Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2582/21.4T8VNF-A.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONDIÇÕES DE SOLVABILIDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CUSTAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário da Relatora:

1. A possibilidade ou impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas (art.3º/1 do CIRE) apenas pode sustentar-se em factos concretos provados ou presumidos judicialmente e não pode suportar-se em meras suspeições genéricas de possibilidade de solvência.
2. A presunção de factos essenciais a extrair de outros factos provados (arts.349º e 351º do C. Civil) encontra-se limitada quando esses factos essenciais foram alegados, foram julgados não provados e não foi impugnada a matéria de facto nos termos do art.640º do C. P. Civil.
3. A possibilidade económica de cumprimento de obrigações já vencidas deve aferir-se face à liquidez do património do devedor e à sua capacidade de acesso a crédito líquido (art.3º/1 do CIRE).
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte:

ACÓRDÃO

I. Relatório:

1. No processo de insolvência requerido por M. L., instaurado a 07.05.2021:

1.1. A requerente pediu a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, invocando estar em situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas já vencidas, tendo em conta:

a) Que deve aos seus irmãos o valor global de € 2 294 614, 14, na sequência de condenações por sentenças transitadas em julgado: à sua irmã M. G., após condenação no processo nº589/14.7TBBRG, o valor de € 996 212, 92, acrescidos de juros de mora desde a citação de 05.02.2014, com o valor de € 289 901, 69 na data da instauração da ação (dívida em execução na ação nº154/21.2T8VNF); ao seu irmão J. L. o valor de € 996 212, 92, acrescido de juros desde a citação de 19.01.2021, no valor de € 12 286, 61.
b) Que não dispõe de bens nem rendimentos que lhe permitam pagar essas dívidas, seu único passivo, razão pela qual não conseguiu chegar a acordo com os credores sobre os valores e modalidades de pagamento dos créditos, tendo em conta:
__ Que vive exclusivamente do seu salário mensal de € 659, 00, para além da renda mensal de € 657, 16 que passará a receber pelo arrendamento da verba nº5 que retornou para o seu património;
__ Que é titular de uma quota de € 40 000, 00 da sociedade X SPA- Lazer e Estética, Lda., estabelecimento que se encontra inativo há anos e não distribuiu quaisquer lucros aos sócios.
__ Que amortizou as ações que tinha na Y, SA a 26.04.2021, em consequência da penhora promovida por M. G., perdendo a expectativa de participar nos eventuais lucros que a atividade pudesse vir a gerar;
__ Que o valor global dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns tem o valor de € 1 023 890, 32, uma vez: que os seus bens próprios que constam das relação de bens nº6 têm o valor de € 785 214, 04 (depósito bancário de € 1342, 53 no Banco ...; crédito de € 597 000, 00 pela amortização de ações; veículo Mercedes no valor de € 7000, 00; fração D do prédio inscrito no art.... com valor patrimonial de € 67 385, 91; fração A do prédio inscrito no art.... com valor patrimonial de € 112 485, 60); que os bens comuns com o seu ex-marido (ainda não partilhados) constam da relação de bens nº7 e têm o valor global de € 477 352, 56 (depósito bancário no Banco ... com o valor de € 54 222, 88; crédito de suprimentos de sócio sobre a sociedade X, SPA- Lazer e Estética, Lda no valor de € 237 194, 68; quota na X SPA, Lda, no valor nominal de € 40 000, 00; bens móveis com os valores discriminados indicados; prédio urbano inscrito na matriz sob o art...., com o valor patrimonial de € 135 950, 00).
__ Que, em relação a estes bens: está impossibilitada de os vender, uma vez que foram arrestados à ordem de uma providência cautelar instaurada pelo credor J. L. e estão em vias de ser penhorados na execução movida pela credora M. G., e, ainda que fossem vendidos no valor do mercado, jamais poderiam gerar receitas que permitissem cobrir o valor do passivo; o crédito por suprimentos não está suportado por qualquer contrato formal, pelo que o pagamento só pode ser exigido nos termos do art.245º/1 CSC e do art.777º/2 do C. Civil; o crédito por contrapartida da amortização das ações, que apenas se vence a 31.12.2023, está sujeito à retenção da fonte de IRS- imposto sobre mais valias, nos termos do art.10º/1-a) do CIRS; sobre a fração A do prédio inscrito na matriz sob o art....º está constituída uma hipoteca em favor do antigo proprietário para garantir uma caução em favor da credora M. G., hipoteca que deverá considerar-se extinta, atenta a sua origem e a circunstância do prédio ter deixado de pertencer ao antigo proprietário.
c) Que reúne todas as condições para lhe ser concedida a exoneração do passivo restante.
1.2. Após convite proferido ao abrigo dos arts. 590º/2-c) do C. P. Civil e 23º/2- d) e 27º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a requerente juntou os elementos vertidos no artigo 23.º/2 e os documentos elencados no artigo 24.º do CIRE.
1.3. A 18.05.2021 foi proferida sentença a decretar a sua insolvência, com a seguinte fundamentação «Transpondo para o caso dos autos: tendo a requerente requerido a declaração da sua insolvência, e inexistindo necessidade de correção de quaisquer vícios sanáveis (por se encontrar cumprido o disposto nos artigos 23º e 24º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), consideram-se confessados os factos e, em consequência, declara-se, ao abrigo dos artigos 3º, e 28º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência da requerente.».
2. Por apenso aos autos de insolvência M. G. apresentou embargos à insolvência, nos quais:
2.1. A embargante requereu que fosse revogada a sentença que declarou a insolvência desta e que a mesma fosse condenada como litigante de má-fé em multa ao Estado e ainda no pagamento de uma indemnização (que lhe garantisse o reembolso das despesas já suportadas e as que viesse a suportar com a presente lide, incluindo os honorários e iva do seu mandatário, no montante global a liquidar a final), defendendo que é falso que a devedora/embargada estivesse numa situação de impossibilidade de satisfação das suas dívidas, nomeadamente a que tinha para consigo, tendo em conta:
a) Que a situação alegada pela devedora na petição inicial é um embuste, maquinado durante anos com a atuação consciente do filho, do ex-marido, do irmão (como denota o desfecho de transação do processo por este instaurado contra a embargada), do contabilista da Y e da mulher, para não lhe pagar o capital e juros desde 05.02.2014 a que foi condenada na ação nº589/14.7BBRG do Juiz 1 do Juízo Central de ...; que o pedido de insolvência é simulado, existindo uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada.
b) Que os bens das verbas nº1, nº2 e nº3 (depósito bancário, crédito ativo e participação social) da relação de bens comuns juntas pela embargada são bens próprios desta e não bens comuns (o que denota a má-fé da embargada), tendo em conta: que a verba nº1 decorre de dinheiro alegadamente doado pelo pai à embargada (face ao referido por esta no trecho de depoimento transcrito, prestado na audiência de 19.01.2018) mas subtraído à herança e transferido para a conta do filho R. D.; que as verbas nº2 e 3 apenas podem decorrer de bens retirados de contas da herança do pai (face ao depoimento do ex-marido da embargada, que reproduziu, que referiu que, apesar da sociedade ter sido constituída na pendência do casamento, não tem nada na mesma).
c) Que a soma dos bens próprios da embargada tem um valor global de € 4 953 224, 22, uma vez que, entre os mesmos, os seguintes bens têm valor superior ao indicado:
__ As 597 000 ações nominativas da Y, SA têm um valor não inferior a € 4 088 000, 00 (tendo em conta que a sociedade foi avaliada em € 4 109 000, 00 em 2007, que a evolução de capitais próprios, caixa, bancos e EBIT´s entre 2006 e 2019, mesmo depois de transformada em sociedade anónima, revela com regularidade liquidez e robustez financeira).
__ A quota de € 40 000, 00 no capital da sociedade X SPA, Lda. (representativa de 66, 66% do capital social de € 60 000, 00) tem um valor não inferior a € 300 000, 00 (tendo em conta: que a sociedade é proprietária desde 2006 de um imóvel, comprado pelo valor declarado de € 350 000, 00, mas com empréstimos de € 600 000, 00 garantidos por hipoteca, em relação aos quais a embargada declarou no depoimento de 19.01.2018 que estavam totalmente pagos com o valor de € 540 000, 00 doados pelo pai e que já não havia as hipotecas, tendo o imóvel um valor a rondar os € 500 000, 00; que, ainda que a sociedade não estivesse funcionamento, conforme referido pela embargante, o imóvel encontra-se arrendado, gerando em 2019 o valor de € 20 304, 00 e um EBIT de € 15 842, 29).
__ As duas frações imóveis indicadas nos bens próprios têm um valor mínimo de € 98 078, 86 e de € 168 728, 40, no valor global de € 266 807, 26.
d) Que a meação nos bens comuns tem um valor de € 106 955, 00, superior ao indicado, uma vez que a fração imóvel tem um valor real de € 203 925, 00.
e) Que a embargada tem mais património financeiro, decorrente: do restante dinheiro dos € 2 000 000, 00 que subtraiu à herança dos pais; de todos os rendimentos e dividendos que inevitavelmente realizou, como acionista e sócia, respetivamente, das sociedades Y, SA e X SPA, Lda.
f) Que, depois do acórdão de 11.02.2021 que pôs fim definitivo ao litígio do processo nº589/14.7TBBRG, a 23.02.2021, a 06.03.2021 foram apresentadas propostas de pagamento prestacional da dívida, com redução da mesma, nos termos indicados, em nome da embargada, e que a embargante não aceitou.
g) Que, depois disto, a embargada realizou vários atos na Y, SA para não pagar a sua dívida:
__ A 10.03.2021 renunciou ao cargo de Presidente do Conselho de Administração, para o qual havia sido designada 21 dias antes.
__ A 19.03.2021: os acionistas deliberaram um aumento de capital de € 51 000, 00, com subscrição de € 50 000, 00 pelo seu filho (com valor proveniente de dinheiros da mãe) e de € 1 000, 00 pela mulher do contabilista, ficando com um capital global de € 651 000, 00 para poderem retirar as 597 000, 00 ações sem impedimento legal do art.276º/5 do CSC; o R. D. interveio como acionista quando já não o era (face à decisão de 12.02.2021 do Tribunal da Relação de Guimarães), ficando a constar que tinha 248 974 ações (quando apenas tinha as 50 000, 00 agora subscritas) e que a embargada tinha 398 026 ações quando tinha 597 000,00; foi aceite a renúncia da embargada à presidência, a 10.03.2021, passando a embargada a mera trabalhadora com salário mínimo.
__ A 26.04.2021 foram amortizadas 597 000, 00 ações da embargada pelo seu valor nominal (que integram as 198 974 ações do filho, na sequência da invalidação do negócio na sentença do processo instaurado pela embargante), ações que estavam arrestadas em 2013 e penhoradas, e foi reduzido o capital para o valor de € 51 000, 00; que este ato é uma fraude, indo a embargante usar meios processuais criminais e civis adequados (art.227º do C. Penal e art.56º do C.S.C), e é nulo e é ineficaz em relação à embargante (que beneficia da garantia do arresto, convertido em penhora).
h) Que a embargada agiu de má-fé, pois alegou factos descaradamente falsos para justificar encontrar-se numa situação de incapacidade de cumprir obrigações vencidas.
2.2. Recebidos os embargos, foi determinando o cumprimento do preceituado no artigo 41º/2 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante apenas CIRE).
2.3. A embargada apresentou contestação, na qual:
a) Impugnou quase na íntegra os factos articulados pela embargante, nomeadamente o que foi por esta defendido em relação aos bens por si indicados como próprios e comuns, defendendo, em particular: em relação à sua quota na X SPA, Lda., que o seu valor não se confunde com o bem de que é proprietária, que na prestação de contas de 2019 junta no doc. 25 da petição inicial está indicado o imóvel apenas com o valor de € 304 151, 22 e o passivo social em € 594 108, 45, que o imóvel não vale no mercado mais de € 300 000, 00, o mesmo pertence à sociedade e o seu arrendamento terminou a 30.03.2020, data desde a qual a sociedade não desenvolve qualquer atividade; em relação às 597 000 ações que detinha na Y, SA, que entre 2007 e 2020 o volume de vendas diminuiu de € 4 132 236, 28 para o valor de € 2 469 221, 14, que as ações não valiam o valor referido, que a amortização decorre do contrato, que não foi feita antes porque estava em litígio a sua titularidade apenas resolvida por acórdão de 11.02.2021 e porque se tivesse sido feita nessa altura antes do aumento do capital a sociedade entrava em liquidação) e outros factos laterais (renunciou à Presidência da Y para prevenir as consequências da sua insolvência na imagem da sociedade perante fornecedores e bancos; que o filho pagou o aumento de capital na Y com dinheiro seu). Declarou aceitar apenas, em relação às transcrições dos depoimentos do processo nº589/14.7TBBRG, a assentada aí lavrada como confissão sua e do seu filho R. D..
b) Defendeu que o intuito da embargante foi locupletar-se sozinha com todo o seu património, impedindo o outro credor e irmão, J. L., de receber a parte a que tem direito na liquidação e rateio da massa insolvente, pois na execução singular instaurada pela embargante ele seria relegado para segundo lugar e nada sobraria para pagamento do seu crédito.
2.4. J. L. deduziu intervenção principal espontânea passiva, que foi admitida, tendo invocado no seu articulado, sumariamente: que a embargante pretende obter através destes embargos aquilo que perdeu no processo n.º 589/14.7TBBRG, porquanto tendo sido a embargada ali condenada a restituir os valores apropriados da herança dos pais na proporção de metade para cada um dos seus irmãos, ambos têm direito ao recebimento; que se os embargos forem procedentes fica prejudicado, uma vez que a embargante logrou obter a penhora de todos os bens da embargada porque obteve sentença declarativa antes de si e o ora interveniente apenas detém o arresto da quota da X SPA, Lda.
2.5. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento nos termos do art.35º do CIRE, a qual principiou pelo despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, tal como consta da respetiva ata.
2.6. Foi proferida sentença, que decidiu:
«Pelo exposto, julgam-se procedentes os presentes embargos e, em consequência, revoga-se a sentença que decretou a insolvência de M. L., condenando-se ainda esta como litigante de má fé numa multa fixada no valor de 3 (três) UC’s.
Valor da causa: € 1. 189 598,50 – artigo 301.º do CIRE.
Custas a cargo da embargada – artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 304.º do CIRE.».
2.7. A embargada/requerente do processo de insolvência interpôs recurso de apelação da sentença de I-2.6. supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«1. A douta sentença impugnada julgou procedentes os presentes embargos e, em consequência, revogou a sentença que decretou a insolvência da Embargada e condenou-a ainda como litigante de má fé numa multa fixada no valor de 3 (três) UC's".
2. Não obstante ter constatado que "é forçoso concluir pela não superioridade do ativo da embargada relativamente ao seu passivo ",
3. por isso que "provou-se no presente processo que o valor dos créditos reclamados no âmbito do processo de insolvência e reconhecidos foi no valor de €3.321.8667)2Y e que o valor do património (próprio e a sua meação nos bens comuns do dissolvido casal} da embargada ascende ao valor de € 1.189.598)50 (um milhão) cento e oitenta e nove mil quinhentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos]",
4. concluiu que a Embargada dispunha de património e crédito suficientes para solver o seu passivo, pelo que dissentiu da decisão embargada no concernente à sua declarada situação de insolvência.
5. Tal conclusão não se reconforta nos (e contraria os) factos provados.
6. Na verdade, o Tribunal determinou que "o valor dos créditos reclamados no âmbito do processo de insolvência e reconhecidos foi no valor de €3.321.8667,25 e que o valor do património (próprio e a sua meação nos bens comuns do dissolvido casal) da embargada ascende ao valor de € 1.189.598,50 (um milhão) cento e oitenta e nove mil quinhentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos)",
7. constatando, em conformidade, que "é forçoso concluir pela não superioridade do ativo da embargada relativamente ao seu passivo".
8. Ponderando, todavia, os factos provados sob os n.ºs 26 a 31 do respetivo elenco, decidiu que a Embargada possui meios alternativos para solver as suas obrigações, a saber: o recurso ao crédito.
9. Contudo, nem aqueles nem quaisquer outros factos provados sustentam essa conclusão:
- seja porque, mesmo considerando o crédito de que poderia dispor, o valor do seu passivo continuava superior ao ativo;
- seja porque o Tribunal fez tábua rasa da data em se demonstrou que a Embargada poderia ter acesso a crédito para solver parte (e apenas uma parte) do seu passivo;
- seja porque o Tribunal não apurou se esse possível crédito continuava acessível à data em que foi requerida a insolvência.
10. No dia 6 de março de 2021 (data em que foi apresentada à Embargante a proposta de acordo referida no facto provado n.º 29), a Embargada com a ajuda do seu ex-marido, teria acesso através de crédito bancário a €1.050.000,00 (um milhão e cinquenta mil euros), valor que somado ao do património que a douta sentença lhe atribui - € 1.189.598,50 (um milhão, cento e oitenta e nove mil quinhentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos - perfaz o valor total €2.239.598,50 (dois milhões duzentos e trinta e nove mil quinhentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos).
11. Ora não se apurou nem é possível garantir se o ex-marido da Embargada, de cujos bons ofícios junto dos bancos dependia em absoluto a obtenção de crédito, continuava disponível para a ajudar na data em que ela se apresentou à insolvência e na hipótese de se gorar, como se gorou, o pretendido acordo com a Embargante.
12. Por outras palavras: não há qualquer elemento factual comprovado que permita afirmar que, na data em que se apresentou à insolvência (7 de maio de 2021), a Embargada dispusesse de qualquer crédito, nem, muito menos, de crédito que lhe permitisse solver o seu passivo, alienando ou não o seu património.
13. Mesmo a admitir-se a hipótese - que não se respalda em nenhum facto provado e não passa, portanto, de pura especulação - de, no dia em que requereu a insolvência, a Embargada continuar a dispor de acesso àquele crédito de €1.050.000,OO (um milhão e cinquenta mil euros), é manifesto que aquele ativo era inferior ao passivo da Embargada, que ascendia, então, pelo menos, a €2.294.614,14 (facto provado n° 52), quando não ao montante de €3.321.867,25 dos créditos reclamados e reconhecidos pela Administradora da Insolvência.
14. Assim sendo, como é, manifesto se torna que a Embargada se encontrava e continua incapaz de solver a totalidade das suas dívidas e se encontrava e encontra insolvente.
15. Ao decidir o contrário, a douta sentença impugnada ofendeu o disposto no art.º 3°, 1, CIRE, pelo que deve ser revogada.
16. A douta sentença condenou a ora Recorrente "como litigante de má fé numa multa fixada no valor de 3 (três) UC's", com base nas afirmações genéricas e conclusivas - e, por isso, insuscetíveis de fundamentar a decisão - de que "a embargada, de forma consciente, alterou a verdade dos factos" e de que "alegou factos que sabia não serem verdade",
17. e por ter" alegado, por um lado, factos que sabia não serem verdade (nomeadamente, factos relativos d constituição do seu património próprio) e que acabou por confessar no seu depoimento de parte, e, por outro lado" omitir outros que era relevantes para a decisão da causa [nomeadamente, os factos que se provaram em 28) e 29 )] .
18. Acerca dos primeiros, dir-se-á que a qualificação como próprias ou comuns das verbas (melhor dizendo: de uma parte das verbas) que a Embargada relacionou no seu ativo não é, nem pode ser, objeto do presente processo, não foi sujeita ao contraditório do outro interessado nessa qualificação (o ex-marido da Recorrente) e só pode ser decidida no processo próprio para esse efeito (o processo de inventário e partilha em curso ou a ação comum que eventualmente venha a ser proposta).
19. Portanto, a posição assumida nos autos pela Embargada em relação à composição do seu património próprio não pode reputar-se contrária à verdade, demais a mais sem ter passado pelo crivo duma definição jurídica contraditória.
20. Nem pode apodar-se de conscientemente assumida e, portanto, de provir duma postura de má fé instrumental que justifique a sua condenação em milita, sobremaneira porque a Embargada confessou, em depoimento de parte, os factos que permitiram ao Tribunal (bem ou mal, não interessa aqui) definir como próprios os bens que a Embargada relacionou como comuns.
21. Acerca dos demais factos (os enunciados naqueles n.ºS 28 e 29), é manifesto que não é possível proclamar, como faz a douta sentença, que a Embargada os tenha omitido.
22. Tais factos reportam as negociações para acordo mantidas entre o marido da Embargante e o filho e o ex-marido da Embargada,
23. sobre os quais a agora Recorrente tomou posição nos n.ºS 4 a 10 da contestação, alegando, em suma e no essencial que apresentou uma proposta de €600.000,OO à Embargante e que "não apresentou qualquer outra proposta de acordo, nem' mandatou fosse quem fosse para o fazer”.
24. Estas afirmações da Embargada correspondem à verdade: a Embargada não apresentou outra proposta senão aquela de €600.000,00, nem mandatou fosse quem fosse para o fazer.
25. Surpreender a má fé processual na posição que a Embargada assumiu perante tais factos não faz sentido nem é sustentável.
26. Assim sendo, como é, a condenação em multa da Embargada corno litigante de má fé carece de justificação e fundamento e ofende o disposto no artº 542°, CPC.
27. Na hipótese - que se repudia - de vir a manter-se a douta sentença recorrida, sempre se imporia a sua reforma quanto a custas, considerando que o processo não contém articulados ou alegações prolixas, não convocou alegações de especial complexidade jurídica, especificidade técnica ou que importassem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso, nem implicou a audição de elevado número de testemunhas ou a realização de diligências de produção de prova morosas.
28. Não se justifica, por conseguinte, a aplicação do mero critério base do n° 1 do artº 6° do RCP, antes se impõe o uso do mecanismo previsto no n° 7 do mesmo preceito, dispensando-se a Embargada do pagamento da taxa de justiça remanescente, o que se requer, ao abrigo do disposto no are 616°, 3, CPC.

