Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
105/16.6T8FAF.G1.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
CESSAÇÃO DO ARRENDAMENTO
OBRAS NÃO AUTORIZADAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O venire contra factum proprium pressupõe duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.

II – Para a sua verificação é necessário que que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que a contraparte tenha investido nessa confiança, ou seja, que a confiança tenha influenciado as decisões da contraparte, não devendo, porém, fazer-se exigências excessivas quanto a este pressuposto, sob pena de o âmbito da responsabilidade pela confiança ficar reduzida em demasia.

III – A conduta do senhorio consubstanciada no acompanhamento ativo de obras não autorizadas por escrito como convencionado realizadas pelo inquilino no espaço arrendado é reveladora da existência de um consentimento quanto à realização das ditas obras, sendo suscetível de criar no inquilino a expetativa de não invocação, para efeito da obtenção da resolução do arrendamento, da aludida falta de autorização por escrito contratualmente convencionada;

IV – É legítimo concluir-se, face ao prosseguimento das obras no arrendado não obstante o conhecimento das mesmas pelo senhorio e a falta de autorização escrita para o efeito, que, em concreto, o inquilino nisso confiou, investindo na confiança por aquela conduta criada;

V – Nessas circunstâncias é abusiva a invocação da referida falta de autorização escrita para daí extrair a cessação do arrendamento, evidenciando aquela conduta de tácito consentimento na realização das obras em causa não se estar perante uma situação de tal gravidade que torne inexigível a manutenção do contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

A. L. e esposa MARIA intentaram ação declarativa com processo comum contra, ADEGA RESTAURANTE VP, LDA pedindo seja declarado resolvido o contrato de arrendamento descrito nos artigos 1.º a 6.º da petição inicial, com os fundamentos também alegados nos artigos 7.º a 15.º do mesmo articulado, condenando-se a Ré a entregar aos AA. o local arrendado, devoluto de pessoas e bens.

Alegaram, para tanto e em síntese que: celebraram com a Ré contrato de arrendamento do prédio que descrevem na petição inicial; a Ré efetuou obras no locado que alteraram a sua configuração e ditaram a impossibilidade de o locado ser usado como casa de pasto e café, pois já não tem cozinha; estas obras foram levadas a cabo sem a necessária e contratualmente estipulada autorização escrita do senhorio, factos que fundamentam o despejo da Ré.

A Ré contestou a ação impugnando os seus fundamentos, afirmando, nomeadamente, que o Autor marido sempre soube das obras que realizaram no locado, tendo acompanhado e autorizado as mesmas, já que inclusivamente habita o andar por cima do locado; acrescenta que as obras foram realizadas já em 2012.

Em resposta à exceção, os Autores vieram impugnar, por falsa, a matéria de facto alegada, bem como enfatizar a convencionada necessidade de consentimento, por escrito, dos senhorios.
Efetuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação totalmente improcedente.

Inconformados, os Autores interpuseram o presente recurso, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:

a) Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls., que julgou improcedente a acção declarativa comum interposta pelos apelantes e em consequência absolveu a R. do pedido.
b) Pois entendeu o Tribunal “a quo”, que apesar da R. ter realizado obras no local arrendado alterando a sua estrutura, o A. tinha conhecimento das mesmas e ao intentar a presente acção agiu em abuso de direito;
c) Porém, tal decisão não está correcta;
d) É manifesto o incumprimento culposo do contrato por parte da R. e a existência de fundamentos para o despejo do local arrendado, pois o conhecimento das obras pelo senhorio não impede o exercício do direito ao despejo, por violação das regras contratuais pelo inquilino e sobretudo porque é manifesto que o contrato impõe a obrigatoriedade de existir consentimento prestado de forma expressa e por escrito, pelo senhorio, para a realização de obras no locado, sendo que, tal como resulta dos autos, essa autorização nunca foi prestada;
e) Por outro lado, mesmo considerando que os AA. tinham conhecimento das obras desde 2012, é facto que a arrendatária no locado explorava um restaurante e transformou o espaço, designadamente: procedeu a obras de alteração da estrutura interior, modificando as divisões e funções do mesmo (Cfr. ponto 1.7 da matéria de facto provada); Construiu salas nos locais de arrumos e anexos (Cfr. ponto 1.8 da matéria de facto provada); Destruiu e retirou a cozinha do local onde existia, pelo que o restaurante nem sequer tem cozinha, ou seja, deixou de ter aptidão para funcionar como restaurante, que era aliás o objecto do arrendamento;
f) E nestes termos, não é correcto dizer que é ilegítimo o exercício de direito à resolução do contrato com o fundamento na alteração substancial da estrutura interna do locado de forma não autorizada, dando-lhe até um uso para fim diverso daquele para que se destinava, diga-se pois que aquilo que era um espaço de restaurante deixou de o ser e de ter condições de o ser, face às alterações provocadas pelas obras levadas a cabo pela inquilina;
g) Pelo que, deve entender-se que este exercício desenvolvido pelos autores não excede de forma alguma os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico daquele direito;
h) Perante os factos provados, não pode falar-se no instituto do abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium;
i) Na verdade, não há qualquer conduta dos autores adequada a criar a convicção, fundada, na arrendatária de que nunca exerceriam o direito à resolução do arrendamento com o fundamento na realização de obras não consentidas ou autorizadas de forma expressa e por escrito, como o contrato o impõe e ainda por o prédio estar agora e por via das obras com um uso para fim diverso;
j) Por outro lado, e vendo agora o instituto do abuso do direito sob a figura da neutralização do direito, não resultou provado que o simples decurso do tempo – que não foi muito tempo, retenha-se – o nada fazer por parte dos autores, depois de terem conhecimento do funcionamento do restaurante, tivesse criado a convicção na arrendatária de que aqueles jamais exerceriam o direito à resolução do arrendamento com o fundamento acima referido.
k) Aliás, o concreto decurso do tempo, por si só, sem mais, na normalidade das situações, nunca seria adequado a criar a convicção de que o titular jamais exerceria o direito.
l) Assim, nada se provou de modo a que a arrendatária tivesse confiado ou sequer tivesse razões para confiar que os autores em nenhuma circunstância exerceriam o direito à resolução do contrato de arrendamento com o fundamento acima referido, e, consequentemente, nada se provou que a arrendatária por ter confiado no não exercício do direito pelos autores tivessem alterado de algum modo os seus planos;
m) Tanto mais que, a este propósito é sintomático que a inquilina sabia que precisava da autorização expressa e por escrito do senhorio, para a realização das obras, mas nunca a obteve ou teve essa autorização. Porém, mesmo assim, prosseguiu os seus intentos de fazer as obras;
n) Sendo ainda certo que, as obras no seu conjunto, alteraram o prédio no seu todo, perdendo a sua identidade e as suas características;
o) O que quer dizer que as obras levadas a cabo pela R. alteraram substancialmente a estrutura do prédio que lhe está arrendado e indubitavelmente, a R. ultrapassou os poderes de gozo que estão inerentes ao contrato de arrendamento, e utilizou os poderes de transformação que são direito do proprietário e locador;
p) Violou assim o contrato de arrendamento, porque realizou estas obras sem autorização escrita do senhorio.
q) Em face de tudo isto, contrariamente ao decidido pelo Tribunal “a quo”, as obras fundamentam a resolução do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1083º do CC. e não se diga que estas obras são amovíveis e beneficiam o prédio;
r) É que todas as obras, em si, visam a beneficiação do prédio e é possível a sua destruição colocando o prédio no estado em que se encontrava, antes da realização das mesmas. O que é relevante é o facto de tais obras serem realizadas violando o contrato, em que a arrendatária ultrapassa os poderes de gozo, de uso, do arrendado, e entra no uso de poderes de transformação que são exclusivos do proprietário. E é esta violação do contrato que merece a censura do direito e a sanção prevista no respectivo normativo já citado.
s) É de salientar que relativamente à modificação da disposição das divisões internas do prédio e a sua eliminação, como aconteceu com a cozinha, é facto que, no plano da “ ratio legis” e da determinação do conteúdo dos conceitos indeterminados, estas obras modificaram a substância, a essência do plano de concepção da distribuição das divisões interiores do prédio, tendo descaracterizado e desfigurado o locado;
t) Sendo indubitável que não há fundamento para afirmar que a conduta dos autores, ao intentarem a presente acção, constitui clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente aceite, uma conduta que manifestamente excede os limites resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim económico-social do direito.
u) Donde a sentença apelada ter violado, entre outros, o disposto nos art.s 334º, 799º e 1083º, do Código Civil,
v) Funda-se, ainda, o presente recurso no disposto nos artºs, 607º, 615º e nº 1 al. b) todos do CPC.

