Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
973/15.9GAFAF.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: DETENÇÃO ARMA PROIBIDA
MUNIÇÕES CALIBRE 12 MM
ABSOLVIÇÃO
ALTERAÇÃO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ARTºS 86º
Nº 1
AL. D) DA LEI Nº 5/2006 E 22º
Nº 1 DO RGCO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Detendo o arguido na residência três munições de calibre 12 mm, sendo apenas titular de uma autorização (permanente) de simples detenção no domicílio de espingarda de caça calibre 12 mm, a sua conduta integra a prática da contraordenação prevista no art. 99º, n.º 1, al. c), do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro) e não o crime de detenção de arma proibida, previsto no art. 86º, n.º 1, al. d), do mesmo diploma, pelo qual foi condenado.

II) O tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, desde logo pelas implicações que tal pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus”, e sem necessidade de qualquer comunicação prévia, desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido.

III) As garantias constitucionais de defesa não constituem obstáculo a que o tribunal da relação, assumindo a sua plenitude jurisdicional, no âmbito de apreciação da decisão que condenou o arguido pelo crime, após decidir convolar os factos para a contraordenação, proceda à determinação da coima a aplicar.

IV) O que importa é que sejam reconhecidos e conferidos ao arguido todos os direitos e instrumentos processuais imprescindíveis e ajustados a fazer valer as suas posições, contrariando a contramotivação do recurso no sentido da sua condenação pela contraordenação, garantindo-lhe a possibilidade efetiva de, previamente e na perspetiva de vir a ser proferida essa decisão condenatória, a discutir, contestar e influenciar, aduzindo argumentos, de facto e de direito, em abono da defesa da sua posição processual.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 973/15.9GAFAF, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Fafe, realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 13-03-2018, depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo (transcrição [1]):

«V – DECISÃO:

Atento tudo o exposto e devidamente ponderado decide-se:

1) Condenar o arguido P. M., como autor material, de um crime de coação agravada, p. e p. pelos arts. 154º, nº1 e 155º, nº1 al. b) do Código Penal, e agravada nos termos do art. 86º, nº3 e 4 da Lei nº5/2006, na forma tentada, na pena de 1 ano de prisão, substituída nos termos do art. 45.º, n.º 1 do C. Penal, por 365 dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz o montante de € 2190,00 (dois mil cento e noventa euros), entendendo-se que este crime consome o crime de ofensas à integridade física simples, na forma consumada, p, e p. pelo art.143º, nº1 do Código Penal, também imputada ao arguido.
2) Condenar o arguido P. M., pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, p. e p. pelo art. 86º, nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23.02 (RJAM), na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis euros), o que perfaz um total de € 600,00, absolvendo-o da imputação da prática deste crime nos termos da al. c) do citado art. 86.º, n.º1 do RJAM.
3) Condenar o arguido P. M. nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s, nos termos do art. 8º do R.C.P..
*
Declaram-se perdidas a favor do Estado a pistola e as munições apreendidas nos presentes autos, nos termos do art. 78º da Lei nº 5/2006 de 23.02 e art. 109.º do C. Penal por terem sido e ainda poderem vir a ser objeto da prática de factos criminosos.

Oportunamente cumpra-se o disposto no art.78.º da Lei das Armas.
Adverte-se o arguido para o disposto no art.45.º, n.º2 do C. Penal.

Após trânsito, remeta boletins à D.S.I.C.. e dê conhecimento, com cópia, à Direção Nacional da PSP.
Notifique e deposite (art. 373º, n.º 2, do C.P.P.).»

2. Não se conformando com essa condenação, o arguido interpôs recurso da sentença, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição):

«CONCLUSÕES:

