Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
82/15.0T9AVV.G2
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: ABUSO CONFIANÇA SEGURANÇA SOCIAL
PLANO EXTRAORDINÁRIO REGULARIZAÇÃO DÍVIDAS
CONSEQUÊNCIAS PROCESSUAIS E PENAIS
PENA
ARTºS 22º
Nº 1
ALS. A) E C) E Nº 2
105º E 107º
DO RGIT E 79º DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) - A adesão ao "Programa P.E.R.E.S." nenhuma consequência tem para o arguido, em termos penais ou processuais penais.

II) - Neste programa de regularização de dívidas à Segurança Social estão apenas em causa o pagamento integral da dívida com isenção de juros ou custas ou parcial e em prestações, com eventual suspensão das Execuções Fiscais pendentes.

III) - A falta de pagamento integral da dívida impede, mesmo nos casos de adesão ao "Programa P.E.R.E.S.", a dispensa de pena, nos termos do disposto no art.º 22º/1, als. a) a c), R.G.I.T.

IV) - A falta deste pagamento integral impede, também nestes casos, a atenuação especial da pena, nos termos do disposto no art.º 22º/2 R.G.I.T.

V) - No caso dos autos, julga-se proporcionada e adequada a aplicação de pena de 200 (duzentos) dias de multa, à razão diária de 6€ (seis euros), pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelos arts.º 79º/1 C.P. e 107º/1 e 105º/1 R.G.I.T.

VI) - Não pode um coarguido tomar como seu o recurso do arguido recorrente, depois de ser notificado para contra-alegar, nos termos do disposto no art.º 411º/6 C.P.P., pelo que o seu suposto recurso não deve ser admitido.
Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Por sentença nestes autos proferida em 23 de Fevereiro de 2 017, foram os arguidos J. M. e “X Unipessoal, Lda.” condenados, nos seguintes termos:

- arguido J. M. – pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts.º 107º/1, por referência ao art.º 105º/1 e n.º 4), R.G.I.T. e 30º/2 e 79º C.P., na pena de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à razão diária de 6€ (seis euros);
- arguida “X” - pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts.º 107º/1, por referência ao art.º 105º/1 e n.º 4), R.G.I.T. e 30º/2 e 79º C.P., bem como 7º/1 e 12º/2 R.G.I.T., na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 5€ (cinco euros).

Inconformado com o assim decidido, desta sentença recorreu o primeiro, terminando a sua peça, com as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES:

A- O recorrente J. M. foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, por referência aos artigos 105.º, n.º 1 e 4, do mesmo diploma e 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal, na pena de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), num total de 1.560 € (mil e quinhentos e sessenta euros).
B- O presente recurso é delimitado a duas questões: A) verificou-se uma causa de extinção da responsabilidade penal, com a consequente não consumação do ilícito criminal e - somente para o caso de assim não se entender - B) as penas de multa aplicadas são demasiado excessivas e desproporcionais.
C- São determinantes para o âmbito do presente recurso os seguintes factos dados como provados pelo Tribunal a quo, entendendo os recorrentes serem determinantes para o âmbito do presente recurso os seguintes factos dados como provados pelo Tribunal a quo:

1.3. - Desde o início da sua actividade, a sociedade laborou com um número variável de trabalhadores ao seu serviço, nunca inferior a 3 trabalhadores (…).
1.4. - Desde o dia 9 de Fevereiro de 2010 a gerência da sociedade coube apenas ao arguido J. M. que exercia funções de sócio-gerente.
1.6. - O arguido era o responsável pelo giro comercial do estabelecimento (...).
1.7. - Nos meses de Fevereiro de 2011 e Janeiro de 2013 a arguida sociedade pagou regularmente os salários devidos aos seus trabalhadores, que durante esse período computavam 3 trabalhadores.
1.10. - Computando-se o montante das prestações em falta na quantia global de € 3.080,38 (..).
1.11. - Os arguidos fizeram suas aquelas quantias, integrando-as no giro económico do estabelecimento, passando a dispor do referido montante para satisfazer outros compromissos comerciais, nomeadamente o pagamento a fornecedores, trabalhadores, água, luz e telefone, entre outros.
1.18. - Os arguidos aderiram via internet ao Programa Especial de Redução do Endividamento ao Estado (PERES), tendo já pago uma parcela do montante em dívida na altura da adesão.
1.19. - Considera-se aqui integralmente reproduzido (…) relatório do Órgão de Polícia Criminal quanto à situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais de fls. 285
1.22. - A arguida “X, Unipessoal Lda.”, em Liquidação não tem averbado antecedentes criminais no seu registo criminal.»
D- Antes de mais, assume fundamental e decisiva importância para a boa decisão do presente recurso o facto de, no âmbito do Plano Extraordinário de Regularização de Dívidas junto da Administração Tributária e Segurança Social (PERES), o arguido ter efetuado o pagamento de uma parcela (8%) do montante aqui em dívida (3.080, 38 €) na altura da adesão ao referido Plano.
E- Os 8% pagos pelo arguido - enquanto gerente e legal representante da sociedade “X UNIPESSOAL LDA”, também arguida no âmbito do presente processo - foi levado a efeito, tal como já foi referido, no âmbito da adesão ao PERES, tendo conseguido dessa forma beneficiar do perdão integral de juros de mora e compensatórios.
F- O pagamento inicial pelo arguido de pelo menos 8% do valor do capital em dívida constituía requisito / condição essencial para aderir ao PERES, o qual abrangia dívidas cujo prazo de pagamento teria ocorrido até dia 31 de dezembro de 2015.
G- Ou seja, para adesão do PERES foi decisiva a atuação do ora Recorrente no que concerne à efectivação de tal pagamento.
H- O crime de abuso de confiança contra a segurança social, da previsão dos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º do RGIT, é um crime de dano, cuja conduta típica pressupõe a lesão do património fiscal do Estado, consubstanciado na tutela do erário da segurança social, assente na satisfação dos créditos contributivos de que esta é titular.
I- Ao contrário do que sucedia na vigência do RJIFNA [redacção do D-L n.º 394/93, de 24 de Novembro], o elemento “apropriação” não integra, actualmente, o tipo de ilícito, tendo portanto deixado de ser um crime de resultado, sob a forma de comissão por acção, e passado a ser um crime de mera actividade – ou, no caso, de mera inactividade.
J- A conduta típica respectiva traduz-se, pois, numa omissão pura, cujo comportamento lesivo se esgota com a não entrega, total ou parcial, pelas entidades empregadoras, às instituições de segurança social, dentro de determinado prazo, do montante das contribuições deduzidas às remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, por estes legalmente devidas.
K- Acontece que no caso aqui em apreço o arguido pagou 8%ª da dívida com a adesão ao PERES, não tendo até à data, ainda sido notificado da decisão de aprovação do Plano.
L- Assim, releva para o caso a distinção entre consumação formal e material do tipo de ilícito.
M- Perante a explicitada estrutura típica do crime fiscal de abuso de confiança contra a segurança social em apreço, é aqui convocável os aludidos contextos, na medida em que a distinção entre consumação formal e consumação material pode assumir um significado “prático-normativo”.
N- Pese embora se possa admitir que a consumação formal e material ocorre aqui com a simples omissão de entrega da prestação devida até ao limite do respectivo prazo legal, não se pode olvidar - tal como decorre desde logo da fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2008, publicado no DR, I Série, de 15-05-2008 - que o prazo de 90 dias a que se refere a alínea a) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT configura condição objectiva de punibilidade.
O- Isto desde logo porque o resultado que se pretende evitar com a sua previsão típica do art.º 107.º do RGIT é apenas e tão só que o agente não deixe de entregar a prestação contributiva devida, até à data em que o Estado a espera arrecadar.
P- A incriminação foi erigida para punir a conduta omissiva do respectivo agente.
Q- Ou seja, se o arguido entregou - ainda que parcialmente - as quantias descontadas e devidas - estando, aliás, à espera de decisão de aprovação do plano para iniciar o pagamento prestacional do remanescente da dívida - a conduta típica já está desperfectibilizada.
R- Neste quadro, e por se não vislumbrar assim a verificação de qualquer evento que, para além da conduta em si mesma, possa ainda interessar à valoração do ilícito que o tipo tutela, a distinção entre “consumação formal” versus “consumação material” assume a maior relevância típica no contexto do crime fiscal de abuso de confiança contra a segurança social
S- Por isso, o eventual pagamento voluntário da prestação tributária devida no decurso da condição objectiva de punibilidade prevista no art.º 107.º do RGIT configura uma causa de extinção da responsabilidade penal, pese embora aquele se tenha consumado com o vencimento do prazo de entrega previsto na lei.
T- Ademais, pagamento voluntário da prestação tributária à segurança social no decurso da consumação da responsabilidade penal - ainda que parcial considerando que aguarda decisão de aprovação do PERES - afasta a consumação do ilícito penal.

