Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
778/16.0T8BCL.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLAÇÃO DE REGRAS ESTRADAIS
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – O tribunal só pode e deve considerar como provado em resultado da prova produzida os factos e não as conclusões ou juízos de valor a extrair dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis.

II - O artigo 14º n.º 1 al. b) da NLAT estipula que não dá direito a reparação o acidente que for proveniente exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, ou seja o proveniente de um comportamento temerário em alto e relevante grau que não consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

III - Para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, a imprudência, a distracção, a imprevidência ou comportamentos semelhantes, exige-se um comportamento altamente reprovável, indesculpável e injustificada face ao elementar senso comum que seja atentatória do mais elementar sentido de prudência.

IV - Em face da violação das regras de circulação rodoviária que a lei qualifique como “grave” ou “muito grave”, não pode concluir-se que tal implique necessária e automaticamente a existência de negligência grosseira em sede de acidentes de trabalho, pois os critérios para aferir a culpa numa e noutra situação não são coincidentes.

V - A “negligência grosseira” tem de ser apreciada em concreto nomeadamente em função das condições do próprio sinistrado, enquanto que a negligência para efeitos de infracção estradal é apreciada com referência a um padrão abstracto de conduta.

VI – Não se verificam os requisitos previstos na al. b) do n.º 1 do artigo 14º da NLAT no acidente que consistiu num despiste numa curva à direita, tendo o veículo conduzido pelo sinistrado invadido a faixa de rodagem contrária à sua, indo embater no veículo que aí circulava.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: X SEGUROS, S.A.
APELADA: MARIA
Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Barcelos, Juiz 1

I – RELATÓRIO

Frustrada a tentativa de conciliação, veio MARIA, residente na Rua (…), Barcelos, com o patrocínio do Ministério Público, intentar a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, contra X SEGUROS, S.A., pedindo que se condene a Ré a pagar-lhes a quantia de €2.515,00 a título de subsídio para despesas de funeral, acrescida de €42,44 de juros de mora vencidos e dos vincendos até integral pagamento.

Alega para tanto e em síntese que o seu filho M. S. faleceu em 31 de Março de 2016, na sequência de um acidente de viação, quando se deslocava para o trabalho.

O acidente consistiu num embate entre o veículo ligeiro de passageiros conduzido pelo sinistrado e o veículo pesado de passageiros que circulava em sentido contrário.

O M. S., à data, exercia as funções de assentador de revestimentos, sob as ordens direcção e fiscalização da sociedade “Irmãos C.”, mediante a retribuição mensal ilíquida de €530,00, acrescida de €5,70 de subsídio de alimentação por cada dia efectivo de trabalho, encontrando-se transferida para a Ré a responsabilidade infortunística emergente de acidentes de trabalho, pela totalidade da retribuição auferida pelo sinistrado.

A Ré não pagou à autora o subsídio para despesas de funeral.

Regularmente citada, a Ré Seguradora contestou, mantendo a posição assumida na tentativa de conciliação relativamente à descaracterização do acidente como de trabalho, alegando que o acidente ficou a dever-se à conduta do sinistrado que violou de forma exclusiva e grosseira as regras de segurança rodoviária que no caso se impunham.

Concluindo assim, pela sua absolvição do pedido.
*
Os autos prosseguiram os seus ulteriores termos tendo por fim sido proferida sentença, a qual terminou com o seguinte dispositivo:

“Assim, e nos termos expostos, julga-se a acção totalmente procedente por provada e, consequentemente, condena-se a ré X - Companhia de Seguros, S.A. no pagamento à autora MARIA da quantia € 2.515,00 a título de subsídio para despesas de funeral, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa de legal de 4%, até integral pagamento.---
Custas pela ré.---
Valor da acção: 2.515,00 (art.º 120.º do Cód. Proc. Trabalho).---
Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a Ré interpor recurso para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Ocorreu incorrecto julgamento dos concretos pontos 1.º, 2.º e 3.º dos factos
(não) provados.
2. O Tribunal formou convicção com base nos documentos juntos aos autos, designadamente de fls. 37-39 (auto de notícia), fls. 42-45 (inquérito ACT), 86-88 (relatório de autópsia), 135 (croquis), 136-140 (relatório táctico de inspecção ocular), 141-157 (relatório fotográfico/GNR), 169-177 (relatório final/GNR), 182-186 (despacho de arquivamento do inquérito/SMP), conjugado com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência final, designadamente C. R. (condutora da viatura que embateu com o veículo do autor), F. R. e M. C. (passageira da viatura que embateu com o autor)..
3. O Tribunal de 2ª instância deve efetuar novo julgamento da matéria de facto procurando a sua própria convicção, por forma a assegurar o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto.
4. Assim, a propósito dos pontos de facto impugnados pela recorrente, deve, agora, o Tribunal “ad quem” decidir nos seguintes termos:

