Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
154/15.1T8VFL.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
POSSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Não obstante a letra da lei, temos como defensável o entendimento de que a exigência feita no artº 640.º n.º 2 alínea a) do CPC, é perfeitamente compatível com a mera indicação pelo recorrente dos timings (minutos) onde se encontram as passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem reapreciar (como aconteceu no caso dos autos).

II – A acção de impugnação de justificação notarial consubstancia uma acção de simples apreciação negativa visando a simples declaração de inexistência do direito arrogado na escritura; neste tipo de acções, incumbe sobre o réu a prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga, nos termos previstos no art. 343º, n.º 1 do CC

III – A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de terceiro. Trata-se da figura da «representação» na posse, do exercício de um direito por intermédio de um representante, sendo que quem exerce os poderes é possuidor em nome alheio.
Decisão Texto Integral:
P. F., melhor identificado nos autos, intentou acção de impugnação de escritura de justificação notarial contra J. M., também melhor identificado nos autos, peticionando:

(a) que se considerem impugnados, para todos os efeitos legais, os factos justificados na escritura melhor identificada nos autos;
(b) que se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, de forma que o réu não possa, através dela, registar qualquer direito sobre os prédios supra-descritos; e
(c) que se declare o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento impugnado.
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Para tanto alega, em suma, que no dia 18/12/2014, no Cartório Notarial, foi outorgada uma escritura de justificação notarial para efeitos de registo de aquisição por usucapião, de um conjunto de oito prédios melhor identificados nos autos.

Que na referida escritura intervieram como primeiro outorgante o réu, e como segundos outorgantes F. S., F. C. e D. M., constando na mencionada escritura que o primeiro outorgante é possuidor, com exclusão de outrem, de diversos bens imóveis melhor identificados no documento complementar, pelo que os adquiriu por usucapião, confirmando os segundos outorgantes as declarações do primeiro.

No respeitante ao prédio n.º 567, a sua aquisição foi inscrita no Registo Predial a favor do réu em 19/02/2015, impugnando o autor os factos referidos na aludida escritura, alegando que o mesmo foi por si adquirido em 1991 e pelo Réu apenas em 2005.
No que respeita aos prédios n.º 514, 563, 659, 811, 1523, 757 e 1541, o autor alega serem falsos os factos constantes da aludida escritura referentes aos mesmos.
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O réu apresentou contestação, excecionando a legitimidade do A relativamente ao prédio inscrito na matriz rústica com o n.º 567, e impugnando a demais matéria de facto alegada.

Esclarece que negociou, por intermédio do seu pai J. F., a compra verbal dos prédios descritos na escritura de justificação notarial em causa, tendo sido o seu pai que o vem representando na gestão e administração dos mesmos, ou seja, que tem exercido os atos de posse sobre os prédios de que se arroga proprietário por intermédio do seu pai, pelo que os adquiriu por usucapião, sendo, por isso, seu legítimo proprietário.

Mais acrescenta que no prédio rústico com o nº 567 procedeu, em 2006, à plantação de uma vinha com a área de 2.250 m2, a qual tem cuidado e tratado até ao presente e cujo valor é claramente maior do que o valor do terreno anteriormente adquirido.

Com base nos factos alegados deduziu pedido reconvencional, pedindo que seja declarado judicialmente que adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio rústico descrito na matriz predial com o nº 567, por usucapião e, subsidiariamente por acessão industrial imobiliária.
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O autor apresentou réplica, pugnando pela inadmissibilidade do pedido reconvencional deduzido, e impugnando, à cautela, os factos alegados pelo reconvinte, relacionados com esse pedido, pugnando pela sua improcedência.
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Foi proferido despacho saneador, no qual foi admitida a reconvenção e o autor considerado parte legítima na acção relativamente ao prédio nº 567 e parte ilegítima em relação aos demais.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão:

“…Termos em que o Tribunal decide:

1. Julgar procedentes os pedidos do autor e:

a. (a) considerar impugnados, para todos os efeitos legais, os factos justificados na escritura melhor identificada nos autos;
b. (b) declarar ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial de forma que o réu não possa, através dela, registar qualquer direito sobre o prédio inscrito na matriz predial da freguesia de (...) sob o artigo 567 e;
c. (c) se declare o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento aqui impugnado;
2. Julgar procedente o pedido reconvencional (…) e declarar o réu proprietário do prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia de (...) sob o artigo 567.
Custas a cargo de autor e do réu, em partes iguais (art. 527º, n.º 2 do Cód de Proc Civil)…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o autor interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