SEM PRESCINDIR, POR OUTRO LADO

U- Prescreve o n.º 1 do art.º 47.º do Código Penal (CP) que “ A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do art.º 71.º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias, acrescentando o seu n.º 2 que a “Cada dia de multa corresponde uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.
V- Quanto ao crime em apreço, prescreve o artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) que “1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º. 2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º”.
W- Ora, prevê o artigo 105.º, n.º 1, do mesmo diploma, dispõe que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
X- Ressalvado o devido respeito o Tribunal não atentou na formação da sua convicção, especificamente, ao facto de os arguidos terem aderido ao PERES, tendo já pago uma parcela do montante em dívida na altura da adesão.
Y- Depois, não atentou ainda o Tribunal a quo no facto de o arguido - em nome e no interesse da arguida X - ter disposto das prestações / contribuições em falta - de quantia global de € 3.080,38 - para o giro económico do estabelecimento, nomeadamente para satisfazer outros compromissos comerciais, nomeadamente o pagamento a fornecedores, trabalhadores, água, luz e telefone, entre outros.
Z- Ora, a motivação ou finalidade do agente / arguido e a consequente afectação que fez de quantias de que descontou das remunerações dos trabalhadores prosseguiu um dos mais elevado dos fins da douta arguida X - aliás da maioria das sociedades comerciais - que foi o de cumprir com os seus compromissos para com os seus trabalhadores e fornecedores, de modo a zelar pela continuidade da sua atividade comercial.
AA- Tal motivação deveria, na modesta opinião do recorrente, ter relevado para a determinação da medida da pena pelo Tribunal a quo.
BB- E veja-se que o arguido, para além de não se ter apropriado das quantias aqui em apreço para proveito próprio mas apenas para zelar pelo giro económico do estabelecimento, viu-se impossibilitado - enquanto gerente da arguida X - de entregar as quantias que descontou dos salários dos trabalhadores a título de contribuição à segurança social única e exclusivamente atendendo às serias e graves dificuldades financeiras da empresa à data dos factos.
CC- Realce-se que está aqui em apreço a “peculiar” quantia global de 3.080,38 € - pese embora na esfera económica dos arguidos - sociedade comercial e seu legal representante - represente um grande esforço financeiro atenta a situação económica e financeira de ambos - quantia esta da qual, aliás, já foi paga uma parcela do montante em dívida na altura da adesão da empresa ao PERES.
DD- Acresce que, como aliás é referido na douta Sentença, a arguida X, UNIPESSOAL LDA encontra-se em liquidação.
EE- Se é certo que as dificuldades da empresa/arguida não constituem causa justificativa da conduta do arguido - para além do mero efeito atenuativo geral - já poderão constituir um factor exógeno à determinação concreta da pena pelo Tribunal o cumprimento das suas obrigações, mormente as contributivas para com a segurança social, desde o início da sua atividade e o facto de ter aderido ao PERES.
FF- Veja-se que, nomeadamente, “A conduta anterior ao facto e a posterior a este” devem relevar na determinação concreta da medida da pena - cf. disposto na alínea e) do n.º 2 do art.º 71.º do CP.
GG- Recorde-se ainda que o crime de abuso de confiança contra a segurança social, sendo um crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e corpos sociais.
HH- Com a adesão dos arguidos ao PERES ficam, indubitável e veemente, demonstrados atos de confissão, vontade de reparação do dano e arrependimento sincero dos agentes.
II- Porém, sempre salvo douta opinião em contrário, é de atribuir relevo à integração do arguido na sociedade, especificamente na vida profissional - após a situação de desemprego em virtude das sérias dificuldades económicas e financeiras da sociedade também aqui arguida - da qual é gerente.
JJ- Acresce ainda a maturidade do arguido, num processo civil e societário pautado pelo respeito das regras e valores comunitários, sendo que consta do seu registo criminal uma condenação, embora com dispensa de pena.
KK- A seu favor tem também o arguido a circunstância e a forte expectativa de que a sanção surta o efeito preventivo, por constituir o primeiro confronto com os órgãos repressivos, evitando a prática de novas condutas semelhantes.
LL- De realçar, uma vez mais, o facto de os arguidos terem aderido ao PERES, tendo já pago uma parcela do montante em dívida na altura da adesão.
MM- Prevê o art.º 22.º do RGIT o instituto da dispensa e atenuação especial da pena.
NN- Atendendo aos argumentos até aqui expostos, entendemos ser adequado declarar o arguido dispensado de pena, nos termos do art.º 22.º n.º 1 do RGIT.
OO- Sem prescindir e somente para o caso de assim não se entender, entendem o arguido ter sido violado as normas dos artigos 40.º, 47.º, 70.º e 71.º do C.P.
PP- Perante os citados artigos 70.º, 71.º n.º 1 e 40.º do C.P., ao nível da ilicitude deparamo-nos com um desvalor da acção, mas culpa amenizada.
QQ- Por outro lado, conforme já se referiu o arguido mostra-se socialmente integrado.
RR- Neste contexto são de pequeno significado as exigências de prevenção, quer geral, quer especial, mostrando-se adequada e proporcional a pena de 150 dias de multa.
SS- Na verdade, o arguido aufere rendimentos unicamente em função dos trabalhos que consegue angariar por conta própria, à qual acresce a quantia auferida pela sua esposa a título de trabalhão assalariado por conta de outrem (salário minino nacional). Quase a totalidade destas quantias são despendidas pelo arguido e o seu agregado familiar para pagamento das despesas do quotidiano (água, luz, alimentação, saúde, educação da filha).
TT- Ora, deve ser tida em consideração que a pena de multa não pode nem deve comprometer as condições de vida do agente e do seu agregado familiar.
UU- Por outro lado, a fixação do quantitativo diário da pena de multa no montante mínimo de 5,00 € é suficiente para surtir o efeito desejado, e capaz de ser pelo arguido sentido.
VV- Atendendo aos argumentos até aqui expostos, entendemos ser adequado também fixar ao arguido uma taxa diária de 5,00 € (cinco euros).
WW- À vista ou perante a prova dada como assente, verifica-se que o Tribunal “a quo” não valorizou a quase totalidade dos factos positivos, abonatórios a favor dos arguidos, aplicando a moldura penal muito para além dos limites impostos pela culpa e pelas necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.
XX- A pena aplicada ao arguido, embora respeitando os limites previstos na moldura penal, é manifestamente desajustada ao seu passado, ao seu presente, às circunstâncias que antecederam e em que decorreram os acontecimentos, às necessidades de prevenção geral e especial (artigos 40.º, 47.º, 70.º e 71.º do CP).

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Excia muito doutamente surprirá, deve o presente recurso ser provido, revogando-se a douta sentença recorrida e substituída por outra que considere o que aqui se disse:

a) Absolva o arguido em virtude da verificação de uma causa de extinção da responsabilidade penal - pagamento voluntário da dívida (ainda que parcial),
b) Ou, subsidiariamente, declare o arguido dispensado de pena - nos termos do art.º 22.º n.º 1 do RGIT,
c) Ou, subsidiariamente, reduza a medida concreta da pena de multa e do seu quantitativo diário para parâmetros mais adequados e proporcionais e que se coadunem com a situação do arguido, com as legais consequências.

Assim se fazendo inteira JUSTIÇA!”

Ainda em 1ª instância, respondeu a coarguida “X”, que fez seu o recurso do arguido, pretendendo também a sua absolvição, dispensa ou redução da pena aplicada.

Contra-alegou também o M.P., ainda em 1ª instância. Para si, não obstante o pedido de adesão ao sistema “Peres”, o crime está consumado, pelo que o arguido deve ser por ele condenado. Quanto às medidas da pena e da taxa da multa, considera que estão corretamente fixadas. Defende pois, a total improcedência do recurso.

neste Tribunal da Relação e em vista que lhe foi aberta, considera o Dignm.º Procurador Geral Adjunto, que o pagamento de 8% da dívida, nos termos do D.L. n.º 67/16, 3/11 ou a eventual aprovação deste sistema de aprovação de pagamento de dívidas à Segurança Social em prestações, não exclui o ilícito cometido. Com efeito, aquele diploma não prevê qualquer extinção do procedimento criminal nestes casos e, nem o pagamento total dos montantes em dívida, depois dos prazos previstos, eximem o agente da prática do crime. Assim, muito menos isso poderá acontecer, quando o pagamento é apenas parcial. Considera ainda que a pena de multa aplicada e respetiva taxa diária são adequadas e proporcionadas. Razões por que sustenta a total improcedência do recurso do recorrente J. M..

Respondendo a este parecer, depois de notificada nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., a “X” disse manter as alegações e conclusões já apresentadas.

Por seu lado, o recorrente J. M. referiu que o crime que lhe foi imputado pressupõe a lesão do património fiscal do Estado, que não ocorre no caso dos autos, dada a possibilidade de aplicação do sistema “Peres”. Mais, referiu que o pagamento voluntário no decurso da condição objetiva de punibilidade prevista no art.º 107º R.G.I.T., configura causa de extinção do procedimento criminal. Por último, entende que caso assim se não conclua, lhe deve ser aplicado o instituto da dispensa de pena, previsto no art.º 22º/1 R.G.I.T. Sustenta pois, o já antes peticionado.
Os autos vão ser julgados em conferência, como o impõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Fundamentação

A sentença recorrida é do seguinte teor:

“SENTENÇA

I. - Relatório

Nos presentes autos de Processo Comum, com intervenção de Tribunal Singular, o Ministério Público acusou os arguidos:

X, Unipessoal, Lda., em Liquidação” com sede no lugar …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial dos … com o NIPC ..., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 05 de Junho), por referência aos artigos 105.º, n.º 1 e 4, do mesmo diploma e 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal, e artigo 7.º, n.º 1 e 12.º, n.º 2 do RGIT; e
J. M., casado, empresário/industrial, nascido a ../../…, natural de …, titular do BI n.º …, filho de … e de …, residente no lugar …, Ponte da Barca, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, por referência aos artigos 105.º, n.º 1 e 4, do mesmo diploma e 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal.
*
Os arguidos não apresentaram contestação.
*
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância estrita das formalidades legais.
*
II. - Saneamento

O Tribunal é material, funcional e territorialmente competente.
O Ministério Público e o assistente têm legitimidade para exercer a ação penal.
Não existem quaisquer nulidades ou questões prévias que cumpra desde já conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito dos autos.
*
III. - Fundamentação

A) De facto

1. Factos provados

Discutida a causa provaram-se os seguintes factos com relevo para a decisão:

1.1. A arguida “X, Unipessoal, Lda” foi constituída a 2009.05.29, encontrando-se registada na Conservatória do Registo Comercial dos …, com sede no lugar …, Arcos de Valdevez, tendo como objecto comércio, importação e exportação de materiais de bricolage, materiais de construção e equipamento sanitário, tintas, vernizes e produtos similares, ferragens, ferramentas manuais e artigos para canalizações e aquecimento. Indústria da Construção civil e empreitadas de obras públicas. Promoção e realização de loteamentos. Promoção imobiliária. Compra e venda de bens imoveis.
1.2. Por força desse início de actividade, declarado à administração fiscal que lhe atribuiu o número de Pessoa Colectiva com o NIPC ..., ficou também vinculada ao cumprimento das obrigações que, na qualidade de contribuinte, lhe cabem perante a Segurança Social, tendo-lhe sido atribuído por esta instituição o n.º2...2.
1.3. Desde o início da sua actividade, a sociedade laborou com um número variável de trabalhadores ao seu serviço, nunca inferior a 3 trabalhadores, numa relação em que estes se obrigavam a prestar, mediante retribuição, a sua actividade intelectual ou manual à empresa em questão, sob a autoridade e direcção desta.
1.4. – Desde o dia 9 de Fevereiro de 2010 a gerência da sociedade coube apenas ao arguido J. M. que exercia funções de sócio-gerente.
1.5. Este exerceu a gestão e administração da 1.ª arguida, com poderes para a vincular, chamando a si a iniciativa e a total responsabilidade pelas decisões mais importantes.
1.6. O arguido, era o responsável pelo giro comercial do estabelecimento, efectuando os pagamentos dos salários dos trabalhadores, a quem davam ordens e instruções, assinavam cheques e outros documentos que vinculavam a sociedade.
1.7. Nos meses de Fevereiro de 2011 a Janeiro de 2013 a arguida sociedade pagou regularmente os salários devidos aos seus trabalhadores, que durante esse período computavam 3 trabalhadores.
1.8. No mesmo período, a sociedade arguida, actuando através dos arguidos, deduziu do salário dos trabalhadores as cotizações devidas à Segurança Social pelas mesmas, à taxa de 11% sobre as remunerações efectivamente pagas, correspondentes aos meses referidos no art.º 7.
1.9. No entanto, o arguido J. M., actuando em nome próprio e em representação da arguida sociedade, não efectuou a sua entrega à Segurança Social, sendo certo que as contribuições/cotizações deveriam ter sido pagas entre o dia 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitem.
1.10. Computando-se o montante das prestações em falta, à data da acusação pública, na quantia global de € 3.080,38 conforme se discrimina:

1.12. Os arguidos fizeram suas aquelas quantias, integrando-as no giro económico do estabelecimento, passando a dispor do referido montante para satisfazer outros compromissos comerciais, nomeadamente o pagamento a fornecedores, trabalhadores, água, luz e telefone, entre outros.
1.13. O arguido J. M. apesar de saber que estava legalmente obrigado a fazê-lo, não entregou tais quantias à Segurança Social até ao 20 do mês seguinte ao que respeitam as respectivas contribuições, nem volvidos 90 dias sobre essas datas, nem integralmente até ao momento presente.
1.14. No dia 24 de Julho de 2015 a sociedade arguida e o arguido J. M. foram notificados pessoalmente para no prazo de 30 dias procederem ao pagamento do valor das prestações tributárias em falta, acrescido dos juros respectivos e do valor da coima aplicável.
1.15. Contudo, até à presente aquelas quantias não foram integralmente pagas.
1.16. Acresce, ainda, que na sua actuação, a sociedade arguida, através da actuação do arguido J. M. aproveitou a oportunidade favorável à prática dos actos descritos, dado que após a prática do primeiro não foi alvo de fiscalização, verificando, então, que persistiam as possibilidades de prosseguir a sua actividade delituosa.
1.17. Ao agir do modo descrito, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, na qualidade de sócio gerente da sociedade arguida “X, Unipessoal, Lda” em nome e no interesse desta e no seu próprio, bem sabendo que as quantias pecuniárias que descontava das remunerações dos trabalhadores - enquanto entidade empregadora e em cumprimento das normas legais que o Estado definiu a título de contribuição para a Segurança Social - não lhes pertenciam, e que a esta deviam ser entregues até ao dia 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam, e que, agindo diferentemente, ou seja, decidindo conservar para si ou para a sociedade arguida os montantes em causa, determinava um prejuízo patrimonial à Segurança Social, actuação que fez perdurar no tempo e bem sabendo que actuava contra a vontade do referido Instituto de Segurança Social, pretendendo assim obter uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito.
1.18. Bem conheciam os arguidos o carácter proibido e criminalmente punível de tal conduta e, mesmo assim, não se coibiram de a praticar.

Mais se provou que:

1.19. – Os arguidos aderiram via internet ao Programa Especial de Redução do Endividamento ao Estado (PERES), tendo já pago uma parcela do montante em dívida na altura da adesão.
1.20. – Considera-se aqui integralmente reproduzido o resultado das consultas na base de dados de registo de bens móveis, na Repartição de Finanças, na Segurança Social e na Conservatória do Registo Predial de fls. 255-258, 264-273; e o relatório do Órgão de Polícia Criminal quanto à situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais de fls. 285.
1.21. O arguido faz trabalhos em França; trabalha por conta própria na construção civil; tem casa própria; vive com a esposa, a qual é empregada de balcão; tem uma filha..
1.22. O arguido nasceu em ../../...
1.23. Por sentença proferida em 14 de Janeiro de 2014, transitada em julgado em 13 de Fevereiro de 2014, nos autos de Processo Comum Singular n.º 60/13.4TAPTB, do Tribunal de Ponte da Barca, foi o arguido J. M. condenado pela prática, em 3 de Abril de 2013, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido nos artigos 105, n.º 1, als. a) e b) e 107.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com dispensa de pena.
1.24. – A arguida “X, Unipessoal, Lda., em Liquidação” não tem averbados antecedentes criminais no seu registo criminal.

2. Factos não provados

Não se provaram, na audiência de discussão e julgamento, quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa.

3. Motivação da convicção do Tribunal

Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.

A convicção do Tribunal fundou-se em todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, nomeadamente, nos depoimentos das testemunhas A. C., P. N., D. C. e R. M..