Terminam pedindo que seja dado provimento ao recurso e, em consequência, seja revogada a sentença, substituindo-se a mesma por outra que julgue a ação procedente.
A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, a única questão a decidir que ressalta das conclusões recursórias é a seguinte:

- Saber se há ou não abuso de direito da parte de senhorio que, em 2016, após notificação da Ré, em 30 de Outubro de 2015, para repor o prédio na situação anterior, pede a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na execução de obras no arrendado, não autorizadas por escrito conforme convencionado, obras essas realizadas no ano de 2012, quando antes havia acompanhado as obras da rede elétrica, as obras na rede de saneamento e as obras realizadas no interior do prédio.
*
III. FUNDAMENTOS:

Os Factos.
Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1.1. Os AA. são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio urbano, sito na freguesia e cidade de Fafe: Casa composta de rés-do-chão com três divisões para arrumos, uma garagem e comércio, primeiro andar para habitação, com cinco divisões assoalhadas e sótão com uma, para habitação, com logradouro de 60 m2, sita na Rua …, inscrito na matriz sob o artigo ….
1.2. Por contrato de arrendamento celebrado em 29/09/2004, os AA. deram de arrendamento à R. que tomou de arrendamento àqueles, o rés do chão do referido prédio (n.º de porta …), bem como 22,78 m2 de área de logradouro já devidamente demarcada;
1.3. Tendo aquele contrato início no dia 1 de Outubro de 2005 e pelo prazo de 15 (quinze) anos, sendo as suas prorrogações de um ano, no caso de não ser denunciado por parte do senhorio com a antecedência mínima de um ano e por parte da inquilina com a antecedência mínima de seis meses;
1.4. Pela renda mensal de €500,00, sendo a renda dos anos subsequentes a que resultar da actualização legal, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito, no domicílio do senhorio;
1.5. E destinando-se o local arrendado exclusivamente ao exercício da actividade comercial de casa de pasto e café, não lhe podendo ser dado outro fim;
1.6. Tendo o estabelecimento a configuração e a composição em termos de divisões interiores e espaço, a que resulta do documento que se junta sob o n.º 2;
1.7. A R. procedeu a obras de alteração da estrutura interior do seu prédio, modificando as divisões e funções do mesmo;
1.8. Designadamente construiu salas nos locais de arrumos e anexos;
1.9. Destruiu e retirou a cozinha do local onde existia, pelo que, actualmente, o restaurante nem sequer tem cozinha;
1.10. Tendo, ainda, aberto uma porta no prédio contíguo para o prédio daqueles, de forma a passarem de um prédio para o outro;
1.11. Utilizando a R. o prédio dos AA. para aceder a um prédio de sua propriedade, que também utiliza como restaurante, na parte traseira, contígua ao mesmo;
1.12. Pelo que, os clientes, fornecedores e todas as pessoas que acedem àquele prédio traseiro passam pelo interior do prédio dos AA.;
1.13. A R. fez obras de saneamento, redes de gás e energia eléctrica naquele prédio traseiro e fez as respectivas condutas para o exterior através do prédio dos AA.;
1.14. Os AA., por carta registada com aviso de recepção, datada de 30 de Outubro de 2015, notificaram a R. para repor o prédio na situação anterior;
1.15. A R. até à presente data ainda não o fez;