TERMOS EM QUE, julgando o recurso procedente douta sentença impugnada, Excelências a habitual e revogando a farão Vossas
JUSTIÇA!».

8. A embargante/requerida no processo de insolvência respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, de acordo com os seguintes argumentos:
«A – Da revogação da sentença que decretou a insolvência da Recorrente:
1.
Começa a Recorrente por afirmar que “a titularidade própria ou comum dos bens descritos nos factos provados” [Cf. factos provados n.ºs 45, 49, 50 e 51] “só poderá ser definitivamente apreciada num momento posterior, por estar exposta à impugnação do ex-marido da Embargada, nomeadamente no processo que se encontra pendente de inventário e partilha dos bens do casal”.
Nada de mais errado!
Era o que faltava que o Tribunal a quo não pudesse pronunciar-se e decidir sobre quais os bens próprios da Recorrente e os bens comuns do casal, tanto mais que as relações de uns e de outros desses bens juntas ao requerimento inicial de insolvência, foram precisamente objecto de impugnação pela Recorrida na petição de embargos.
Não só podia, como tinha o dever de pronunciar-se sobre essa matéria controversa, em obediência ao disposto no n.º 2, do art.º 608.º e, a contrario, na alínea d), do n.º 1, do art.º 615.º, ambos do CPC, até porque a decisão sobre esse assunto era essencial para depois o Tribunal confirmar ou revogar a declarada insolvência da Recorrente.
2.
Pretende depois a Recorrente que a Douta sentença decidiu mal ao ter considerado que ela dispõe de crédito e, por isso, possui meios alternativos para solver as suas obrigações, declarando-a não insolvente.
Argumenta que decidiu mal porque “fez tábua rasa da data em que as propostas de acordo foram apresentadas à Embargante” e “porque não apurou sequer se o ex-marido da Embargada, de cujos bons ofícios junto dos bancos dependia em absoluto a obtenção de crédito, continuava disponível para a ajudar na data em que ela se apresentou à insolvência e na hipótese de se gorar, como se gorou, o pretendido acordo com a Embargante”.
Argumentação falaciosa, que toca as raias do descaramento.
Esquece a Recorrente que a última proposta que apresentou à Recorrida (Cf. Facto provado n.º 32), como a anterior (Cf. Facto provado n.º 28), através do seu filho e ex-marido, em 06/03/2021, contemplava um pagamento imediato de € 700.000,00, o qual, por ser imediato, pressupunha a pronta entrega daquele valor, sem dependência, portanto, de qualquer pedido, aprovação e obtenção de crédito bancário.
Ou seja: caso tivesse sido aceite pela Recorrida, essa proposta de pagamento imediato de € 700.000,00 significa que a Recorrente tinha disponibilidades financeiras, dispunha de liquidez bastante, para prontamente fazer a entrega daquela verba.
Mas significa também que, além da óbvia liquidez financeira que possuía (e possui !), a Recorrente dispunha ainda de capacidade de crédito junto da banca.
A este propósito, aliás, importa desmentir o sentido e alcance da conclusão que a Recorrente afirma na pág. 7 da sua alegação, de que “para obter esse valor (os € 1.050.00,00), a Embargada recorreria ao crédito que o seu ex-marido a ajudaria a conseguir junto dos bancos”.
É que essa pretensa ajuda do ex-marido não implicava o envolvimento deste na responsabilidade do crédito que viesse a ser obtido, mas apenas significava, tal como resulta do testemunho do J. E., a sua colaboração, pelos “conhecimentos pessoais que tem em bancos (…), no sentido de serem disponibilizadas as verbas necessárias para a realização do acordo”.
E tendo ficado apurado que o ex-marido da Recorrente “continua sendo seu amigo e a ajudá-la em alguns assuntos pessoais”, não se vê por que razão não havia o mesmo de continuar a ajudá-la para além da data daquela última proposta e, nomeadamente, na data em que requereu a sua insolvência.
Por outro lado, não é crível — nem isso ficou demonstrado — que entre a data daquela última proposta (06/03/2021) e a data em que se apresentou à insolvência (07/05/2021), tivesse havido qualquer facto que determinasse uma alteração significativa das disponibilidades financeiras próprias da Recorrente ou sequer da sua capacidade de obtenção de crédito junto da banca.
De salientar que na data de 06/03/2021, já a Recorrente tinha conhecimento da acção instaurada contra si em 12/01/2021, pelo irmão J. L. a reclamar o pagamento dos 50% (€ 996.212,93) da quantia que sonegara às heranças dos pais, conforme declarado no Proc. n.º 589/14.7TBBRG (Cf. Facto provado n.º 20), como sabia também que lhe fora decretado e registado na Conservatória do Registo Comercial, em 29/01/2021, o arresto da quota de € 40.000,00 que detinha no capital social da “X SPA – Lazer e Estética, Lda.” (Cf. Factos provados n.ºs 20 e 21).
Contudo, a verdade é que tais factos não a impediram de apresentar à Recorrida, em 06/03/2021, a aludida última proposta de pagamento imediato de € 700.000,00, acrescido de € 100.00,00 no prazo de 6 meses, e de € 250.000,00 em prestações anuais de € 50.000,00, durante 5 anos.
Ora, quem está objectivamente impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, seja por falta de liquidez seja por falta de crédito, não faz nem pode fazer uma proposta de pagamento desta natureza e dimensão.
Ou seja: as sucessivas propostas de pagamento que apresentou à Recorrida constituem prova irrefutável de que, na data em que requereu a sua insolvência, a Recorrente dispunha de total capacidade para solver as suas obrigações vencidas.
3.
Alega, por fim, a Recorrente que “mesmo a admitir-se a hipótese (…) de, no dia em que requereu a insolvência (7 de maio de 2021), a Embargada continuar a dispor de acesso àquele crédito de € 1.050.000,00 (um milhão e cinquenta mil euros), é manifesto que aquele activo era inferior ao passivo da Embargada, que ascendia, então, pelo menos a € 2.294.64,14”
É o critério puramente aritmético que pretende fazer valer para justificar o seu pretenso estado de insolvente, mas que o Tribunal a quo, na Douta sentença recorrida, se encarregou de demonstrar, de forma muito clara e bem fundamentada, que não faz sentido nem pode proceder.
Sobre o passivo, cabe esclarecer, porque não despiciendo, que o crédito de € 1.008.559,53, reclamado no processo de insolvência pelo irmão J. L. e reconhecido pelo Administrador de Insolvência, resultou da transacção efectuada entre ele, como Autor, e a Recorrente, como Ré, no Proc. n.º 189/21.5T8BRG, que correu termos no Juiz 5, do Juízo Central Cível de ... (Cf. Facto provado n.º 20), sendo de realçar que entre a interposição dessa acção, em 12/01/2021, e a data da transacção, realizada em 29/04/2021, apenas decorreram cerca de 3,5 meses, o que não deixa de ser um facto estranho.
Quanto ao crédito reconhecido sob condição, tem o mesmo a ver com empréstimos concedidos em finais de 2021, pelo Banco ..., SA à sociedade Y, SA, em relação aos quais a Recorrente interveio como mera avalista das respectivas livranças-caução, não sendo expectável, até pela solidez financeira da sociedade mutuária (Cf. Facto provado n.º 54), que alguma vez venha a ser compelida a pagar quaisquer responsabilidades emergentes de tais empréstimos.
Por isso mesmo, aliás, o Tribunal a quo deu nota na Douta sentença recorrida que “a embargada pode nem chegar a ser responsável pelo pagamento de tal crédito”.
No que se refere ao activo, ficou provado que o património (bens próprios e meação nos bens comuns) da Recorrente tem um valor de € 1.189.598,50, sendo o passivo superior em € 1.105.015,94.
Contudo, revelando uma atenção crítica e perspicaz, o Tribunal a quo deu ainda nota de que, além do descrito património, a Recorrente, entre vencimento e rendas, aufere a quantia mensal de € 1.300,00 (em rigor, € 1.355,00, face ao valor actual do salário mínimo nacional, de € 705,00), e de que era dela o dinheiro com o que o filho R. D. subscreveu a participação de € 50.000,00 no aumento do capital social a Y, SA deliberado em 19/03/2021, para além de que considerou ter ficado demonstrado que dispõe de acesso ao crédito.
Acresce dizer que, como muito bem refere a sentença recorrida, a Recorrente “é titular de uma quota na sociedade X SPA-Lazer e Estética, Lda., que é titular de um imóvel que vale no mínimo € 342.340,00”, e ainda que “se encontra registada como sendo proprietária de três imóveis (num deles, detendo apenas o valor da sua meação), e apesar de não se ter provado o valor de mercado referido pela embargante, importa ter presente que, na prática o valor patrimonial dos imóveis, muitas vezes está subavaliado.”
Destas pertinentes considerações retira-se que o próprio Tribunal a quo ficou com a clara convicção de que, na realidade, o valor do património imobiliário da Recorrente é muito superior ao do valor patrimonial tributário de cada imóvel, o que é uma verdade incontestável, independentemente de se saber qual seja esse efectivo valor.
Aliás, o mesmo pode-se dizer da sociedade Y, SA, ou melhor, da participação nominal de € 591.00,00 que a Recorrente detinha (e detém !) nessa sociedade, a qual, atentos os factos provados n.ºs 7, 8, 54, tem seguramente um valor efectivo muitíssimo superior.
Por isso, e bem, decidiu a sentença recorrida “que, ao contrário do que a pura aritmética poderia inculcar, a situação da embargada permite concluir que não está insolvente.”
Tal decisão, por isso, não merce o mais pequeno reparo, razão por que deverá ser mantida.

B – Da condenação da Embargada como litigante de má fé:
O que a Recorrente alega a este proposto é de uma enorme desfaçatez e só confirma a má fé com que, de forma muito evidente, litigou e continua a litigar na presente acção.
Sobre a constituição do seu património, basta atentar nos bens que indevidamente afirmou e relacionou na petição inicial de insolvência como sendo bens comuns (Cf. art.º 23 e Doc. 5 desse articulado), concretamente as verbas n.ºs 1 (saldo bancário de € 54.222,28), 2 (crédito de suprimento no valor de € 237.194,68) e 3 (quota de € 40.000,00 na X SPA, Lda), conforme resulta da conjugação dos factos provados n.ºs 48 e 49, num valor global de € 331.416,96, percebendo-se que o fez de forma consciente e intencional com o fito de diminuir o valor do seu activo e, assim, melhor sustentar o pedido de declaração da sua insolvência.
Mas mais: não se quedou por afirmar a comunhão desses bens na petição inicial de insolvência, pois reiterou essa relação de bens comuns na contestação aos embargos, como se infere do seu art.º 17.
E quanto aos factos provados n.ºs 28 e 29, é também incontestável que a Recorrente faltou à deliberadamente verdade e ao dever de cooperação para com o Tribunal, actuando com manifesta má fé, não só porque omitiu intencionalmente esses factos na petição inicial da insolvência, mas também porque expressamente os negou nos art.ºs 5.º, 9 e 10.º, da sua contestação aos embargos.
Bem andou, pois, o Tribunal a quo ao declarar a litigância de má fé da Recorrente e condená-la na multa de 3 UC’s.
Quando muito, e será o único reparo, essa condenação peca por muito pouco !

C – Da condenação em custas:
Por fim, mesmo para a hipótese de vir a manter-se a sentença recorrida, a Recorrente tem o atrevimento de vir pedir a reforma quanto a custas, de modo a ser dispensada do remanescente a taxa de justiça.
Pelos vistos, ignora a Recorrente que um dos requisitos para a dispensa do remanescente da taxa de justiça é a conduta processual das partes.
Ora, como se viu e a sentença recorrida declarou, a sua conduta processual foi e continua a ser altamente censurável, a ponto de ter sido condenada como litigante de má fé.

TERMOS EM QUE, SEM NECESSIDADE DE MAIS CONSIDERAÇÕES, DEVE O RECURSO DE APELAÇÃO SER JULGADO TOTALMENTE IMPROCEDENTE, E CONFIRMADA A DOUTA SENTENÇA DE 1.ª INSTÂNCIA, E, SE ASSIM FOR ENTENDIDO, AGRAVANDO-SE A MULTA DA RECORRENTE COMO LITGANTE DE MÁ FÉ, COM O QUE V.ªS EXCELÊNCIAS FARÃO INTEIRA JUSTIÇA !».

9. Admitido o recurso na 1ª instância, foi este recebido nesta Relação, onde se colheram os vistos.

II – Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do C. P. Civil.

Definem-se como questões a decidir:

1. Quanto à decisão de revogação da sentença que decretou a insolvência: se a embargada tem ou não condições para solver as suas obrigações, apesar do valor do seu ativo ser inferior ao do seu passivo, face ao valor do passivo, ao valor do ativo e aos factos provados de 26 a 31 (em relação aos quais a decisão recorrida presumiu o acesso ao crédito e contestado pela recorrente) (conclusões 1 a 15).
2. Quanto à decisão de condenação em litigância de má-fé: se a fundamentação conclusiva, a identificação do património próprio e a falta de alegação dos factos 28 e 29 permitem a condenação da recorrente como litigante de má-fé (conclusões 16 a 26).
3. Quanto à decisão de custas: se deve ser aplicado o critério base do art.6º/1 do RCP ou se deve ser usado o mecanismo da dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente nos termos do art.6º/7 do RCP (conclusões 27 e 28).

