Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
9560/14.8TDPRT-K.G1
Relator: ANABELA VARIZO MARTINS
Descritores: RECUSA
ACTOS PROCESSUAIS URGENTES
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A regra segundo a qual, depois de apresentado o requerimento de recusa ou o pedido de escusa, o juiz visado não deverá praticar actos no processo comporta duas excepções.
II - A lei confere ao juiz visado o poder de realizar não apenas os actos necessários para assegurar a continuidade da audiência, como também os actos processuais urgentes.
III - No conceito de actos processuais urgentes cabem tanto aqueles que se destinam a assegurar direitos de defesa do arguido, como os que visam assegurar valores do processo inerentes à efectividade e celeridade do exercício da acção penal, nomeadamente evitar a prescrição do procedimento criminal.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

No Processo Comum Coletivo n.º 9560/14.8TDPRT do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo Central Cível e Criminal de Bragança – Juiz 4, por despacho referência nº 24227733 a Mmª Juiz a quo, no dia 28/04/2022, declarou urgentes os presentes autos, impondo-lhe prioridade absoluta no seu andamento célere, por se verificar o risco de prescrição do procedimento criminal.

Inconformados com esse despacho, os arguidos J. B., R. M. e A. C., dele vieram interpor o presente recurso, apresentando a respectiva motivação, que finalizam com as conclusões que a seguir se transcrevem:

“1ª Vêm os arguidos J. B., R. M. e A. C. apresentar recurso ao despacho datado de 28 de Abril de 2022, assinado pela Exma. Sra. Juiz A. R., notificados que foram no dia 3 de Maio de 2022, em que se decidiu classificar o processo como urgente, quando já decorria um incidente de recusa contra a mesma Mma. Juiz desde meados de Abril de 2022.
2.ª O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto da Relação de Guimarães, no âmbito do processo de incidente de recusa que corre termos contra aquela Mma. Juiz proferiu parecer no sentido da mesma ser afastada dos autos, deferindo-se o incidente de recusa apresentado, conforme documento n.º 1 que se junta para todos os devidos efeitos legais.
3.ª O despacho de 28 de Abril de 2022 é ilegal porquanto nos termos preceituados no art.º 45.º n.º 2 do Código Processo Penal, após a entrada de um incidente de recusa, o Sr. Juiz visado só pode praticar os actos necessários a dar continuidade à audiência de julgamento, sendo que no caso presente não há qualquer julgamento iniciado, pelo que a Exma. Sra. Juiz está impedida de proferir qualquer tipo de decisão nos autos, o que sabia perfeitamente, atendendo a que já tinha, inclusivamente, respondido ao incidente de recusa suscitado nos presentes autos.
4.ª Pelo que, o despacho em causa datado de 28 de Abril de 2022 tem que ser imediatamente revogado uma vez que a Exma. Sra. Juiz que proferiu o mesmo encontra-se legalmente impedida de proferir qualquer tipo de decisão no processo 9560/14.
5.ª Foram violados e mal interpretados os art.ºs 45.º n.º 2 e 46.º, todos do Código Processo Penal, violados e/ou mal interpretados porquanto, após o incidente de recusa dar entrada, o juiz visado do incidente não pode praticar qualquer acto processual, nomeadamente não pode declarar/classificar o processo como urgente.

TERMOS EM QUE, FACE ÀS MOTIVAÇÕES E CONCLUSÕES APRESENTADAS, E TUDO O MAIS QUE FAVOREÇA OS RECORRENTES E A JUSTIÇA (LEGALIDADE PROCESSUAL), O DESPACHO DATADO DE 28.04.2022 TEM QUE SER IMEDIATAMENTE REVOGADO, por ser manifestamente ilegal e violador dos art.º 45º nº 2 e 46º todos do Código Processo Penal.”

Ao recurso interposto pelos arguidos respondeu o Ministério Público em 1ª instância, pugnando pela sua procedência, porquanto considera que esse despacho viola os artºs 45.º, n.º 2 e 46.º do CPP, assistindo inteira razão aos recorrentes, a cuja fundamentação adere, por considerar clara e inequívoca, devendo tal decisão ser revogada e o recurso interposto ser julgado procedente.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer, no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, uma vez que o despacho proferido pela Exmª Juiz a quo cai numa das excepções previstas no art.º 45.º, n.º 2, do CPP, ou seja, a prática de actos processuais urgentes que, no caso em análise, era inquestionável, precisamente por estar em causa o “risco de prescrição do procedimento criminal”.