[Da contestação]

1.16. A Ré efectuou obras no prédio arrendado no ano de 2012;
1.17. O estabelecimento da Ré situa-se no rés-do-chão do prédio dos Autores e estes vivem no primeiro andar;
1.18.
1.19. O Autor acompanhou as obras da rede eléctrica;
1.20. O Autor acompanhou as obras na rede de saneamento,
1.21. O Autor acompanhou as obras realizadas no interior do prédio;

E foram considerados não provados os seguintes factos:

2.1. Os AA., no final de Outubro de 2015, viram as obras realizadas pela Ré e supra descritas nos factos provados;
2.2. Que a Ré tenha efectuado as obras sem consentimento e contra a vontade dos AA.;
*
A demais factualidade alegada pelas partes não foi objecto de resposta por conter matéria conclusiva, irrelevante, instrumental e/ou de direito.
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O Direito.

Começará por se frisar que, estando o tribunal de recurso limitado ao conhecimento das questões suscitadas pelas partes (ressalvadas as de conhecimento oficioso), forçosamente se deverá ter por assente a verificação da violação da obrigação invocada como causa de pedir na presente ação de despejo (não obstante ter sido considerado não provado que a Ré tenha efectuado as obras sem consentimento e contra a vontade dos AA) restando apenas discutir, nas palavras da decisão recorrida, se, atendendo à concreta relação contratual em causa deverá atribuir-se à violação dessa obrigação potencialidade resolutiva do negócio, em termos de – num juízo objectivo e proporcional – se tornar inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.


E, a este respeito, desde já se dirá estarmos nós inteiramente de acordo com a decisão recorrida no sentido de ser ao nível da densificação da referida cláusula de não exigibilidade na manutenção do contrato que se deve ponderar a questão de um eventual abuso de direito por parte do senhorio, valendo a pena relembrar, neste ponto, o teor do acórdão da Relação de Lisboa de 24.09.2015 ali citado.

“A este propósito terão de ser colocadas as questões referentes à boa-fé, à problemática do abuso de direito e, em última análise, à actuação de um fundamental princípio de proporcionalidade entre a intensidade concreta e o grau de censurabilidade da violação contratual cometida e a gravidade objectiva do efeito que lhe corresponde: ou seja, para saber se certo comportamento ilícito e culposo do inquilino deve configurar-se como idóneo para produzir, segundo um juízo objectivo e casuístico de razoabilidade e proporcionalidade, a irremediável destruição da própria relação contratual, terá o intérprete e aplicador da lei que ponderar adequadamente as questões que, num sistema fechado e taxativo de tipificação dos fundamentos de despejo, eram autonomamente abordadas em sede de funcionamento dos princípios ou cláusulas gerais do abuso de direito e da boa-fé contratual, com vista a flexibilizar e eticizar a aplicação dos específicos e estritamente tipificados fundamentos de resolução contratual.

O funcionamento de tais princípios fundamentais para alcançar a justiça do caso concreto aparece, pois, essencialmente diluído na aplicação - na concretização e densificação – da cláusula geral de inexigibilidade – sendo evidente que uma pretensão resolutiva do senhorio que – baseando-se embora formalmente na ocorrência de determinada violação contratual, cometida pelo arrendatário – se possa considerar violadora dos princípios estruturantes da boa fé contratual ou da proibição do abuso de direito não se poderá manifestamente subsumir à dita e essencial cláusula de inexigibilidade na subsistência do arrendamento”.

Isto frisado e sabendo-se que, no caso presente, a decisão quanto à não subsunção do caso ao conceito de inexigibilidade assentou na verificação de um abuso de direito por parte dos aqui Autores, sendo esta qualificação do comportamento dos senhorios que aqui está em causa, importará, desde logo, não perder de vista o texto do art. 334º do Cód. Civil que reputa de ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.