Não foi feita prova bastante que afaste a genuinidade dos documentos juntos, pelo que relativamente aos documentos não autênticos (cfr. artigo 169.º do Código de Processo Penal, o qual refere que “consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”), o seu teor pode ser valorado livremente pelo Tribunal, conjugando os mesmos com a demais prova produzida e as regras de experiência. Assim sendo, o Tribunal teve em consideração os documentos juntos aos autos (designadamente, auto de notícia de fls. 47 a 49; certidão permanente da sociedade, cfr. fls. 199 a 202; documentos de fls. 62 a 64; 67 a 71; extractos de remunerações, cfr. fls. 65 e 66; 80 a 89; recibos de vencimentos de fls.100 a 103; 111 a 126; declaração de fls. 98 a 99; contrato de trabalho de fls. 107 a 110; notificação de fls. 150 e 151; teor das consultas na base de dados de registo de bens móveis, na Segurança Social, na Repartição de Finanças e na Conservatória do Registo Predial de fls. 255-258, 264-273, cujo teor que considera aqui integralmente reproduzido; o relatório do Órgão de Polícia Criminal quanto à situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais de fls. 285; o certificado do registo criminal junto aos autos a fls. 278-280; documentos de fls. 299-303; mapa da dívida atualizada junto pela Segurança Social junto na audiência de julgamento a fls. 304; certidão permanente, de fls. 305-308).

Note-se que a prova produzida deve ser analisada atenta a segurança oferecida por cada elemento probatório (considerado individualmente, nomeadamente, quanto à sua credibilidade, isenção e fundamentação da razão de ciência), e bem assim ponderada de acordo com o seu confronto com os demais elementos de prova existentes nos autos (v.g., prova documental e testemunhal), por forma a que o resultado final não produza uma decisão injusta, insuficientemente segura em termos de corroboração factual, ou incoerente com a realidade e o normal acontecer dos factos.

Assim sendo, compreende-se que uma testemunha contribua activamente para alicerçar o Tribunal na formação da convicção da realidade de um facto pela mesma relatado, atenta a sua isenção e fundamentação da razão de ciência quanto a esse mesmo facto, mas também pode acontecer que essa mesma testemunha transmita ao Tribunal outros factos que, quando confrontados com os demais elementos de prova produzida (e legalmente admissíveis), não sejam bastantes para fundamentar a resposta em determinado sentido dada pelo Tribunal à matéria factual em análise nos autos.

Cumpre salientar que tendo a prova testemunhal sido gravada, de modo algum se deve aqui reproduzir o teor da mesma, por tal não corresponder à letra e ao espírito da lei e ser impraticável na prática, mas sim frisar os pontos essenciais (nomeadamente no que respeita à fundamentação da razão de ciência, isenção, coerência, segurança e emotividade que pautaram em concreto cada depoimento) que determinaram que a convicção do julgador (relativamente ao qual a prova se produziu presencialmente) se formasse no sentido em que consta do elenco dos factos provados.

De referir ainda que a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 258/2001: “não é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP, quando interpretada em termos de não determinar a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado por assente”).

A audiência de discussão e julgamento foi realizada na ausência do arguido J. M., porquanto este faltou injustificadamente à mesma. Por não se afigurar que a presença do arguido fosse indispensável à realização da audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 333.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, determinou-se a realização da audiência com a consequente produção de prova (neste sentido, cfr. o Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2012, in DR n.º 238, Série I, de 10/12/2012, que estabeleceu o seguinte: “Notificado a arguida da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença da arguida, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência da arguida, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo”).

Os arguidos aderiram via internet ao Programa Especial de Redução do Endividamento ao Estado (PERES), tendo já pago uma parcela do montante em dívida na altura da adesão (o que comprovaram documentalmente nos autos). O PERES “é um regime excecional de regularização de dívidas à Segurança Social, de natureza contributiva, através de pagamento integral com dispensa de juros e custas ou pagamento em prestações mensais (até 150), com redução de juros e custas, e pagamento inicial de pelo menos 8% do valor do capital em dívida. Abrange as dívidas cujo prazo de pagamento tenha ocorrido até dia 31 de dezembro de 2015.” (cfr. http://www.seg-social.pt/programa-especial-de-reducao-do-endividamento-ao-estado-peres-).

Quanto a A. C. (divorciada, técnica superior da segurança social a prestar serviço em Viana do Castelo; disse conhecer os arguidos apenas por questões profissionais, nada tendo contra os mesmos) a mesma logrou auxiliar o Tribunal a captar a realidade dos factos, uma vez que prestou o seu depoimento de forma credível, porque objetivo, circunstanciado e baseado no conhecimento direto dos mesmos.

Do seu depoimento resulta, no essencial, que procedeu à investigação criminal dos autos e, de acordo com as declarações de cotizações apresentadas pelos arguidos e as informações constantes na base de dados da Segurança Social, constatou-se que os mesmos retiveram as contribuições (relativas às datas e montantes elencados supra nos factos provados) e nada pagou à Segurança Social durante os períodos em causa. Apresentou mapa da dívida atualizada na Segurança Social junto aos autos na audiência de julgamento. Descreveu com funciona o programa PERES.

O Tribunal valorou positivamente os depoimentos das testemunhas P. N. (como neste declarou chamar-se, casado, empregado de escritório, residente na Urbanização …, Ponte da Barca; disse conhecer os arguidos e nada ter contra os mesmos) e D. C. (solteiro, administrativo, residente em …, Arcos de Valdevez; disse conhecer os arguidos e nada ter contra os mesmos) porque sempre mostraram uma postura calma (na voz e na expressão corporal) e um raciocínio coerente e isento (não demonstrando cumplicidade para com os interesses de qualquer dos sujeitos processuais).

Referiram, no essencial, que foram funcionários dos arguidos e que era J. M. que lhes dava ordens, enfim, era o referido arguido que mandava (enquanto patrão/gerente). Mais afirmaram que os arguidos sempre pagaram os salários (o que prova que havia dinheiro), embora houve uma altura que se “atrasaram um bocadinho porque eles tiveram um arresto”.

R. M. (casada, contabilista, residente em …, Ponte da Barca; disse conhecer os arguidos, tendo sido responsável pela contabilidade da arguida X e ser irmã do arguido José) referiu, no essencial, que “acompanhou a contabilidade da empresa durante dois anos”, e que a empresa “teve dificuldades por causa do arresto feito por um credor, levaram quase tudo”. Esclareceu que os arguidos aderiram ao programa PERES e que já pagaram cerca de 8% da dívida.

Mais referiu que o arguido (seu irmão) tem uma empresa e faz trabalhos em França desde 2013 na construção civil, mas que esteve em Portugal dois dias antes do julgamento.

No que concerne ao elemento subjetivo, a comprovação do mesmo em qualquer ilícito faz-se, ou pela confissão do agente, ou pela existência de elementos fácticos objetivos dos quais aquele elemento se extrai por aplicação das regras da experiência e do normal acontecer dos factos.

No caso concreto em análise a comprovação do elemento subjetivo resultou, sobretudo, da conjugação do depoimento das testemunhas (as quais foram credíveis, porquanto isentas, pormenorizadas e fundamentadas), dos demais elementos documentais constantes nos autos, e das regras de experiência e do normal acontecer dos factos, uma vez que se afigura sobejamente conhecido que a ação dos arguidos ao não entregarem tais quantias à Segurança Social e apropriarem-se das mesmas, utilizando-as em seu benefício como se de coisa sua se tratasse, tendo perfeito conhecimento que as mesmas não lhes pertenciam e obtendo por tal forma uma vantagem patrimonial implica o preenchimento do crime em questão.

A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional dos arguidos decorreu do teor das consultas na base de dados de registo de bens móveis, na Segurança Social, na Repartição de Finanças e na Conservatória do Registo Predial, cujo teor que considera aqui integralmente reproduzido; e das declarações da irmã do arguido do arguido que referiu que este faz trabalhos em França; o teor do relatório do Órgão de Polícia Criminal quanto à situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais.
A respeito da (in)existência de antecedentes criminais registados foi determinante o teor dos certificados do registo criminal juntos aos autos.

Na parte em que os factos não resultaram provados, tal circunstância deve-se quer à inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer à circunstância de se terem provado factos contrários.

B) De Direito

1. Enquadramento jurídico-criminal

O Ministério Público imputa aos arguidos J. M. e “X, Unipessoal, Lda., em Liquidação” a prática, em autoria material e na forma continuada e consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal, e artigos 7.º, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105 n.º s 1 e 4, alíneas a) e b), todos da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho

Cumpre desde logo salientar que o sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, visa também, sobretudo, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a diminuição das desigualdades entre os cidadãos (cfr. artigos 103.º e 104.º, da Constituição da República Portuguesa), impedindo assim que cidadãos capazes de contribuir para o bem da sociedade não o façam egoisticamente.

Ora, considerando esses objetivos compreende-se a intervenção do Direito Penal em matéria fiscal. Como refere Jeschek, (vide “Tratado de Derecho Penal; parte General”, 4.ª ed. pág. 6), o Direito Penal tem por missão proteger bens jurídicos, pelo que em todas as normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos pelo poder coativo do Estado através da pena pública.

Ou seja, é aquele fundamento ético do imposto, que legitima a expansão do Direito Penal a um domínio tradicionalmente alheio a esta dignificação (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional, D.R., II-Série, n.º 240, de 17/10/2000, págs. 16 728 e segs.; e ainda os Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade, “O crime de fraude fiscal no novo Direito Penal Tributário Português”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, fasc. 1, págs. 71 e segs.).

Como sublinha Anabela Miranda Rodrigues (in “Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários”, II, pág. 481), “é sabido que ao Estado hoje cabe assegurar ao cidadão não só a liberdade de ser como a liberdade para o ser. E a satisfação das prestações necessárias à existência do indivíduo em sociedade deve ser garantida pelo Estado ao mesmo nível que a protecção dos seus direitos fundamentais, quando estiver em causa a lesão ou perigo de lesão dos interesses ou valores aí contidos – o que vale por dizer, ao nível penal. Bens jurídicos dignos desta protecção são, na verdade, tanto aqueles que surgem como concretização de valores jurídico-constitucionais ligados aos direitos sociais e à organização económica, como os que surgem como concretização de valores ligados aos direitos, liberdades e garantias.

Com a entrada em vigor da Lei n.º 15/2001, de 5/6 (que no artigo 2.º, b) revogou o RJIFNA e que entrou em vigor em 5/7, por força do artigo 14.º), ao nível do artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) reformulou-se a tipicidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social.

Com efeito, dispõe o artigo 107.º, do RGIT, que “1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.os 1 e 5 do artigo 105.º
2 - É aplicável o disposto nos n.os 4 e 7 do artigo 105.º

Por sua vez, prevê o artigo 105.º, do RGIT (na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), que “1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Nos termos do artigo 6.º do RGIT, que “1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado. 2 - O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.

Por fim, de referir que estabelece o artigo 7.º do RGIT, “1 - As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo. 2 - A responsabilidade das pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. 3 - A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes. 4 - A responsabilidade contra-ordenacional das entidades referidas no n.º 1 exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes. 5 - Se a multa ou coima for aplicada a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por ela o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados.

Os artigos em referência encontram-se estabelecidos no âmbito da legislação penal especial fiscal, que mais não é do que o traduzir da preocupação social de punição das sérias consequências em termos de política financeira que a fuga ou evasão aos impostos, ou às contribuições para a segurança social, originam.

O sistema de segurança social mostra-se com consagração constitucional e radica no princípio do Estado de Direito Social, interventor e de Estado Providência, em que por via da co-responsabilização de todos, esses todos se auto-protegem. Como fim direto a segurança social tem obrigação de protecção do trabalhador, da família e de situações de desamparo, mormente por situação pessoal ou de morte. As contribuições para a segurança social são receitas fundamentais do Estado, sem as quais muitas das realizações se tornam impossíveis, sendo que os principais obrigados ao financiamento são os próprios beneficiários, as entidades empregadoras – por via das suas contribuições -, e o Estado, por via de transferências. A obrigação do pagamento de prestações à segurança social surge, deste modo, unicamente por força da lei, com conteúdo moldado pela mesma, independentemente de qualquer manifestação de vontade do contribuinte.

O Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio – que curiosamente começa o seu diploma com explanação concreta do supra desenvolvido “o pagamento pontual das contribuições devidas às instituições de previdência é absolutamente indispensável como fonte básica de financiamento das prestações da segurança social” −, diz-nos ao nível do seu artigo 5.º e 6.º que as entidades patronais e respetivos trabalhadores abrangidos pela segurança social pagaram as referidas percentagens estabelecidas sobre as remunerações pagas e recebidas, por via de desconto nas remunerações, devendo ser pagas pela entidade patronal, sendo que o pagamento das contribuições deve ser efetuado no mês seguinte àquele a que disser respeito, nos prazos legais; sendo as entidades patronais responsáveis perante as caixas de previdência pelas contribuições devidas pelos trabalhadores em relação ao tempo em que estes estiveram ao serviço, para além da responsabilidade criminal em que incorram

Incumbe assim à entidade patronal proceder a desconto de contribuição social sobre as remunerações dos seus trabalhadores e enviar tal montante aos competentes Serviços da Segurança Social (até ao dia 15 do mês seguinte àquele em que foi efetuada a retenção – artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9/5 e artigo1.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 106/2001, de 6/4; e, a partir de Janeiro de 2011, de 10 a 20 do mês seguinte àquele a que as mesmas dizem respeito – artigos 40.º e 43.º da Lei n.º 110/2009, de 16/9).

O gerente ou administrador que utiliza voluntária e indevidamente, na sua empresa, valores recebidos, apurados ou liquidados a título de contribuição que descontou sobre os salários dos trabalhadores, está a apropriar-se dos mesmos, ainda que não retire benefício pessoal direto desse ato; é que a sociedade, por si só, não tem vontade própria, pois esta só emerge da vontade dos seus órgãos de gestão e das pessoas com poder para a gerir, administrar e obrigar.

E apropria-se dele no momento em que, devendo entregá-lo à Segurança Social, o não faz; deste modo, o crime estudado também reúne elementos de um crime por omissão, ainda que imprópria, por resultar de uma acção naturalística traduzida no ato de apropriação em si mesmo (consubstanciado na utilização desses valores para fim diverso, seja ele qual for).

A norma, assim, não se refere apenas aos casos em que o agente se apropria dos dinheiros das contribuições deduzidas para si, enriquecendo o seu património individual: vai mais longe na sua previsão e pune, também, aqueles que usam esse dinheiro em proveito da empresa gerida.

A vantagem patrimonial indevida é a apropriação de cada uma daquelas quantias, com integração na esfera patrimonial do sujeito passivo ou do substituto tributário. Ela pode, deste modo, traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações tributárias deduzidas, ou retidas, ou liquidadas, com obrigação de as entregar ao credor tributário.

Tem-se como assente que atento o mecanismo de desconto sobre as remunerações de trabalhadores, o dinheiro referente a esses montantes nunca pertence à entidade patronal, nunca integra o seu património, apesar de, contabilisticamente, ele dar entrada nos seus cofres, mas tão só porque a mesma entidade patronal legalmente se encontra obrigada ao procedimento de desconto e subsequente entrega.

Trata-se, no entanto, de uma normal operação contabilística e matemática, sendo a entidade processante do desconto como que um fiel depositário dessas quantias, desde o momento em que elas lhe são entregues (momento do pagamento dos salários), até ao momento em que, posteriormente, as há-de entregar ao verdadeiro dono: o Estado, por via da Segurança Social.

Delimitação feita, passemos à comparação com o abuso de confiança do Código Penal. O artigo 205.º atual, 300.º na versão de origem, constitui crime de realização intencionada, na medida em que um dos seus elementos é a apropriação de coisa alheia, consumando-se, quando se dá inversão do título da posse.

Para além do elemento subjectivo (dolo), são seus requisitos objetivos: o lícito recebimento de dinheiro ou outra coisa, por título que produza para aquele que recebe a obrigação de restituir a mesma coisa ou valor equivalente; o descaminho ou dissipação, gasto ilícito daquilo que deve conservar-se, por parte de quem recebe; o prejuízo ou perigo de prejuízo para o proprietário, possuidor ou detentor da coisa entregue.

Deste modo, tal crime resulta da apropriação de coisa móvel, que foi entregue ao agente por qualquer título que não o constitua como proprietário dessa coisa.

Quanto ao elemento subjetivo do tipo legal de crime em apreço diremos que estamos perante um crime doloso onde se exige tão-somente um dolo genérico. O dolo contém em si dois elementos, a saber: - o elemento inteletual que consiste no conhecimento, pelo agente, dos elementos objetivos do tipo legal - representação na mente do agente da facticidade descrita no tipo; e o elemento volitivo que consiste na vontade de praticar o facto típico e que pode ser direto, necessário ou eventual (cfr. artigo 14.º do Código Penal).

De referir que o STJ fixou jurisprudência no sentido que “É inconstitucional, por violação do art. 30º, nº 3, da Constituição, a norma do art. 8º, nº 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade.” (cfr. Ac. n.º 11/2014, in DR n.º 124, Série I, de 01/07/2014).