III. Fundamentação:

1. Matéria de Facto provada e não provada na sentença recorrida:

«A. Factos provados
1. Por escritura pública celebrada no dia 06/09/2006 M. C. e a M. L. [embargada], na qualidade de gerentes da sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda., adquiriram pelo preço de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) a fração autónoma designada pela letra D, correspondente ao rés do chão, destinado ao comércio, com entrada pelo n.º .. de polícia, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …-D, que faz parte do prédio urbano sito na rua … n.ºs .. e .., da freguesia de …, concelho de ..., com o valor patrimonial tributável de € 342 340,00.
2. No dia referido em 1), M. C. e a M. L. [embargada], na qualidade de gerentes da sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda., celebraram também um mútuo com hipoteca com o Banco …, S.A. no valor pelo qual adquiriram a fração autónoma, que deram de garantia.
3. Ainda no dia referido em 1), M. C. e a M. L. [embargada], na qualidade de gerentes da sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda., celebraram outro mútuo com hipoteca com o Banco …, S.A. no valor de € 275.000,00 (duzentos e setenta e cinco mil euros), dando igualmente como garantia a fração referida em 1).
4. M. L. [embargada] usou € 540.000,00 (quinhentos e quarenta mil euros), que o pai lhe doou, para a aquisição da fração referida em 1).
5. Por escritura pública celebrada no dia 02/01/2008 J. L. [interveniente] e M. L. [embargada], por si e em representação da sociedade Y, Lda., celebraram um acordo denominado “Divisão, Cessões e Unificação de Quotas e Alteração Parcial de Pacto Social” através do qual aqueles declararam:
i) que a sociedade Y, Lda. tem um capital social de € 448.919,00, dividido em três quotas, sendo uma no valor nominal de € 4.589,00, pertencente ao sócio L. J. de Y, e as outras duas iguais, no valor nominal cada de € 222. 165,00, pertencentes aos sócios J. L. e M. L.;
ii) que J. L. divide a sua quota em duas novas quotas, uma no valor nominal de € 133.299,00, que cede a M. L., pelo preço de € 800.000,00, outra no valor nominal de € 88.866,00, que cede à própria sociedade Y, Lda., pelo preço de € 600.000,00;
iii) que se unificam as quotas pertencentes a M. L., que passa a deter na sociedade Y, Lda. uma quota única no valor nominal de € 355.474,00;
iv) que a sociedade Y, Lda. tem um capital social de € 448.919,00, dividido em três quotas, sendo uma no valor nominal de € 4.589,00, pertencente ao sócio L. J. de Y, outra no valor nominal de € 355.474,00, pertencente a M. L., e outra no valor nominal de € 88.866,00, pertencente à própria sociedade Y, Lda..
6. Por escritura pública celebrada no dia 02/01/2008 J. L. [interveniente] e M. L. [embargada], em representação da sociedade Y, Lda. celebraram um acordo através do qual esta declarou vender àquele pelo preço de € 340.000,00 (trezentos e quarenta mil euros), já pago, o prédio urbano correspondente ao pavilhão industrial sito no Parque Industrial de …, do concelho de ..., descrito na CRP sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo ….
7. O preço do armazém referido em 6) não foi pago por J. L. [interveniente] e entrou na sua esfera patrimonial como pagamento pela cessão da quota que detinha na sociedade Y, Lda., a acrescer ao 1. 400 000,00 (um milhão e quatrocentos mil euros) que já tinha recebido.
8. Como preliminar da cessão de quota, e para determinação do respetivo preço da mesma, foi efetuada uma avaliação da sociedade Y, Lda., sendo-lhe atribuído, em 06/11/2007, um valor total de € 4.109 000,00 (quatro milhões, cento e nove mil euros).
9. Por escritura pública celebrada no dia 30/05/2013 foi aumentado em € 3.000,00 (três mil euros) o capital social da sociedade Y, Lda., com a entrada da mesma quantia em numerário por parte de P. B., J. E. e M. C., que ficaram cada um com uma quota no valor nominal de € 1.000,00 (mil euros), sendo nessa sequência a sociedade Y, Lda. transformada em sociedade anónima, com o capital social de 600.000,00 (seiscentos mil euros), representado por 600.000,00 ações, pertencendo a M. L. [embargada] 398.026 ações, a R. D. [filho da embargada] 198.974 ações, e a P. B., J. E. e M. C. 1.000 ações cada, designando-se como presidente do conselho de administração M. C. e como vogal R. D..
10. Por sentença proferida, a 14/08/2013, no processo n.º 4857/13.7TBBRG, que correu termos na Vara de Competência Mista de ... (que posteriormente passou a constituir o Apenso A do processo n.º 589/14.7TBBRG), instaurado por M. G. [embargante] contra M. L. [embargada] e marido J. E., R. D., M. C. e mulher M. T., foi decretado, entre o mais, o arresto das 398.026 ações que M. L. detinha na sociedade Y, S.A. e o arresto das 198.974 ações que R. D. também detinha nesta sociedade.
11. A diligência do arresto veio a ser concretizada pela agente de execução em 06/09/2013.
12. A sentença que decretou o arresto, juntamente com a petição inicial e demais documentos dos autos, foi notificada pela agente de execução a M. L. [embargada] e R. D. por cartas datadas de 31/10/2013.
13. No processo n.º 589/14.7TBBRG, que correu termos no Juízo Central Cível de ..., Juiz 1, instaurado por M. G. [embargante] contra M. L. [embargada] e marido J. E., J. L. e mulher M. M., R. D., M. C. e mulher M. T., aquela deduziu, a título principal, os seguintes pedidos:
i) Ser declarada a sonegação, por parte dos Réus M. L. e J. L., às heranças abertas por óbito dos seus pais, da quantia de € 1.400.000,00, com a consequente perda em benefício da Autora do direito que aqueles pudessem ter como co-herdeiros, a qualquer parte do valor sonegado;
ii) Serem os Réus M. L., J. E., J. L. e M. M., condenados solidariamente a pagar à Autora, enquanto herdeira de seus pais, a referida quantia de € 1.400.000,00, devidamente atualizada à data da morte do pai L. J., para o montante de € 1.446.400,00 (um milhão quatrocentos e quarenta e seis mil e quatrocentos euros), nos termos do artigo 551.º do Código Civil, acrescido ainda dos juros de mora, à taxa legal, que se vencerem desde a citação até efetivo pagamento;
iii) Ser declarada a sonegação, por parte dos Réus M. L. e J. L., às heranças abertas por óbito dos seus pais, de todas as quantias que se vierem a apurar que eles hajam retirado da conta de D.O. n.º …….55, titulada em nome do pai L. J., no BANCO ...…consequente perda em benefício da Autora do direito que aqueles pudessem ter, como co-herdeiros, a qualquer parte dessas quantias sonegadas;
iv) Serem os Réus M. L., J. E., J. L. e M. M., condenados solidariamente a pagar à Autora, enquanto herdeira de seus pais, as quantias que forem apuradas, nos termos da alínea anterior, devidamente atualizadas à data da morte do pai L. J., de acordo com o artigo 551.º do Código Civil, e acrescidas ainda dos juros de mora, à taxa legal, que se vencerem desde a citação até efetivo pagamento.
14. No âmbito do processo referido em 13) foi proferida, a 18/12/2018, sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Declarou “a sonegação, por parte da Ré M. L., às heranças abertas por óbito de seus pais, da quantia de € 1.992.425,84 (um milhão novecentos e noventa e dois mil quatrocentos e vinte e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos);”
b) Declarou “a perda da Ré M. L. sobre metade da quantia sonegada em favor da Autora;”
c) Condenou “a Ré M. L. no pagamento de metade da quantia sonegada à Autora, atualizada, desde os levantamentos, saques e transferências aludidas no facto provado n.º 49 até 29.05.2011 (data do falecimento de L. J. de Y);”
d) Condenou “a Ré M. L. a pagar os juros de mora, sobre a quantia aludida em c), desde a citação até integral pagamento, à taxa legal dos juros civis;”
e) Declarou “nulos, por simulação:
i. A compra e venda celebrada através da escritura pública aludida no facto provado n.º 54; ii. A doação com reserva de uso e habitação a que se reporta o facto provado n.º 57;
iii. A cessão da quota de € 120.000,00 ao Réu R. D., a que se refere o facto provado n.º 58, depois, sucessivamente, aumentada para o valor de € 198.974,44, e convertida em igual número de ações;
iv. A transferência da verba de € 54.222,88 (cinquenta e quatro mil duzentos e vinte e dois euros e oitenta e oito cêntimos) para R. D.;”
f) Determinou “o cancelamento das inscrições registrais da aquisição do direito de propriedade efetuadas na sequência dos negócios declarados nulos na alínea e);”
g) Absolveu “os Réus do demais peticionado”.
15. Desta sentença os ali Réus M. L. [embargada], J. E., R. D., M. C. e M. T. interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual proferiu acórdão, a 13/02/2020, confirmando em pleno a sentença de 1.ª instância.
16. Inconformada com a decisão da 2.ª instância, a Ré M. L. [embargada] interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por decisão proferida a 02/12/2020, decidiu rejeitar a revista e determinou a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães para este se pronunciar sobre as nulidades invocadas no acórdão recorrido.
17. Por decisão proferida a 11/02/2021, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu um segundo acórdão no qual decidiu julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto e, em consequência, revogar a sentença recorrida apenas na parte relativa à atualização da quantia indicada na al. c) do dispositivo, no mais decidindo manter a sentença recorrida.
18. O acórdão referido em 17) não foi objeto de reclamação, tendo transitado em julgado a 19/05/2021.
19. Por força da nulidade, por simulação dos atos de transmissão mencionados na al. e) do segmento decisório da sentença de 1.ª instância, regressaram ao património de M. L. [embargada] os seguintes bens:
i) Fração autónoma designada pela letra A, composta de cave e rés-do-chão, com entrada pelos n.ºs .. e .. de polícia, a qual faz parte do prédio urbano sito na rua ..., com os n.ºs .., .. e …, da freguesia de ... (...), concelho de ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...-... (...), inscrito na respetiva matriz sob o artigo …;
ii) Prédio urbano denominado lote …, composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com logradouro, sito no lugar da ..., da União de Freguesias de ... e ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …-..., inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo … (anteriormente artigo ...), da extinta freguesia de ...;
iii) 198.974,44 ações nominativas, com o valor nominal de € 1,00 (um euro) cada, no capital social da Y, S.A., com o nipc ………;
iv) € 54.222,28 (cinquenta e quatro mil duzentos e vinte e dois euros e vinte e oito cêntimos).
20. A 12/01/2021, J. L. [interveniente] instaurou ação contra M. L. [embargada], que correu seus termos no Juízo Central de Cível de ..., Juiz 5, sob o processo n.º 189/21.5T8BRG, para reclamar desta os 50% da quantia declarada sonegada por esta às heranças dos pais, no processo n.º 589/14.7TBBRG.