Ponto 1.º – deve ser eliminado dos factos (não) provados passando a figurar
nos factos provados.
Ponto 2.º – deve ser eliminado dos factos (não) provados passando a figurar
nos factos provados.
Ponto 3.º – deve ser eliminado dos factos (não) provados passando a figurar nos factos provados.
5. Os depoimentos das testemunhas, únicas presentes na data, hora e local dos factos, foram isentos, não se vislumbram razões para descredibilizar “tout court” o depoimento das mesmas como se fez na sentença recorrida; Note-se que estas testemunhas nenhuma relação de amizade ou inimizade têm com qualquer das partes do processo e nenhum interesse têm no seu desfecho, relataram os factos de forma circunstanciada e coerente.
6. Face à alteração da matéria de facto nos termos pugnados no presente recurso, concluindo que o sinistro em causa ocorreu apenas e só por culpa grave, indesculpável e exclusiva do Sinistrado/falecido, impõe-se a absolvição da recorrente.
7. Entende, assim, a recorrente que inexiste, no caso, qualquer acidente de trabalho indemnizável na situação em apreço, uma vez que o mesmo se encontra descaracterizado.
Conclui assim a Recorrente/Apelante pela revogação da sentença recorrida, com a sua substituição por outra que a absolva do pedido.
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Contra alegou a Autora deduzindo as seguintes conclusões:

- o quesito primeiro da base instrutória é não só conclusivo, como contém matéria de direito;
- deve ser alterada as respostas aos quesitos 2º e 3º da base instrutória;
- para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que a sua conduta (por acção ou omissão) atentou contra o mais elementar sentido de prudência e que a sua falta de cuidado não resultou da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão. É preciso, em suma, que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum;
- o regime jurídico dos acidentes de trabalho reclama mecanismos diferentes daqueles de que se socorre a legislação rodoviária: sendo aqui mais premente o interesse da prevenção geral – com o recurso a presunções de culpa e à punição de meras situações de perigo – jamais se poderiam transpor para a sinistralidade laboral os critérios de gravidade adoptados naquela legislação;
- no caso, a recorrente não provou que o acidente se deveu a negligência grosseira do sinistrado;
- pelo que o acidente não se encontra descaracterizado”.

Termina as suas conclusões dizendo que ao recurso deve ser negado o provimento e em consequência deve ser mantida a sentença recorrida.
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Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida e efeito foram os autos remetidos a esta 2ª instância.

Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 653º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nela não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam, colocam-se à apreciação deste Tribunal da Relação as seguintes questões:

- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- Da descaraterização do acidente nos termos do artigo 14º n.º 1 al. b) da NLAT.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Encontra-se provada a seguinte matéria de facto:

1. A Autora é mãe do sinistrado M. S., nascido em 06.01.1997.
2. M. S. faleceu em 31.03.2016.
3. Nesse dia 31.03.2016, cerca das 7h45m, o sinistrado deslocou-se no veículo automóvel com a matrícula FE (doravante FE), desde a sua residência, sita em (…) – Barcelos, para o armazém da sociedade Irmãos C., Ld.ª, sito em (...), através da EN nº 204, no sentido Barcelos – Ponte de Lima, para, de seguida, ser transportado em viatura da predita sociedade para o respectivo local e trabalho, em Viana do Castelo.
4. Ao chegar ao km 14 da referida via, na localidade de (...), o FE embateu contra o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula JB (doravante JB), que circulava no sentido de trânsito contrário.
5. Mercê do embate, M. S. sofreu lesões traumáticas meningo-encefálicas, torácicas, abdominais, pélvicas e vertebromedulares, que foram causa directa e necessária da respectiva morte, que veio a ocorrer nesse mesmo dia.
6. Na altura do sinistro, e já desde 03.03.2016, M. S. exercia as funções correspondentes à categoria profissional de assentador de revestimentos sob as ordens, direcção e fiscalização da sociedade Irmãos C., Ld.ª, mediante o pagamento da remuneração mensal ilíquida de € 530,00, acrescida de € 5,70 de subsídio de alimentação por cada dia efectivo de trabalho.
7. À data do sinistro, a entidade empregadora tinha transferido a sua responsabilidade infortunística para a ré através do contrato de seguro titulado pela apólice nº (…), na modalidade de prémio variável, pela retribuição anual ilíquida de € 7.420,00 (530,00 x 14 meses).
8. O corpo do sinistrado foi transportado do local do acidente para as instalações do Gabinete Médico-Legal e Forense do Cávado, sito em Braga, onde foi autopsiado, e deste para o cemitério do (...), onde foi inumado.
9. A autora despendeu € 2.515,00 com o funeral do filho.
10. A ré não pagou à autora despesas de funeral.
11. O FF, conduzido pelo sinistrado, ao descrever a curva que antecedia o km 14 da via de circulação em sujeito, entrou em despiste e, apesar de ter accionado o respectivo sistema de travagem, invadiu a faixa de rodagem destinada aos veículos que circulavam em sentido contrário (alteração resultante do ponto IV- 1).
12. A condutora da viatura JB ainda efectuou uma manobra para se desviar para a berma, por forma a evitar o embate, sem contudo o ter conseguido (alteração resultante do ponto IV- 1).
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IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1 - Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