1. Não se conforma o arguido com a decisão da douta sentença recorrida do JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE FAFE, de o condenar como autor material, de um crime de coação agravada, previsto e punido pelos artigos 154.°, n.° 1 e 155.°, n° 1, alínea b), do Código Penal, e agravada nos termos do artigo 86.°, n.° 3 e n.° 4, da Lei n.° 5/2006, de 23/02, na forma tentada, na pena de 1 ano de prisão, substituída nos termos do artigo 45.°, n.° 1, do Código Penal, por 365 dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz o montante de € 2.190,00 (dois mil cento e noventa euros), entendendo que este crime consome o crime de ofensas à integridade física, na forma consumada, p. e. p. pelo art. 143.°, n.° 1, do C.P. e ainda, pela prática de um crime de um crime, na forma consumada, de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.°, n.° 1, alínea d), da Lei n.° 5/2006, de 23/02 (RJAM), na pena de multa à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz um total de € 600,00 (seiscentos euros), absolvendo – o da imputação da prática deste crime nos termos da alínea c) do citado artigo 86°, n.° 1, do RJAM.
2. De facto, é profunda a discordância do Recorrente em face da douta sentença que ora se recorre, prendendo tal discordância com o objeto da decisão ora proferida e com (novo) julgamento da matéria de direito, no que concerne à determinação da escolha e da determinação da medida concreta da pena (do excesso da pena de multa aplicada); à violação e errada aplicação dos preceitos legais (artigo 43.°, n.° 1 e 47.°, n.° 1 e n.° 2, ambos do Código Penal); e ainda, à não realização do concurso de crimes e subsequente violação das regras preceituados no 77°, do Código Penal.
3. O recorrente entende ser excessiva a medida da pena, identificada em 1), apesar de substituída, que lhe foi aplicada.
4. Nos termos do artigo 70.°, do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. In casu, o Tribunal escolheu a pena de multa, já que os factos são puníveis com pena de prisão ou multa, e optou pela segunda, explicitando fundamentadamente os critérios legais previstos no citado artigo 70.° e ainda no artigo 40.°, n.° 1, do Código Penal.
5. Já quanto à determinação da medida concreta da pena de multa, bem como, à errada aplicação dos preceitos 43.°, n.° 1 e 47.°, n.° 1 e n.° 2, ambos do Código Penal, e a não realização (operação da regra da punição a efetuar em caso de concurso de crimes) do concurso de crimes, aplicável, violando assim o preceito legal (artigo 77.° do Código Penal), não concorda o aqui arguido/recorrente, pois entende que aqui o Tribunal “a quo” não decidiu bem.
6. Na escolha e determinação da medida concreta da pena o Tribunal violou os princípios da culpa, as finalidades de prevenção da reincidência e os critérios relevantes para a escolha e determinação da medida, previstos nos art°s 40.º, 70.°, 71.º n.° 1 e n.° 2, alíneas a), c), d) e e), e 72 .°, todos do Código Penal.
7. Ora em sede de determinação concreta da pena, impõe-se obviamente a consideração de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Ora, no caso dos autos o recorrente entende que a seu favor depõem as suas condições pessoais e a sua situação económica (encontra-se reformado por invalidez, auferindo uma pensão de € 305,00, a sua esposa explora um café, com faturação muito baixa – referiu o arguido em plena audiência gravada, tem problemas sérios de coração, tomando medicação diária, tem rendimento baixos, colaborando com a justiça, no sentido de apresentar a sua versão dos factos, e ainda de ter partido de si claramente apresentar toda a documentação constante nos autos e que se reporta às licenças obtidas quanto às armas. O mesmo nunca em momento algo teve ou tem qualquer registo criminal da mesma natureza.
8. Assim, todo o supra exposto foi dado como factualidade provada, mas contudo apesar de serem elementos constantes na douta sentença e como tal valorados para efeitos de determinação da pena, os mesmos pouco ou nada valoraram ou depuseram a favor do aqui arguido.
9. Destarte, abona a favor do Recorrente a total ausência de antecedentes criminais, o ser primário.
Sem prescindir que a idade avançada e a própria doença diagnosticada do Recorrente permite ter a esperança que o mesmo seja permeável aos valores jurídico penais.
10. A pena a aplicar deverá, por conseguinte, ir apenas até ao limite necessário (entendendo nós que é o mínimo) para que não sejam irremediavelmente postas em causa as exigências de tutela dos bens jurídicos, permitindo ao mesmo tempo a reinserção social do condenado.
11. Tais circunstâncias seguramente deveriam ser levadas em conta na determinação da medida concreta da pena - quer da principal, quer das de substituição, no sentido da sua diminuição.
12. Mais, não foram sequer explicitados, pormenorizados e respeitados os limites previstos nos artigos 43.°, n.° 1 e 47°, n.° 1 e n.° 2, do Código Penal.
13. Ora, tendo em conta as razões de prevenção especial que supra se aduziram e que as razões de prevenção geral se vão esbatendo, entende-se que a aplicar uma pena de multa ao arguido, esta deverá situar-se, como supra já referenciado nos seus limites médios (entre 10 e 360 dias) e a uma taxa mínima de 5,00 €.
Até porque o tribunal na aplicação da pena de multa deve atender à situação económica do arguido.
14. Para efeitos do artigo 412.°, n.° 2, alíneas a) e b) do C.P.P., o Recorrente entende que se violou pois, por erro de interpretação os artigos 71.° e 72.°, e ainda, os artigos 43º, n.° 1 e 47.°, n.° 1 e n.° 2, todos do Código Penal.
15. Tendo em conta as condenações supra referidas em 1. destas conclusões, em crise nos presentes autos, e com o devido respeito por diferente opinião, entende o recorrente que não deveria ter operado a regra da punição nos moldes apresentado na sentença recorrida, mas ao invés, aplicar-se por conseguinte o regime legal previsto no artigo 77.°, n.° 1, n.° 2 e n.° 3, do C.P., por concurso de crimes verificado, a assim ser aplicada a final ao arguido uma pena única.
16. Violou, também nesta parte, a douta decisão recorrida os artigos 77.° do Código Penal.

Nestes termos e nos mais de direito, que V. Ex.as., Doutamente, melhor suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser alterada a, aliás, Douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que contemple as conclusões atras aduzidas, por tal se afigurar inteiramente justo.»

3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, rematando a sua contra motivação nos seguintes moldes (transcrição):

«IV- Concluindo:

1. Nos presentes autos foi o recorrente, entre o mais, condenado, pela prática de um crime de coação agravada na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, alínea a), 22º e 23º, do Código Penal e agravado nos termos do artigo 86º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de um ano de prisão, substituída nos termos do artigo 45º, n.º 1, do Código Penal, por 365 dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), o que perfaz o montante global de 2.190,00 € (dois mil cento e noventa euros);
2. Nos termos do disposto no atual artigo 45º, n.º 1, do Código Penal (anterior artigo 43º, n.º 1, Código Penal), «a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º».
3. Versando sobre esta matéria, veio o Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2013, estabelecer que «a pena de multa que resulte, nos termos dos atuais artigos 43º, n.º 1 e 47º do Código Penal, da substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano, deve ser fixada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1, do artigo 71º e não, necessariamente, por tempo igual ou proporcional ao estabelecido para a prisão substituída».
4. E como aí também se refere, caso se proceda à referida substituição da pena de prisão por multa, esta obedece aos limites impostos pelo artigo 47º do Código Penal.
5. Por conseguinte, a referida pena de multa substitutiva deveria ter sido fixada entre o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.
6. Ao fixar a referida pena de multa em 365 dias, o Tribunal a quo extravasou claramente a moldura penal aplicável.
7. Considerando os critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal e atendendo ao grau de culpa revelado pelo arguido, à intensidade do dolo e grau de ilicitude, bem como às exigências de prevenção geral e especial que ao caso se fazem sentir, entendemos como correta e adequada a pena de 200 dias de multa substitutiva para o crime de coação agravada na forma tentada.
8. Deste modo, deve merecer provimento o recurso do arguido nesta parte, devendo a decisão quanto à punição pela prática do crime de coação agravada na forma tentada ser substituída por outra que fixe a pena em 200 dias de multa.
9. Foi ainda o arguido condenado nos autos pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), o que perfaz um total de 600,00 € (seiscentos euros).
10. Tal ilícito consubstancia-se na detenção, fora das condições legais previstas no artigo 18º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de três munições de calibre 12.
11. Sucede que, a violação de tal normativo não constitui crime mas mera contraordenação, nos termos do disposto no artigo 99º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
12. Deve, por isso, proceder-se à convolação do referido ilícito de crime para contraordenação.
13. Nos termos do artigo 99º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, a violação da obrigação prevista no artigo 18º, n.º 3, do mesmo diploma legal é punida com uma coima de 600,00 € a 6.000,00 €.
14. No caso em apreço, considerando o diminuto grau de culpa e ilicitude demonstrados pelo arguido, patente no número irrisório de munições em causa, entendemos que a coima deve ser fixada no seu mínimo, ou seja em 600,00 €.
15. Sendo procedente esta questão, fica necessariamente prejudicado o peticionado cúmulo jurídico das penas aplicadas.
16. Nos termos do artigo 47º, n.º 2, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5,00 € e 500,00 € que o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
17. O intervalo de aplicação do quantitativo diário disponibilizado ao julgador é muito amplo, permitindo, ou antes determinando, que se diferencie perfeitamente as situações concretas com que se depare.
18. Entendemos, por isso, que o quantitativo diário mínimo de 5 euros apenas deverá ser aplicado aos condenados em situação de indigência e de mais baixos rendimentos, designadamente àqueles que nem sequer tenham à sua disposição o suficiente para fazer face às necessidades mais elementares, sob pena de se desvirtuar a essência da pena de multa e se criarem injustiças relativas entre os condenados.
19. No caso dos autos, aplicando os referidos critérios, entendemos como ajustado à situação económica do arguido e dos seus encargos pessoais, o quantitativo diário de 6,00 € fixado na sentença.
*
Nestes termos, deverá ser concedido provimento parcial ao recurso e, consequentemente:

- a decisão quanto à punição pela prática do crime de coação agravada na forma tentada ser substituída por outra que fixe a pena em 200 dias de multa substitutiva;
- proceder-se à convolação de crime para contraordenação do ilícito consubstanciado na detenção fora das condições legais previstas no artigo 18º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de três munições de calibre 12;
- considerando o diminuto grau de culpa e ilicitude demonstrados pelo arguido, patente no número irrisório de munições em causa, ser a respetiva coima fixada no seu mínimo, ou seja em 600,00 €.

Deverá negar-se provimento a tudo o mais peticionado, confirmando-se, nessa parte, a decisão recorrida.
Este, o entendimento que perfilhamos.
Vossas Excelências, porém, farão justiça.»

4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso, acompanhando «a muito bem estruturada e fundamentada argumentação do Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância explanada na sua resposta relativamente às questões recursórias suscitadas pelo arguido Recorrente [argumentação essa que se mostra em perfeita sintonia com a factualidade dada como provada pelo tribunal a quo e respetivo quadro legal aplicável à situação sub judice, bem como com a doutrina e jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores sobre a matéria recursória em causa], a qual, pela sua correção jurídica, clareza e síntese, merece (…) inteira adesão, o que (…) dispensa (…) considerações substantivas adicionais», e acrescentando ainda que «o facto da supra aludida preconizada convolação de crime para contraordenação ter sido apenas suscitada na resposta apresentada pelo aludido Magistrado, não se contendo, pois, tal questão no âmbito do objeto do recurso em apreço, não impede (…) que tal alteração da qualificação jurídica dada aos factos provados possa ser conhecida e decidida oficiosamente pelo tribunal ad quem - vd. nesse sentido o douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/95, de 7 de Junho (in DR, I série-A, de 06.07.1995, pp. 4298-4300) e o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2014, proc.º n.º 714/12.2JABRG.S1 (disponível em www.dgsi.pt)».
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta a esse parecer.
Expressamente notificado para, querendo se pronunciar sobre a alteração da qualificação jurídica propugnada pelo Ministério Público na resposta ao recurso, conforme prevê o art. 424º, n.º 3, do mesmo código, o arguido manifestou a sua concordância com tal alteração.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

É consabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais [2].

No caso vertente, atentas as conclusões formuladas e tendo presente a questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador Adjunto na sua contra motivação, importa conhecer das seguintes questões, elencadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

a) – A excessividade da medida da pena de multa (de substituição) aplicada pelo crime de coação agravada na forma tentada;
b) – A excessividade do quantitativo diário da multa;
c) – A qualificação jurídica dos factos relativos à conduta de detenção de arma proibida;
d) – A realização de cúmulo jurídico entre a pena de multa de substituição e a pena de multa aplicada a título principal.

2. DA DECISÃO RECORRIDA

2.1 - O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

«1. No dia 25 de Novembro de 2015, pelas 17h, o arguido P. M. dirigiu-se ao armazém de C. A., sito na Travessa …, e uma vez aí chegado, abeirou-se daquele, ao mesmo tempo que se munia da sua pistola de marca “Vicenso Bernardelli”, calibre 6,35mm, com número de série 104640 e lhe introduzia uma munição de calibre 6,35mm, e encostando a referida arma à cabeça daquele, proferiu a seguinte expressão: “ou vais pagar a dívida ao mecânico ou mato-te aqui”.
2. Após, o arguido P. M. desferiu-lhe uma cabeçada, o que causou a C. A. dores e mal-estar.
3. Ato contínuo, o arguido P. M., dirigindo-se para a porta de saída do referido armazém, manteve a arma aludida em 1) apontada na direção da cabeça de C. A., dizendo-lhe “ou resolves o problema ou eu dou-te um tiro”, após o que abandonou o local.
4. No dia 16 de Março de 2016, pelas 10h, o arguido detinha na sua posse, no interior da sua residência sita na Rua …:
4.1.- uma pistola de marca “Vicenso Bernardelli”, calibre 6,35mm, com número de série 104640, com carregador e oito munições de calibre 6,35mm;
4.2.uma espingarda de caça de marca ilegível, calibre 12mm, com o n.º de série (...); e
4.3.- três munições de calibre 12mm.
5. O arguido P. M. ao atuar do modo descrito em 1) a 3), fê-lo com propósito concretizado de atemorizar C. A., fazendo-lhe crer que estava disposto a tirar-lhe a vida e, assim, o forçar a entregar determinada quantia em dinheiro a outrem, bem sabendo que a sua conduta, com a exibição da arma identificada e as expressões por si proferidas, acompanhada da cabeçada também acima mencionada eram adequadas a tal e que assim prejudicava a liberdade de determinação deste, tendo o arguido P. M. ao atuar da forma descrita em 2), agido com o propósito, concretizado, de molestar a integridade física de C. A. e de lhe provocar as referidas dores e mal-estar, como efetivamente provocou, de que à semelhança da ameaça com arma de fogo e palavras também lançou mão com a intenção de constranger a liberdade de atuação do ofendido.
6. O arguido P. M. detinha na sua posse as munições mencionadas em 4.3, nas circunstâncias acima referidas, bem sabendo que não tinha autorização para as deter naquelas circunstâncias e fora das condições legais, e, não obstante, atuou do modo descrito.
7. O arguido P. M. agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente.