21. A 15/01/2021, J. L. [interveniente] intentou procedimento cautelar de arresto contra M. L. [embargada], requerendo a apreensão da quota desta na X, Spa- Lazer e Estética, Lda., no valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros).
22. O arresto foi decretado e veio a ser registado na Conservatória do Registo Comercial em 29/01/2021.
23. O processo n.º 189/21.5T8BRG, referido em 20), terminou com a transação alcançada pelas partes a 29/04/2021, na qual M. L. [embargada] confessou dever a J. L. [interveniente] € 996.212,93 (novecentos e noventa e seis mil duzentos e doze euros e noventa e três cêntimos), com juros de mora desde a citação até integral pagamento, e aceitou que o arresto decretado se mantivesse para garantia do crédito.
24. M. G. [embargante] requereu, a 16/02/2021, a execução da sentença do processo n.º 589/14.7TBBRG, cuja execução corria termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão - Juiz 2, sob o processo n.º 154/21.2T8VNF.
25. No dia 17/02/2021, em reunião universal da Y, S.A., foi deliberado, por unanimidade, designar como órgãos sociais do Conselho de Administração, para o mandato 2021-2024 M. L. [embargada], na qualidade de presidente, e R. D., na qualidade de vogal.
26. A 23/02/2021, R. D. e J. E., em nome de M. L. [embargada], deslocaram-se a casa de M. G. [embargante], em …, para negociar uma solução de pagamento da dívida que emergiu para M. L. na sequência da decisão proferida no processo n.º 589/14.7TBBRG, intentando obter uma redução do valor para os € 600.000,00 (seiscentos mil euros).
27. A reunião foi mantida apenas com M. R., marido de M. G. [embargante].
28. Frustrado qualquer acordo na primeira reunião, R. D. e J. E. solicitaram nova reunião, que ocorreu a 04/03/2021, tendo aqui o primeiro apresentado uma proposta de € 1.000 000,00 (um milhão de euros), a pagar nos seguintes termos:
a) € 700.000,00 imediatos;
b) Entrega da fração “D” pelo valor de € 100.000,00, ou pagamento deste valor no prazo de 6 meses;
c) Pagamento de € 200.000,00 em prestações anuais de € 40.000,00, durante cinco anos.
29. Tal proposta foi rejeitada, e R. D., após falar com a mãe, em 06/03/2021, contatou telefonicamente M. R. e apresentou nova proposta pelo valor de € 1.050 000,00 (um milhão e cinquenta mil euros), a pagar da seguinte forma:
a) € 700.000,00 imediatos;
b) € 100.000,00 no prazo de 6 meses;
c) € 250.000,00 em prestações anuais de € 50.000,00, durante cinco anos.
30. A 08/03/2021, M. R. telefonou a R. D. e comunicou-lhe que a proposta não fora aceite, e que a sua mulher não abdicava de receber a exata quantia fixada pelo Tribunal, acrescida de todos os juros de mora vencidos.
31. Desde 08/03/2021 não houve mais nenhuma tentativa de acordo.
32. A 10/03/2021 M. L. [embargada] entregou ao filho R. D., vogal do Conselho de Administração da Y, S.A., uma carta datada de 05/03/2021, a renunciar ao cargo de Presidente desse órgão social, com efeitos a partir de 19/03/2021.
33. No dia 19/03/2021, em reunião universal da Y, S.A., foi deliberado, por unanimidade:
i) aumentar o capital social em € 51.000,00 (cinquenta e um mil euros), passando este a ser de € 651.000,00 (seiscentos e cinquenta e um mil euros);
ii) aceitar a renúncia ao cargo de presidente do Conselho de Administração da Y, S.A. apresentada por M. L.;
iii) designar como novos membros do Conselho de Administração da Y, S.A., para completar o mandato 2021-2024, R. D., na qualidade de presidente, e P. B., na qualidade de vogal.
34. Do aumento de capital em € 51.000,00 (cinquenta e um mil euros), R. D. subscreveu € 50.000,00 (cinquenta mil euros), e uma nova acionista, M. T., mulher do contabilista e acionista M. C., subscreveu € 1.000,00 (mil euros).
35. O dinheiro com que R. D. subscreveu o aumento de capital proveio da venda de bens deixados à sua mãe, após a morte dos pais desta.
36. Na sequência da deliberação referida em 33), o capital social da sociedade ficou fixado em € 651.000,00 (seiscentos e cinquenta e um mil euros), representado por igual número de ações nominativas de € 1,00 (um euro) cada, distribuídas por seis acionistas:
─ M. L.: 398.026 ações;
─ R. D.: 248.974 ações;
─ M. C.: 1.000 ações;
─ J. E.: 1.000 ações;
─ P. B.: 1.000 ações; ─ M. T.: 1.000 ações.
37. Desde que renunciou à presidência do Conselho de Administração da Y, S.A., M. L. [embargada] passou a exercer aqui a função de gestora dos recursos humanos.
38. Desde 01/01/2021, M. L. [embargada] passou a auferir na Y, S.A. um salário de € 650,00, continuando a auferir atualmente o salário mínimo nacional.
39. A 23/04/2021, a agente de execução notificou a sociedade Y, S.A. da penhora das 597.000 ações pertencentes a M. L. [embargada], efetuada no âmbito do processo n.º 154/21.2T8VNF.
40. A 26/04/2021, por força da amortização imposta pelo pacto social, o Conselho de Administração da Y, S.A. deliberou amortizar as 597.000 ações pertencentes a M. L. [embargada], pelo respetivo valor nominal, a ser pago no fim do segundo exercício subsequente à amortização.
41. Nesse mesmo dia 26/04/2021, M. L. [embargada] teve conhecimento da deliberação de amortização.
42. Também a 26/04/2021, em reunião universal da Y, S.A., e ainda com a presença de M. L. [embargada], foi deliberado, por unanimidade, reduzir o capital social de € 651.000,00 (seiscentos e cinquenta e um mil euros) para € 54.000,00 (cinquenta e quatro mil euros), em consequência da amortização das 597.000 ações, ficando o capital social dividido da seguinte forma:
─ R. D.: 50.000 ações;
─ M. C.: 1.000 ações;
─ J. E.: 1.000 ações;
─ P. B.: 1.000 ações;
─ M. T.: 1.000 ações.
43. O pacto social da Y, S.A. no seu artigo 12.º, n.º 1, estabelece que “sem prejuízo de disposições legais diversas, são obrigatoriamente amortizadas pelo respetivo valor nominal as ações cujos títulos sejam penhorados, arrestados, ou envolvidos em qualquer providência judicial ou administrativa que possa implicar ulterior transmissão da titularidade das respetivas ações”.
44. A 07/05/2021, M. L. [embargada] requereu a sua insolvência, a qual foi decretada por sentença proferida a 18/05/2021.
45. Na relação de bens próprios que M. L. [embargada] apresentou na petição inicial que originou o processo de insolvência a que estes autos estão apensos, consta:
i) Verba n.º 1: saldo da conta de depósitos à ordem n.º ……..55, do Banco ..., S.A.: € 1.342, 53.
ii) Verba n.º 2: a contrapartida devida pela amortização das 597.000,00 que detinha na sociedade Y, S.A. representativas de 99,5% do capital social de € 600.000,00: € 597.000,00.
iii) Verba n.º 3: veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula HN, da marca Mercedes Benz: € 7.000,00.
iv) Verba n.º 4: Fração autónoma designada pela letra D, correspondente a uma habitação no ..º andar, com entrada pelo n.º .. de polícia, a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na rua …, n.ºs .. a … de polícia, da freguesia de ... (…, … e …), inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., descrito na CRP sob o n.º …/…-D: € 67.385, 91.
v) Verba n.º 5: Fração autónoma designada pela letra A, correspondente à cave e rés-do-chão, destinado a armazém e atividade comercial, sito na rua ..., com os n.ºs .., ... e …, da freguesia de ... (...), concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., que faz parte do prédio descrito na CRP sob o n.º ...- .../...: € 112.485, 60.
46. M. L. [embargada] e J. E. contraíram casamento no dia 17/09/2010, sem precedência de convenção antenupcial.
47. A 16/07/2014, veio a ser decretado o divórcio por mútuo consentimento de M. L. [embargada] e J. E., por decisão proferida pela Conservatória do Registo Civil de ..., no processo n.º …..
48. Na relação de bens que integram o património comum do ex-casal constituído pela embargada e seu ex-marido, apresentada por esta na petição inicial que originou o processo de insolvência a que estes autos estão apensos, consta:
i) Verba n.º 1: saldo da conta de depósitos à ordem n.º ……..490, do Banco ..., S.A.: € 54.222,28.
ii) Verba n.º 2: crédito de suprimentos de sócio sobre a sociedade comercial X, Spa- Lazer e Estética, Lda.: € 237.194,68.
iii) Verba n.º 3: quota no valor nominal de € 40.000,00 titulada por M. L. na sociedade comercial X, Spa- Lazer e Estética, Lda., representativa de 66,66% do capital social de 60.000,00: € 40.000,00.
iv) Verba n.º 4: vários bens móveis: € 9.985,00.
v) Verba n.º 5: Prédio urbano denominado lote .., sito na Rua …, n.º .., no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …-..., inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...: € 135.950,00.
49. A verba n.º 1 do facto 48) foi proveniente da venda dos títulos de “rendas crescentes Banco ...” que pertenciam ao pai da embargada.
50. A verba n.º 2 do facto 48) foi proveniente de dinheiro que o pai da embargada lhe doou em 2005/2006.
51. A verba n.º 3 do facto 48) foi paga com dinheiro que pertencia aos pais da embargada.
52. Na relação de credores e de créditos vencidos que a embargada apresentou na petição inicial que originou o processo de insolvência a que estes autos estão apensos, constam como credores M. G. [embargante] e J. L. [interveniente] e como valor dos créditos vencidos € 2. 294 614, 14 (dois milhões, duzentos e noventa e quatro mil seiscentos e catorze euros e catorze cêntimos).
53. A Administradora de Insolvência nomeada no âmbito do processo referido em 44) reconheceu créditos da insolvente no valor de € 3.321 867,25 (três milhões, trezentos e vinte e um mil oitocentos e sessenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos), um dos quais no valor de € 1. 000 126,89 (um milhão, cento e vinte e seis euros e oitenta e nove cêntimos), sob condição.
54. No período que mediou entre 2006 a 2020 o desempenho da sociedade Y, S.A. foi o seguinte:
ANO CAPITAL PRÓPRIO CAIXA E BANCOS EBIT
2006 € 2.030.492,92 € 834.461,01 € 79.597,20
2007 € 2.089.482,58 € 436.398,07 € 77.928,37
2008 € 1.646.846,72 € 374.968,39 € 166.476,26
2009 € 1.677.674,63 € 381.764,89 € 40.001,43
2010 € 1.720.152,81 € 523.276,47 € 87.116,62
2011 € 1.733.171,97 € 771.073,67 € 39.503,53
2012 € 1.687.520,09 € 460.677,12 € 28.065,56
2013 € 1.721.288,99 € 398.594,85 € 74.475,39
2014 € 1.793.652,50 € 373.904,83 € 138.417,35
2015 € 1.893.782,78 € 468.671,32 € 169.386,97
2016 € 1.971.405,32 € 336.674,28 € 138.666,22
2017 € 2.022.678,16 € 325.861,95 € 105.915,70
2018 € 2.071.044,05 € 285.458,59 € 94.865,87
2019 € 2.141.437,45 € 362.639,91 € 129.083, 30
2020 € 2.186.130,55 € 1.736.195,23 € 95.566,34
55. No ano de 2019, o desempenho da sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda., foi o seguinte:
ANO CAPITAL PRÓPRIO CAIXA E BANCOS EBIT
2019 € - 289.957,23 € 6.876,89 € 15.842,29
56. O imóvel que a sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda. adquiriu, referido em 1) encontrava-se em 2019 arrendado.
57. A fração da verba n.º 5 do facto 45) encontra-se ocupada pela sociedade W-Sociedade Imobiliária, Lda., que paga uma renda mensal de € 657, 16 (seiscentos e cinquenta e sete euros e dezasseis cêntimos).
*
B. Factos não provados