Como se referiu, ao arguido foi imputada a prática de um crime continuado. Importa ter presente o n.º 2, do artigo 30.º do Código Penal, que dispõe que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Conforme bem se realça no Ac. do STJ de 25 de Junho de 1986, in BMJ, n.º 358, pág. 267: “a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores

Como nota caraterística do crime continuado destaca-se uma pluralidade de condutas típicas (de acções ou omissões) que, naturalisticamente consideradas, podem constituir o corpus de uma pluralidade de crimes, tantos quantas as infracções, mas que a lei unifica e valora como se de um crime só se tratasse (cfr. Ac. do STJ de 23/10/1991, in Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, Tomo IV, págs. 43 e segs.).

Analisando a sobredita disposição verifica-se que na base do crime continuado se encontra um concurso de crimes – realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime –, unificados pela lei para efeitos punitivos, em atenção à identidade do bem jurídico protegido, à homogeneidade da execução e à diminuição considerável da culpa no caso concreto.

Um elemento determinante do conceito de crime continuado é a diminuição considerável da culpa do agente no caso concreto, determinada pela disposição exterior das coisas para o facto, ou seja, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o Direito.

Caracterizando esta figura escreve a Prof. Teresa Beleza (in “Direito Penal”, vol. II, AAFDL, pág. 613): “(...) uma pessoa, durante um certo período de tempo, comete uma série de crimes seguidos que têm entre si uma certa relação de homogeneidade em termos de actuação e em termos de sucessão temporal; e, por outro lado, o traço essencial dessa situação é que a própria continuação ou repetição criminosa deriva não tanto de a pessoa ser especialmente persistente ou ter especiais tendências criminosas, mas do facto de que, de alguma forma, a prática do primeiro acto favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação, porque há um certo circunstancialismo externo que facilitou essa sucessiva reiteração de uma acção idêntica. Esse circunstancialismo externo, na medida em que facilita o sucessivo “cair em tentação”, se quiserem, do agente dos crimes, significa que na medida em que há essa facilitação, a pessoa é menos censurável por ter ido sucessivamente sucumbindo à tentação

Por outras palavras, a unidade ou pluralidade de infracções dependerá da atividade do agente ser passível de um juízo de censura uno ou plúrimo; o juízo de censura será plúrimo sempre que possa constatar-se uma pluralidade de resoluções delituosas.

São assim pressupostos do crime continuado: realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos de crime) que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; homogeneidade da forma de execução; lesão do mesmo bem jurídico; persistência de uma situação “exterior” que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente, em termos de tornar menos exigível ao agente que se comporte de acordo com o direito.

A figura da continuação criminosa implica um contínuo sucumbir a pressões exógenas que levam o agente a repetir o crime e pressupõe, necessariamente, uma pluralidade de resoluções criminosas. Se não houve qualquer circunstancialismo ou situação exterior que tenha facilitado a atuação do arguido ou o tenha impelido à reiteração do seu comportamento criminoso, não se verifica continuação criminosa.

De acordo com o artigo 79.º, n.º 1 do Código Penal “o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.

2. Subsunção dos factos ao direito

Da análise dos elementos factuais provados supra enunciados, depreende-se que se produziu a prova dos elementos consubstanciadores da prática pelos arguidos do crime de que vem acusados pelo Ministério Público.

Efectivamente, no caso sub judice, provou-se que o arguido era o responsável pelo giro comercial do estabelecimento, efectuando os pagamentos dos salários dos trabalhadores, a quem davam ordens e instruções, assinavam cheques e outros documentos que vinculavam a sociedade; nos meses de Fevereiro de 2011 a Janeiro de 2013 a arguida sociedade pagou regularmente os salários devidos aos seus trabalhadores, que durante esse período computavam 3 trabalhadores; no mesmo período, a sociedade arguida, actuando através dos arguidos, deduziu do salário dos trabalhadores as cotizações devidas à Segurança Social pelas mesmas, à taxa de 11% sobre as remunerações efectivamente pagas.

Mais está assente que o arguido J. M., actuando em nome próprio e em representação da arguida sociedade, não efectuou a sua entrega à Segurança Social os valores referidos no mapa constante do elenco dos factos provados, sendo certo que as contribuições/cotizações deveriam ter sido pagas entre o dia 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitem; até à presente aquelas quantias não foram integralmente pagas (elemento objetivo do tipo de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social).

Por fim, provou-se que ao agir do modo descrito, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, na qualidade de sócio gerente da sociedade arguida “X, Unipessoal, Lda” em nome e no interesse desta e no seu próprio, bem sabendo que as quantias pecuniárias que descontava das remunerações dos trabalhadores - enquanto entidade empregadora e em cumprimento das normas legais que o Estado definiu a título de contribuição para a Segurança Social - não lhes pertenciam, e que a esta deviam ser entregues até ao dia 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam, e que, agindo diferentemente, ou seja, decidindo conservar para si ou para a sociedade arguida os montantes em causa, determinava um prejuízo patrimonial à Segurança Social, actuação que fez perdurar no tempo e bem sabendo que actuava contra a vontade do referido Instituto de Segurança Social, pretendendo assim obter uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito; bem conheciam os arguidos o carácter proibido e criminalmente punível de tal conduta e, mesmo assim, não se coibiram de a praticar (elemento subjetivo do tipo de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social).

Pelo exposto constata-se que se provaram os elementos do tipo legal de crime (elementos objetivo e subjetivo) supra referidos e que não ocorre qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa, de forma que os arguidos terão de ser condenados pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social.

3. Escolha e medida da pena principal

Importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar aos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, atenta a subsunção dos factos pelos mesmos praticados ao enquadramento jurídico, acabada de efetuar.

O crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto nos artigos 105.º, n.º 1, ex vi 107.º, ambos do RGIT, é punido com pena de prisão de 1 mês até 3 anos ou multa de 10 até 360 dias (cfr. ainda os artigos 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, ambos do Código Penal).

De acordo com o n.º 1, do artigo 40.º, do Código Penal, “a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. A pena justifica-se sempre pela finalidade prosseguida, estando assim superadas, na atualidade, as concepções que faziam dela um fim em si mesmo.

Quanto às finalidades da punição, devemos ter em consideração quer razões de prevenção geral (considerada sob um ponto de vista de prevenção geral positiva para a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na manutenção ou mesmo reforço da vigência da norma violada, conceito que decorre do princípio político-criminal básico da necessidade da pena cfr. artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa ; que, in casu, são elevadas atento o número de crimes contra o bem jurídico em causa), quer razões de prevenção especial (que obedece à necessidade de reintegração do agente do crime na sociedade; note-se que, in casu, o arguido J. M. tem antecedentes criminais registados pela prática do mesmo tipo de crime).

No dizer de Fernanda Palma (inAs Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, ed. 1998, AAFDL, pág. 25), “a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial”. Em jeito de síntese, e como refere Figueiredo Dias (inDireito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, pág. 214), “culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena)”.

O ordenamento jurídico-penal português assenta na concepção de que a pena privativa da liberdade deve constituir a ultima ratio da política criminal e, utilizando as palavras de Figueiredo Dias, “em medida não facilmente ultrapassável no momento presente, aos princípios político criminais da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão” (Jorge de Figueiredo Dias, “Direito penal português. Parte geral II. As consequências jurídicas do crime”, Aequitas Editorial Notícias, Coimbra, 1993, pág. 53).

O problema da opção entre a pena de multa e a pena de prisão só se põe, evidentemente, no que concerne à responsabilidade criminal do arguido pessoa singular, já que relativamente à arguida pessoa coletiva, à mesma só é aplicável pena de multa.

No caso concreto, concluímos que as razões de prevenção ficam satisfeitas com a escolha de pena não privativa de liberdade, entendendo-se assim estar afastada a aplicação de uma pena de prisão ao arguido J. M., apesar do arguido já ter um antecedente criminal pela prática do mesmo tipo de crime, mas considerando o tempo entretanto decorrido sobre os factos e a circunstância de não se conhecer a prática entretanto de outos ilícitos criminais, sem olvidar o caráter criminógeno das penas curtas de prisão que se deve evitar.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.

A determinação da medida concreta da pena será efetuada nos termos equacionados no artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, em função da culpa do agente que constitui limite inultrapassável, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal e tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor dele ou contra ele (nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – cfr. artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal).

Uma pena de multa que for fixada em termos de representar, a final, um valor insignificante, ou quase, não tem quaisquer potencialidades para lograr as finalidades da punição, tal como elas estão legalmente fixadas: nem o lesado ou a comunidade sentirão que a ordem jurídica tutela adequadamente os seus interesses, nem o arguido sentirá que o crime, de facto, «não compensa», podendo mesmo sentir-se reconfortado a repetir a sua conduta, confiado na permanente suavidade da Justiça Criminal.

As exigências de prevenção geral apresentam-se de crucial importância no tipo legal em causa, porquanto está muito generalizada na sociedade portuguesa a sensação de impunibilidade de conduta lesiva, dos interesses do Instituto de Segurança Social, I.P., de não entrega do montante relativo aos descontos nas retribuições pagas.