No âmbito do disposto no art.º 417º, nº 2, do CPP, os recorrentes apresentaram resposta ao parecer emitido, suscitando a questão prévia de que estando a correr termos nesta Relação de Guimarães os autos de recurso 9560/14.8TDPRT-I.G1, a cargo da Sra. Juíza Desembargadora Maria Teresa Coimbra, desde 17.05.2022, autuados primeiro, devem os presentes autos 9560/14.8TDPRT-K.G1, ao abrigo do disposto no artº 213º, nº 4 do C. P. Civil, aplicável por força do disposto no artº 4 do C. P. Penal, ser distribuídos à mesma Sra. Juiz Relatora Desembargadora e mantendo quanto ao demais os fundamentos invocados na motivação de recurso.
Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado.

II.FUNDAMENTAÇÃO

1 – OBJECTO DO RECURSO.

Dispõe o art.º 412º, nº 1 do C. Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
As conclusões delimitam, assim, o objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso. (1)
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (2), é a de saber se o despacho proferido pela Mmª Juiz a quo, que declarou urgentes os autos n.º 9560/14.8TDPRT, é ilegal por violador dos art.º 45º nº 2 e 46º todos do Código Processo Penal.

2- DA DECISÃO RECORRIDA

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“Importa considerar que os presentes autos se encontram no seu último ano do prazo máximo de prescrição.
Nestes termos, cumpre ao abrigo do dever de gestão processual dirigindo activamente o processo providenciar pelo seu andamento célere, por forma assegurar uma gestão processual adequada à justa composição do litígio em prazo razoável (cfr. art. 6º do CPC, aplicável subsidiariamente de acordo com o art. 4º do CPP)
Assim, verificando-se o risco de prescrição do procedimento criminal declaram-se urgentes os presentes autos, impondo-se prioridade absoluta no seu andamento célere.
Notifique
*
Anote na capa e no histórico electrónico dos autos
*
Comunique à Gestão do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, ao Mm.º Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança e ao Conselho Superior da Magistratura, a atribuição de prioridade absoluta e urgente aos presentes autos. “


3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Questão prévia:

A questão suscitada pelos recorrentes na resposta ao parecer, nos termos do disposto no art.º 417º, nº 2 do C. P. Penal, carece em absoluto de fundamento legal.
Na verdade, a invocada pretensão dos recorrentes no sentido de que havendo dois recursos no mesmo processo, como no caso concreto, devem ser decididos pelo mesmo relator, não tem o mínimo sustento no citado art.º 213º, nº 4 do C. P. Civil, que, como resulta da sua própria epígrafe, destina-se a corrigir erros de distribuição e não a definir regras desta, sendo que a distribuição ao mesmo relator apenas está prevista na hipótese do erro derivar da classificação do processo.
Por seu turno, a regra citada pelos recorrentes não tem qualquer apoio nas regras processuais aplicáveis ao julgamento de recursos em Processo Penal.
Por esse motivo e sem mais considerações, por desnecessárias, o requerido não pode ser atendido.
Cumpre agora apreciar a questão objecto de recurso.

Tendo em vista uma melhor contextualização dessa questão importa salientar as principais incidências processuais evidenciadas nos autos e que consideramos relevantes para a sua decisão (anotando-se que os elementos referidos foram extraídos do processo principal, que consultamos):
- No dia 14/03/2022, R. M., arguido nos autos principais, apresentou incidente de recusa contra três Srs. Juízes que compõe o Tribunal Colectivo desses autos, entre eles a subscritora do despacho objecto de recurso;
- O despacho objecto de recurso foi proferido no dia 28 de Abril de 2022 e tem o teor acima transcrito;
- No dia 09/05/2022, foi proferido acórdão no âmbito do apenso 9560/14.8TDPRT-J.G1 que deferiu aquele incidente;
- No dia 10/05/2022 (referência electrónica nº 4256946) a Mmª Juiz teve conhecimento desse acórdão.
O fundamento do recurso dos arguidos prende-se com a circunstância de na sua perspectiva a Mm. ª Juiz estar, nos termos do disposto no art.º 45.º, n.º 2, do C P Penal, impedida de proferir qualquer tipo de decisão nos autos, porquanto não havia qualquer julgamento iniciado.
O citado artigo 45.º, n.º 2, do C P Penal tem o seguinte teor: “Depois de apresentados o requerimento ou o pedido previstos no número anterior, o juiz visado pratica apenas os actos processuais urgentes ou necessários para assegurar a continuidade da audiência.”
Decorre deste preceito que, como regra, depois de apresentado o requerimento de recusa ou pedido de escusa, o juiz visado não deverá praticar actos processuais no processo.

Essa regra comporta, no entanto, duas excepções, a saber:

1- A prática de actos processuais urgentes; e
2- A prática de actos necessários para assegurar a continuidade da audiência.

Resulta, assim, que a apresentação do requerimento de recusa não determina automaticamente a suspensão da tramitação do processo, uma vez que a referida norma confere ao juiz visado o poder de realizar, não apenas os actos necessários para assegurar a continuidade da audiência, como também os actos processuais urgentes.
No caso concreto, como sublinham os recorrentes, embora sustentado erradamente que essa é a única excepção, não há qualquer julgamento iniciado, pelo que o despacho nunca cairá na segunda excepção.
Importa, pois, averiguar se aquele despacho é susceptível de integrar a primeira excepção enunciada, ou seja, se constitui um acto urgente.
A lei não define o que deve entender-se por actos processuais urgentes e indispensáveis que o juiz deva praticar antes da decisão do recurso sobre o seu próprio impedimento para intervir no processo.
A noção de actos urgentes tem, no entanto, sido colhida do que conjugadamente se extrai dos artºs 103º e 104º do C. P. Penal, referentes ao “ tempo dos actos” e à “contagem dos prazos de actos processuais”. (3)
No caso a Juiz a quo no despacho em análise declarou urgentes os presentes autos, impondo-se prioridade absoluta no seu andamento célere, por se verificar o risco de prescrição do procedimento criminal, sendo que, por despacho anteriormente proferido nos autos (referência electrónica nº24114434), já tinha decidido que, pelo menos, em relação ao crime de falsificação de documentos, esse prazo ocorrerá em Abril de 2023 (de notar que esse prazo não é muito distante, tendo em conta a complexidade dos autos e que o julgamento ainda não foi iniciado).
Em nosso entender, à semelhança do que referiu o Exmº Procurador Geral Adjunto no parecer que antecede, ter-se-á de considerar que o despacho que confere caráter urgente ao processo tem necessariamente natureza urgente, por ser essa a única interpretação possível tendo em conta a letra da lei (cfr. art.º 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Como salienta o acórdão da Relação do Porto de 5 de Abril de 2017 (4), cujos fundamentos sufragamos “ Decorre dos princípios constitucionais do Estado de direito democrático (artigo 2º), da protecção dos direitos fundamentais (artigo 9º al. b)), do direito a uma decisão judicial em prazo razoável (artigo 20º nº 4) e da legalidade (artigo 219º nº 1) que a efectividade e celeridade no exercício da acção penal são também finalidades do processo. Por isso, no conceito de actos processuais urgentes e indispensáveis cabem tanto aqueles que se destinam a assegurar direitos de defesa do arguido, como por exemplo o não prolongamento da prisão preventiva para além do estritamente necessário, como cabem outros que visem assegurar valores do processo inerentes à efectividade e celeridade do exercício da acção penal, nomeadamente conservar as provas, garantir as finalidades cautelares das medidas de coacção ou evitar a prescrição do procedimento criminal. Não é por poderem ser contrários ao interesse do arguido que tais valores não são também relevantes”. (sublinhado nosso)
Também no Ac. da Relação de Lisboa de 06/10/2021 (5) se defendeu de que se deve atribuir natureza urgente a um processo com fundamento no risco da prescrição do procedimento criminal, com base no artigo 103º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal. (6)
Acresce que, da prática daquele acto pelo juiz recusado, não se vislumbra que possa advir prejuízo para os arguidos, designadamente para o pleno exercício do seu direito de defesa, nem para a justiça da decisão do processo (cfr. nº 5 do artº 43º, do mesmo diploma legal “à contrário”).
Nestes termos não merece censura o despacho recorrido, pelo que improcede o recurso.

III. DECISÃO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos J. B., R. M. e A. C., confirmando o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em três unidades de conta (artº. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artº. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
*
(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – artº. 94º, n.º 2, do CPP)
Guimarães, 20 de Junho de 2022

Anabela Varizo Martins (relatora)
Cruz Bucho (adjunto)
Fernando Chaves (Presidente da Secção)


1. Cfr. entre outros Ac.do STJ de 27-10-2016, processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 06-06-2018, processo nº 4691/16. 2 T8 LSB.L1.S1 e da Relação de Guimarães de 11-06-2019, processo nº 314/17.0GAPTL.G1, disponíveis em www.dgsi.pt e, na doutrina, Germano Marques da Silva- Direito Processual Penal Português, 3, pag. 335.
2. Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
3. Neste sentido Ac. da Relação de Coimbra de 9/04/2008, in Col. De Jurisprudência, Ano XXXIII, tomo II, pag. 60.
4. processo nº 189/12.6TELSB-AB, disponível in www.dgsi.pt.
5. Processo nº 7592/12.0TDLSB-D.L1-3, disponível em www.dgsi.pt.
6. Neste sentido também Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/12/2020, processo nº 299/11.7TABNV-A.E1 e Ac. da Relação de Évora de 17-12-2020, processo nº 299/11.7TABNV-A.E1, disponíveis em www.dgsi.pt.