1. O presente recurso incide, apenas e só, no segmento decisório que julgou procedente o primeiro pedido reconvencional formulado pelo ora Recorrido, e, consequentemente, o declarou proprietário do prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia de (...) sob o artigo 567, por usucapião e, ainda, nos factos referentes ao segundo pedido reconvencional formulado, não apreciado por se tratar de um pedido subsidiário.
2. Por via do presente recurso pretende o ora Recorrente demonstrar que o Recorrido nunca poderia adquirir, por usucapião, a propriedade do prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia de (...) sob o artigo 567, na medida em que (1) não o adquiriu a A. F.; (2) não se provou que o seu pai, J. F., pessoa que adquiriu o prédio, o tenha depois doado ao Recorrido e, ainda que o tivesse feito, em que data tal doação ocorreu; (3) nunca o Recorrido praticou sobre o prédio os actos e fruição que materializam o corpus sobre o prédio; (4) a posse pública que conduz à aquisição da propriedade por usucapião nunca foi exercida pelo Recorrido, seja directamente, seja por interposta pessoa; (5) A vinha aí plantada e tratada pelo pai do Recorrido nem sequer lhe pertence, sendo titulada por S. G..
3. Relativamente à aquisição do prédio em causa nos autos, deu o Tribunal como provado, nos pontos 10 e 20 dos factos que julgou provados que: “J. F. negociou a compra do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567 entre outros com o A. F. para o seu filho, o réu J. M., em data não concretamente determinada, mas sita entre 1990 e 1994”(…); “J. F., progenitor do Réu (…) para quem (entenda-se para o R) negociou a aquisição do terreno”
4. Com a expressão negociar um terreno “para o seu filho” pretendia o Tribunal recorrido afirmar que J. F. negociou e adquiriu, verbalmente e em nome próprio, o prédio, embora o tenha feito com a intenção de posteriormente o transmitir para o seu filho, conforme se esclarece na sentença recorrida quando se afirma que “apenas se fez prova que o seu [entenda-se, do Recorrido] progenitor J. F. adquiriu verbalmente o prédio em nome próprio e com intenção de o transmitir para o réu (art. 874º do Cód Civil) na medida em que não resulta dos factos provados nenhuma relação de mandato ou de representação que permita imputar na esfera jurídica do réu a aquisição do dito prédio (…).
5. No entanto, ainda que a sentença não o esclarecesse, a identidade do comprador do prédio resulta igualmente dos depoimentos dos únicos intervenientes no negócio: o próprio J. F. (comprador) e A. F. (vendedor), confirmando ambos que foi J. F. quem, em nome próprio, adquiriu o prédio, e não o Recorrido, representado pelo seu pai, J. F., conforme o mesmo alegou na sua contestação e reconvenção.
6. No que diz respeito à intenção subjacente à compra do prédio em causa nos autos, a suposta intenção de doação ao ora Recorrido, A. F., limitou-se a confirmar que J. F., pai do Recorrido, lhe teria dito ser essa a sua intenção, desconhecendo, contudo, se a mesma se concretizou.
7.' No entanto, além de não alegada, também nenhum prova se fez da concretização da intenção de J. F. e, muito menos, se, tendo-se porventura materializado por via da doação ao ora Recorrido, quando é que esta ocorreu, de que é reflexo o facto de não terem sido vertidas nos factos provados.
8.' Quanto à intenção subjacente à pratica pelo pai do Recorrido dos actos de fruição do prédio, mesmo fazendo fé nos depoimentos, naturalmente interessados no desfecho da causa, na medida em que produzidos pelo pai e irmão do Recorrido, não haveria dúvidas de que J. F. tratou ou 'fabricou' o terreno com intenção de o dar ao seu filho, mas, uma vez mais, nenhuma prova se fez da concretização desta intenção, de que é reflexo a sua omissão nos factos provados.
9.' Assim, deve o ponto 10 dos factos considerados provados na sentença recorrida passar a ter o seguinte teor: 'J. F., em data não concretamente determinada mas sita entre 1990 e 1994, negociou e comprou o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567, entre outros, a A. F. com intenção de o dar ao seu filho, o réu J. M..'
10.' Do mesmo modo e pelas mesmas razões, o segmento do ponto 20. supra transcrito deverá passar a ter o seguinte teor: “J. F., progenitor do Réu, realizou os actos descritos no ponto anterior com intenção de doar o terreno ao réu".
11. Em suma, não se provou que a doação se tenha concretizado mas, apenas e só que a aquisição ocorreu tendo subjacente essa intenção e, in extremis, que tudo quanto foi feito no prédio por J. F. tinha subjacente essa intenção, que se desconhece se e quando foi concretizada. Aliás, a própria sentença recorrida assim o reconhece quando afirma que 'o Tribunal optou por introduzir nos factos provados a intenção com que J. F. fabricava' o terreno) fazendo-o no interesse do réu'
12.' Ainda relativamente à aquisição do prédio objecto dos presentes autos, tendo o Recorrido alegado na sua contestação que ele próprio, 'através do seu pai J. F.) negociou a compra dos prédios em causa aos anteriores possuidores) A. F. e J. G.' - facto de incontestável relevância e que constitui, aliás, o alicerce da sua defesa e resultando da sentença recorrida que não se provou 'que este o tivesse encarregado para esse efeito (entenda-se, que o Réu tivesse encarregado o seu pai, J. F., de negociar a compra dos terrenos em seu nome) e nem tão pouco se provou que o Réu 'tivesse atribuído poderes para esse efeito" ao seu pai, J. F., impõe-se verter nos factos não provados o seguinte facto: 'O réu, através do seu pai J. F., negociou a compra dos prédios em causa aos anteriores possuidores, A. F. e J. G.'
13. A propósito da vinha existente no prédio objecto dos presentes autos, alegou o Recorrido que 'procedeu à plantação de uma vinha no prédio do artigo 567) com prévia preparação do terreno) tendo vindo a tratar da mesma desde então'.
14.' Sucede, porém, que o Tribunal recorrido julgou provado que quem plantou essa vinha foi J. F., tendo sido ele quem, para o efeito, praticou e custeou todos os actos preparatórios, sendo este quem até à presente data trata e mantém a referida vinha'",
15. Ora, resulta pois evidente que deve ser inserido nos factos não provados o seguinte facto: 'O Réu procedeu à plantação de uma vinha no prédio do artigo 567, com prévia preparação do terreno, e tendo vindo a tratar da mesma desde então'.
16. Ainda a respeito da referida vinha o Tribunal recorrido deu como provados os factos supra transcritos e que foram vertidos nos pontos 21. a 23. dos factos considerados provados na sentença recorrida, factos que são antecedidos pelos factos vertidos nos artigos 19. e 20. dos factos julgados provados pelo tribunal recorrido e que atribuem a J. F., pai do Recorrido, a prática de todos os actos de fruição do prédio em causa, alegadamente por conta e no interesse do réu, nomeadamente lavrando-o, semeando-o, plantando-o, tratando-o e colhendo os seus frutos.
17. Considerando o encadeamento sistemático destes factos impõe-se que se clarifique que os factos vertidos nos pontos 21. e seguintes, referentes à vinha, não obstante se tratem também de actos de aproveitamento agrícola, não se provou terem sido praticados por conta do Réu.
18.' Assim, deve inserir-se nos factos não provados que: 'Os actos descritos nos pontos 21. a 24. foram praticados por J. F. por conta e no interesse do Réu' .
19.' Por fim, e considerando que o Recorrido se arrogava proprietário da vinha, mas que com o relatório pericial foi junto aos autos o documento que consta de fls. 288, de onde resulta que a vinha é titulada por S. G., impõe-se, também, verter nos factos provados o seguinte facto: 'É titular da vinha S. G., pessoa a quem foi atribuída a respectiva autorização de produção (n," 21889/D) .; fls. 288 dos autos'.
20.' Em suma, o Recorrido é apenas alguém a quem o seu pai tencionava doar o prédio objecto dos presentes autos, tendo-se provado que:

• Não foi o Recorrido quem comprou a A. F. o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567, mas sim o seu pai;
• Não foi o Recorrido quem praticou sobre o prédio os actos de fruição que materializam o corpus enquanto elemento integrador da posse, mas sim o seu pai;
• É a posse de J. F. sobre o prédio que é pública, sendo este que tem vindo a lavrar, semear, plantar, colher e tratar e colher os frutos do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567 à vista de toda a gente e com o conhecimento da generalidade dos vizinhos, sem oposição de ninguém;
• Aliás, sequer a vinha plantada no referido terreno pertence ao Recorrido, tendo sido o seu pai quem, até à presente data, a plantou, pagou a surriba do terreno com uma máquina bulldozer e a subsequente preparação do mesmo, adquiriu as videiras, pagou a respectiva plantação e providenciou pela colocação de postes e de arames, sendo a mesma titulada por S. G..
21. Ora, (foi) vertida apenas nos factos provados uma mera intenção de doação, sendo a partir do momento em que esta operasse que poderia o Recorrido invocar a verificação dos pressupostos da usucapião. Contudo, dos factos provados consta apenas a factualidade que justificaria a aquisição da propriedade por usucapião por J. F. e nunca pelo ora Recorrido, razão pela qual deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, o Recorrente absolvido do pedido reconvencional contra si formulado.
22. Contudo, mesmo que porventura se entendesse dever ser mantida a matéria de facto tal qual foi julgada pelo tribunal recorrido e de acordo com a qual, para o que ora interessa, os actos de fruição praticados por J. F. no prédio o foram no interesse e por conta do Recorrido, ou seja, invocando-se a figura da posse exercida por intermédio de outrem, ainda assim nunca deveria ter procedido o pedido reconvencional, pelas razões que de seguida se enunciarão.
23. Desde logo porque, se o corpus pode ser exercido por intermédio de outrem, o mesmo já não sucede relativamente ao animus, ou seja, à intenção de agir como titular do direito e, verificado o elenco dos factos provados, mesmo tal qual estão vertidos na sentença recorrida, verifica-se que em momento algum se concretiza esse animus, ou seja, a intenção de agir como beneficiário do direito, ainda que tal actuação ocorra por intermédio de outrem.
24.' Dos factos provados apenas consta que J. F. exerceria o somatório de actos que consubstanciam o corpus sobre o prédio, no interesse e por conta do seu filho.
25.' No entanto, não é a actuação ou a intenção de um terceiro que faz presumir a intenção ou actuação do Recorrido. Impunha-se que o Recorrido tivesse feito prova de que tinha intenção de agir como titular do direito e que o seu pai actuava em seu nome e representação. Contudo, tal não sucedeu, o que imporia, uma vez mais, e também por esta razão, que improcedesse o pedido reconvencional formulado, o que por esta via se querer.
26. Acresce que o acto translativo constitutivo do direito invocado pelo Recorrido para invocar a existência do animus - a aquisição do prédio por via de uma compra e venda verbal feita a A. F. - ter resultado não provado, tendo o Tribunal dado como provado que o comprador do prédio foi o seu pai, ainda que com intenção (intenção que se desconhece se foi alguma vez concretizada e, mesmo que o tenha sido, desconhece-se igualmente quando é que o foi) de posteriormente o dar ao seu filho,
27. Verifica-se, pois, que nem sequer o animus, tal qual o Recorrido o materializou, decorrente e consequente da compra a A. F., se verifica, na medida em que não foi este quem comprou o referido prédio, mas sim o seu pai.
28.' Impunha-se, pois, que o Recorrido tivesse alegado e o Tribunal recorrido julgado provada a ocorrência da doação do prédio ao Recorrido pelo seu pai, facto que estaria na origem da posse invocada, o que não sucedeu e que impõe, também por esta razão, que improceda o pedido reconvencional invocado e, consequentemente, revogada a decisão recorrida no segmento que julgou pela sua procedência.
29.' Mas, mais um fundamento deveria ter conduzido à improcedência do pedido reconvencional: a publicidade ou, neste caso, a ausência de publicidade, na medida em que a posse, através da qual opera a usucapião, tem de ser pública e pacifica.
30.' Ora, a posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados' (Cfr. Código Civil Anotado' Volume II' Anotação ao Artigo 1262: - página 39 – Almedina) e a posse exercida por intermédio de outrem que conduz à aquisição da propriedade por usucapião tem de ser igualmente pública e essa publicidade não se cinge aos actos materiais praticados pelo terceiro que exerce a posse, ela tem de ser necessariamente extensível ao possuidor que exerce a posse por intermédio de terceiro.
31. Sucede que, dos factos provados, apenas resulta a publicidade dos actos de fruição do prédio praticados por J. F. e não de que tais actos tenham sido praticados por conta e no interesse do Recorrido.
32. Ora, a concreta posse passível de usucapião tem de ser pública, desde logo no sentido de poder ser verificada pelo Recorrente e por qualquer terceiro. No entanto, a posse em causa nos autos não era percepcionada nem percepcionável, na medida em que apenas os actos de suposta detenção praticados por J. F. eram públicos.
33.' Termos em que, também com este fundamento, deve proceder o recurso interposto e, consequentemente, revogado o segmento da decisão recorrida objecto do presente recurso.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente por provado e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida no concreto segmento objecto do mesmo (declaração do Réu como proprietário do prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia de (...) sob o artigo 567), assim julgando improcedente o pedido reconvencional formulado pelo Réu, ora Recorrido…”
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Não se conformando também com a decisão proferida, dela veio o réu reconvinte interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

18 Sendo a posse exercida por intermédio de outrem, a omissão de tal circunstância na escritura de justificação dessa mesma posse, não torna os factos ali declarados impugnáveis nem ineficaz essa escritura;
28 Exercer a posse directamente ou por intermédio de outrem não constitui um dos caracteres da posse enunciados nos artigos 1258° a 1262° do Cód. Civil, tratando-se de pormenor irrelevante para efeitos de declaração do correspondente direito e subsequente registo;
38 Tendo resultado provado que o R. adquiriu o prédio por usucapião nos termos declarados na escritura de justificação, embora em consequência de posse exercida por intermédio de outrem, facto que não consta dessa escritura, deverá improceder a acção;
48 Foi violado o disposto no art° 89° do Código do Notariado e o disposto no art° 1252° nº 1 do Cód. Civil.

Termos em que, na procedência da alegação do recorrente, deverá ser dado provimento à apelação, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-se por outra que julgue improcedente a acção, declarando prejudicada a reconvenção”.
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Pelo A/recorrido foram apresentadas contra-alegações nas quais pugna, desde logo, pela inadmissibilidade do recurso do R, por extemporaneidade, e subsidiariamente pela sua improcedência, com a manutenção da decisão recorrida.
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Pelo R/recorrido foram também apresentadas contra-alegações nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.

Mais defende a rejeição do recurso do A. quanto á matéria de facto, dizendo que analisadas as conclusões de recurso daquele, verifica-se que o recorrente não cumpriu o ónus de indicar as passagens da gravação em que funda a impugnação da matéria de facto.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- Como questão prévia, a de saber se é admissível o recurso do A;
- Se é admissível o recurso da matéria de facto do R, por falta da indicação das passagens da gravação dos depoimentos das testemunhas;
- Se a matéria de facto deve ser alterada, nos termos pretendidos pelo A/recorrente;
- Se perante a matéria de facto alterada deve ser alterada a decisão em conformidade, com a improcedência do pedido reconvencional.
- Se mesmo perante a matéria de facto provada deveria ser improcedente a reconvenção;
- E se deveria ser procedente a acção.
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Da questão prévia, suscitada pelo R/recorrido, da inadmissibilidade do recurso do A. por extemporaneidade:

Alega o R/recorrido nas suas contra-alegações que tendo o recorrente interposto recurso da decisão que considerou impugnados os factos alegados na escritura de justificação notarial e, consequentemente declarou a ineficácia dessa mesma escritura para que o declarante não possa, através dela, registar qualquer direito sobre o prédio, e ordenando ainda o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento impugnado, o prazo de interposição desse recurso deveria ser de apenas 15 dias, nos termos previstos no nº 2, alínea f), do artº 644º do CPC, prazo que o recorrente não cumpriu, pelo que deve ser rejeitado por intempestividade o recurso por ele interposto.

Mas sem razão, como decorre do alegado artº 644º.

Dispõe o nº 1 do artigo 638º do CPC que o prazo para a interposição de recurso é de 30 dias, reduzindo-se no entanto para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no nº 2 do artigo 644º e no artigo 677º.

E dispõe por sua vez o referido nº 2, alínea f) do artigo 644º que cabe ainda recurso de apelação da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo.
Consideramos, no entanto, que a situação em apreço enquadra-se no artº 644º do CPC, mas no seu nº 1 - previsto para o recurso de apelação da decisão proferida em 1ª instância que ponha termo à causa.

Ora, foi essa precisamente a situação dos autos: a decisão proferida e da qual se recorre (embora relativamente apenas à parte desfavorável ao recorrente), pôs termo à causa – apreciando e decidindo todos os pedidos formulados, entre eles o pedido do cancelamento dos registos operados com base na escritura de justificação notarial impugnada (encontrando-se no entanto esse pedido inserido na decisão mais vasta que pôs termo à causa).

A alínea f) do nº 2 do preceito em análise refere-se, pelo contrário – conjugando-se a sua leitura com o disposto no nº1 -, à decisão que, sem pôr termo à causa, ordene o cancelamento de qualquer registo, traduzindo-se numa apelação autónoma destacada de todas as outras previstas no nº3 do preceito, que devem ser impugnadas juntamente com a decisão que ponha termo á causa.

Ou seja, estamos no âmbito do recurso interposto da decisão final – prevista no artº 644º nº1 do CPC –, cujo prazo de interposição é de 30 dias (artº 638º nº1 do CPC), destinando-se o prazo de 15 dias previsto no artº 638º nº1, in fine, como se disse acima, às decisões – que não ponham termo à causa -, e que sejam proferidas no âmbito das matérias vertidas nas várias alíneas do nº 2 do artº 644º.

Concluímos do exposto (como já consta do despacho proferido nos autos) que o recurso interposto pelo A é admissível e está em tempo.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:

1. No dia 18/12/2014, no Cartório Notarial, foi outorgada uma escritura de justificação notarial para efeitos de registo de aquisição, por usucapião, entre outros, do prédio rústico sito em ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 567 e actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ... da freguesia de (...), composto por terra de cereal com figueiras e oliveiras e confinando, a norte e sul com caminho, a nascente com Maria e a poente com António.
2. Á data da outorga da escritura referida no ponto anterior, terreno inscrito na matriz sob o artigo 567 não se encontrava descrito na Conservatória do Registo Predial.
3. Na mencionada escritura intervieram como primeiro outorgante o réu e como segundos outorgantes F. S., F. C. e D. M..
4. Da mencionada escritura consta, nomeadamente, o seguinte:

a) «Declarou o primeiro outorgante que, com exclusão de outrem, é possuidor dos bens imóveis, situados na freguesia de (...), concelho de Vila Flor, que totalizam o valor patrimonial para efeitos de IMT de €2506,31, identificados nas oito verbas descritas no documento complementar […] Que entrou na posse dos prédios indicados de um a sete no ano de mil novecentos e noventa e um, por compra meramente verbal a que nunca foi reduzida a escritura pública, feita em dia e mês que não pode precisar a A. F., casado com M. C., no regime da comunhão de adquiridos, e residente na Praceta ..., número ..., Senhora da Hora, e o prédio indicado em oito no ano de mil novecentos e noventa e três, feito em dia e hora que não pode precisar a J. G., solteiro, maior, e residente na dita freguesia de (...). Que desse modo não possui título formal que lhe permita registar na aludida Conservatória de Registo Predial os identificados imóveis, todavia, desde os citados anos, data em que se operou a tradição material dos mesmos, ele justificante, já possui, em nome e interesses próprios, os prédios em causa, tendo sempre sobre eles praticados os actos materiais de uso e aproveitamento agrícola, tais como, amanhando-os, semeando-os, cultivando-os, colhendo os seus frutos, aproveitando, assim, deles todas as suas correspondentes utilidades e pagando todas as contribuições e impostos por ele devidos, agindo sempre como seu proprietário, quer na sua fruição, quer no suporte dos seus encargos, tudo isso realizado à vista de toda a gente, sem qualquer ocultação, de forma continuada, ostensiva e ininterrupta, desde o seu início, sem qualquer oposição ou obstáculo de quem quer que seja e sempre no convencimento de o fazer em coisa própria, tendo, assim mantido e exercido sobre os identificados prédios, durante mais de vinte anos e com o conhecimento da generalidade das pessoas vizinhas, uma posse pública, pacífica, contínua e em nome próprio, pelo que adquiriu os citados prédios por usucapião, que expressamente invoca para justificar o seu direito de propriedade para fins de primeira inscrição no registo predial, direito esse que pela sua própria natureza não pode ser comprovado por qualquer título formal extrajudicial […]. Declaram seguidamente os segundos outorgantes que, por corresponderem inteiramente à verdade, confirmam integralmente as declarações ora prestadas pelo primeiro outorgante».
5. A aquisição do referido prédio por usucapião foi inscrita no registo predial a favor do réu em 19/02/2015.
6. Até ao registo da aquisição do imóvel por usucapião pelo réu, o terreno inscrito sob o artigo 567 não se encontrava descrito na Conservatória de Registo Predial mas apenas inscrito na matriz predial rústica.
7. O terreno inscrito sob o artigo 567 foi adjudicado a A. F. na partilha judicial decidida no Processo de Inventário Obrigatório n.º 12/72 que correu os seus termos no Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão.
8. Nos autos de inventário referidos no ponto anterior figuram como inventariados A. F. e M. F. e interessados R. F. e A. F., tendo a partilha sido homologada por sentença datada de 09/03/1973.
9. O prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567 teve a seguinte sequência de inscrições:
a) Sem indicação se ano - A. F.;
b) 1995 – I. M.;
c) 1998 – A. F.;
d) 2005 – A. F.;
10. J. F. negociou a compra do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567, entre outros, com A. F. para o seu filho, o réu J. M., em data concretamente indeterminada mas sita entre 1990 e 1994.
11. Na altura da transação referida no ponto anterior, o réu encontrava-se emigrado na Suíça.
12. No ano de 1997, o réu ingressou no ensino superior, na Universidade …, tendo fixado a sua residência na área metropolitana do Porto.
13. A cidade do Porto dista 160KM da freguesia de (...) e o percurso demora cerca de 2h30.
14. No ano de 2008, o réu passou a desempenhar funções na ..., sediada em Miami, nos EUA, tendo a partir dessa data passado a realizar viagens de longo curso, a bordo dos navios que compõem a frota da referida companhia.
15. O réu publicou na sua página pessoal do Facebook a seguinte informação sobre viagens que realizou: a) Em Portugal: i. Setembro 2014 – Sagres; ii. Julho de 2013 – Macedo de Cavaleiros; iii. Agosto de 2012 – Mirandela; iv. Maio de 2012 – Lisboa; b) No estrangeiro: i. Ano de 2014: 1. Outubro a. Porto-Vecchio, França; b. Barcelona, Espanha; 2. Setembro a. Amsterdam, Países Baixos; b. Moscovo, Rússia; c. Estocolmo, Suécia; 3. Agosto a. Helsínquia, Finlândia; b. Riga, Letónia; c. Noruega; 4. Julho a. Islândia; b. Gronelândia; c. Ilhas Faroé, Dinamarca; d. Escócia; e. Irlanda; 5. Junho a. Bordeaux, França; b. Barcelona, Espanha; c. Itália; d. Tirana, Albânia; e. Montenegro; f. Eslovénia; 6. Maio a. Angola; ii. Ano de 2013 1. Maio a. Canadá b. San Diego, EUA; 2. Abril a. Carolina do Sul, EUA; 3. Fevereiro; a. Virgínia, EUA; b. Frankfurt, Alemanha; iii. Ano de 2012 1. Agosto a. Brighton, UK; b. Londres, UK; 2. Julho a. Islândia; b. Gronelândia; c. Ilhas Faroé, Dinamarca; d. Escócia.
16. O réu, após o ingresso no ensino superior e experiência profissional no estrangeiro, até ao ano de 2016, vinha a (...) cerca de quatro vezes por ano, a cada três meses.
17. Durante mais de 20 e 30 anos, ininterruptamente, o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567 foi fruído por A. F. e antepossuidores, seus pais, de quem os herdou, fazendo-o à vista de toda a gente e com o conhecimento da generalidade dos vizinhos, sem oposição de ninguém, convencidos de que exerciam direito próprio e ignorando desde sempre que lesavam qualquer direito alheio.
18. Os actos de retenção e fruição de A. F. e antepossuidores, seus pais, desde sempre se tenham consubstanciado no somatório de actos que costuma levar a cabo o normal proprietário, lavrando, semeando, planando, tratando e colhendo os frutos, conservando e defendendo os imóveis.
19. J. F., progenitor do réu, tem vindo a lavrar, semear, plantar, colher e tratar e colher os frutos do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567 à vista de toda a gente e com o conhecimento da generalidade dos vizinhos, sem oposição de ninguém.
20. J. F., progenitor do réu, realiza os actos descritos no ponto anterior por conta e interesse do réu, para quem negociou a aquisição do terreno.
21. No prédio rústico inscrito sob o artigo 567, o progenitor do réu procedeu à plantação de uma vinha com a área de 2256m2.
22. Para o efeito, contratou e pagou a surriba do terreno com uma máquina bulldozer e a subsequente preparação do mesmo, adquiriu as videiras, pagou a respectiva plantação e providenciou pela colocação de postes e de arames.
23. O progenitor do réu tem tratado da vinha até à data presente.
24. A plantação da vinha no terreno foi realizada em data concretamente indeterminada mas situada entre os anos de 2003 e 2004.
25. O prédio, antes da plantação, tinha um valor concretamente indeterminado mas de, pelo menos, €721,92.
26. A vinha plantada pelo progenitor do réu, isoladamente considerada, tem um valor concretamente indeterminado mas de, pelo menos, €3182,00”.

E foram dados como não provados os seguintes:

27. Que o terreno inscrito sob o artigo 567 confinasse a norte com A. C., a sul com caminho, a nascente dom F. G. e a poente com N. C..
28. Que A. F. não fosse titular do direito de propriedade sobre o terreno inscrito sob o artigo 567 no ano de 1991.
29. Que o prédio inscrito sob o artigo 567 estivesse inscrito na matriz a favor de A. F. desde 1948”.
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Da impugnação da matéria de facto:

Insurge-se o A/recorrente contra a matéria de facto dada como provada nos pontos 20 e 21, pretendendo que a mesma seja alterada, no sentido por si indicado.
Baseia a sua pretensão nas declarações prestadas pelo pai do réu e nos depoimentos das testemunhas que indica (indicando também, relativamente a cada uma, o início e o fim da gravação, com referência ao minuto respectivo daquela gravação).

Insurge-se o R/recorrido nas suas contra-alegações contra a admissibilidade do recurso da matéria de facto interposto pelo A, alegadamente por não ter sido dado cumprimento rigoroso ao disposto no artº 640º do CPC, nomeadamente, por falta de cumprimento, por parte do recorrente, da indicação, com exactidão, das passagens da gravação dos depoimentos nas quais baseia a sua discordância, exigência prevista na alínea a) do nº 2 daquele preceito, sendo certo que, segundo o apelado, o estrito cumprimento daquela alínea não se basta com a mera indicação do início e do fim da gravação do depoimento das diversas testemunhas.

Mas não temos vindo a aderir à tese do recorrido, que consideramos, adiantando razões, demasiado formalista.

No tocante ao ónus a que alude a alínea a) do nº2 do artº 640º do CPC, existem, de facto, entendimentos que partem da letra da lei (que é a indicação, e com exactidão, das passagens da gravação em que se funda o recurso e impugnação da decisão sobre a matéria de facto), para concluir que com a mera indicação de quem prestou os depoimentos e a sua sinalização em sede recursória apenas “por referência ao início e termo do seu registo ou o excerto transcrito de alguns desses depoimentos desacompanhados da exacta passagem da respectiva gravação, se não dá cumprimento ao particular ónus imposto à recorrente neste domínio” (Ac. do STJ de 25/11/2014, proferido no proc. nº 100482/10.6PRT.G1, não publicado; Ac RL, de 17/01/2012; e Ac RG, de 11/08/2016, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).

Existem outros entendimentos porém, mais condescendentes (com os quais nos identificamos), que consideram que a sanção prescrita no n.º 2, alínea a) do art.º 640.º do CPC “deverá ser aplicada com algum tempero, em termos de só se justificar quando, perante extensos depoimentos a abarcar matéria bastante diversificada - a maior parte dela não impugnada -, a omissão ou inexactidão na indicação das passagens tidas por relevantes dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso” (Ac. do STJ de 19/2/2015, in www.dgsi.pt.).

Aduz-se, a justificar este último entendimento, que a observância do referido ónus não se mostra sempre assim tão pertinente, tendo em conta o processo técnico das gravações e o modo como ficam registadas nos respectivos suportes magnéticos, com a indicação do início e fim da gravação em relação a cada depoimento, a que “acresce que a indicação parcelada de determinadas passagens dos depoimentos convocados só raramente dispensam o tribunal de recurso de ouvir todo o depoimento, na medida em que os interrogatórios sobre determinado ponto de facto e as respectivas instâncias da parte contrária e do tribunal não são sequenciais, encontrando-se disseminadas ao longo de todo o depoimento” (cfr o citado Ac. do STJ de 19/2/2015).

Concordamos inteiramente com os considerandos aduzidos no acórdão acabado de citar, pelo que, e não obstante a letra da lei, temos como defensável o entendimento de que a exigência feita no artº 640.º n.º 2 alínea a) do CPC é perfeitamente compatível com a mera indicação pelo recorrente dos timings (minutos) onde se encontram as passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem reapreciar (como aconteceu no caso dos autos).
Isto no pressuposto de que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo (artº 9º nº1 do CC), que, no caso da alínea a) do nº2 do artº 640º do CPC, foi o acima referido - facilitar o exercício do contraditório pela parte contrária, e o reexame da prova por parte do tribunal de recurso -, desideratos que foram alcançados no caso dos autos, como se verifica pela resposta do recorrido à impugnação da matéria de facto e pelo reexame que fizemos aos depoimentos sob escrutínio.

impostos pelo artº 640º do CPC, nada obstando, portanto, a que se proceda à reanálise da prova, nos termos requeridos pelo recorrente, para aquilatar se os pontos da matéria de facto visados pelo mesmo foram bem decididos na 1ª Instância.
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São os seguintes os factos em questão:

“10- J. F. negociou a compra do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567) entre outros, com o A. F. para o seu filho, o réu J. M., em data não concretamente determinada mas sita entre 1990 e 1994”
“20- J. F., progenitor do Réu (…) para quem negociou a aquisição do terreno…”

Pretende o recorrente que dos pontos da matéria de facto em questão fique a constar também a intenção do comprador na aquisição dos prédios, ou seja, a de doar o referido prédio ao R.

Ora, consideramos desde logo perfeitamente irrelevante para a questão que se discute nos autos – que é a posse exercida pelo R sobre o prédio em causa nos autos, em termos de o poder adquirir por usucapião -, tal acrescento, sendo para o caso indiferente qual o negócio que o adquirente iria ou pretendia fazer com o seu filho com o prédio em questão, mostrando-se suficiente a matéria de facto assente, que o pai do réu adquiriu o prédio com a intenção de posteriormente o transmitir para o seu filho (sendo indiferente para o caso o tipo de transmissão que tivesse em mente ou que se viesse a concretizar).

Sempre se dirá contudo que, como também o admite o recorrente, nenhuma prova foi feita nos autos sobre o negócio que foi realizado posteriormente à compra do prédio, limitando-se o vendedor, a testemunha A. F. a referir que J. F., o comprador e pai do Recorrido, lhe terá referido ser sua intenção a de dar o prédio ao filho, desconhecendo, contudo, se a mesma se concretizou.

Por outro lado, afigura-se-nos muito pouco consistente a afirmação do recorrente - sem qualquer apoio probatório - de que não haveria dúvidas de que J. F. tratou ou 'fabricou' o terreno com intenção de o dar ao seu filho.

Em suma, não se provou também – com a certeza mínima exigível para se dar tal facto como provado -, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, que a aquisição ocorreu tendo subjacente essa intenção, a de doar o prédio ao R, razão pela qual a redacção dos números em questão (10 e 20) não merece ser alterada.
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Pretende também o recorrente que seja vertido nos factos não provados que “O réu, através do seu pai J. F., negociou a compra dos prédios em causa aos anteriores possuidores, A. F. e J. G.”

Ou seja, pretende no fundo o recorrente que fique a constar da matéria de facto não provada o reverso da matéria de facto provada, e que é precisamente a acabada de analisar, vertida nos pontos 10 e 20 – de que foi J. F. quem negociou a compra do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 567º.

Ora, como é evidente, afigura-se desnecessária – e prática incorrecta, sob o ponto de vista processual -, a inclusão na matéria de facto não provada, da versão contrária da matéria de facto dada como provada.

E o mesmo se passa com os factos pretendidos levar à matéria de facto não provada de que “O Réu procedeu à plantação de uma vinha no prédio do artigo 567, com prévia preparação do terreno, e tendo vindo a tratar da mesma desde então”, e de que “Os actos descritos nos pontos 21 a 24 foram praticados por J. F. por conta e no interesse do Réu”, uma vez que esses factos já constam da matéria de facto provada nos pontos 21 a 24 – que “No prédio rústico inscrito sob o artigo 567, o progenitor do réu procedeu à plantação de uma vinha com a área de 2256 m2”; “Para o efeito, contratou e pagou a surriba do terreno com uma máquina bulldozer e a subsequente preparação do mesmo, adquiriu as videiras, pagou a respectiva plantação e providenciou pela colocação de postes e de arames; “O progenitor do réu tem tratado da vinha até à data presente”; e “A plantação da vinha no terreno foi realizada em data concretamente indeterminada mas situada entre os anos de 2003 e 2004”.

Assim sendo, e pelas mesmas razões acima expostas, não é de atender a pretensão do recorrente, de ver incluídos na matéria de facto não provada tais factos.
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Finalmente, quanto à pretensão do recorrente de ver acrescentada à matéria de facto provada que “É titular da vinha S. G., pessoa a quem foi atribuída a respectiva autorização de produção (n," 21889/D); fls. 288 dos autos”, esse facto, irrelevante para a questão que nos ocupa, mostra-se mesmo contraditório com o facto provado vertido no ponto 23, de que é o progenitor do réu que tem tratado da vinha até à data presente – facto que o recorrente não põe em causa.

Mas mesmo que se considerasse esse facto verídico – que a referida S. G. tivesse autorização de produção da vinha –, como se disse, esse facto mostra-se de todo irrelevante para a decisão da presente acção, na qual se discute a propriedade do imóvel e os atos de posse praticados pelo R que levaram à sua aquisição por usucapião, sendo compatível com esses atos a entrega da produção da vinha a um terceiro, por qualquer contrato de exploração (ou doutra natureza).
Improcede também nesta parte a pretensão do recorrente.

Conclui-se assim, por todo o exposto, que é de manter a matéria de facto nos precisos termos em que a mesma foi decidida na primeira instância, sendo à luz da mesma que serão apreciadas as demais questões colocadas.
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Da procedência da reconvenção:

Considera o A/recorrente que mesmo com a matéria de facto dada como assente, e de acordo com a qual os actos de fruição praticados por J. F. no prédio o foram no interesse e por conta do Recorrido, ou seja, invocando-se a figura da posse exercida por intermédio de outrem, ainda assim nunca deveria ter procedido o pedido reconvencional.

Diz que se o corpus pode ser exercido por intermédio de outrem, mas o mesmo já não sucede relativamente ao animus, ou seja, à intenção de agir como titular do direito.

Além disso, a posse, através da qual opera a usucapião, tem de ser pública e pacifica, o que não sucedeu no caso dos autos, na medida em que dos factos provados apenas resulta a publicidade dos actos de fruição do prédio praticados por J. F. e não de que tais actos tenham sido praticados por conta e no interesse do Recorrido.

Mas não acompanhamos o recorrente, e aderimos, integralmente, ao que consta da decisão recorrida.

Começamos por dizer que na contestação o R. impugna os factos alegados pelo A. na p.i., dando no entanto dos mesmos uma versão diferente da por si aduzida na escritura de justificação, dizendo que os atos de posse que diz terem sido por si praticados o foram por intermédio de seu pai, pelo que pretende ver os mesmos reconhecidos judicialmente, ou seja, pretendendo ver judicialmente declarado o seu direito de propriedade sobre o aludido prédio, dizendo que vem exercendo sobre o mesmo os atos de posse que afirmou praticar na escritura de justificação notarial, mas por intermédio do seu pai.

Ou seja, em sede reconvencional o autor pretende invocar a aquisição da propriedade do terreno em disputa por usucapião, baseado nos novos factos alegados (que logrou provar, e sobre os quais não nos podemos pronunciar, na media em que a reconvenção foi admitida, por decisão transitada em julgado).

Começamos por dizer que subscrevemos na íntegra as considerações de ordem geral tecidas na decisão recorrida, sobre a posse e a usucapião, consagradas legalmente, de que “A usucapião consiste numa forma de aquisição originária da propriedade, que depende da vontade do adquirente, de uma posse com determinadas características e pelos prazos legais. Assim, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo durante os prazos legais facultados ao possuidor – salvo disposição legal em contrário – permitem a aquisição do direito a cujo exercício a sua actuação corresponde, com efeitos que retroagem ao início da posse (art. 1287º e 1288º do Código Civil).

Nos termos do art. 1290º, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si o direito possuído por via de usucapião, salvo achando-se invertido o título da posse (art. 1290º do Código Civil). A usucapião depende de uma posse pública e pacífica, sendo a posse violenta ou oculta insusceptível de conduzir à usucapião, sendo que os prazos para a usucapião apenas se contam a partir do momento em que cesse a violência ou a posse se torne pública (art. 1297º e 1300º, n.º 1 do Código Civil).

No que diz respeito a prazos, a lei varia conforme se trate de coisa móvel ou imóvel (art. 1293º-1301º do Código Civil); focando a nossa atenção no caso concreto da coisa imóvel, a lei oscila conforme haja justo título de aquisição e registo (art. 1294º, 1295º, 1296º, todos do Código Civil).
A usucapião apenas é eficaz se for invocada, sendo por isso voluntária (art. 303º, aplicável por força do art. 1292º do Código Civil) (Doutrinalmente, cfr a clássica obra de Pires de Lima e Antunes Varela (1987), Código Civil Anotado, Coimbra, anotação ao art. 1287º-1301º e Carvalho Fernandes, L. (2000), Lições de Direitos Reais, Quid Juris, fls 230-237; mais recentemente também Menezes Leitão, L. (2013), Direitos Reais, Almedina, fls 212-217; também José Alberto Vieira (2008), Direitos Reais, Coimbra, fls 403-432) (…).

Tomando em linha de conta as características definidoras da posse, atrás sumariamente sintetizadas, resulta do art. 1252º n.º 1 do Código Civil que a posse pode ser exercida tanto pessoalmente como por intermédio de terceiro. Trata-se, no dizer de Pires de Lima/Antunes Varela, da figura da «representação» na posse, do exercício de um direito por intermédio de um representante. Conforme dizem igualmente Rui Pinto/Cláudia Trindade, os poderes que caracterizam a posse são exercidos por outrem que o representa na posse em virtude de a sua actuação ser imputada ao representado; quem exerce os poderes é possuidor em nome alheio, nos termos do disposto no art 1253º, al. c) do Cód Civil na medida em que exercem o corpus sem que haja animus porquanto o uso que fazem da coisa encontra-se integrado numa situação precária cuja função é permitir a não-titulares do direito o uso de coisa alheia mas não a aquisição do respectivo direito (Ana Prata et allii (2017) Código Civil Anotado, vol. II, Almedina, anotação ao art. 1252º)”.

E subscrevemos também as considerações tecidas na decisão recorrida sobre a posse exercida nos autos pelo R, ainda que por intermédio do seu pai, e que levou à aquisição do mesmo por usucapião.
Assim, como consta da decisão recorrida, “In casu, na medida em que resulta dos factos provados que J. F. adquiriu e cuidou do terreno por conta e no interesse do réu (pontos 10, 19 e 20 dos factos provados), apenas se pode concluir que o mesmo exerceu o corpus correspondente à posse, desprovido do respectivo animus (nos termos atrás melhor explicitados), tendo agido em nome de outrem (do réu), pelo que J. F. será detentor e o réu será possuidor do terreno por intermédio de outrem (arts. 1251º, 1252º, n.º 1 e 1253º, al.c) do Cód Civil)”.

Acrescentaremos apenas aqui que ficou bem patente nos autos que logo no momento da aquisição do terreno, J. F. negociou a compra do prédio para o seu filho, sendo ele que o tem vindo a lavrar, semear, plantar, tratar e colher os seus frutos, à vista de toda a gente e com o conhecimento da generalidade dos vizinhos, sem oposição de ninguém, realizando os actos descritos por conta e no interesse do réu.

Ou seja, o pai do R. tem praticado no terreno atos materiais de posse, à vista e sem oposição de ninguém (posse pública e pacífica), mas com a clareza necessária e suficiente de que o faz em nome do filho, que é quem detém o verdadeiro animus de proprietário (embora seja desconhecido o verdadeiro negócio que esteve subjacente à transmissão do direito de propriedade do pai para o filho ou se ele ocorreu de facto).

Como nos esclarecem os Profs Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, III, pag. 7 e 8) pode um terceiro, como pode o próprio titular, não ter, de facto, a detenção da coisa, pois, em regra, todos os direitos patrimoniais podem ser exercidos por intermédio de um representante.

Por isso subscrevemos também a afirmação feita na decisão recorrida de que, tomando em consideração a definição dos caracteres da posse, a posse do réu deve ser considerada titulada, porque a aquisição do direito de propriedade por parte do seu pai, ainda que inválida formalmente – porque não formalizada por escritura pública – considera-se titulada (artº 1259º, n.º 1 do CC) e é essa característica da posse que vai relevar em termos de aquisição do direito de propriedade por parte do R. Ela é também uma posse de boa-fé, pacífica e pública – porque foi exercida na convicção de que ao exercê-la não se lesavam os direitos de outrem, sem oposição de ninguém, nomeadamente do A. que a ela se opõe, e à vista de toda a gente (arts. 1258º, 1259º, n.º 1, 1260º, n.º 1 e n.º 2, 1261º, n.º 1 e 1262º, todos do CC), pelo que se consolidou na esfera patrimonial do Réu o direito de propriedade sobre o prédio em causa nos autos, por usucapião, decorridos que foram 15 anos sobre a data da aquisição do prédio por parte do seu pai (art. 1296º do CC).

Ou seja, considerando que a aquisição do imóvel ocorreu (na data mais recente) em 1994, o prazo para se consolidar o direito de propriedade por usucapião terá ocorrido em 2009 (artºs 179º al.a), 296º e 1296º do CC), isto é, muito antes da entrada desta acção em juízo (em 2015).
Por outro lado, a usucapião foi expressamente invocada pelo réu (arts. 1292º e 303º do Cód Civil), pelo que ele pode adquirir para si o imóvel em causa por essa via.

Perante o exposto, o pedido reconvencional teria de proceder, como se decidiu na sentença recorrida, declarando-se que o réu adquiriu a propriedade sobre o terreno descrito no artº 567 em disputa, por usucapião.
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Do recurso do R/reconvinte:

Mesmo tendo obtido ganho de causa na reconvenção por si deduzida na contestação a título principal, considera o recorrente que deveria a acção ser julgada improcedente quanto aos pedidos formulados pelo A. na p.i.

Diz que sendo a posse exercida por intermédio de outrem, a omissão de tal circunstância na escritura de justificação dessa mesma posse, não torna os factos ali declarados impugnáveis nem ineficaz essa escritura; que exercer a posse directamente ou por intermédio de outrem não constitui um dos caracteres da posse enunciados nos artigos 1258° a 1262° do Cód. Civil, tratando-se de pormenor irrelevante para efeitos de declaração do correspondente direito e subsequente registo; que tendo resultado provado que o R. adquiriu o prédio por usucapião nos termos declarados na escritura de justificação, embora em consequência de posse exercida por intermédio de outrem, facto que não consta dessa escritura, deverá improceder a acção.

Mas sem razão, como é facilmente demonstrável.

Como consta da decisão recorrida “Os autos consubstanciam uma acção de impugnação de justificação notarial, nos termos dos arts. 116º n.º 1 do Cód. De Registo Predial e 101º do Cód do Notariado; A Jurisprudência dos Tribunais Superiores tem vindo a entender que este tipo de acções consubstancia uma acção de simples apreciação negativa (art. 10º, n.º 3, al. a) do Cód de Proc Civil) em virtude de visar a simples declaração de inexistência do direito arrogado na escritura; neste tipo de acções, existe uma regra especial de distribuição do ónus da prova na medida em que incumbe sobre o réu a prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga, nos termos previstos no art. 343º, n.º 1 do Cód Civil (cfr o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2015, proc. n.º 448/09.5TCFUN.L1.S1; Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/03/2011, 687/10.6TBPBL.C1).

Ainda no seguimento do ponto anterior, conforme decorre com cristalina clareza do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2008, numa acção de impugnação de escritura de justificação notarial, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, nos termos do art. 343º, n.º 1 do Cód. Civil. Trata-se, assim, de uma acção de simples apreciação negativa (art. 10º, n.º 3, al.a) do Cód de Proc Civil).

Nestes termos, incumbe sobre o réu a prova dos factos alegados na escritura impugnada, em concreto, (a) compra meramente verbal que nunca foi reduzida a escrito do referido prédio, feito em dia e mês que não pode precisar, a A. F., (b) posse do referido prédio em nome e interesse próprio, materializada na prática de actos de uso e aproveitamento agrícola, pagando todas as contribuições de impostos por ele devidos, agindo como o proprietário, na fruição e suporte de encargos e (c) prática dos actos à vista de todos, exercendo posse pública, pacífica e ininterrupta, sem qualquer obstáculo de terceiros, no convencimento de o fazer em coisa própria.
Ora, conforme decorre da fundamentação da matéria de facto que temos vindo a apresentar, o Tribunal entende que os réus não lograram fazer prova de nenhum dos factos alegados (…).

Pelo exposto, o réu nenhuma prova fez de ter adquirido o respectivo prédio por compra meramente verbal que nunca foi reduzida a escrito, feito em dia e mês que não pode precisar, a A. F.; apenas se fez prova que o seu progenitor, J. F., adquiriu verbalmente o prédio em nome próprio e com a intenção de o transmitir para o réu (art. 874º do Cód Civil), na medida em que não resulta dos factos provados nenhuma relação de mandato ou de representação que permita imputar na esfera jurídica do réu a aquisição do dito prédio; por outro lado, não resulta dos factos provados que tenha sido o próprio réu a negociar a aquisição do prédio (…).

O segundo e terceiro factos que ao Tribunal cumpre apreciar – os quais deverão ser apreciados em conjunto – consistem em apurar se foi feita prova da (b) posse do referido prédio em nome e interesse próprio, materializada na prática de actos de uso e aproveitamento agrícola, pagando todas as contribuições de impostos por ele devidos, agindo como o proprietário, na fruição e suporte de encargos e (c) prática dos actos à vista de todos, exercendo posse pública, pacífica e ininterrupta, sem qualquer obstáculo de terceiros, no convencimento de o fazer em coisa própria.

Nos termos de uma leitura combinada entre os arts. 1251º e 1253º do Código Civil, designa-se como «posse» a situação jurídica em que alguém actua por força correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

Doutrinalmente e jurisprudencialmente são apontadas duas características à posse: o «corpus» (correspondente a actos materiais que expressem o exercício de um poder de facto sobre uma coisa, os quais denunciem que entre uma pessoa e uma coisa existe uma relação de facto, relação que, quando revestir certos caracteres, será a própria relação possessória) bem como o «animus» (correspondente à intenção de agir como titular desse direito) – cfr o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/05/2013, prc. n.º 355/06.3TBARC.P1.S2.

Uma vez que o «animus» constitui um simples elemento subjectivo, de difícil prova, os Tribunais superiores têm admitido que se presuma esse elemento intencional, volitivo, retirando essa presunção do art. 1252º, n.º 2 do Código Civil; presume-se que, quem exercer o poder de facto, tem o animus de ser o titular do direito (cfr o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/02/2014, proc. n.º 1350/11.6TBGRD.C1).

Os que não forem considerados possuidores (em virtude de terem o «corpus» mas não o «animus» serão considerados detentores ou possuidores precários – art. 1253º do Código Civil).

Nos termos do art. 1252º, n.º 1 do Código Civil, a posse pode ser exercida tanto pessoalmente como por intermédio de terceiro; trata-se, no dizer de Pires de Lima/Antunes Varela, da figura da «representação» na posse, do exercício de um direito por intermédio de um representante.

Por seu turno, nos termos do art. 1255º do Código Civil, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa (Doutrinalmente, cfr a clássica obra de Pires de Lima e Antunes Varela (1987), Código Civil Anotado, Coimbra, anotação ao art. 1251º, 1252º 1253º e 1255º; mais recentemente também Menezes Leitão, L. (2013), Direitos Reais, Almedina, fls 99-160, em particular, fls 113-117).

No caso concreto, não resulta da factualidade provada que o réu tenha – conforme afirma – exercido a posse do prédio em nome e interesse próprio.

Com efeito, conforme resulta dos factos considerados provados, o réu esteve ausente de Vila Flor entre 1997 e 2016, tendo exercido funções numa empresa de cruzeiros entre 2008 e 2016, com passagens por diversos pontos no mundo, apenas se deslocando a (...) cerca de quatro vezes por ano, a cada três meses.

Muito embora o Tribunal tenha igualmente considerado assente que o seu progenitor J. F. exerceu diversos actos sobre o prédio, por conta e no interesse do réu, a ser relevado aquando da aquisição do prédio por usucapião, o que importa relevar neste momento é se o réu fez prova de ter efectuado, em nome e interesse próprio, actos de uso e aproveitamento agrícola sobre o prédio.

A este respeito, a resposta apenas pode ser negativa na medida em que resulta dos factos provados que esses actos de uso e aproveitamento agrícola foram praticados pelo seu progenitor, ainda que no interesse do réu mas não pelo próprio.
Por outro lado, nenhuma prova fez de ter sido o próprio a pagar as contribuições e impostos sobre o prédio.

A isto acresce que a posse em questão não foi pública na medida em que apenas resulta dos factos provados que, publicamente, foi o seu progenitor a realizar os referidos actos.
Termos em que se consideram impugnados o segundo e terceiro factos alegados na escritura de justificação notarial”.
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E temos de concordar com a decisão recorrida, que fez uma distinção muito clara entre a pretensão do A – de ver impugnados os factos alegados pelo R. na escritura de justificação notarial –, e a pretensão do R – de ver reconhecido, por via reconvencional, o seu direito de propriedade sobre o prédio objecto daquela escritura.

Ou seja, o tribunal apreciou a validade das declarações prestadas pelas partes outorgantes da escritura notarial – concluindo que as mesmas não eram verdadeiras –, e apreciou os factos alegados pelo R. na contestação, quanto ao pedido reconvencional, sendo com base nesses factos – diferentes agora dos declarados na escritura de justificação notarial –, que apreciou e julgou o pedido reconvencional, dando-o como procedente.

Ora, como se disse, a reconvenção foi admitida nos autos, sem contestação de nenhuma das partes, tendo transitado em julgado a decisão proferida no despacho saneador que a julgou admissível (cfr. despacho de fls. 234 e ss.), considerando-se que o pedido reconvencional do R emergia de facto jurídico que servia de fundamento à sua defesa, pelo que, era perante os factos alegados na contestação do R que tal pedido reconvencional devia ser apreciado, como foi.

Questão diferente era a apreciação dos factos alegados na p.i., relacionados com a impugnação dos factos aduzidos na escritura de justificação notarial, lavrada no dia 18/12/2014, no Cartório Notarial, para efeitos de registo de aquisição, por usucapião, entre outros, do prédio rústico sito em ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 567.

Como é por demais sabido, desde há muito que a nossa ordem jurídica permite àquele que se julgue com direito sobre determinado imóvel sem dispor de documento que titule e prove esse direito o obtenha, nomeadamente para efeitos de primeira inscrição registral, através da simples celebração de uma escritura de justificação notarial (Artºs 116º do Código do Registo Predial e 96º a 100º, do Código Do Notariado).

Sendo esta uma das formas mais simples de obter a demonstração aparente do direito, ela basta-se, normalmente, com as declarações afirmativas dos próprios interessados nessa escritura, de que são, com exclusão de outrem, titulares do direito a que se arrogam, indicando a causa da sua aquisição e as razões que os impossibilitam de o comprovar pelos meios normais (Artº 89º, nº 1, do Código do Notariado), sendo que quando invocam a usucapião baseada em posse não titulada (como meio de aquisição do direito) também devem mencionar expressamente as circunstâncias de facto que determinaram o início da posse e todas as demais que consubstanciem e caraterizam a posse geradora da usucapião (nº 2 do mesmo artigo).

Com esta versão sem contraditório, e apenas confirmada por três declarantes (Artº 96º do mesmo Código), o título que daqui resulta é, necessariamente, muito singelo quanto à consistência da prova do direito que encerra, que por isso mesmo só prevalecerá enquanto não for impugnado por qualquer interessado, a quem bastará, em acção judicial de impugnação como a presente, que ponha em causa a veracidade daquelas declarações, assim como o registo que foi feito do prédio a favor dos justificantes – sendo certo que se ainda o não tiver sido, comunicada a pendência da acção de impugnação ao notário, o registo não poderá efectuar-se sem que se conheça o desfecho da acção de impugnação judicial (Artº 101º do Cd. Not.).

Ora, da mencionada escritura de justificação consta, nomeadamente, que “Declarou o primeiro outorgante que, com exclusão de outrem, é possuidor dos bens imóveis, situados na freguesia de (...), concelho de Vila Flor, que totalizam o valor patrimonial para efeitos de IMT de €2506,31, identificados nas oito verbas descritas no documento complementar (…). Que entrou na posse dos prédios indicados de um a sete no ano de mil novecentos e noventa e um, por compra meramente verbal a que nunca foi reduzida a escritura pública, feita em dia e mês que não pode precisar a A. F., (…), e o prédio indicado em oito no ano de mil novecentos e noventa e três, feito em dia e hora que não pode precisar a J. G. (…). Que desse modo não possui título formal que lhe permita registar na aludida Conservatória de Registo Predial os identificados imóveis, todavia, desde os citados anos, data em que se operou a tradição material dos mesmos, ele justificante, já possui, em nome e interesses próprios, os prédios em causa, tendo sempre sobre eles praticados os actos materiais de uso e aproveitamento agrícola, tais como, amanhando-os, semeando-os, cultivando-os, colhendo os seus frutos, aproveitando, assim, deles todas as suas correspondentes utilidades e pagando todas as contribuições e impostos por ele devidos, agindo sempre como seu proprietário, quer na sua fruição, quer no suporte dos seus encargos, tudo isso realizado à vista de toda a gente, sem qualquer ocultação, de forma continuada, ostensiva e ininterrupta, desde o seu início, sem qualquer oposição ou obstáculo de quem quer que seja e sempre no convencimento de o fazer em coisa própria, tendo, assim mantido e exercido sobre os identificados prédios, durante mais de vinte anos e com o conhecimento da generalidade das pessoas vizinhas, uma posse pública, pacífica, contínua e em nome próprio, pelo que adquiriu os citados prédios por usucapião, que expressamente invoca para justificar o seu direito de propriedade para fins de primeira inscrição no registo predial, direito esse que pela sua própria natureza não pode ser comprovado por qualquer título formal extrajudicial (…)”.

Como se diz na sentença recorrida e tem vindo a ser entendido, cremos que de forma uniforme, quer na doutrina, quer na jurisprudência, a acção de impugnação judicial da escritura de justificação, em que o impugnante (autor) fundamentalmente pede que se declare que o justificante (réu) não tem o direito justificado, se configura como uma acção de simples apreciação negativa (artº 10º nºs 2 e 3, a) do CPC).

Depois de alguma divergência jurisprudencial sobre o ónus da prova nestas acções de impugnação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 2007 (in Diário da Rep. I Série, nº63, de 31/03/2008, também disponível em www.dgsi.pt) veio uniformizar jurisprudência e fixar doutrina no sentido de que “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, nº1, do Código do Registo Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial”.

Perante esta doutrina, a que devemos obediência, cabia ao justificante (réu na acção de impugnação) a prova dos factos constitutivos do direito que invocou, pois que não beneficiava da presunção da titularidade do direito prevista no artº 7º do Código do Registo Predial (cfr. entre outros, o Ac do STJ, de 19.3.2002, Col. Jur. Ano X, Tomo I, pag. 148).

Dando esta conclusão por assente, no seguimento, aliás, do que também se verteu na sentença recorrida, ao Réu cabia demonstrar, na acção de impugnação, os factos ali consignados - que adquiriu o prédio objecto da escritura de justificação, e que exerceu sobre ele uma posse relevante para efeitos aquisitivos (posse stricto sensu), ou seja, com “corpus” e “animus”, de forma pública e pacífica, e pelo tempo indispensável à respectiva aquisição por usucapião (artºs 1251º, 1261º, 1262º, 1263º, a), 1287º, 1296º e 1297º, todos do CC).

Porque só uma posse com corpus e animus faz presumir a titularidade do direito – Artº 1268º, nº1 do CC – e releva para efeitos aquisitivos, é que se exige constitutivamente (artº 342º, nº1 do CC) que quem a invoca demonstre não só a materialidade correspondente ao exercício do respectivo direito (corpus), como a intenção de agir como titular do direito correspondente a essa materialidade (animus). Esta representa, no fundo, a concepção subjectiva da posse, adoptada pelo nosso legislador contra o que é seguido em algumas outras legislações estrangeiras, para quem a posse se adquire pela mera obtenção do poder de facto (cfr, entre outros, Mota Pinto, in “Direitos Reais”, pag. 189; Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 1º, 4ª edição, pag. 42 e segts; Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume III, 2ª Edição, pag.5; Manuel Rodrigues, in “A Posse”, Almedina 1981).

Ora, o R não logrou provar na acção, como lhe competia, as declarações por si prestadas naquela escritura; tais declarações vieram mesmo a revelar-se diversas - assumidamente pelo R, logo na contestação -, nomeadamente que tenha sido o R a comprar, verbalmente, o prédio rústico em causa nos autos, e que tenha sido ele a exercer sobre o mesmo os atos materiais de posse que descreve, que, como ficou provado, foram sempre exercidos pelo seu pai.

Por isso, tinham que ser dados como procedentes todos os pedidos formulados pelo A, considerando-se impugnados, para todos os efeitos legais, os factos justificados na escritura identificada nos autos; declarando-se ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, de forma que o réu não possa, através dela, registar qualquer direito sobre os prédios supra-descritos; e declarando-se o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento impugnado.

Nenhum reparo temos assim a fazer à decisão recorrida, que apreciou convenientemente, em nosso entender, as pretensões de ambas as partes que lhe foram colocadas nos respectivos articulados.

Improcedem, assim, as conclusões de recurso do Apelante Autor.
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Decisão:

Julgam-se assim improcedentes ambas as apelações, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas da Apelação do A. a seu cargo
Custas da Apelação do R a seu cargo.
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Sumário do acórdão:

I – Não obstante a letra da lei, temos como defensável o entendimento de que a exigência feita no artº 640.º n.º 2 alínea a) do CPC, é perfeitamente compatível com a mera indicação pelo recorrente dos timings (minutos) onde se encontram as passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem reapreciar (como aconteceu no caso dos autos).
II – A acção de impugnação de justificação notarial consubstancia uma acção de simples apreciação negativa visando a simples declaração de inexistência do direito arrogado na escritura; neste tipo de acções, incumbe sobre o réu a prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga, nos termos previstos no art. 343º, n.º 1 do CC
III – A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de terceiro. Trata-se da figura da «representação» na posse, do exercício de um direito por intermédio de um representante, sendo que quem exerce os poderes é possuidor em nome alheio.
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Guimarães, 17.12.2018

Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Fernando Fernandes Freitas