A Recorrente/Apelante pretende a alteração da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova, designadamente dos depoimentos testemunhais gravados.

Dispõe o artigo 662.º n.º 1 do CPC aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 87.º do CPT e no que aqui nos interessa, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por seu turno, o art. 640º, n.ºs 1 e 2 do CPC que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Importa ainda referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no artigo no n.º 5 do artigo 607º do CPC, segundo tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial toda a apreciação da prova pelo tribunal da 1ª instância.

No que respeita à prova testemunhal mostra-se consagrado no artigo 396.º do CC, o princípio da livre apreciação da prova testemunhal, segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador ao dispor o citado preceito legal que a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.

Relacionado com este princípio estão os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção de prova e a discussão na audiência de julgamento se realizem oralmente, para que as provas, excepto aquelas cuja natureza o não permite, sejam apreendidas pelo julgador por forma auditiva. O segundo diz respeito à proximidade que o julgador tem com o participante ou intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova através de uma percepção directa ou formal. Esta perceção imediata oferece maiores possibilidades de certeza e da exacta compreensão dos elementos levados ao conhecimento do tribunal.

Segundo o Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 386 estes princípios possibilitam o indispensável contacto pessoal entre o juiz e as diversas fontes de prova. Só eles permitem fazer uma avaliação, o mais corretamente possível, da credibilidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas.

Todavia importa ter presente para além do princípio da liberdade do julgador na apreciação da prova, que toda a apreciação da prova elo tribunal da 1ª instância tem a seu favor o princípio de imediação, que não pode ser esquecido no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos.

Assim sobre na reapreciação da prova impõe-se toda a cautela para não desvirtuar os mencionados princípios, sem esquecer que não está em causa proceder-se a novo julgamento, mas apenas examinar a decisão da primeira instância e respectivos fundamentos, analisar as provas gravadas e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.

No caso em apreço, a Recorrente indicou os concretos pontos de facto que devem ser alterados, indicou a decisão que deve ser proferida sobre a questão de facto impugnada e relativamente à exigência prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 640º do CPC., de especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diferente, indicou e sinalizou os depoimentos das que no seu entender impõe a alteração da decisão, conjugando-os com os documentos juntos aos autos.

No caso em apreço, a Recorrente/Apelante considerou que foram incorrectamente julgados os factos que constam dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da base instrutória, já que deveriam ter sido dados como provados em vez de terem sido dados como não provados.

Alega a Recorrente que quer da prova documental que consta dos autos, quer dos depoimentos prestados pelas testemunhas únicas presentes na data, hora e local dos factos que relataram os factos de forma circunstanciada e coerente, não revelando ter qualquer interesse no desfecho da acção, resultaram sobejamente confirmados os factos que constam da base instrutória e que se pretende agora que sejam dados como provados.

Vejamos se lhe assiste razão.

Nos artigos 1.º, 2.º e 3.º da base instrutória, que a Recorrente pretende que sejam dados como provados, perguntava-se o seguinte:

- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em C) e D) dos factos assentes, o FE circulava a uma velocidade superior à permitida por lei?---
- Tendo, ao descrever a curva que antecedia o km 14 da via de circulação em sujeito, entrado em despiste e, apesar de accionado o respectivo sistema de travagem, invadido e faixa de rodagem destinada aos veículos que circulavam em sentido contrário?---
- Tendo a condutora da viatura JB ainda efectuado uma manobra para se desviar para a berma, por forma a evitar o embate, sem contudo o ter conseguido?---“

A Mma. Juiz motivou a sua decisão sobre a matéria de facto da seguinte forma:

“O Tribunal formou a sua convicção com base nos documentos juntos aos autos, designadamente de fls. 37-39 (auto de notícia), fls. 42-45 (inquérito ACT), 86-88 (relatório de autópsia), 135 (croquis), 136-140 (relatório táctico de inspecção ocular), 141-157 (relatório fotográfico/GNR), 169-177 (relatório final/GNR), 182-186 (despacho de arquivamento do inquérito/SMP), conjugado com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência final, designadamente C. R. (condutora da viatura que embateu com o veículo do autor), F. R. e M. C. (passageira da viatura que embateu com o autor).--