In casu, deve atender-se: ao grau médio-baixo de ilicitude dos factos praticados pelos arguidos (considerando a duração da conduta ilícita e os montantes dos descontos não entregues e consequente prejuízo que a Segurança Social suportou); ao dolo intenso (direto) que pautou a sua conduta; à existência de antecedentes criminais registados pela prática do mesmo tipo de crime quanto ao arguido J. M.; ao tempo entretanto decorrido desde a prática dos factos sem que se mostre que os arguidos tenham praticado entretanto outros factos ilícitos-típicos. A circunstância dos arguidos terem aderido ao programa PERES e já terem pago 8% do valor de capital.

Não se pode valorar uma confissão integral e sem reservas nem um genuíno arrependimento pela prática dos factos que lhe foram imputados pelo Ministério Público, porquanto aqueles não foram manifestados pelos arguidos na audiência de julgamento.

Tendo em consideração os factores de determinação da medida da pena que já foram postos em evidência decide-se aplicar:

- ao arguido J. M. a pena de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa;
- à arguida “X, Unipessoal, Lda., em Liquidação” a pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa.

4. Taxa diária da multa

Dispõe o n.º 1, do artigo 15.º, do RGIT, que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1 euro e 500 euros, tratando-se de pessoas singulares e entre 5 euros e 5000 euros, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.

Considerando o que se conseguiu apurar quanto à situação económica e financeira dos arguidos e os seus encargos, julgo adequado fixar a taxa diária da multa em 5 € (cinco euros) quanto à sociedade arguida e em 6 € (seis euros) quanto ao arguido J. M..
*
IV. - Decisão

Pelo exposto, e ao abrigo dos citados normativos, julgo a acusação procedente e, em consequência, decido:

A) Condenar o arguido J. M. pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, por referência aos artigos 105.º, n.º 1 e 4, do mesmo diploma e 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal, na pena de 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), o que perfaz o montante global de 1560 € (mil e quinhentos e sessenta euros), ao que corresponde 173 (cento e setenta e três) dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.º, n.º 1 do Código Penal, caso o arguido não proceda ao pagamento da pena de multa ou esta não seja substituída por trabalho a favor da comunidade a pedido do arguido.
B) Condenar a arguida “X, Unipessoal, Lda., em Liquidação” pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, por referência aos artigos 105.º, n.º 1 e 4, do mesmo diploma e 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal, e artigo 7.º, n.º 1 e 12.º, n.º 2 do RGIT, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5 € (cinco euros), o que perfaz o montante global de 900 € (novecentos euros).
C) Condenar os arguidos nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (três unidades de conta), a pagar por cada arguido, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao mesmo.
D) Declarar cessada, após trânsito, qualquer medida de coação imposta aos arguidos, à exceção do termo de identidade e residência que só se extinguirá com a extinção da pena (artigo 214.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal).
*
Notifique.
Deposite (artigo 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal).
Após trânsito, remeta os competentes boletins à Direcção de Serviços de Identificação Criminal – vide artigo 6.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.

2.1. – Questões a Resolver

2.1.1. – Do Programa “P.E.R.E.S.” (Plano Extraordinário de Regularização de Dívidas) e da Responsabilidade Penal;
2.1.2. – Da Condenação Excessiva do Arguido J. M.;
2.1.3. – Da Pretensão da Arguida “X”.

2.2. - Do Programa “P.E.R.E.S.” (Plano Extraordinário de Regularização de Dívidas) e da Responsabilidade Penal

Invoca o recorrente J. M. ter pedido a adesão ao programa P.E.R.E.S., pagando 8% do capital em dívida e que aguarda decisão da Segurança Social, sobre o deferimento da pretensão. Tal programa vem definido no D.L. n.º 67/2 016, de 3/11, invocando-se no seu preâmbulo que o pagamento total com isenção de juros e custas ou em prestações (até 150) visa evitar a insolvência de muitas empresas.

Sobre este se escreveu no site da Segurança Social, www.seg-social.pt, que

“é um regime excecional de regularização de dívidas à Segurança Social, de natureza contributiva, através do pagamento integral com dispensa do pagamento de juros e custas ou pagamento em prestações mensais (até 150), com redução de juros e custas e pagamento inicial de pelo menos 8% do capital em dívida. Abrange as dívidas cujo prazo de pagamento tenha ocorrido até 31 de Dezembro de 2 015.”

No seu art.º 8º/4, o D.L. n.º 67/2 016, de 3/11, ainda prevê a possibilidade de suspensão de Execução pendente contra o contribuinte, nos casos de aplicação deste Plano.

Porém e lido todo o seu texto, verifica-se que nada é referido, quanto a consequências penais ou processuais penais, relativas à adesão a este Programa.

Está em causa o pagamento integral com isenção de juros ou custas ou parcial, com eventual suspensão das Execuções Fiscais pendentes.

Porém e como se disse, em termos penais ou processuais penais, nenhuma consequência tem, a adesão a este Plano de Regularização.

Assim, o crime consuma-se com a não entrega das quantias retidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais para entrega à Segurança Social (art.º 107º/1 R.G.I.T.), desde que tenham decorrido mais de 90 (noventa) dias sobre o seu prazo de pagamento (arts.º 105º/4, a) e 107º/2 R.G.I.T.) e depois de 30 (trinta) dias decorridos sobre a notificação que para o pagamento deve ser feita (art.º 105º/4, b), também via art.º 107º/2 R.G.I.T) – ambas as questões, tratadas na Jurisprudência e Doutrina, como condições objetivas de punibilidade.

Ou seja: como muito bem diz o Dignm.º Procurador Geral Adjunto, o contribuinte até pode pagar a sua dívida na íntegra, que o crime continua a existir.

Não pode pois dizer-se, como o fez o arguido recorrente, que o crime pressupõe a lesão do património fiscal do Estado. É que basta que isso ocorresse após o decurso dos prazos das referidas condições objetivas de punibilidade, podendo até atualmente não haver essa lesão, em termos de mora ou incumprimento. Se decorreram aqueles prazos sem pagamento, o crime está consumado e é punível, não tendo o pagamento posterior qualquer influência em termos de ilicitude, mas apenas em termos atenuativos da culpa.

Improcede pois, este argumento utilizado pelo arguido J. M., no seu recurso.

2.3. - Da Condenação Excessiva do Arguido J. M.

Entende ainda este arguido como excessiva, a sua condenação.

Com efeito, alega que não ficou com nada para si e apenas pretendeu manter o giro comercial da empresa, pagando a trabalhadores e fornecedores.

Pretende, em primeiro lugar, a dispensa de pena ou a atenuação especial da mesma, nos termos do art.º 22º R.G.I.T.

Quanto à dispensa da pena.

Diz-nos o art.º 22º/1, a) a c), R.G.I.T., que o agente pode ser dispensado de pena, quando;

- repuser a verdade sobre a sua situação fiscal – naturalmente, apenas nos crimes de fraude;
- a ilicitude do facto ou a culpa do agente não forem muito graves;
- a prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos, até à dedução da acusação;
- à dispensa de pena não se opuserem razões de prevenção.

Ora, salta aos olhos que, no caso dos autos, o segundo pressuposto não existe, pois a dívida à Segurança Social nem até agora foi paga, na íntegra. Porque aqueles pressupostos são cumulativos, nem interessa verificar se se verificam os 2º e 4º pressupostos, pois o 3º sempre falhará.

Nunca poderia pois o arguido recorrente ser dispensado de pena no caso dos autos, improcedendo pois nesta parte, o recurso apresentado.

Quanto à atenuação especial da pena.

Dispõe o art.º 22º/2 R.G.I.T., que a pena será especialmente atenuada nos crimes fiscais, se o agente repuser a verdade fiscal (o que não está em causa no caso dos autos) e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final do processo ou no prazo nela fixado.

É também evidente que o arguido recorrente não pagou toda a prestação tributária em dívida, até à data da sentença e que nela também não foi proposto nenhum novo prazo, para tal.

É assim também evidente que, no caso dos autos, não pode a pena aplicada ser especialmente atenuada, nos termos sobreditos.

Improcede pois e também aqui, o recurso interposto.

Invoca ainda o arguido como excessivas, a pena de multa aplicada e respetiva taxa diária.

Para tanto, invoca que não ficou com dinheiro para si, tendo o mesmo sido utilizado para pagar a trabalhadores e fornecedores – o que é referido nos factos provados da sentença, mas sob a referência “nomeadamente”, fazendo-se ainda referência expressa ao pagamento da água, luz e telefone (ponto 1.11. da matéria de facto).

Pede a diminuição da pena, para 150 (cento e cinquenta) dias de multa e da taxa, para 5€ (cinco euros)/dia.

Foi condenado em 260 (duzentos e sessenta) dias de multa, à razão diária de 6€ (seis euros), num total de 1 560€ (mil, quinhentos e sessenta euros).

Em abstrato, o crime cometido é punível com pena de prisão até 3 (três) anos ou de multa, até 360 (trezentos e sessenta) dias – arts.º 107º/1 e 105º/1, R.G.I.T.

Importa, antes do mais, esclarecer os fins das penas e abordar o seu modo de aplicação.

Está hoje ultrapassada a visão retribucionista da pena, segundo a qual esta varia apenas em função da culpa do agente. Ela estabelece antes, o limite máximo da pena a aplicar.

Considerações de prevenção geral, devem determinar o seu limite mínimo; senão, a pena seria considerada laxista pela comunidade social, e serviria como foco impulsionador de outras condutas desviantes.

Dentro destes parâmetros, são as exigências de prevenção especial ou, dito de outra forma, a necessidade de reinserção social do agente que há-de determinar a medida da pena a aplicar (neste sentido, F. Dias, "Direito Penal Português", Ed. Notícias, 1993, págs. 214 e segs.; Robalo Cordeiro, "Escolha e Medida da Pena", em "Jornadas de Direito Criminal", págs. 235 e segs.; Anabela M. Rodrigues, "Rev. Port. Ciência Criminal", Ano1, Nº2, págs. 248 e segs.).

Na linguagem de Figueiredo Dias, op. cit., pág. 227,

“As finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.”

Como refere na mesma obra, pág. 230,

“A culpa traduz-se numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas”.

Ou ainda, a págs. 231,

“Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração (…) podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.”

Coadjuvante do Juíz na escolha e medida da pena é o art.º 71º C.P., que tipifica de forma não taxativa, alguns critérios a ter em conta.

No caso dos autos e porque se está perante crime continuado, a pena aplicável é a correspondente à conduta parcelar mais grave, que integra a continuação (art.º 79º/1 C.P.). O que não quer dizer que não sejam também relevantes, o período por que perdurou a conduta ou o montante global da apropriação, pelo agente.

A conduta mais grave é a correspondente a Outubro de 2 012, em que estão em causa 323.03€ (trezentos e vinte e três euros e três cêntimos) – relevante, nos termos do disposto no art.º 79º/1 C.P. – e a omissão de pagamento ocorreu todos os meses, entre Fevereiro de 2 011 e Janeiro de 2 013.

São agravantes:

- o tempo por que perdurou o ilícito – cerca de 2 (dois) anos e 1 (um) mês, ininterruptamente (art.º 71º/2, a), C.P.);
- o dolo direto com que o arguido atuou (art.º 71º/2, b), C.P.);
- embora primário à data dos factos, ter já uma condenação anterior por este tipo de crime, transitada em 13 de Fevereiro de 2 014, por factos de 3 de Abril de 2 013 e com condenação em dispensa de pena (Proc.º 60/13.4TAPTB).

E atenuantes:

- terem estes montantes servido para manter o giro comercial da empresa, de que o arguido era, de facto e de direito, gerente (art.º 71º/2, d), C.P.);
- não terem especial relevo os montantes que o arguido não entregou por parcela, à Segurança Social – no máximo, cerca de 300€ (trezentos euros);
- o facto de o arguido ter pedido para aderir ao “programa P.E.R.E.S.” e pago 8% da quantia em dívida, o que revela vontade de cumprir (art.º 71º/2, e), C.P.).

Em poucas palavras: o arguido era o gerente de uma empresa que para cumprir as suas obrigações, não entregou à Segurança Social montantes por si retidos aos trabalhadores, para o pagamento de contribuições a essa entidade. É a situação clássica, relativamente a este tipo de crime, em que o gerente de uma sociedade tenta fazer pagamentos que possibilitem a continuação da empresa – o que, no entanto é irrelevante em termos de conflito de deveres como forma de exclusão da ilicitude (art.º 36º C.P.), mas tem peso atenuativo. É que as operações de desconto são as mais das vezes, puramente aritméticas e o que acontece é que o agente não tem liquidez suficiente para solver todas as suas dívidas, preferindo pagar aquelas que possibilitem que a empresa continue a funcionar. Tem já uma condenação anterior, por facto idêntico.

Sem dúvida, que nos termos do disposto nos arts.º 40 e 70º C.P., a opção por pena de multa foi correta. Apesar das atenuantes referidas, o crime já tem porém alguma dimensão, sobretudo pelo largo tempo por que perdurou, não se podendo ainda esquecer que o arguido recorrente já tem uma condenação, por idêntico tipo de crime.

Seja por que motivo for, o crime não pode compensar.

E, estando em causa a não entrega global à Segurança Social de cerca de 3 080€ (três mil e oitenta euros), a pena de multa também não pode ser de tal forma bagatelar, que não cumpra as suas funções de prevenção geral e especial.

Optando-se pela pena menos grave, julga-se que a medida desta deve ser ligeiramente superior ao ponto médio da pena. Sendo este de 185 (cento e oitenta e cinco) dias, entende-se como ajustada, a aplicação de 200 (duzentos) dias de multa.

Quanto à taxa diária. Prevê a lei, que seja fixada entre os 5€ (cinco euros) e os 500€ (quinhentos euros) por dia, tendo em conta a situação económica e financeira do condenado e os seus encargos (art.º 47º/2 C.P.).

A pena de multa deve ser adaptada à situação pessoal do arguido, mas não pode deixar de ser sentida como pena, sob pena de não cumprir os seus objetivos de prevenção geral e especial.

No caso do arguido, não se sabe quanto ganha por mês exatamente, mas sabe-se que faz trabalhos na Construção Civil por conta própria, em França, que tem casa própria em Portugal não hipotecada a instituição de crédito, pelo menos dois outros prédios rústicos, que vive com a Mulher, Empregada de Balcão e que tem uma filha.

Terá assim e pelo menos, uma condição económica média.

Considera-se assim ajustada a taxa de 6€ (seis euros)/dia em que foi condenado e que se peca, é por defeito. Com efeito, a taxa mínima de 5€ (cinco euros) só deve ser aplicada a arguidos com uma condição económica gravemente deficitária, o que não é o caso do arguido recorrente.

Procede pois, mas apenas parcialmente nesta parte, o recurso interposto - na parte referente aos dias de multa aplicados – improcedendo no mais.

2.3. - Da Pretensão da Arguida “X”

De forma algo inusitada, vem a fls. 453, a coarguida “X”, nos termos do disposto no art.º 413º C.P.P., aderir ao recurso do coarguido J. M., considerando as alegações e conclusões feitas, como suas.

Pede a sua absolição, subsidiariamente a sua dispensa de pena e, subsidiariamente ainda, a redução da medida concreta da multa. Isto, após notificação para responder ao recurso do referido coarguido, nos termos do disposto no art.º 411º/6 C.P.P. – notificação para se pronunciar, querendo, quanto ao recurso interposto.

Naturalmente que não pode extravasar do âmbito da notificação, pretendendo fazer o recurso como seu. E, também naturalmente que já tinha decorrido, o seu prazo de recurso – cfr. notificação da arguida em 29/12/2 017 (fls. 433) e resposta apresentada, apenas em 1/3/18 (fls. 451), quando já em muito se tinha esgotado o seu prazo de recurso – art.º 411º/1, a), C.P.P.

A arguida poder-se-ia pronunciar sobre o recurso já interposto e admitido, até em termos de eventuais decorrências da sua procedência quanto a si, mas já não fazê-lo como seu, aproveitando pois a referida notificação, para apresentar um novo recurso.

A resposta apresentada não pode pois ser admitida, enquanto novo recurso, agora interposto pela arguida “X”.

Pelo que, se não admitirá o mesmo.
**
Termos em que,

3 – Decisão

a) se julga parcialmente procedente, o recurso interposto pelo arguido J. M., assim se reduzindo a pena de multa aplicada, de 260 (duzentos e sessenta) dias, para 200 (duzentos) dias no mais se mantendo a decisão recorrida, nomeadamente quanto à taxa diária da multa, de 6€ (seis euros).
b) Não se admite o recurso interposto pela “X”, na resposta apresentada ao recurso do coarguido J. M..
c) Sem custas para o primeiro, por não haver decaimento total (art.º 513º/1 C.P.P.)
d) Custas do incidente anómalo para a segunda (arts.º 7º/4, n.º 8 e tabela 2, anexa ao R.C.P.), com 1 (uma) U.C. de taxa de justiça.
e) Notifique.

(Pedro Cunha Lopes)
(Ausenda Gonçalves)