Analisado o disposto na referida norma legal, conclui-se que o abuso de direito pressupõe logicamente a existência do direito, um direito que, porém, não é exercido de um modo equilibrado, lógico, racional e adequado aos limites impostos pelas conceções ético jurídicas comunitárias e que o legislador consagrou ao definir as finalidades e o âmbito dos vários direitos.

Assim, a figura do abuso de direito configura uma cláusula geral, uma espécie de válvula de segurança por onde se pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social.

A nota típica do abuso de direito reside, pois, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita o fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.

Na verdade, os direitos subjetivos são meios de prossecução e satisfação de necessidades de pessoas (Moitinho de Almeida, in "Do Abuso de Direito", págs. 42 a 45). Daí que, quando se invoque um direito para legitimar um comportamento não ajustado a tal finalidade, essa invocação seja ineficaz, já que esse comportamento não pode traduzir as faculdades em que o direito se analisa.

Como uma modalidade do abuso de direito surge o “venire contra factum proprium”, que pressupõe duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.

A este respeito, citando Baptista Machado, dir-se-á que o “venire” decorre de “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.

No que respeita aos pressupostos deste instituto, salienta Baptista Machado que "a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura. Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro" (“Tutela da Confiança e Venire contra Factum Proprium", in Obra Dispersa, vol. I, Braga, 1991, pág. 416).

Para melhor compreensão desta figura, contrapor-se-á a mesma a uma das outras figuras do abuso de direito habitualmente reconhecidas pela doutrina e pela jurisprudência: a neutralização do direito ou Verwirkung.

Para que se verifique a "neutralização do direito", é necessária a combinação de diversas circunstâncias, como de longo tempo sem exercício, de criação de convicção de confiança da contraparte de que já não será exercido, e de exercício tardio a acarretar uma desvantagem maior do que o exercício atempado.
Segundo Menezes Cordeiro, que prefere a designação supressio, esta modalidade do abuso de direito tem na sua base uma realidade social correspondente à “ruptura das expectativas de continuidade da auto-apresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, de súbito, o estado gerado”(Da boa fé no direito civil, 2001, pág. 813).

Em ambos os casos, é sempre necessário que o não exercício do direito ou a conduta anterior tenham criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que a contraparte tenha investido nessa confiança, ou seja, que a confiança tenha influenciado as decisões da contraparte, assinalando, porém, a este propósito, Baptista Machado (nota 84, pág. 417 da obra citada) que “não devem fazer-se exigências excessivas quanto a este pressuposto”, sob pena de o âmbito da responsabilidade pela confiança ficar reduzida em demasia.

A diferenciação da supressio em face do venire contra factum proprium está na ausência do factum, certo que na primeira há uma mera abstenção, pelo que, em tais casos, a doutrina entende ser de “exigir um decurso significativo de tempo, acompanhado de outras circunstâncias – por exemplo: um conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer – para que se possa falar em confiança justificada de que ele não mais seria exercido”. (Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, pág. 260), sendo de ponderar, segundo Baptista Machado, “além do decurso do tempo, o resultado a que o exercício tardio do direito conduziria e a questão de saber se ainda será exigível da contraparte conformar-se à pretensão do titular do direito e suportar esse resultado” (in obra citada, pág. 422), o que redunda num maior grau de exigência para que esta modalidade do abuso se possa ter por verificada.

No caso, a ação foi intentada em 12.02.2016 (após notificação da Ré, em 30 de Outubro de 2015, para repor o prédio na situação anterior), nela se pedindo a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na execução de obras no arrendado, não autorizadas por escrito conforme convencionado, obras essas realizadas no ano de 2012, o que surge em contraponto com o anterior acompanhamento das obras da rede elétrica, das obras na rede de saneamento e das obras realizadas no interior do prédio.

Em causa está, pois, para além da circunstância de terem decorrido mais de 4 anos desde que o senhorio soube das obras, o ter havido, por parte daquele, acompanhamento das obras realizadas.