Com interesse para a decisão do presente pleito não resultaram provados os seguintes factos:
a) As 597.000 ações que M. L. [embargada] detinha na sociedade Y, S.A. têm um valor não inferior a € 4.088 000,00 (quatro milhões e oitenta e oito mil euros).
b) O imóvel detido pela sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda., referido em 1) dos factos provados tem um valor a rondar os € 500.000,00 (quinhentos mil euros).
c) A quota que M. L. [embargada] detém na X, Spa- Lazer e Estética, Lda. tem um valor real não inferior a € 300.000,00 (trezentos mil euros).
d) A fração autónoma indicada na al. iv) do facto provado em 45) tem um valor mínimo de mercado de € 98.078,86 (noventa e oito mil, setenta e oito euros e oitenta e seis cêntimos).
e) A fração autónoma indicada na al. v) do facto provado em 45) tem um valor mínimo de mercado de € 168.728,40 (cento e sessenta e oito mil, setecentos e vinte e oito euros e quarenta cêntimos).
f) O prédio indicado na al. v) do facto provado em 48) tem um valor mínimo de mercado de € 203.925,00 (duzentos e três mil, novecentos e vinte e cinco euros).
g) A embargada tem ocultado o dinheiro que ainda lhe restam dos cerca de € 2.000 000,00 (dois milhões de euros) que sonegou às heranças dos seus pais e o dinheiro que angariou como acionista na sociedade Y, S.A. e como sócia na sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda..
h) A embargada, juntamente com a colaboração de R. D., J. E., J. L. [interveniente], M. C., M. T. e P. B., levaram a cabo um plano para não pagar à embargante o valor que resultou da decisão proferida no processo n.º 589/14.7TBBRG.
i) A deliberação de 26/04/2021, tomada pelo Conselho de Administração da Y, S.A., de amortizar as 597.000 ações nominativas detidas pela embargada, com a consequente extinção das mesmas e a redução do capital social da sociedade, foi concertada entre a embargada e os acionistas daquela e intencionalmente realizada com o exclusivo propósito de anular a conversão em penhora do arresto que incidia sobre tais ações desde agosto de 2013, e de diminuir o valor do seu património de forma a colocá-la numa aparente situação de insolvência.
j) A interposição dos processos referidos em 21) e 23) dos factos provados foi uma estratégia da embargada, juntamente com J. L. [interveniente], para sustentar e obter a sua insolvência e para colocar a salvo a quota que detém na sociedade X, Spa-Lazer e Estética, Lda. de uma eventual penhora que a embargante pudesse vir a fazer.
k) A embargada continua a deter a maioria do capital social da Y, S.A., e mantém-se na gestão e direção da sociedade, ainda que formalmente através do filho R. D..».