Mais se provou:

8. O arguido atuou da forma descrita devido a uma dívida por saldar no mecânico por parte do aqui ofendido, referente a uma troca de viaturas que com aquele efetuou, sendo que a que o arguido ficava com a troca com uma viatura que estava acidentada, tendo ficado acordado entre arguido e ofendido que a troca de viaturas implicava a sua reparação, tendo o ofendido de pagar cerca de €150,00 ao mecânico pela reparação, o que ainda não tinha feito à data dos factos, encontrando-se a viatura arranjada, há cerca de uma semana antes da descrita abordagem do arguido.
9. O ofendido passado cerca de uma semana dos factos pagou a referida dívida ao mecânico, como já pretendia fazer ainda antes da atuação do arguido.
10. O arguido é titular de licença de uso e porte de arma n.º 304/2015-01, emitida em 2015-01-14, para a classe B1, válida até 13-01-2020 e proprietário da pistola, de marca Vicenso Bernardelli, n.º104640, calibre 6,35 mm, manifestada sob o livrete (...) (cfr. fls.17 e 127-130);
11. O arguido é titular da Autorização n.º1700 (permanente) de simples detenção no domicílio da Espingarda de Caça Maroccini, n.º de arma (...), calibre 12, de 2 canos lisos, com o n.º de ficha ou livrete (...), emitida ao abrigo do art.46 do DL n.º37 313, publicado em 21-02-1949, emitida em 27-04-1994 (cfr. fls.131);
12. O arguido desde o ano 2000 a 27-11-2003 foi titular de licença para uso e porte de arma de caça-cfr. fls. 132 e 133, tendo livrete de manifesto desta espingarda de caça, junto a fls.134 e 135 dos autos.
13. O Arguido P. M.:
a) é casado e encontra-se reformado por invalidez, auferindo €305,00 de pensão;
b) a sua esposa explora um café em …, com faturação mensal não apurada, pagando €400,00 de luz, em média, por mês;
c) tem dois filhos maiores e independentes;
d) habita em casa própria;
e) possui o 6.º ano de escolaridade;
f) do seu crc junto aos autos nada consta averbado;».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Da excessividade da medida da pena de multa (de substituição)

Neste primeiro segmento do recurso, insurge-se o arguido contra a medida concreta da pena de multa substitutiva que lhe foi aplicada pelo crime de coação agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 154º, n.º 1, 155º, n.º 1, al. a), 23º, n.º 2, e 73º, n.º 1, als. a) e b), todos do Código Penal, e pelo art. 86º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições), pena essa que o tribunal a quo, em substituição da pena principal de 1 ano de prisão, fixou em 365 dias de multa.

Para tanto, alega, por um lado, não terem sido respeitados os limites previstos nos arts. 43º, n.º 1, e 47, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, e, por outro lado, que não foram suficientemente valoradas as circunstâncias atenuantes que militam a seu favor.

3.1.1 – Impõe-se, desde logo, reconhecer razão ao recorrente quanto ao primeiro argumento aduzido, por ser hoje pacífico, na esteira do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 8/2013 [3], que a pena de multa que resulte da substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano, deve ser fixada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do art. 71º do Código Penal e não, necessariamente, por tempo igual ou proporcional ao estabelecido para a prisão substituída.

O art. 43º do Código Penal de 1982 (Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro), dispunha a este respeito que “1- A pena de prisão não superior a 6 meses será substituída pelo número de dias de multa correspondente, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir a prática de futuros crimes. (…) 3- É aplicável à multa que substituir a prisão o regime dos artigos 46.º e 47.º”.

O DL n.º 48/95, de 15 de março, que procedeu à revisão do Código Penal de 1982, estabeleceu no art. 44.º, n.º 1, o seguinte: “1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º. (…)”.

Com a alteração do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, o artigo em questão voltou a ter o n.º 43.º, com a seguinte redação: “1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º. (…)”, redação esta que se mantém atualmente, embora, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, tenha transitado para o art. 45º.

Com a referida revisão do Código Penal de 1995 houve, no que concerne à substituição da prisão por multa, uma alteração importante na redação do preceito legal, traduzida na eliminação da expressão original “substituída pelo número de dias de multa correspondente”, passando a dispor apenas “substituída por pena de multa”.

Como o Supremo Tribunal de Justiça observou no mencionado aresto, essa eliminação dificilmente terá sido casual, tendo antes sido intencional e com um significado preciso, tanto mais que estava amplamente consolidado o entendimento e a prática de a substituição de prisão se fazer pelo "número de dias de multa correspondente".

Conforme resulta da análise dos trabalhos preparatórios da Comissão de Revisão, concretamente das atas n.ºs 3 e 40, ao longo dos mesmos ficou vincada a posição da eliminação da correspondência automática ou aritmética, aplicando-se os próprios limites da pena de multa, permitindo-se assim a aplicação de uma pena de multa substitutiva mais elevada do que aquela que resultaria daqueles critérios, por forma a potenciar ao máximo a substituição das penas curtas de prisão.

Todavia, receando que essa solução pudesse suscitar alguma confusão, originando uma não aplicação da pena substitutiva, a Comissão, por razões pragmáticas, acabou por se mostrar favorável a uma alteração que voltasse à ideia de correspondência, por ser mais certa, com tradição e, por isso, mais convidativa à substituição, tendo aprovado uma redação no sentido de a pena de prisão ser substituída por multa, pelo igual número de dias de multa (cf. ata n.º 41).

Assim, no projeto do Código Penal aprovado pela Comissão de Revisão, o n.º 1 do art. 44º surge com a seguinte redação: “A pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por igual número de dias de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicada, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 47.º” (cf. ata n.º 51).

Porém, no art.º 3.º, n.º 5, da proposta de lei de autorização legislativa para o Governo alterar o Código Penal (Proposta de Lei n.º 92/VI) consta o seguinte: “modificar o artigo 43.º, que passará a ser o artigo 44.º, de modo a prever que a pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, sendo correspondentemente aplicável o disposto no futuro artigo 47.º, …”.

Este texto passou para o art.º 3.º, n.º 5, da Lei n.º 35/94, de 15 de setembro, que autorizou o Governo a rever o Código Penal, tendo, depois, sido consagrado no Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, nos termos acima transcritos.

O facto de o legislador não ter seguido a redação aprovada no Projeto só pode significar que houve uma vontade de modificar a regra da correspondência aritmética, que se sabia ser mais certa e com tradição.

Foi, assim, legalmente consagrada a solução que sempre fora preconizada por Figueiredo Dias, aliás, Presidente da Comissão de Revisão, crítico da correspondência aritmética [4].

Essencialmente com base nestes argumentos de interpretação literal, histórica e também sistemática (na filosofia da reforma de 1995, as penas de substituição terem uma autonomia própria, distinta das penas principais, não dependendo umas das outras quando são fixadas), o Supremo Tribunal de Justiça, através do referido acórdão n.º 8/2013, fixou jurisprudência no sentido de "a pena de multa que resulte, nos termos dos atuais artigos 43.º, n.º 1, e 47.º do Código Penal, da substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano, deve ser fixada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º e não, necessariamente, por tempo igual ou proporcional ao estabelecido para a prisão substituída"

Pese embora essa decisão uniformizadora não constitua jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, devendo, no entanto, estes fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada (art. 445º, n.º 3, do Código de Processo Penal), designadamente invocando argumentos que não tenham sido considerados naquela decisão, o certo é que não vislumbramos razões sustentáveis para divergir da mesma, sendo antes de aderir a ela.

Conclui-se, assim, que após ter determinado uma pena de prisão em medida não superior a 1 ano e depois de ter concluído que a pena de multa de substituição satisfaz as exigências de prevenção manifestadas no caso (art. 70º do Código Penal), o juiz terá de determinar autonomamente a pena de multa de substituição, dentro da moldura dada pelo n.º 1 do artigo 47.º (com o mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias), sendo dentro desta moldura que fixará a medida concreta da pena de multa de substituição de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, isto é, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e não, necessariamente, com obediência a regras de proporcionalidade [5].

Não foi, porém, esse o procedimento seguido pelo Mmº. Juiz a quo, que, em substituição da pena de 1 ano de prisão determinada para o crime de coação agravada, na forma tentada, procedeu a uma correspondência direta entre esse tempo de prisão e o número de dias de multa substitutiva que aplicou, fixando-os em 365 dias.

Mostram-se, assim, violados, conforme sustenta o recorrente, os arts. 43º, n.º 1, parte final (na redação em vigor à data dos factos e a que corresponde o atual art. 45º) e 47º, n.º 1, ambos do Código Penal, tendo inclusivamente sido excedido o limite máximo previsto neste último artigo (360 dias).

Cumpre-nos, então, proceder à determinação dessa pena de multa de substituição de acordo com os critérios e circunstâncias estabelecidos no art. 71º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, defendendo o recorrente que não foram devidamente ponderadas as circunstâncias atenuantes que se verificam no caso e pugnando pela sua fixação no limite mínimo ou muito próximo deste.

Vejamos se lhe assiste razão.

3.1.2 – De acordo com o disposto no art. 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança, tem como finalidade “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial.
O legislador quis, desta forma, oferecer ao julgador critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, conforme expressamente dispõe o n.º 2 do referido art. 40º.
A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez.
Em consonância com estes princípios dispõe o art. 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues [6], a medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Mais adianta que é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral.

A mesma autora apresenta, então, três proposições em jeito de conclusões e de forma sintética: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas».

Finalizando, afirma: «É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente».

Por seu lado, as várias alíneas do n.º 2 do art. 71º do Código Penal elencam, a título exemplificativo, as seguintes circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, devendo o tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (al. a);
- A intensidade do dolo ou da negligência (al. b);
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c);
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica (al. d);
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e);
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f).

Assim, as circunstâncias e os critérios enunciados no art. 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena, devendo contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (por exemplo, a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente [7].

3.1.3 – No caso em apreço, para fixar a pena (principal) em 1 ano de prisão, dentro de uma moldura abstrata de 1 mês a 4 anos, 4 meses e 40 dias [obtida após a aplicação sucessiva da agravação por utilização de arma (art. 86º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006) e da atenuação pela tentativa (arts. 23º, n.º 2, 72º, n.º 1, e 73º, a) e b), todos do Código Penal)], o Mm.º Juiz ponderou os seguintes fatores (transcrição):

«- o elevado grau de ilicitude e de culpa do arguido no que respeita ao crime de coação cometido, atento o modus operandi por si adotado;
- que atuou com dolo direto;
- a motivação, quanto a nós minor, subjacente à sua conduta;
- que o mesmo fez uso de uma grande pressão psicológica ao encostar uma arma de fogo na cabeça do ofendido, que depois chega mesmo a cabecear, o que denota as graves consequências que daí decorrem para quem se vê sujeito a tal situação (“terror psicológico” com impossibilidade de defesa);
- as necessidades de prevenção geral que neste domínio da criminalidade que lança mão de armas de fogo se fazem sentir, com o inerente acrescido alarme social;
- mas também (…) que o arguido é primário e se encontra inserido social e familiarmente».

No essencial afigura-se-nos acertada a ponderação desses fatores feita pelo tribunal a quo, sendo, efetivamente, de realçar a gravidade da forma de atuação do arguido que, já na presença do ofendido, municiou a pistola, calibre 6,35, com uma munição e encostou-a à cabeça daquele, dizendo-lhe “ou vais pagar a dívida ao mecânico ou mato-te aqui”, após o que lhe desferiu uma cabeçada, causando-lhe dores e mal-estar, e, ato contínuo, mantendo a arma apontada na direção da cabeça do mesmo, disse-lhe “ou resolves o problema ou eu dou-te um tiro”, o que tudo é revelador de uma acentuada seriedade da ameaça.
Será ainda de atender à circunstância de o arguido ser de modesta condição socioeconómica, uma vez que possui o 6º ano de escolaridade e recebe uma reforma por invalidez no montante de € 305.
Refira-se que os invocados problemas de saúde do recorrente não encontram respaldo na matéria de facto provada, definitivamente assente, não se podendo, pois, atender a essa alegada circunstância.

Por outro lado, a invocada postura de colaboração com a justiça, no sentido de apresentar a sua versão dos factos e toda a documentação constante dos autos, relativa às licenças obtidas para as armas, não foi ao ponto de o arguido assumir integralmente a sua conduta, uma vez que, conforme se lê na motivação da decisão de facto «afigurou-se ao Tribunal que o mesmo procurou “minimizar” efetivamente o sucedido, limitando-se a reconhecer parte do ocorrido, em parte que julga não prejudicá-lo mas que já elucida bem que quem teve a iniciativa de procurar o ofendido foi o arguido, que como o mesmo reconheceu, nesse dia, à semelhança do que costumava fazer trazia consigo a pistola (no bolso ou à cinta) mas que pese embora tenha chamado “trafulha” ao ofendido, não terá chegado aos extremos descritos na acusação, o que não logrou convencer-nos (…)».

Significa isto que o arguido não demonstrou qualquer arrependimento nem interiorização do desvalor da sua conduta, não beneficiando, pois, dessas atenuantes.

Em suma, sopesando todas as apontadas circunstâncias atendíveis, concretamente as exigências de prevenção geral, que fazem elevar o limite mínimo necessário para assegurar a proteção das expectativas comunitárias, o elevado grau de ilicitude, a intensidade da culpa e as menores exigências de prevenção especial, afigura-se-nos que, relativamente ao crime de coação agravada na forma tentada, uma pena de 200 dias de multa substitutiva, aliás proposta pelo Exmo. Procurador Adjunto na sua resposta, satisfaz as exigências preventivas e não excede a medida da culpa, sendo equilibrada.

Procede, pois, este segmento do recurso.

3.2 – Da excessividade do quantitativo diário da pena de multa

Insurge-se também o recorrente contra a taxa diária da pena de multa que foi determinada (€ 6), sustentando que o tribunal a quo deveria ter optado pelo valor monetário mínimo (€ 5), atentos os seus baixos rendimentos, tendo, assim, sido violado o disposto no art. 47º, n.º 2, do Código Penal.

3.2.1 - É sabido que o critério de determinação do quantitativo diário da pena de multa se encontra previsto nesse preceito legal, segundo o qual “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.

A variação da taxa diária visa assegurar o princípio da igualdade de ónus e sacrifícios e consequente eficácia preventiva da pena de multa, de forma a esbater a crítica de que o impacto desta pena nos condenados não é homogéneo, variando em função dos meios económicos de cada um.

Conquanto a lei não defina os critérios a ter em conta para concretizar a situação económica e financeira e os encargos pessoais, para este efeito, em relação às pessoas singulares, deve ser considerada a totalidade dos rendimentos próprios do arguido, independentemente da sua fonte, deduzidos de impostos, deveres jurídicos de assistência e obrigações duradouras sobre os rendimentos [8]. E, do lado da despesa, devem ser consideradas as despesas inerentes à satisfação das necessidades correntes (habitação, alimentação, vestuário, transportes, educação, saúde e lazer), quer do arguido, quer dos membros do seu agregado familiar.

Importa não perder de vista que a multa, enquanto pena criminal, deve sempre representar um sacrifício para o condenado, ainda que não possa retirar-lhe o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e às do seu agregado familiar, sendo igualmente de ter presente que na dialética entre estes dois aspetos podem assumir particular relevo os mecanismos de flexibilização do seu cumprimento, nos casos em que se justifique a sua aplicação (cf. arts. 47º, n.ºs 3 e 4, 48º e 49º, n.º 3, todos do Código Penal).

É inevitável considerar que a taxa diária da multa nunca é o resultado de uma mera operação matemática, havendo sempre que apelar ao prudente arbítrio do juiz. Daí que se tenha formado o entendimento jurisprudencial [9] de que o montante de € 5 é reservado para as pessoas que vivam no mínimo existencial, ou abaixo dele, adequando-se normalmente os patamares que se seguem a pessoas que ganham o dobro ou mesmo o triplo do salário mínimo. De todo o modo, salvo nos casos de situações de miséria, não pode a multa ser fixada em montante tão próximo do limite mínimo que a faça perder a sua eficácia penal.

3.2.2 – Tendo presentes estas considerações, afigura-se-nos que o valor da pensão de reforma recebido pelo recorrente (€ 305), aliado à circunstância de viver em casa própria, não ter filhos a cargo e a sua esposa explorar um café, com faturação mensal não apurada, mas pagando € 400 de luz, em média, por mês, o que não deixa de ser sintomático da dimensão do negócio, são reveladores de uma situação económico-financeira que comporta perfeitamente a taxa de € 6 fixada pela primeira instância, aliás já fixada praticamente no mínimo, não olvidando também a existência de mecanismos de flexibilização do cumprimento da pena de multa.

Pelo exposto, nesta parte improcede o recurso.

3.3 – Da qualificação jurídica dos factos relativos à conduta de detenção de arma proibida

Na sua resposta ao recurso, o Exmo. Procurador Adjunto invoca que a conduta do arguido dada como provada na sentença recorrida e aí considerada como integrando o crime de detenção de arma proibida pelo qual o mesmo foi condenado, previsto e punido pelo art. 86º, n.º 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), integra antes a contraordenação prevista e punida no art. 99º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma, devendo, por isso, proceder-se à convolação do referido ilícito criminal para contraordenacional, posição esta secundada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer.
É manifesta a sua razão.

3.3.1 - Como claramente resulta da leitura da sentença recorrida, a referida condenação criminal assentou na detenção, pelo arguido, na respetiva residência, no dia 16 de março de 2016, de três munições de calibre 12 mm, sendo o mesmo apenas titular de uma autorização (permanente) de simples detenção no domicílio da espingarda de caça Maroccini com o n.º (...), calibre 12, de 2 canos lisos, com o n.º de ficha ou livrete (...), emitida em 27-04-1994, ao abrigo do art. 46º do regulamento aprovado pelo DL n.º 37313, publicado em 21 de fevereiro de 1949, tendo sido ainda titular, desde o ano 2000 até 27-11-2003, de licença para uso e porte de arma de caça, possuindo livrete de manifesto da referida espingarda caçadeira.

A respeito das condições e limites da licenciada detenção de arma no domicílio, dispõe o art. 18º, n.º 3, da citada lei que “em caso algum a detenção das armas pode ser acompanhada de munições para as mesmas”.

Significa isto que apesar de o arguido se encontrar habilitado, através da competente licença, a deter no seu domicílio a mencionada espingarda de caça de calibre 12 mm, estava-lhe, porém, expressamente vedado deter munições para a mesma, como sucedeu com as três munições em questão.

Porém, a violação dessa proibição integra um mero ilícito contraordenacional, nos termos previstos no art. 99º, n.º 1, al. c), do Regime Jurídico das Armas e Munições, ao dispor que “quem não observar o disposto (…) c) no n.º 3 do artigo 18.º (…) é punido com uma coima de (euro) 600 a (euro) 6000”.

Embora a titularidade da licença de detenção no domicílio da referida espingarda de caça não permitisse ao arguido deter, nessas circunstâncias, as munições em apreço nos autos, porém, já obstaculiza que esta detenção seja considerada como fora das condições legais para efeitos de integração do crime previsto no art. 86º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, fazendo deslocar tal conduta para o âmbito contraordenacional.

Apesar de a referida licença (permanente) ter sido emitida em 27 de abril de 1994, ao abrigo do disposto no art. 46º do regulamento aprovado pelo DL n.º 37 313, e de o art. 27º, n.ºs 2 e 5, da Lei n.º 5/2006, dispor que ”em caso algum são atribuídas licenças vitalícias” e que “as licenças de detenção de arma no domicílio são válidas por um período de 10 anos,” o arguido continua a estar habilitado a deter a arma caçadeira no seu domicílio e, por via disso, a ver qualificada como mera contraordenação a detenção das munições, uma vez que o art. 114º, n.º 1, do mesmo diploma preceitua que “os possuidores de armas detidas ao abrigo de licenças de detenção domiciliária emitidas nos termos do disposto no artigo 46.º do regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 37 313, de 21 de Fevereiro de 1949, mantêm o direito a deter essas armas nos termos anteriormente estabelecidos”.

Pelo exposto, não está verificado o elemento objetivo em que, com base na detenção no domicílio das três munições de calibre 12 mm, assentou a condenação do arguido pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, impondo-se absolvê-lo desse ilícito.

Tem sido defendida a posição de que o tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, desde logo pelas implicações que tal pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus”, e sem necessidade de qualquer comunicação prévia, desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido [10], sendo que no caso vertente, em cumprimento do disposto no art. 424º, n.º 3, do Código de Processo Penal, foi o recorrente notificado para, querendo, se pronunciar sobre a alteração em apreço.

Aliás, pronunciando-se sobre se “o Supremo Tribunal de Justiça poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior”, entendendo que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objeto de impugnação”, o Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça há muito que fixou jurisprudência no sentido de que “O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da «reformatio in pejus»” (cf. acórdão n.º 4/95, de 07 de junho de 1995 [11]).

Dispõe o art. 77º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGCOC), aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de outubro, que “o tribunal poderá apreciar como contraordenação uma infração que foi acusada como crime”.

No caso vertente, nada obsta a que seja este Tribunal da Relação a proceder à fixação da coima, não se colocando sequer a questão de previamente se permitir ao arguido que efetue o pagamento da mesma pelo seu valor mínimo, uma vez que, sendo a contraordenação sancionável com coima de valor superior a metade do montante máximo previsto no n.º 1 do art. 17º do RGCOC, tal faculdade não é permitida pelo art. 50º-A, n.º 1, do mesmo diploma.

Por outro lado, também não será invocável o argumento de o arguido ser privado de um segundo grau de jurisdição, vendo, assim, afetando o direito ao recurso consagrado no art. 32º, n.º 1, da Constituição.

Com efeito, como a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade de salientar, nomeadamente no acórdão n.º 49/2003 [12], «o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal.

Este direito assenta em diferentes ordens de fundamentos.

Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito – é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a deteção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.

Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.

Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa. Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa».

No caso vertente a conduta do arguido foi apreciada pela primeira instância, que a qualificou como crime, tendo, porém, em recurso dessa decisão, o Tribunal da Relação, com base nos mesmos factos, procedido à sua convolação para uma contraordenação, não sem previamente dar ao arguido oportunidade de se pronunciar sobre essa alteração da qualificação jurídica, nos termos previstos no art. 424º, n.º 3, do Código de Processo Penal, assegurando-lhe, assim, o direito de defesa.

O caso foi, assim, apreciado por dois tribunais de grau distinto, o que tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.

O facto de ser a relação a determinar, pela primeira vez e sem possibilidade de recurso, a coima a aplicar ao arguido pela prática da contraordenação não é de modo algum manifestamente desproporcionado ou lesivo de qualquer princípio constitucional, uma vez que tal decisão resulta, justamente, da reapreciação por um tribunal superior de uma decisão condenatória, embora de natureza criminal, perante o qual o arguido teve a possibilidade de expor a sua defesa. Ou seja, o acórdão da relação, proferido em segunda instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso.

Pelo exposto, afigura-se que as garantias constitucionais de defesa não constituem obstáculo a que a relação, assumindo a sua plenitude jurisdicional, no âmbito de apreciação de uma decisão que condenou o arguido por um crime, após decidir convolar os factos para uma contraordenação, proceda à determinação da coima a aplicar.

O que importa é que sejam reconhecidos e conferidos ao arguido todos os direitos e instrumentos processuais imprescindíveis e ajustados a fazer valer as suas posições, contrariando a contramotivação do recurso no sentido da sua condenação pela contraordenação, garantindo-lhe a possibilidade efetiva de, previamente e na perspetiva de vir a ser proferida essa decisão condenatória, a discutir, contestar e influenciar, aduzindo argumentos, de facto e de direito, em abono da defesa da sua posição processual.

3.3.2 - Posto isto, cumpre determinar a coima a aplicar ao arguido pela prática da referida contraordenação.

A este respeito dispõe o art. 18º, n.º 1, do RGCOC, que “a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação”.

Esse normativo é subsidiariamente aplicável à responsabilidade contraordenacional por detenção de armas e munições fora das condições legais, por força da remissão do art. 105º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006.

Em face da factualidade dada como provada, conclui-se que a gravidade da contraordenação, aferida nomeadamente pelo grau de ilicitude do facto, é reduzida, uma vez que a conduta do arguido se traduziu na detenção, no seu domicílio, de apenas três munições, de calibre 12 mm.

Apesar da atuação com dolo direto, constituindo a forma mais grave desse grau de culpa, no caso concreto, tal não se traduz, só por isso, numa culpa de elevada intensidade, significando apenas que o agente atuou com vontade dirigida à realização do facto, revelando os factos provados uma mediana ou absolutamente normal intensidade dolosa no cometimento dos mesmos nas concretas circunstâncias em que tiveram lugar, sem que nada de realce os distinga da normalidade.

O arguido não retirou qualquer benefício económico da contraordenação e é de condição económica modesta, porquanto recebe uma pensão de reforma por invalidez no montante mensal de € 305, vive em casa própria, não tem descendentes a cargo e a esposa explora um café, com faturação mensal não apurada, pagando € 400 de luz, em média, por mês.

Perante estes elementos, tendo presente que a moldura abstrata da coima oscila entre € 600 e € 6.000, afigura-se-nos ajustado fixar a sua medida concreta no seu valor mínimo, conforme, aliás, é preconizado pelo Ministério Público.
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Na decorrência da absolvição do arguido relativamente crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, tendo por referência a detenção das munições em apreço, e da alteração da qualificação jurídica dos correspondentes factos para a contraordenação prevista e punida pelos arts. 18º, n.º 3, e 99º-A, n.º 1, da mesma Lei, a declaração de perdimento a favor do Estado dessas munições passa a ser feita ao abrigo do disposto no art. 22º, n.º 1, do RGCO, em vez do preceituado no art. 109º do Código Penal.
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A decisão de absolvição do arguido relativamente a um dos crimes pelos quais foi condenado deixa, naturalmente, prejudicada a apreciação da derradeira questão suscitada pelo recorrente, relativa à pretendida realização de cúmulo jurídico entre a pena aplicada por esse crime e a que resultou da condenação pelo crime de ameaça agravada na forma tentada.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido, P. M., e, em consequência, decidem:

A) - Revogar a sentença recorrida, na parte em que, em substituição da pena de 1 (um) ano de prisão, aplicada pelo crime de coação agravada, previsto e punido pelos arts. 154º, n.º 1, e 155º, n.º 1 al. b), do Código Penal, agravado ainda nos termos do art. 86º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, na forma tentada, fixou a pena de multa substitutiva em 365 (trezentos e sessenta e cinco dias).
B) - Substituir a referida pena de 1 (um) ano de prisão, aplicada pela prática do mencionado crime, por 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz € 1.200 (mil e duzentos euros).
C) - Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, absolvendo-o de tal crime.
D) - Procedendo à alteração da qualificação jurídica dos correspondentes factos dados como provados, condenar o arguido pela prática da contraordenação prevista e punida pelos arts. 18º, n.º 3, e 99º-A, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, na coima de € 600 (seiscentos euros), sendo as munições em apreço declaradas perdidas a favor do Estado nos termos do art. 22º, n.º 1, do RGCO.
E) - Manter, no mais, a sentença recorrida.

Sem custas, atenta a parcial procedência do recurso (arts. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 22 de outubro de 2018

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
[2] - Cf. os arts. 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, do Código de Processo Penal, bem como Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª edição, Verbo, pág. 335, o acórdão do STJ de 28-04-1999, in Coletânea de Jurisprudência - Acórdãos do STJ, ano de 1999, tomo II, pág. 196, e o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[3] - Publicado no Diário da República, 1.ª série - N.º 77, de 19 de abril de 2013.
[4] - Vd. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, págs. 366-368.
[5] - Vd., ainda, Maria João Antunes, As consequências Jurídicas do Crime, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 84, e Sónia Fidalgo, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 20, n.º 1, janeiro-março 2010.
[6] - “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss.
[7] - Cf. o acórdão do STJ de 28-09-2005, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173.
[8] - Vd. Maria João Antunes, ob. cit., pág. 54.
[9] - Cf., nomeadamente, o acórdão do TRG de 18-10-2010 (processo n.º 22709.6TABCL.G1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[10] - Cf. Os acórdãos do STJ de 24-02-2010 (processo n.º 59/06.7GAPFR.P1.S1) e de 10-09-2014 (processo n.º714/12.2JABRG.S1) e do TRP de 06-05-2009 (processo n.º 104/03.8GAVFR.P1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[11] - Publicado no Diário da República, I série-A - n.º 154, de 06-07-1995.
[12] - Processo nº 81/02, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030049.html.