Daí que mais do que uma abstenção, mais do que uma não reação às obras realizadas, esteja em causa um facto positivo, consubstanciado no aludido “acompanhamento” das obras, expressão que, interpretada à luz da decisão recorrida na sua globalidade, nela integrada a respetiva motivação, se percebe que não traduz apenas uma mera observação passiva do seu evoluir, mas corresponde antes a uma conduta de um certo apoio, de alguma assistência (sinónimos encontrados em qualquer dicionário para a expressão acompanhamento), em suma, a uma atitude de colaboração na realização das ditas obras, face à qual o pedido de resolução formulado nos autos, se prefigura em oposição, contrariando a boa fé.

Densificando, foi assumida, da parte do senhorio, uma conduta global suficientemente reveladora da existência de um consentimento quanto à realização das obras em causa nos autos, conduta essa claramente suscetível de criar no inquilino a expetativa de manutenção do contrato ou, melhor dizendo, a expetativa de não invocação, para efeito da obtenção da resolução do arrendamento, da falta de autorização por escrito contratualmente convencionada, não sendo, portanto, para o caso, determinante nem o tempo, maior ou menor, decorrido desde o conhecimento das aludidas obras, nem exigível qualquer comparação entre a desvantagem decorrente do exercício tardio em relação à desvantagem inerente ao exercício atempado.

E pode dizer-se que, não só a conduta assumida por parte do senhorio legitimava em abstrato a confiança de que o mesmo não exerceria posteriormente os seus direitos, recorrendo à via judicial, como, em concreto, a Ré nisso confiou, investindo na confiança por aquela conduta criada, como resulta claro do prosseguimento das obras no arrendado não obstante o conhecimento das mesmas pelo senhorio e a falta de autorização escrita para o efeito, o que, a nosso ver, é o bastante para considerar abusiva a invocação da referida falta de autorização escrita para daí extrair a cessação do arrendamento, evidenciando aquela conduta de tácito consentimento na realização das obras em causa não se estar perante uma situação de tal gravidade que torne inexigível a manutenção do contrato, pelo que, como se conclui na sentença recorrida, não se encontram preenchidos os fundamentos da resolução (neste mesmo sentido ver Acórdão da Relação de Lisboa de 19.01.2009, Relator – Rijo Ferreira).

Uma última nota para dizer que, como questão nova que é, não pode este Tribunal conhecer do fundamento de resolução, só agora invocado, do uso do locado para fim diverso daquele para que se destinava.

Face ao exposto, forçoso é julgar improcedente a apelação.

Sumário:

I – O venire contra factum proprium pressupõe duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.
II – Para a sua verificação é necessário que que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que a contraparte tenha investido nessa confiança, ou seja, que a confiança tenha influenciado as decisões da contraparte, não devendo, porém, fazer-se exigências excessivas quanto a este pressuposto, sob pena de o âmbito da responsabilidade pela confiança ficar reduzida em demasia.
III – A conduta do senhorio consubstanciada no acompanhamento ativo de obras não autorizadas por escrito como convencionado realizadas pelo inquilino no espaço arrendado é reveladora da existência de um consentimento quanto à realização das ditas obras, sendo suscetível de criar no inquilino a expetativa de não invocação, para efeito da obtenção da resolução do arrendamento, da aludida falta de autorização por escrito contratualmente convencionada;
IV – É legítimo concluir-se, face ao prosseguimento das obras no arrendado não obstante o conhecimento das mesmas pelo senhorio e a falta de autorização escrita para o efeito, que, em concreto, o inquilino nisso confiou, investindo na confiança por aquela conduta criada;
V – Nessas circunstâncias é abusiva a invocação da referida falta de autorização escrita para daí extrair a cessação do arrendamento, evidenciando aquela conduta de tácito consentimento na realização das obras em causa não se estar perante uma situação de tal gravidade que torne inexigível a manutenção do contrato.


IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos Recorrentes.
Guimarães, 06.12.2018

Margarida Sousa Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues