Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
845/17.2T9BGC.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: RAI
REJEIÇÃO
FINALIDADES DA INSTRUÇÃO
CRIME DO ARTº 185º DO CP
REVOGAÇÃO DESPACHO RECORRIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Entre outras operações, a decisão instrutória implica um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.
II – Tendo a arguida, no R.A.I. que deduziu, ainda que não impugnando a respetiva factualidade, invocado expressamente matéria de direito para fundamentar a atipicidade da conduta que lhe é imputada na acusação, e, como tal, a impossibilidade de uma futura condenação por tais factos, é óbvio que visa obter em sede de instrução uma decisão judicial no sentido de não a submeter a julgamento, o que cumpre o desiderato da instrução, mostrando-se, pois, aquele requerimento em conformidade com os requisitos legais (cfr. arts. 286º, nº1 e 287º, nº2, ambos do CPP).
III - O requerimento para abertura de instrução em causa, na parte em que visa a apreciação judicial sobre a alegada não verificação dos elementos típicos do ilícito criminal imputado na acusação, não pode ser rejeitado, porque a comprovação judicial a que se reporta o n.º 1 do artº 286º CPP, não se restringe ao domínio do facto naturalístico, antes inclui a dimensão normativa do mesmo e por conseguinte, a sua suscetibilidade de levar (ou não) a causa a julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo nº 845/17.2T9BGC, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança – Juízo Local Criminal de Bragança, no dia 26.09.2019, pela Exma. Juiz de Instrução Criminal foi proferida a decisão instrutória que aqui se transcreve (referência 22140938):

«DESPACHO LIMINAR

Não se conformando com a acusação particular, que o Ministério Público acompanha, a arguida requereu a abertura da instrução, invocando sumariamente a atipicidade dos factos que lhe são imputados na referida acusação, bem como alegando outros.
Cumpre proferir despacho liminar, sendo certo que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287º, n.º3 do Cód. Proc. Penal).
*
O tribunal é competente.

O requerimento é tempestivo (artigo 113º do CPP).

A requerente tem legitimidade (artigo 287º, n.º 1, al. b), do CPP).
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
*

O RAI pode ser rejeitado “Inadmissibilidade legal da instrução”, conceito este que o legislador não define.

No fundamento de rejeição “inadmissibilidade legal da instrução” (parte final do n.º 3 do artigo 287.º do CPP) cabem as seguintes situações:

- Quando se trate de processo especiais (art. 286.º, n.º3, do CPP);

- Incumprimento do disposto no artigo 287º, nº 2, do CPP.

Seguimos o entendimento de que, apesar de a lei indicar alguns casos em que se verifica formalmente essa situação, não significa que tal conceito (“inadmissibilidade legal da instrução”) deva ser interpretado de forma restrita ou que tenha de ser restringido a uma visão formal.

Adoptamos antes uma interpretação do conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” abrangente, que atente à filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, englobe igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (seja apresentado pelo assistente, seja apresentado pelo arguido).
É o que sucede no caso em que o arguido, para além de não ter alegado factos e/ou razões que mostrassem que a acusação fora mal deduzida, esqueceu que a instrução não é um pré-julgamento.
In casu, a arguida não nega a prática dos factos que lhe são imputados, antes alega outros, que temporalmente se diz terem ocorrido antes do crime que lhe foi imputado, o que apenas confirma a acusação particular.
Ou seja, o requerimento de abertura de instrução resume-se a uma mera versão ou contraversão factual (contestação motivada), bem como à alegação de factualidade exógena ou exterior.

Em abstracto, tais factos são inócuos, não tendo idoneidade para abalar os pressupostos do crime que lhe é imputado.
Por meio deste requerimento não se consegue, nem se permite, demonstrar ou concluir, pelo desacerto da decisão de acusar. Quando muito pretende-se contestar os factos vertidos na acusação. Mas nunca poderá ser (ou ter aptidão para constituir) um requerimento idóneo à abertura da fase da instrução.
De facto, um requerimento com um conteúdo deste género é um requerimento que surge totalmente ao arrepio das finalidades legais da instrução, que está em contradição insuperável com as mesmas e, por isso, é imprestável para realizar a actividade típica e única da instrução.
Ora, não faz qualquer sentido admitir um requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido cujo conteúdo dê azo á prática de actos inúteis, designadamente, a um simulacro de julgamento, o que violaria desde logo os princípios da celeridade processual, da proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto responsabilização do sujeito processual arguido.

Relembramos as premonitórias palavras do Sr. Prof. Figueiredo Dias, e que aqui me permito transcrever:

“Continuo todavia a prever o dia em que a instrução será eliminada como fase processual autónoma; (...). Uma tal eliminação será consequência, por uma parte, de o modelo preconizado pelo CPP para esta fase — como simples comprovação por um juiz de instrução da decisão do MP de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito — não ter podido ser até hoje cumprido pela praxis; antes ter sido frequentemente desvirtuado em direcção a um simulacro de julgamento, antecipado e provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de eficiência, jurídica e socialmente exigível, do processo penal. Distorção que persistiu mesmo depois que a revisão de 1998 tentou, timidamente embora, atalhar a esta perversão. E sem que possa prever-se com fundamento, como também opinou Nuno Brandão, que as alterações agora introduzidas façam esperar que a situação se modifique.” (in DIAS, Jorge de Figueiredo, «Sobre a Revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, N.°’. 2 e 3, Abril-Setembro 2008, Coimbra Editora, pág. 376).

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padece de ineptidão para os fins da instrução - atentas as disposições conjugadas dos arts. 286.º, nº 1 e 287.º, n.ºs 2 e 3 ambos do CPP – o Tribunal decide rejeitar tal requerimento.
Sem custas.
Notifique.
Após trânsito, remeta os autos á distribuição.”



▪ Inconformada com tal decisão da Mma. Juiz de Instrução, dela veio a arguida E. R. interpor o presente recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões – transcrição - e petitório (ref. 1460207):

1. Pelo douto despacho proferido nestes autos em 26 de Setembro de 2019 foi decidido que, “(...) Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 287º, n.ºs 2 e 3, do CPP, quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padece (sic) de ineptidão para os fins da instrução – atentas as disposições conjugadas dos art.ºs 286º, n.º 1 e 287º, n.ºs 2 e 3 ambos do CPP – o Tribunal decide rejeitar tal requerimento. (...)”;
2. Surpreende, desde logo, que o douto despacho em crise, no seu dispositivo, misture de forma manifesta o que pertence à decisão propriamente dita com aquilo que mais propriamente corresponde aos seus fundamentos;
3. Depois, surpreende igualmente que ali se aluda a dois fundamentos supostamente distintos para a rejeição - “(...) quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padece (sic) de ineptidão para os fins da instrução (...)”, sublinhados nossos -, quando, umas escassas linhas atrás, o tribunal a quo considerara integrado no fundamento de rejeição identificado como “inadmissibilidade legal da instrução” a ineptidão do RAI;
4. Admitindo nós que o Tribunal a quo se equivocou, pois, para além de não conhecermos doutrina, jurisprudência ou norma legal que preveja a ineptidão como fundamento específico e concreto de rejeição de RAI, aquele começou por enunciar a ineptidão do requerimento como exemplo de “inadmissibilidade legal da instrução”;
5. Apesar disso, o Tribunal a quo não se preocupou em definir (em integração da premissa maior do denominado silogismo judiciário) o conceito dessa “ineptidão” e, além disso, absteve-se de subsumir o concreto RAI deduzido pela arguida a tal conceito (em sede de integração da premissa menor do silogismo), não se compreendendo, pois, o raciocínio lógico-dedutivo seguido pelo julgador e que culminou na asserção da sua verificação in casu (conclusão proclamada);
6. Do que decorre que, a decisão contida no despacho recorrendo, no trecho em que conclui pela ineptidão do RAI, carece, em absoluto, de fundamentação, sendo, por isso, ostensivamente nula, nulidade que se deixa aqui expressamente alegada, para os devidos efeitos – cfr. art.ºs 97º, 5 e 379º, 1, a), este por referência ao disposto no art.º 374º, 2, todos do CPP;
7. De harmonia com a (tentativa de) fundamentação constante do despacho recorrendo, o requerimento de abertura de instrução em causa “resume-se a uma mera versão ou contraversão factual (contestação motivada), bem como à alegação de factualidade exógena ou exterior”, concluindo-se que, “Em abstrato, tais factos são inócuos, não tendo idoneidade para abalar os pressupostos do crime que lhe é imputado”;
8. Uma vez mais, o Tribunal a quo não se preocupou minimamente em justificar (fundamentar) essas afirmações, conforme dever legal (identificando esses factos e aduzindo as razões pelas quais os mesmos são, no seu juízo, juridicamente inócuos), pelo que, nessa parte, a decisão também se mostra inquinada pelo vício de falta de fundamentação (falta a premissa menor do silogismo judiciário) – vide art.º 97º, 5, do CPP - e, por isso, é, nessa parte, igualmente nula;
9. A mais disso, o Tribunal equivocou-se por completo nesse juízo (conclusivo), pois que a arguida invocou, expressamente – nos artigos 59º a 66º do RAI -, a atipicidade da conduta que lhe é imputada, produto da sua atuação enquanto mandatário forense, seja, defendeu que os factos naturalísticos indiciados, e que não impugnou ou impugna, não têm relevância normativo-criminal, não são típicos, não preenchem (sequer) a tipicidade objetiva do crime de difamação que lhe é imputado;
10. Para além de, nos artigos 67º a 88º do seu RAI, ter invocado razões (de direito) que integram duas causas de justificação do facto (dirimentes da ilicitude) que lhe é indiciariamente imputado;
11. O fundamento de direito ali esgrimido, o especificamente conexionado com a “atipicidade”, se apreciado e reconhecido, conduz, logicamente, à conclusão segundo a qual não há razão para submeter a arguida a julgamento, por a mesma não ter cometido qualquer ato prefigurado pela lei como crime, sendo, desta forma, muito mais provável - para não dizer certa - a sua absolvição do que a condenação;
12. Isto é, a arguida, no seu requerimento de abertura de instrução, além do referido na conclusão 10ª, sustentou razões - de direito – que consubstanciam a sua discordância com a decisão – do Ministério Público - de a acusar, cumprindo, desta forma, com o ónus que lhe é imposto pelo art.º 287º, 2, do CPP;
13. E fê-lo, confessadamente, em ordem a que pudesse ser formulado juízo jurisdicional de não indiciação da prática pela sua pessoa de qualquer crime, relacionado com os factos em apreço, tudo em vista da sua não submissão a julgamento – finalidade a que está adstrita a instrução, quando requerida pelo arguido, como deflui do disposto no art.º 286º, 1, do mesmo CPP;
14. Não restam dúvidas, na jurisprudência, sobre o relevo da questão da “atipicidade” como fundamento admissível para a abertura de instrução pelo arguido, conforme se pode retirar, ainda que a contrario sensu, do teor do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, aos 08/05/2012, acessível em www.dgsi.pt, de cuja fundamentação expressamente consta:
(...) No que respeita à questão em toda a sua latitude, parece-nos que nada na lei inculca a ideia de que a instrução (requerida pelo arguido) deva obrigatoriamente basear-se na existência de uma divergência factual face ao acervo constante do libelo acusatório. Assim parece-nos meridianamente claro que uma diversa qualificação daquele acervo (que não se contesta) poderá ser o motivo exclusivo do requerimento de abertura de instrução. Tal divergência, porém, só poderá fundamentar a realização da instrução se couber no escopo legal que esta visa (decisão de não pronúncia), sob pena de ilegalidade manifesta (...)”;
15. Ao decidir como decidiu, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 97º, n.º 5, 286.º, n.º 1 e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.»
Termina peticionando a procedência do recurso e, por isso, seja reconhecida e decretada a nulidade do despacho recorrendo, por falta de fundamentação, nos trechos referentes à afirmação da verificação quer de ineptidão do RAI, quer de inadmissibilidade legal da instrução ou, se assim se não entender, revogado o despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução e substituindo-o por decisão (acórdão) que admita o requerimento de abertura de instrução, ou que determine o Tribunal a quo a admiti-lo.

▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso formulado pela arguida, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua douta resposta, na qual, concordando com os argumentos expendidos na douta decisão recorrida – para o que convoca também pertinente jurisprudência –, e porque entende inexistir as apontadas nulidades ou irregularidades (que, neste caso, estariam sanadas), pugna pela improcedência do recurso (referência 1491647).
O assistente, notificado do despacho de admissão do recurso formulado pela arguida, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta na qual pugna pela improcedência integral do recurso e pela manutenção da decisão recorrida (referência 1494916).

▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral da República, divergindo da posição assumida pelo MP em primeira instância, emitiu parecer (ref. 6817689) favorável à procedência do recurso. Para tanto, alega, em síntese, que o requerimento de instrução deduzido pela arguida não devia ter sido rejeitado por inadmissibilidade legal, uma vez que naquela peça processual, entre o mais, se alega que as expressões que lhe são imputadas, e que a requerente não nega terem sido por si proferidas, não integram sequer a tipicidade do crime de ofensa à memória de pessoa falecida que lhe é imputado. Tal alegação, contendendo com a existência ou não de indícios suficientes da prática do crime, devia ter sido apreciada pelo JIC, após abertura da instrução para o efeito de prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia.
Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, os sujeitos processuais não apresentaram resposta ao parecer.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.)(1).

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dilucidar são as seguintes:

A) Das alegadas nulidades do despacho recorrido por falta de fundamentação.
B) Da admissibilidade legal da instrução face ao teor do requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida.
*
III – APECIAÇÃO:

Da alegada nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação (arts. 97º, nº5 e 379º, nº1, al. a), este com ref. ao 374º, nº2, todos do CPP):

Alega a recorrente que o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação, na parte concernente à afirmada “ineptidão do requerimento de abertura de instrução (R.A.I.)” e ainda quanto à ali alegada inadmissibilidade legal do mesmo, por mera invocação de factos inócuos para a finalidade da instrução. Sustenta essa nulidade no disposto conjugadamente nos arts. 97º, nº5 e 379º, nº1, al. a), com remissão deste para o art. 374º, nº2, todos do CPP.

Apreciando:

Preceitua o art. 97º, nº5, do CPP, que “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
Note-se que o despacho recorrido é um ato decisório, porquanto, provindo de juiz, conhece de uma questão interlocutória (cf. nº1, al. b), do mesmo normativo legal).

Prescreve o art. 379º, nº1, al. c), do CPP:

“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º (…)”.
Por seu turno, estabelece o art. 374º, nº2, do mesmo Código, que a sentença começa por um relatório, ao qual “segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Sucede que as nulidades previstas no art. 379º do CPP concernem unicamente à sentença, não sendo aplicáveis aos meros despachos, por mais relevantes que sejam, como é o caso da decisão recorrida, que rejeitou o R.A.I. (2)
Vigora no nosso ordenamento jurídico processual penal um sistema estribado no princípio da tipicidade das nulidades (cf. art. 118º, nºs 1 e 2).
Assim sendo, uma eventual omissão de motivação, de facto e de direito, que ocorra no despacho que não admite o requerimento de abertura de instrução gera uma mera irregularidade, sujeita ao regime de arguição previsto no art. 123º do CPP, uma vez que não se encontra legalmente tipificada como nulidade.

No caso vertente, a arguida devia ter invocado a apontada irregularidade nos três dias seguintes a contar daquele em que foi notificada do despacho objeto do presente recurso.
Não o tendo a ora recorrente arguido tal irregularidade tempestivamente, a mesma, ainda que se verificasse, estaria sanada, encontrando-se vedado a este tribunal ad quem o seu conhecimento – vide Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anot. 301 e 302 ao art. 410º do CPP, p. 1122.
Em suma: inexiste a alegada nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação, nos termos e para efeitos do disposto conjugadamente nos arts. 97º, nº5, 379º, nº1, al. a), e 374º, nº2, todos do CPP, e, outrossim, mostra-se inviável o conhecimento, em sede de recurso, de eventual irregularidade com esse fundamento, atenta a extemporaneidade da sua arguição.

Da admissibilidade legal da instrução face ao teor do requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida:

Chamando à colação o disposto no art. 286º, nº1, do CPP, temos que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, prefere despacho de não pronúncia – art. 308º, nº1 do CPP.
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – cf. nº2 do art. 283º do CPP.
Assim, a existência de indícios suficientes da prática de um crime significará que daqueles indícios resulta uma possibilidade razoável de futura condenação do arguido. Pressupõe, pois, uma convicção, fundada nos elementos de prova disponíveis no momento em que a respetiva decisão é proferida, da probabilidade da futura condenação do arguido.
Em conformidade com a aludida definição legal, a expressão “indícios suficientes” inculca a ideia da necessidade de que a indiciação sobre a autoria ou participação no crime investigado tenha uma base de sustentação segura; não basta que a suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma decisão tão gravosa como a de submeter a julgamento – que, como é sabido, é uma circunstância frequentemente estigmatizante – uma pessoa que pode estar inocente ou sobre a qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado.
Respeita-se, destarte, o princípio constitucional da presunção de inocência plasmado no art. 32º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, o qual deve, por isso, incidir diretamente na formulação do sobredito juízo de probabilidade.
Daqui decorre que uma pessoa não deve ser sujeita a julgamento se emergir dos meios de prova produzidos até então dúvida razoável sobre se, com base nessas provas, o arguido seria aí sujeito à aplicação de uma pena (3). Se tal dúvida ocorrer cumpre, pois, aplicar processualmente a regra in dubio pro reo.
Como ressuma do exposto e é expendido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04/01/2006, divulgado em www.dgsi.pt., quanto ao despacho a proferir no culminar da instrução o juízo de pronúncia deve, em regra, percorrer três fases.
Em primeiro lugar um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.
Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á, em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido.
Por último, efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir, que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.

Volvendo ao caso sub judice:

Na decisão recorrida, em súmula, o tribunal a quo, interpretou o conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, vertido no art. 287º, nº3, do CPP, in fine, como um dos restritos fundamentos para rejeição do requerimento de abertura de instrução, de modo abrangente, englobando igualmente os casos em que o alegado no R.A.I. não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o mesmo é inepto (seja apresentado pelo assistente, seja apresentado pelo arguido).
E, em consonância com tal entendimento, considerou que, no caso, a arguida não nega a prática dos factos que lhe são imputados, antes alega outros, que temporalmente se diz terem ocorrido antes do crime que lhe foi imputado, o que apenas confirma a acusação particular. Assim, segundo a Mma. JIC, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida resume-se a uma mera versão ou contraversão factual (contestação motivada), bem como à alegação de factualidade exógena ou exterior, inócua, inidónea para abalar os pressupostos do crime que lhe é imputado. Tal R.A.I., na conceção do tribunal recorrido, surge totalmente ao arrepio das finalidades legais da instrução, está em contradição insuperável com as mesmas e, por isso, é imprestável para realizar a actividade típica e única da instrução.
Ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, quer porque julgou a instrução inadmissível, quer porque considerou que o RAI padece de ineptidão para os fins da instrução - atentas as disposições conjugadas dos arts. 286.º, nº 1 e 287.º, n.ºs 2 e 3 ambos do CPP –, o Tribunal a quo rejeitou tal requerimento.
Contrapõe a recorrente (conclusões 9ª a 14ª) que invocou no R.A.I., expressamente – nos artigos 59º a 66º do RAI -, a atipicidade da conduta que lhe é imputada, produto da sua atuação enquanto mandatário forense, seja, defendeu que os factos naturalísticos indiciados, e que não impugnou ou impugna, não têm relevância normativo-criminal, não são típicos, não preenchem (sequer) a tipicidade objetiva do crime de difamação que lhe é imputado.
Para além disso, alega, nos artigos 67º a 88º do seu RAI, invocou razões (de direito) que integram duas causas de justificação do facto (dirimentes da ilicitude) que lhe é indiciariamente imputado.
Segundo a recorrente, o fundamento de direito ali esgrimido, o especificamente conexionado com a “atipicidade”, se apreciado e reconhecido, conduz, logicamente, à conclusão segundo a qual não há razão para submeter a arguida a julgamento, por a mesma não ter cometido qualquer ato prefigurado pela lei como crime, sendo, desta forma, muito mais provável - para não dizer certa - a sua absolvição do que a condenação.
Conclui que o seu requerimento de abertura de instrução encerra razões - de direito – que consubstanciam a sua discordância com a decisão – do Ministério Público - de a acusar, cumprindo, desta forma, com o ónus que lhe é imposto pelo art.º 287º, 2, do CPP.

Vejamos:

Temos por certo que, conforme o por si alegado em sede de recurso, a arguida, no douto requerimento para abertura de instrução que deduziu nos autos, designadamente nos arts. 59º a 66º, invocou expressamente matéria de direito para fundamentar a atipicidade da conduta que lhe é imputada na douta acusação particular (a que aderiu o Ministério Público).
Alega a recorrente, entre outras coisas, que a conduta por si levada a cabo ao ter citado numas alegações proferidas em audiência de julgamento os seguintes versos do cantor Zeca Afonso: “Nesse lugar de trabalho/ Nos confins da exploração/ Diz o Marcolino aos Pides/ Apertem-me esse cabrão”, é uma conduta atípica, enquanto proferida na sua qualidade de mandatária forense, atuando no exercício do seu múnus, defendendo “que os factos naturalísticos indiciados, e que não impugnou ou impugna, não têm relevância normativo-criminal, não são típicos, não preenchem, sequer, a tipicidade objetiva do crime de difamação que lhe é imputado”.
Assim, para além do mais alegado naquela peça processual, a arguida, nos mencionados artigos, defende, em síntese, que os factos que lhe são imputados, designadamente as expressões que a acusação lhe imputa, e que não nega ter proferido, encontram-se ainda no âmbito da liberdade de crítica objetiva, mormente porque situadas em contexto (discurso) judiciário, não devendo ser consideradas lesões típicas da ofensa à honra, à consideração e respeito devido a outra pessoa.
Defende, no fundo, a arguida que os factos por que se encontra acusada, são atípicos, não constituem crime algum, pelo que não pode ser condenada.
Ou seja, a arguida contesta indubitavelmente o mérito da acusação particular contra si deduzida, pugnando pela falta de idoneidade da factualidade nela vertida para constituir crime e, dessarte, fundar uma futura condenação em julgamento. Pretende, obviamente, obter em sede de instrução uma decisão judicial no sentido de não a submeter a julgamento.
Ora, salvo melhor entendimento, tal é bastante para cumprir o desiderato da instrução, mostrando-se o R.A.I. em apreço em conformidade com os requisitos legais – cfr. arts. 286º, nº1 e 287º, nº2, ambos do CPP.
Note-se, aliás, que nos casos em que não há lugar a instrução, a acusação deve ser considerada manifestamente infundada se os factos narrados não constituírem crime, o que, no saneamento que inicia a fase do julgamento, constitui causa de rejeição do libelo acusatório – cf. art. 311º, nºs 2, al. a), e 3, al. d), do CPP.
Por conseguinte, o requerimento para abertura de instrução em causa, na parte em que visa a apreciação judicial sobre a alegada atipicidade dos factos imputados na acusação, não pode ser rejeitado, visto que não viola a regra sobre a finalidade da instrução, porque a comprovação judicial a que se reporta o n.º 1 do artº 286º CPP, não se restringe ao domínio do facto naturalístico, antes abarca também a dimensão normativa do mesmo e por conseguinte, a sua suscetibilidade de levar (ou não) a causa a julgamento.
Não se verifica, pois, a invocada “inadmissibilidade legal da instrução”, por ineptidão do R.A.I.
Destarte, como também entende o Ilustre PGA, no douto parecer exarado nos autos, impunha-se que o tribunal declarasse aberta a instrução a fim de apreciar e se pronunciar sobre se os factos por que a arguida se encontra acusada constituem ou não o crime de ofensa à memória de pessoa falecida, previsto e punido pelo artigo 185º do Código Penal, proferindo, em conformidade, decisão instrutória (cf. art. 308º, nº1, do CPP). Entendendo o tribunal que esses factos são criminalmente puníveis, pronunciava a arguida; entendendo que não constituíam crime, não a pronunciava.
Quanto ao alegado pela arguida nos artigos 67º a 88º do seu RAI, consubstanciando, no seu entender, razões (de direito) que integram duas causas de justificação do facto (dirimentes da ilicitude) (4) que lhe é indiciariamente imputado, afigura-se-nos que a discussão jurídica dessa matéria deve ser relegada para a audiência de julgamento.
Na verdade, tendo o legislador optado por concentrar na audiência de julgamento a discussão de “todas as soluções jurídicas pertinentes” (art. 339º, nº4, do CPP), não se justifica a abertura de instrução com o fito da antecipação dessa discussão jurídica – neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anot. 6 ao art. 286º, p. 751.

Conclusão:

Cumpre julgar procedente o recurso interposto pela arguida e, em conformidade, devolver os autos ao tribunal competente para que seja admitido o requerimento apresentado por aquela, determinando-se a abertura da instrução.

IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida E. R. e, em conformidade:

A) Declarar não verificada a alegada nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação, e não conhecer da eventual irregularidade do mesmo com tal fundamento, atenta a extemporaneidade da respetiva arguição;

B) Julgar procedente o douto recurso quanto à peticionada revogação do despacho recorrido e, consequentemente, revogar o mesmo, devendo o tribunal a quo substituí-lo por outro que, admitindo o R.A.I. formulado nos autos pela recorrente, declare aberta a instrução.

Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC (arts. 515º, nº1, al. b) in fine, e 518º, ambos do CPP, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, todos do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).
*
Guimarães, 13 de julho de 2020,

Paulo Correia Serafim (relator)
Nazaré Saraiva

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Assim também os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/03/2006, processo nº 96/2006-3, de 12/05/2015, processo nº 2135/12.8TAFUN.L1-5, e de 30/06/2015, processo nº 147/13.3TELSB-F.L1-5, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
3. Com este entendimento, para além da jurisprudência invocada na douta decisão recorrida e no douto parecer deduzido nesta Relação pelo MP, veja-se Jorge Noronha Silveira, “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, pp. 180-181; Raúl Soares de Veiga, “O Juiz e Instrução e a Tutela de Direitos Fundamentais”, in ob. cit., p. 216; Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova”, in ob. cit., pp. 275-277.
4. A arguida alega como causas de justificação da conduta as circunstâncias de estar em causa o cumprimento de um dever (de patrocínio) e de haver fundamento sério para, em boa fé, a acusada reputar verdadeira a imputação de facto constante do verso por si citado.