2. Apreciação do mérito do recurso:

2.1. Quanto à decisão de revogação da sentença que decretou a insolvência:
2.1.1. Fundamentos da decisão recorrida, do recurso e da resposta:

A sentença proferida nos embargos à insolvência revogou a sentença prévia que decretara a insolvência da devedora (a seu pedido), apesar de reconhecer que o ativo da requerente de insolvência/embargada (que julgou provado no valor global de € 1 189 598, 50) era inferior ao valor do passivo por si indicado como vencido (no valor de € 2 294 614, 44) e ao passivo reconhecido pelo administrador da insolvência (no valor global de € 3 321 867, 25, sendo o valor de € 1 000 126, 89 sujeito a condição), por ter entendido que a devedora/requerente/embargada, na data de 07.05.2022 em que se apresentou à insolvência, não estava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, nos termos do art.3º/1 do CIRE (para o que entendeu que não bastaria a inferioridade do ativo em relação ao passivo mas seria necessário que se depreendesse que não tinha condições para pagar as dívidas, nomeadamente por acesso ao crédito, para o que deveriam também ser valoradas as condições do incumprimento), tendo em conta: que no dia 06.03.2021 a embargada conseguia obter o valor de € 700 000, 00, o que denotava que tinha acesso a crédito particular ou bancário (tendo em conta que no património não existia esta quantia e que o pagamento foi proposto de forma imediata); que a embargada auferia um rendimento mensal (de salário e renda) de € 1 300, 00; que a embargada tinha uma quota na sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda. que era titular de um imóvel que valia o valor mínimo de € 342 340, 00; que, apesar de não se terem provado os valores de mercado das duas frações imóveis de propriedade própria da devedora e da fração que integrava os bens comuns do extinto casal, que o valor patrimonial dos imóveis está subavaliado; que R. D., filho da embargada, a 19/03/2021 subscreveu € 50 000, 00 no capital da Y, SA, com dinheiro que proveio da venda de bens deixados à sua mãe após a morte dos pais desta.
O recurso de apelação sobre esta decisão (conclusões 1 a 15) limitou-se a defender que os factos provados não permitem concluir que a devedora/embargada dispunha de património e de crédito suficientes para solver o seu passivo, tendo em conta: que o passivo provado é superior ao ativo, como reconheceu a própria sentença recorrida; que os factos provados de 26 a 31 não permitem concluir que a recorrente tinha disponibilidade atual de acesso ao crédito, uma vez que os factos referem-se a março de 2021 e apenas a uma solvência parcial do passivo (em que obteria, no global de € 1 050 000, 00, com a ajuda do seu ex-marido) e a instauração do processo de insolvência é posterior e o tribunal não apurou quaisquer factos que permitissem concluir que o acesso ao crédito se manteria disponível; que, de qualquer forma, ainda que se admitisse a hipótese da embargada continuar a deter acesso ao crédito de € 1 050 000, 00, ainda assim o ativo era inferior ao passivo de pelo menos € 2 294 614, 14, quando não ao montante de € 3 321 867, 25 dos créditos reclamados e reconhecidos pela administradora da insolvência.
Na resposta ao recurso da devedora/embargada, a embargante opôs-se ao recurso, defendendo em síntese: que a última proposta de pagamento apresentado pela embargada à embargante significa que esta tinha disponibilidade e liquidez imediata de € 700 000, 00 e que tinha crédito junto da banca relativamente ao restante valor até perfazer € 1 050 000, 00 (sobretudo quando já sabia nesta altura que ainda tinha que pagar € 996 212, 93 ao irmão), matéria esta que considera irrefutável para concluir a sua possibilidade total de pagamento; que a pretensa ajuda do ex-marido por si defendida não correspondia a responsabilização pelo crédito mas a uma colaboração para a sua obtenção junto dos bancos, face aos seus conhecimentos, segundo o seu depoimento, sendo que tendo-se apurado que este continua a ser seu amigo, não se percebe a razão pela qual não continuaria a ajudá-la; que não ficou demonstrado que tivesse havido alteração de disponibilidades entre a data da última proposta de 6.3.2021 e a data em que se apresentou à insolvência a 7.5.2021; que não vale o critério puramente aritmético para defender que ainda que tivesse acesso ao crédito de € 1050 000, 00 era manifesto que o ativo era inferior ao passivo de, pelo menos, € 2 294 614, 14, tendo em conta o contexto dos demais créditos (o do interveniente decorreu de transação com a embargada; o crédito condicional decorreu da sua subscrição de uma livrança, como avalista da Y, SA, sendo que a solidez financeira não torna expectável que a embargada venha a responder), o valor do passivo que acresce ao ativo (€ 1 105 015, 94) e as razões e os fatores já ponderados pelo Tribunal a quo para concluir pela solvência da embargada (o seu salário e renda mensal; o valor de € 50 000, 00 investidos pelo filho no aumento de capital da sociedade Y, SA, o valor do imóvel de que é proprietária a X SPA, Lda., a sua titularidade de mais duas frações no seu património próprio e de uma meação no património comum que tem uma fração imóvel, o valor superior das 597 000 ações , face aos factos 7, 8 e 54).

2.1.2. Apreciação do recurso:

2.1.2.1. Enquadramento de direito:

A recorrente deste recurso, nos termos e para os efeitos do art.639º do C.P. Civil, não invocou qualquer erro na aplicação das normas (e do entendimento doutrinário ou jurisprudencial feito sobre as mesmas) mas invocou um erro de subsunção dos factos provados ao direito, invocação esta que delimita o objeto de reapreciação deste Tribunal ad quem.
Assim, «É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado em cumprir as suas obrigações vencidas» (art.3º/1 do CIRE). Face às prescrições expressas desta previsão normativa e face aos entendimentos doutrinário e jurisprudencial que têm sido defendidos sobre a mesma, podem assentar-se nos seguintes pressupostos de aplicação da norma:
Por um lado, as obrigações do devedor em relação às quais deve ser apurada a sua possibilidade ou impossibilidade de solvência são, restritamente, apenas aquelas que já se encontrem vencidas. Assim, não é suficiente para permitir a declaração de insolvência a existência ampla de obrigações exigíveis ao devedor mas que ainda não se encontram vencidas (1).
Neste âmbito, todavia, em relação às obrigações vencidas, existem divergências em relação à suficiência ou não de uma situação de mora: Catarina Serra defende que basta que exista uma situação de simples mora no cumprimento das obrigações vencidas (2); Alexandre Soveral Martins refere que «não basta a mora para haver impossibilidade de cumprir, pois pode tratar-se de um mero atraso momentâneo» (3).
Por outro lado, a impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas não tem que abranger a sua totalidade mas é suficiente que se refira à sua generalidade, nem depende do seu valor, sem prejuízo da discussão da relevância ou irrelevância de atendimento de valores insignificantes para o decretamento da insolvência, matéria em que existe uma discordância doutrinária.
Maria do Rosário Epifânio refere «a doutrina tem entendido desde logo que a impossibilidade de cumprimento relevante para efeitos de insolvência não tem que dizer respeito a todas as obrigações do devedor. Pode até tratar-se de uma só ou de poucas dívidas, exigindo-se apenas que a(s) dívida(s) pelo seu montante e pelo seu significado no âmbito do passivo do devedor seja(m) reveladora(s) da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.» (4).
Catarina Serra defende que «para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas. (…) tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor possa cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir).» (5).
Alexandre de Soveral Martins refere: «a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas não significa que se tenha de fazer a prova imediata de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações. Basta a prova imediata que o devedor não consegue cumprir as obrigações vencidas que, por sua vez, permitam ao julgador presumir que o devedor também não tem possibilidade de cumprir as restantes. (…).Mas, por outro lado, não basta que não consiga cumprir pontualmente uma parte insignificante das suas obrigações vencidas» (6).
Por fim, a possibilidade ou impossibilidade de solvência das obrigações não tem um significado jurídico no âmbito da extinção das obrigações (arts.790º ss do C. Civil) mas tem um significado financeiro e afere-se, em particular, pela liquidez do ativo do devedor e pelas condições deste de acesso ao crédito para a satisfação das suas obrigações (de forma imediata ou em prazo julgado razoável).
Maria do Rosário Epifânio refere «pode até acontecer que o passivo seja superior ao ativo mas não exista uma situação de insolvência, porque há facilidade de recurso ao crédito para satisfazer as dívidas excedentárias. E, por outro lado, pode acontecer que o ativo seja superior ao passivo vencido, mas o devedor se encontre em situação de insolvência por falta de liquidez do seu ativo (é dificilmente convertido em dinheiro).», anotando, em referência a Menezes Leitão, que «foi adotado o critério de fluxo de caixa, de acordo com o qual “o devedor é insolvente logo que se torna incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que elas se vencem”», em referência, v.g., a Abreu Coutinho, «que ativo líquido significa, por ex., dinheiro em caixa, depósitos bancários vencidos, produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro» (7).
Catarina Serra, assinalando que a insolvência decorrente da impossibilidade de cumprir não coincide necessariamente com uma situação patrimonial negativa, explica «Como efeito, pode muito bem verificar-se a primeira sem se verificar a segunda: não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez. E pode verificar-se a segunda sem se verificar a primeira: não obstante não ter património suficiente para cumprir as suas obrigações, o devedor mantém a capacidade de cumprir por via do crédito que lhe é disponibilizado.» (8).
Alexandre de Soveral Martins refere «Do que se trata, isso sim, é de não ter meios para cumprir as obrigações vencidas. Meios que o devedor não tem porque nem sequer consegue obtê-los junto de terceiros.» (9).

O Ac. STJ de 24.01.2006, proferido no processo nº05A3958, relatado por Fernando Magalhães, conclui,

«- É considerada em situação de insolvência a empresa que se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, em virtude de o seu activo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível (art.º 3º CPEREF).
- O que verdadeiramente caracteriza a insolvência é a insuficiência do activo líquido face ao passivo exigível.
- O devedor pode ser titular de bens livres e disponíveis de valor superior ao activo, e mesmo assim, estar insolvente por esse activo não ser líquido e o devedor não conseguir com ele cumprir pontualmente as suas obrigações.» (10).

O Ac. RL de 20.05.2010, proferido no processo nº2509/09.1TBPDL-2, relatado por Farinha Alves, sumariou:
«Deve ser considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas.
A situação de insolvência da ora apelante é evidenciada pela dimensão do passivo reconhecido, sem que tenham ficado demonstrados pagamentos significativos, pela falta de informação em relação aos resultados da sua actividade, sabendo-se que não permitiram fazer face ao pagamento do passivo, e pela ausência de crédito, quer junto da banca, quer dos fornecedores.
E é particularmente evidenciada pela dimensão e antiguidade do crédito da ora apelada, pelo incumprimento quase total dos dois planos de pagamento da dívida que foram acordados entre as partes, sendo que o último já teve como contrapartida a extinção da instância em anterior processo de insolvência, e ainda pela inexistência de qualquer pagamento, ou proposta de pagamento deste crédito, posterior à instauração da presente acção.» (11).

2.1.2.2. Subsunção dos factos ao direito:

Neste contexto referido em III- 2.1.2.1, importa apreciar se os factos provados permitem afirmar que a devedora está (como defende a mesma) ou não está (como defende a decisão recorrida) impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas: respetivamente, por não ter ou ter recurso ao crédito; por, ainda que tivesse, este e o ativo serem inferiores ou não ao passivo (conclusões 1 a 15).

2.1.2.2.1. Obrigações vencidas:

Para a apreciação das obrigações vencidas da devedora/embargada, verifica-se que não se encontra contestado neste recurso o valor das suas dívidas vencidas em favor dos seus irmãos (embargante e interveniente passivo), em relação às quais se deve aferir a sua possibilidade de satisfazer o seu cumprimento pontual.
Na data da apresentação à insolvência e de prolação da sentença revogada, a devedora tinha vencidas as obrigações para com os seus dois irmãos do capital global de € 1 992 425, 86 (€ 996 212, 93 em favor da embargante e € 996 212, 93 em favor do interveniente passivo), acrescido dos juros de mora vencidos desde a sua citação em cada uma das ações que correram contra si instauradas por cada um dos irmãos (a primeira instaurada em 2014 e a segunda instaurada em 2021).
Esta dívida foi liquidada pela devedora embargada na data da instauração da ação de insolvência de 07.05.2021 no valor global vencido em € 2 294 614, 14 (integrado: pelo capital de € 996 212, 92 * 2 credores; pelos juros de mora sobre o capital devido à credora M. G., vencidos no valor de € 289 901, 69 na data de 07.05.2021; pelos juros de mora sobre o capital devido ao credor J. L., no valor de € 12 286, 61 na data de 07.05.2021), valor integrado no valor total de dívidas de € 3 321 867, 25 reconhecido pelo administrador da insolvência (onde se integra ainda o crédito condicional de € 1 000 126, 89, que não se conhecem factos que permitam considerar que se encontra vencido) (factos provados de 13 a 18 e a 23; factos provados em 52 e 53, aditado pelo teor do documento junto pelo administrador da insolvência a 28.06.2021, no processo de insolvência).
A esta dívida vencida a 07.05.2021, caso tenham sido reclamados juros de mora vincendos sobre o capital, acresce ainda por ano a taxa de 4% de juros sobre cada um dos valores do capital de € 996 212, 92- o que corresponde ao valor global de € 79 697,03 (€ 39 ..., 51* 2).

2.1.2.2.2. Possibilidade de solver as dívidas vencidas:

Para a apreciação da capacidade de solvência da devedora, verifica-se: que não se encontram impugnados os factos integrativos do património da devedora e dos seus valores fiscais e nominais (tal como a falta de prova de que este património era constituído por outros bens e que os bens tinham valores superiores), nem os factos a partir dos quais o Tribunal a quo fez presumir a existência de condições de solvência das dívidas vencidas; que encontra-se apenas contestada a presunção retirada dos factos provados em 26 e 21 e a subsunção jurídica dos factos provados ao direito.
De facto, a decisão recorrida, conforme se transcreveu III-1 supra, integra matéria de facto provada e matéria de facto não provada, em referência aos fundamentos dos embargos.
Ora, os fundamentos dos embargos, cujo ónus de prova dos factos novos incumbe à embargante (art.342º do C. Civil), fundaram-se centralmente: numa alegação de factos com vista a defender que os bens próprios e comuns da embargante tinham valores superiores aos valores por si indicados, de que esta tinha mais valores na sua disposição para além dos provados e de que praticou com demais pessoas atos simulados e fraudulentos para aparentar uma situação de insolvência, matéria esta julgada totalmente não provada, sem que a recorrida/embargante tivesse impugnado a mesma na resposta ao recurso, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas no mesmo pela recorrente, nos termos dos arts.640º e 636º/2 do C. P. Civil; numa alegação que havia 3 bens indicados pela devedora como comuns e que são próprios (por terem provindo de doações do pai) e que esta realizou propostas de pagamento da dívida à embargante, onde estavam contemplados pagamentos imediatos parciais, dois meses antes da insolvência, factos estes julgados provados e não impugnados pela recorrente, nos termos dos arts.639º e 640º do C. P. Civil.
Em referência à decisão residual de facto e à sua apreciação de direito, a recorrente limitou-se a defender: que os factos provados de 26 a 31, conjugados com os demais, não permitem concluir que tenha condições de acesso a crédito (por si referidos em € 1 050 000, 00 quando a decisão recorrida ponderou apenas o valor proposto para pagamento imediato); que, de qualquer forma, ainda que se julgasse que tinha acesso ao crédito no valor da proposta de pagamento, o ativo seria inferior ao passivo.
Importa apreciar, assim, em referência a estes fundamentos do recurso e apesar da conclusividade de parte dos mesmos, se a matéria provada permite concluir que a devedora tem possibilidade de pagamento atual das dívidas vencidas, através do acesso ao crédito e através do seu património líquido.
Numa primeira abordagem, examinando os factos provados a partir dos quais a decisão recorrida extraiu a presunção judicial de que a devedora tinha acesso ao crédito de € 700 000, 00 (factos provados de 26 a 31) e examinando os fundamentos da recorrente e da recorrida para contestar e defender presunção em referência à última proposta global de pagamento de € 1 050 000,00 (falta de prova da continuação do apoio do ex-marido e desnecessidade desta face à qualidade amiga da devedora com que este se colocou na audiência), verifica-se que apenas podem ser apreciados os factos provados e que estes não permitem concluir qualquer capacidade de solvência atual de € 1050 000, 00 ou da totalidade da dívida.
De facto, e por um lado, nesta reapreciação pedida: não podem ser ponderados os factos alegados pela recorrente e pela recorrida no recurso e na resposta que não se encontrem integrados na matéria de facto provada (e em relação aos quais não foi pedido qualquer aditamento), como as partes pretenderam fazer; nem é atendível, também, a invocação da recorrente/embargada que o Tribunal a quo não apurou a manutenção da possibilidade de acesso ao crédito na data da instauração da insolvência, quando a embargada/recorrente não alegou na contestação aos embargos que não mantinha acesso às condições que permitiram apresentar as propostas alegadas pela embargante e que constam dos factos provados nos factos 26 a 31.
Por outro lado, as propostas de pagamento apresentadas pela embargada à embargante, dois meses antes da instauração da ação de insolvência (que previram pagamentos sempre inferiores aos valores totais da dívida vencida nessa data, em cerca de € 680 000, 00 e, depois, em cerca de € 280 000, 00 e € 230 000, 00; que previram, quando as propostas de pagamento global subiram para € 1 000 000, 00 e para € 1 050 000, 00, pagamentos prestacionais de € 300 000, 00 e de € 350 000, 00 durante 5 anos): não permitem presumir qualquer possibilidade de pagamento imediato e/ou da totalidade da dívida da embargada para com a embargante (como conclui a recorrida); ainda que permitisse presumir a possibilidade de acesso ao crédito desses valores (cuja extinção da possibilidade não foi alegada e provada), presunção esta controversa uma vez que a apresentação de uma proposta de pagamento pode não significar real possibilidade de pagamento e cumprimento, esta apenas poderia ser atendida como disponibilidade a curto prazo do valor de € 700 000, 00 (proposto para pagamento imediato) atendido pelo tribunal a quo ou € 800 000, 00 (se se atendesse à proposta de pagamento de mais € 100 000, 00 em 6 meses), uma vez que o restante valor objeto da proposta e projeto de pagamento estava previsto a realizar em prestações e durante 5 anos, condições que não foram aceites pela credora/embargante.
Numa segunda abordagem, examinando os factos provados integrativos do ativo da devedora (factos provados em 45 e 48, 49 a 51) e os factos conexos aos mesmos (factos provados em 54 a 57), verifica-se que estes, ainda que se atendesse poderem ser acrescidos do valor de disponibilidade de acesso ao crédito referido (€ 700 000, 00 ou € 800 000, 00), não eram suficientes para concluir pela possibilidade atual líquida de satisfação integral das dívidas vencidas.
Nesta sede, importa preliminarmente registar que na apreciação sobre as possibilidades da devedora para a satisfação integral das suas dívidas vencidas, no quadro de direito enunciado em III-2.1.1. supra, o Tribunal: apenas pode socorrer-se de factos concretos provados e presumidos (e não conclusões genéricas e vagas) e não pode recorrer a suspeições; ainda que possa socorrer-se de presunções judiciais nos termos gerais (art. 351º do C. Civil e art.607º/4 do C. P. Civil), encontra-se limitado, neste processo de extrair presunções, quando os factos foram expressamente alegados, foram julgados não provados e a decisão não foi objeto de impugnação de facto no recurso, nos termos e para os efeitos do art.640º do C. P. Civil.
Ora, neste contexto, verifica-se, por um lado, que o ativo pessoal da devedora e a sua meação nos bens comuns do dissolvido casal foi julgado, na decisão de facto e de direito recorrida, com um valor patrimonial provado de € 1 189 598, 50.

O Tribunal, em relação a este património e valor, não tem elementos suficientes para presumir judicialmente que o valor real dos bens é significativamente superior e qual o valor superior do património. De facto:

a) Em relação às frações imóveis (relativamente às quais foram alegados valores de mercado superiores, julgados não provados total ou parcialmente), referidas na decisão recorrida e na resposta ao recurso:

Ainda que o Tribunal pudesse presumir, como fez genericamente o Tribunal a quo, que as frações imóveis que integram o património próprio e comum da devedora teriam valores de mercado superiores aos valores patrimoniais provados (presunção esta controversa, tendo em conta os factos não provados, a falta de conhecimento dos anos a que se reporta a avaliação do valor patrimonial das frações, a fração da verba nº5 dos bens próprios encontra-se arrendada), não se poderia considerar que esta presunção genérica poderia ser indefinida e que as referidas frações e a meação do património comum pudessem ter um valor global acrescido igual ou superior ao valor de acréscimo alegado pela embargante de € 120 923, 23 (a embargante alegou valores das frações próprias provadas no facto 45 que correspondem a um valor de mais € 86 935, 73 e um valor da fração comum de mais € 67 975, 00, alegação atendível em relação ao património da devedora no valor de metade) e que foi integralmente julgado não provado (em d), e) e f) dos factos não provados).
b) Em relação ao valor das ações e da participação social (relativamente às quais foram alegados valores de mercado superiores e julgados não provados total ou restritamente):
Apesar do Tribunal a quo ter ponderado que a sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda., na qual a devedora/embargada tem uma quota com o valor nominal de € 40 000, 00 (num capital global de € 60 000, 00), é titular de um imóvel com valor mínimo de € 342 340, 00, ponderação que aparentemente realizou para valorizar o valor da quota, não é possível presumir o valor real e de mercado da quota no valor nominal de € 40 000, 00 da sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda. e que este é significativamente superior em virtude deste facto, tendo em conta: que o valor de mercado da quota (alegado em valor não inferior a € 300 000, 00) foi julgado não provado; que a embargada/devedora alegou na sua contestação dos embargos que o valor do imóvel era inferior ao valor do passivo da sociedade indicado na prestação de contas junta pela embargante (considerado em valor superior a € 500 000, 00), matéria esta instrumental não sujeita a prova e a decisão pelo Tribunal a quo (e cuja apreciação oficiosa da omissão fica prejudicada, nos termos e para os efeitos do art.662º/2-c) do C. P. Civil, tendo em conta que o facto essencial do valor da quota foi julgado não provado e não foi apresentada impugnação de facto sobre esta decisão, nos termos do art.640º do C. P. Civil); que o facto provado em 55, respeitante apenas ao capital, caixa e bancos e EBIT da sociedade em 2019, é insuficiente para presumir a situação global e atual (ativa e passiva) da sociedade e o valor da quota no mercado.
Apesar da recorrida ter pretendido defender no recurso que o valor da contrapartida das 597 000, 00 ações é superior ao valor nominal: não foi alegada e provada a instauração da qualquer ação judicial de impugnação do ato de amortização das ações pelo valor nominal; ainda que se tivesse alegado e provado a instauração desta ação, também não existiriam elementos objetivos dos quais se pudesse extrair a presunção de um valor superior e concreto das ações (tendo em conta: que a embargante alegou o valor real das ações, tal como a fraude na amortização das mesmas, tendo os factos em causa sido julgados não provados e tendo sido julgado provado que o pacto social da sociedade previa a amortização das ações pelo seu valor nominal- acto provado em 43 e factos não provados em a) e i)), decisão esta que não foi impugnada pela recorrida neste recurso, nos termos do art.640º do C. P. Civil; que o facto provado em 8 reportado a 2007, ainda que conjugado com o facto 54 reportado ao período de 2006-2020, é absolutamente insuficiente para fazer presumir o valor real das ações amortizadas em 2021 e o valor real da contrapartida, não só pelo conteúdo e data dos mesmos- o facto 54, respeitante a capital, caixa e bancos e EBIT, não permite conhecer as obrigações e passivo da sociedade, nem a sua situação de mercado; mas também porque em relação a estes factos a devedora/embargada alegou factos instrumentais não sujeitos a prova- que entre 2007 e 2020 o volume das vendas decresceu para cerca de metade-, prova esta que fica prejudicada atualmente face à falta de impugnação de facto dos factos essenciais não provados).
Por outro lado, o ativo provado não tem liquidez imediata na sua maior parte, uma vez que, para além das frações imóveis e participação social que integra, os direitos de crédito que correspondem a 70% do ativo e do valor patrimonial apurado não estão atualmente disponíveis, nem num prazo que se pudesse julgar razoável.
De facto, o valor do crédito de € 597 000, 00 da devedora sobre a sociedade Y, SA, devido pela amortização das ações, não corresponde a um saldo atual disponível mas a um direito de crédito declarado com vencimento no final de exercício do ano de 2023 (factos provados em 45-ii), 40), cujo cumprimento ou cobrança total ou parcial não se pode presumir.
Por sua vez, o valor do crédito de suprimentos de € 237 194, 68 respeita à sociedade X, Spa- Lazer e Estética, Lda. (factos 48-ii e 49), e não se encontra ainda cobrado.
Assim, o ativo provado, ainda que fosse acrescido do atendimento da possibilidade da devedora recorrer ao crédito a curto/médio prazo de € 700 000, 00/€ 800 000, 00: atingiria um valor global bruto de € 1 889 598, 50/€ 1 989 598, 50, inferior em € 400 00, 00/€ 300 000, 00 ao valor mínimo dos créditos já vencidos; mas esse valor corresponderia, ainda, a um valor ativo líquido manifestamente inferior, face ao exposto neste parágrafo antecedente, do qual se pode concluir que a devedora não tem disponíveis no seu património nem o valor das frações e da quota social, nem o valor dos créditos de € 834 194, 68 sobre as sociedades (sendo que o valor de € 597 000, 00 apenas se vencerá a 31.12.2023), valores estes do ativo que não podem concorrer, atualmente ou num prazo cujos elementos permitam considerar poder ser razoável, para a satisfação da dívida global vencida.
Para esta ponderação da liquidez de património para pagamento das dívidas não acrescem de forma significativa e relevante: nem o rendimento mensal da devedora de € 1 300, 00 (de salário e renda); nem o investimento que R. D., filho da embargada, subscreveu € 50 000, 00 no capital da Y, SA a 19/03/2021, com dinheiro que proveio da venda de bens deixados à sua mãe após a morte dos pais desta (factos 33, 34 e 35), uma vez que estes factos não permitem presumir judicialmente a disponibilidade, para além do valor do património e valores provados, a existência atual de maior ou mais valioso património líquido da devedora/embargada.
Desta forma, não se encontrando demonstrado que a devedora dispõe de liquidez e de crédito para pagar a dívida vencida, uma vez que o valor do seu património líquido, ainda que acrescido de capacidade de crédito de € 700 000, 00, é inferior ao passivo vencido, deve ser revogada a decisão recorrida e manter-se a decisão de insolvência.

2.2. Quanto à decisão de condenação em litigância de má-fé:

2.2.1. Fundamentos da decisão recorrida, do recurso e da resposta:
A decisão recorrida, em referência ao regime legal do art.542º do C. P. Civil, considerou que estavam preenchidos os pressupostos para a litigância de má-fé, nos termos dos seguintes fundamentos:
«No caso vertente, da matéria de facto provada, é possível extrair que a embargada, de forma consciente, alterou a verdade dos factos, fazendo do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal. Ou seja, a embargada propôs uma ação com o fim de obter a sua declaração de insolvência, que, inclusive, logrou obter, alegando, por um lado, factos que sabia não serem verdade (nomeadamente, factos relativos à constituição do seu património próprio) e que acabou por confessar no seu depoimento de parte, e, por outro lado, omitindo outros que eram relevantes para a decisão da causa [nomeadamente, os factos que se provaram em 28) e 29)].
Assim, é patente a sua má-fé, sendo a sua conduta intencional e consciente e integrando-se nas als. b) e d) do n.º 2 do artigo 542.º do Código do Processo Civil.».
A recorrente, no seu recurso, defendeu: que a qualificação de uma parte dos bens comuns como próprios não pode ser objeto deste processo onde não é parte o ex-cônjuge, nem a posição da embargante pode ser julgada contrária à verdade sem essa possibilidade de contraditório, sendo que, de qualquer forma, os factos que sustentaram a qualificação foram confessados pela própria embargada na audiência, o que inviabiliza a consideração de ação consciente; que não faz sentido considerar que teve má-fé pela omissão dos factos 28 e 29, uma vez que as propostas decorreram de negociações mantidas pelo ex-marido e filho, como referiu na sua contestação onde aceitou o seu conhecimento apenas da proposta prévia do pagamento de € 600 000, 00 (provada no facto 26) (conclusões 16 a 26).
A recorrida opôs-se, defendendo na resposta a decisão recorrida, por entender: que a embargada, de forma consciente e intencional, identificou as verbas 1 a 3 do facto 48 como comuns, num valor global de € 331 416, 96, com a consciência e intenção de diminuir o seu ativo e ser declarada insolvente; que a embargada, ao omitir a alegação dos factos que vieram a ser julgado provados nos factos 28 e 29 e ao contestá-los expressamente na contestação, faltou deliberadamente à verdade e ao dever de cooperação.

2.2.2. Apreciação do recurso:

Nos termos do art.542º/2 do C. P. Civil, o legislador previu como pressupostos de que depende a qualificação de má-fé de qualquer uma das partes, a verificação dos seguintes pressupostos objetivos e subjetivos:

«Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.».
Neste regime legal, verifica-se que o dolo ou a negligência na atuação processual prevista no regime do art.542º/2 do C. P. Civil refere-se à conduta da própria parte e não à conduta do seu advogado, cujo comportamento é objeto apenas da tutela prevista no art.545º do C. P. Civil. Ora, pode suscitar-se uma dúvida fundada na qualificação do comportamento da parte, quando há discrepância entre o alegado no seu articulado subscrito por advogado e os termos em que a parte explica ou informa o facto quando ouvida pessoalmente no Tribunal.
Reapreciando a decisão recorrida, mediante as posições assumidas pelas partes, os factos provados e o regime legal, verifica-se que a decisão não pode ser mantida, ainda que por razões parcialmente distintas daquelas sustentadas no recurso em relação aos dois núcleos de factos em relação aos quais o Tribunal a quo considerou preencherem o disposto no art.542º/2-b) e d) do C. P. Civil.
De facto, e por um lado, e quanto à qualificação de bens próprios ou comuns, em particular no regime supletivo da comunhão de adquiridos (aplicável ao casamento da devedora/embargada com o seu marido, de quem se divorciou, face à certidão do assento de nascimento junta a fls.39 e 40 dos autos de insolvência), face às regras dos arts.1721º ss do C. Civil, de aplicação complexa, verifica-se: que, em relação ao saldo bancário e à quota social provados nos factos 48-i) e iii), que se presumem comuns, nos termos do art.1725º do C. Civil, os factos 49 e 51 não são suficientes para ilidir a presunção e qualificar estes bens como bens próprios, de acordo com alguma das previsões dos arts.1722º ss do C. Civil, uma vez que a origem do dinheiro (património do pai ou dos pais da devedora) não permite conhecer a qualidade jurídica da transferência monetária (v.g. doação à filha ou ao casal; outra causa); que, apesar do ativo referido em 48-ii) ter decorrido de dinheiro doado pelo pai à devedora em 2005/2006, conforme se julgou provado, este facto foi julgado provado com base na confissão da própria devedora/embargada, na audiência de 26.02.2022 (fls.624 ss), razão pela qual não é possível imputar, com segurança, a existência de dolo ou negligência grave na discrepância entre a alegação do bem como comum e a sua possibilidade de qualificação como próprio, nos termos do art.1722º/2-b) do C. Civil.
Por outro lado, não se pode considerar que a falta de alegação dos factos 28 e 29 pela insolvente corresponda a uma omissão de factos que lhe fosse indispensável alegar, uma vez: que dos mesmos apenas foi extraída pelo Tribunal a quo uma presunção de possibilidade de acesso ao crédito em março de 2021; que este Tribunal ad quem considerou, não só que a presunção judicial de acesso ao crédito era controversa (uma vez que uma proposta de pagamento pode não significar real possibilidade de pagamento e cumprimento), mas como, ainda que da mesma se pudesse presumir uma possibilidade real de acesso, a curto ou médio prazo, a um crédito de € 700 000, 00/€ 800 000, 00, esses valores não eram suficientes para, em conjugação com a globalidade dos factos, concluir pela possibilidade da insolvente satisfazer a totalidade da dívida vencida.
Desta forma, não podendo julgar-se preenchidos, face a estes fundamentos, as previsões do art.542º/2-b) e d) do C. P. Civil, deve revogar-se a condenação da devedora/embargante em litigância de má-fé.

2.3. Quanto à decisão de custas:

A recorrente pediu, caso se mantivesse a sentença recorrida, que se reformasse a mesma, de forma a que não se aplicasse o critério base do art.6º/1 do RCP mas se aplicasse o mecanismo da dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente nos termos do art.6º/7 do RCP (conclusões 27 e 28).
Ora, sendo revogada a decisão recorrida, falece o pressuposto de que dependeria a reapreciação da decisão de condenação da mesma em custas.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as juízes da 1ª Secção Cível e Comercial do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em revogar a sentença recorrida.
*
Custas dos embargos e da apelação pela embargante/recorrida (art.527º do C. P. Civil), com redução da taxa de justiça remanescente a 1/5 nos embargos e com dispensa da taxa de justiça remanescente no recurso, face à ponderação da complexidade da causa e do recurso e à posição processual da parte (art.6º/7 do RCP).
*
Guimarães, 30.06.2022
Assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta

Alexandra Viana Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade




1. Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Almedina, Outubro de 2020, pág.27, nota 40. Ana Prata, Jorge Carvalho e Rui Simões, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, 2013, págs.20 e 21.
2. Catarina Serra, in Lições da Insolvência, Almedina, 2019, Reimpressão, pág.57.
3. Alexandre de Soveral Martins, in «Um Curso de Direito da Insolvência», Almedina, 3ª Edição revista e atualizada, pág.63.
4. Maria do Rosário Epifânio, in obra citada, pág.27.
5. Catarina Serra, in obra citada, pág.58.
6. Alexandre de Soveral Martins, in obra citada, pág.62.
7. Maria do Rosário Epifânio, in obra citada, pág.28, notas 41 e 42.
8. Catarina Serra, in obra citada, pág.58.
9. Alexandre de Soveral Martins, in obra citada, pág.62.
10. Disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/884925eff030b91d8025711800489f3d?OpenDocument
11. O Ac. RL de 20.05.2010, proferido no processo nº2509/09.1TBPDL-2, encontra-se disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a413b150db6237988025778f0052936d?OpenDocument