitutos do conservador, pela ordem por que foram designados;
d) Demais oficiais da conservatória, por ordem de categoria funcional e de classe pessoal.
2 - Sempre que não haja disponibilidade para a celebração de casamento nos termos do número anterior, deve o conservador ou o seu substituto informar e remeter o pedido ao director-geral dos Registos e do Notariado, podendo ser designado, em regime de substituição, conservador, notário ou ajudante de serviços de registo civil do mesmo concelho ou concelho limítrofe».

Por fim, o Dec. Lei n.º 116/2008, de 4/07, veio introduzir alterações ao art. 93º do Decreto Regulamentar n.º 55/80, de 8/10, que aprovou o Regulamento dos Serviços dos Registos e do Notariado, sendo que ao revogar, expressamente, a al. b) que excepcionava da competência dos ajudantes a presidência nos atos de casamento, bem como a assinatura de todos os assentos lavrados no registo civil, o legislador consagrou, de forma categórica e inequívoca, que os ajudantes dispõem de competência para presidir à celebração de casamentos civis desde que esse serviço lhes seja distribuído pelo conservador, verbalmente ou por escrito (31) (32).
Em resumo, sendo da competência do conservador a celebração do casamento (art. 153º, n.º 2 do CRC e arts. 2º e 3º do Dec. Lei n.º 236/2001), tal competência não é (agora) exclusiva, na medida em que a lei permite que estando o conservador indisponível possa ser designado, em sua substituição, um oficial de registos, de acordo com a hierarquia funcional.

No caso em apreço mostra-se provado que, no dia 16 de outubro de 2013, pelas 12 horas e 35 minutos, foi celebrado na Conservatória do Registo Civil ..., pelo 2º ajudante do conservador, o casamento entre o pai do autor e a ré (ponto 5 dos factos provados).
Mais consta da respectiva certidão de casamento que o 2º ajudante, A. M., interveio na celebração do casamento em substituição legal (33).
Essa qualidade de 2ª ajudante, em substituição legal, consta identicamente do auto de declaração para casamento e do despacho que incidiu sobre o processo preliminar de publicações n.º 4596/2013, ambos datados de 16/10/2013 (34).
Pois bem, a qualidade dessa intervenção do 2º ajudante em substituição legal do Conservador não se mostra infirmada ou abalada, pois o autor não logrou provar que aquele carecia de poderes funcionais para presidir à celebração do casamento civil em apreço.
Quer isto dizer que o autor não logrou provar que o mencionado 2º ajudante não tinha competência funcional para a celebração daquele acto, o que nos reconduz à inverificação do fundamento de inexistência do casamento previsto no art. 1628º, al. a) do CC.
Por último, a alegada preterição de formalidades legais que deveriam anteceder a celebração do casamento (35) – que o autor não cuidou sequer de individualizar –, a ter ocorrido – o que se concebe para efeitos meramente argumentativos –, jamais seria fundamento de inexistência do casamento, por não ser susceptível do preenchimento de qualquer uma das hipóteses típicas previstas no art. 1628º do CC (36).
*
Termos em que procede a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada procedente, mercê do princípio da causalidade, as custas da apelação (bem como da ação) serão da responsabilidade do recorrido (art. 527º do CPC).
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I - Segundo a regra geral de validade enunciada no art. 1627º do CC, o casamento civil é válido a menos que se verifique alguma das causas de inexistência ou anulabilidade taxativamente especificadas na lei (arts. 1628º e 1631º).
II - A situação prevista na al. c) do art. 1628º do CC distingue-se da indicada na al. b) do art. 1631º e na al. a) do art. 1635º do CC nos seus termos e efeitos: ali tem-se em vista a falta da própria declaração da vontade de um ou ambos os nubentes, que conduz à inexistência jurídica do casamento; na segunda hipótese, há declaração da vontade, mas quem a fez não tinha consciência do sentido das palavras que proferiu, porque se encontrava acidentalmente incapaz ou por outra causa, o que é fundamento de anulabilidade do casamento.
III - Sendo da competência do conservador a celebração do casamento (art. 153º, n.º 2 do CRC e arts. 2º e 3º do Dec. Lei n.º 236/2001), tal competência não é exclusiva, na medida em que a lei permite que estando o conservador indisponível possa ser designado, em sua substituição, um oficial de registos, de acordo com a hierarquia funcional.
*
VI. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revogando a sentença recorrida, decidem julgar totalmente improcedente a ação, absolvendo a Ré do pedido.
Custas da ação e da apelação a cargo do Autor/apelado (art. 527º do CPC).
*
Guimarães, 1 de outubro de 2020

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)



1. Cfr., na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396; Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pp. 462 a 469; na jurisprudência, Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.
2. Conclusão 16ª.
3. Conclusão 17ª.
4. Importa deixar assinalado que, com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação de todos os depoimentos testemunhais produzidos na audiência de julgamento, não nos tendo restringido aos trechos parcelares (dos depoimentos testemunhais) assinalados pela apelante.
5. Por se tratar de uma alteração muito limitada, dispensamo-nos de transcrever de novo toda a factualidade provada e não provada, devendo considerar-se aqueles pontos objeto de alteração incluídos nos factos provados e não provados nos termos explanados.
6. Cfr. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 3.ª ed., p. 346/347, nota 323.
7. Salvo no casamento católico, que não está em discussão nos autos.
8. Cfr. J. Rodrigues de Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. VI, Lisboa, 1998, p. 70.
9. Cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, obra citada, e Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, 2020, Almedina, p. 74.
10. Cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, obra citada, p. 269.
11. Cfr. obra citada, p. 67.
12. Cfr. obra citada, p. 71.
13. Cfr. Antunes Varela, Direito da Família, 1º vol., 5ª ed., Livraria Petrony, p. 269.
14. Cfr. Fernando Brandão Ferreira Pinto, Dicionário de Direito da Família e de Direito das Sucessões, Livraria Petrony, pp. 109/110.
15. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed., p. 158.
16. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 158.
17. Cfr. Luís Silveira, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume II, 2017, Almedina, p. 514.
18. Cfr. J. Rodrigues de Bastos, obra citada, p. 74.
19. Cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 269 e ss.
20. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, obra citada, p. 346 e Guilherme de Oliveira, obra citada, pp. 112/113.
21. Cfr. fls. 29.
22. Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, Coimbra Editora, p. 522.
23. Retira-se o segmento de “livre vontade”, posto este, atinente ao foro interno e à capacidade ou vontade dos declarantes, não estar abrangida pela força probatória plena daquele documento autêntico, visto apenas ficarem plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido percecionados pela entidade documentadora ou que nele são atestados com base nas suas perceções, mas não já os meros juízos pessoais (simples apreciações) do documentador.
24. Por exemplo, veja-se que na formulação do art. 34º da p.i. o autor não é perentório na alegação da falta de declaração da vontade do nubente S. M., ao alegar que: “Assim, o pai do autor, face às lesões que a doença lhe tinha causado, se manifestou/declarou/verbalizou de alguma forma o seu assentimento para a produção daquele acto, o que se duvida, fê-lo sem consciência bastante/suficiente/necessária, o que conduz, forçosamente, a que o casamento que contraiu com a ré seja inexistente”.
25. Sobretudo o ponto 16 dos factos provados.
26. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, obra citada, p. 346 e Guilherme de Oliveira, obra citada, pp. 112/113.
27. O que não significa que se exija um processo especial, mas sim que na ação a intentar (que é uma ação declarativa constitutiva, que segue a forma de processo comum, atentos os arts. 10º, n.º 3, al. c) e 546º do CPC) o efeito jurídico pretendido pelo autor, o pedido, seja a anulação do casamento.
28. Nos termos do qual a sentença não pode condenar em objeto diverso do que se pedir.
29. É nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento [al. d)] e condene em objeto diverso do pedido [al. e)].
30. O conhecimento das referidas questões impõe-se por força do estatuído no n.º 2 do art. 665º do CPC, nos termos do qual “[s]e o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”. No caso, por força da procedência do pedido principal com fundamento na al. c) do art. 1628º do CC, o Mm.º Julgador “a quo” absteve-se de conhecer do pedido subsidiário formulado pelo autor, conhecimento esse que agora se nos impõe, por força da revogação daquele pedido principal.
31. Por força das alterações introduzidas o art. 93º passou a ter a seguinte redacção: «1 - Cumpre aos oficiais dos registos e notariado executar em geral os serviços para os quais lhes seja atribuída, por lei, competência própria ou delegada e que lhes sejam distribuídos pelo respectivo conservador ou notário. 2 - Os ajudantes podem desempenhar todas as competências dos conservadores e notários, à excepção das seguintes: a) (Revogada.) b) (Revogada.) c) ... d) (Revogada.) 3 – (…) 4 - Salvo disposição legal em contrário, os ajudantes, quando em substituição legal do conservador ou notário, podem desempenhar todas as funções que a estes competem».
32. Cfr. Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado n.º 52/CC/2016, de 28/09/2016, in https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/civil/2016/cc-publicacoes-de/. E, nos termos do Parecer do Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado de 28/04/2011, proferido no processo C.C. 75/2010 SJC-CT (no âmbito da competência para a decisão de divórcio e de divórcio com partilha por adjunto de conservador a exercer funções de coordenação em espaço “Registos”): in https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/civil/2010/ct-publicacoes-de/: ‘’1 – O adjunto do conservador colocado em conservatória do registo civil tem competência, delimitada negativamente pelos processos de competência exclusiva, para decidir os processos que lhe forem distribuídos pelo respectivo conservador sob cuja direcção actua (…). 2 – O adjunto que se encontre em substituição legal do conservador de registo civil pode exercer todas as competências que a lei atribui ao conservador substituído (…)”.
33. Cfr. certidão constante de fls. 29.
34. Cfr. certidões constantes de fls. 65 e 66.
35. Como é sabido, o casamento constitui um contrato sujeito a um especial formalismo que envolve uma fase de preparação consubstanciada na instauração do designado processo preliminar de casamento. Esse processo culmina com o despacho final do conservador ou de quem legalmente o substitua (art. 1613º do CC e art. 144º do CRC), no âmbito do qual é feita referência à existência ou inexistência de impedimentos matrimoniais e apreciada a capacidade matrimonial dos nubentes, concluindo por autorizar ou denegar, em face dos elementos constantes do processo, a celebração do casamento.
36. Como referem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, é à luz do princípio consagrado no art. 1627º do CC que deverão resolver-se as questões de saber, por ex., se serão válidos os casamentos em que não tenha corrido o processo preliminar, em que a declaração para casamento não contenha algum dos elementos referidos no art. 136º, n.º 2 do CRC ou não seja instruída com os documentos necessários, em que não tenha sido pública a cerimónia da celebração do casamento, etc. Como a lei não diz que sejam nulos, todos estes casamentos são válidos (cfr. obra citada, p. 346, nota 323).