Na verdade, da prova produzida não resulta provada, de forma inequívoca, a causa exacta do acidente, pois que, pese embora seja abordada a questão da velocidade que o sinistrado imprimiria ao veículo, o certo é que tal velocidade não resultou quantitativamente apurada, tendo aliás as testemunhas C. R. e M. C., únicas que presenciaram o acidente e nele foram intervenientes, admitido não saberem a velocidade que era pelo autor imprimida, nem a efectiva razão do seu despiste, muito menos sabendo concretizar se aquele tentou travar, tendo aquela condutora afirmado ter procurado desviar-se sem sucesso, não concretizando porém a respectiva manobra. Não pode, pois, concluir-se – como era pretendido pela ré – que a velocidade a que a viatura e que circulava o sinistrado seria superior, logo inadequada, ao máximo permitido no local do acidente, máximo esse que se cifraria em 50 km/hora, de acordo com o confirmado pelas testemunhas. Ademais, ainda que tivesse resultado provado que o autor circulava a uma velocidade superior à permitida por lei, é igualmente referido pelas testemunhas em sujeito que, na altura, o piso se encontraria molhado, o que por si poderia igualmente ter contribuído para a ocorrência do sinistro em sujeito.

Em suma, não resultando, repita-se, apurada em concreto a causa do sinistro, não resulta provada a alegada culpa grave e exclusiva do sinistrado na ocorrência do mesmo.
Notifique.”

Estabelecia o artigo 646.º n.º 4 do CPC de 1961 que se têm por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito, assim como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

Apesar da citada disposição legal nada referisse directa e expressamente sobre a matéria de facto que fosse vaga, genérica ou conclusiva, o certo é que na jurisprudência consolidou-se o entendimento de que tal disposição legal era de aplicar analogicamente a tais situações, sempre que a matéria em causa se integrasse no thema decidendu, por se reconduzirem à formulação de juízos de valor que se devem extrair de factos concretos, objecto de alegação e prova.

O Código do Processo Civil de 2013 eliminou o citado preceito, no entanto é de considerar que se mantém tal entendimento, interpretando a contrario sensu o n.º4 do art. 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados. Ou seja o tribunal só pode e deve considerar como provado em resultado da prova produzida “os factos” e não as conclusões ou juízos de valor a extrair dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis, o que é uma operação intelectual bem distinta. Neste sentido ver entre outros Acs. STJ de 07/05/2014 proferido no processo n.º 39/12.3T4AGD.C1.S1 e de 29/04/2015, proferido no processo n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1.

No caso em apreço e como bem acentua o ilustre procurador da república que subescreve as contra – alegações “… a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante.”

Importa ainda salientar que apesar de só os factos concretos poderem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o conceito do próprio objecto do processo ou seja não constitua a sua verificação o conteúdo do objecto de disputa das partes.

Por outro lado são também de afastar as expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam susceptíveis de influenciar o sentido da solução do litígio.

Assim sendo, não podemos deixar de dizer que a formulação do artigo 1.º da base instrutória é manifestamente provida de juízo jurídico-conclusivo, puramente valorativa e destituída de qualquer dimensão factual. Acresce ainda dizer que a expressão “circulava a uma velocidade superior à permitida por lei” é de considerar de vaga, genérica e até integradora de matéria de direito, razão pela qual para além de não integrar qualquer facto ou acontecimento concreto, não deve por isso integrar a selecção da matéria de facto. Mas uma vez que a integrou, em nossa opinião indevidamente, mais não resta do que deixar consignado que o artigo 1º da base instrutória deverá ser julgado não escrito, nos termos acima expostos, por conter apenas um juízo jurídico-conclusivo, que é objecto da disputa das partes.

Improcede assim nesta parte o recurso.

No que respeita aos factos que constam dos artigos 2.º e 3.º da base instrutória teremos de dizer que após a análise de todos os documentos juntos aos autos, audição da gravação onde constam os depoimentos das duas testemunhas mencionadas pela Recorrente, bem como das demais que foram inquiridas na audiência de julgamento, teremos de concluir que apesar de não ter resultado apurada a causa determinante da ocorrência do acidente, o certo é que ficaram sobejamente apuradas as circunstâncias em que o mesmo ocorreu impondo-se assim a alteração da resposta à matéria de facto dada como não provada no que respeita aos artigos 2.º e 3.º da base instrutória.

Na verdade, quer do teor do documentos juntos aos autos, designadamente do auto de notícia (fls. 42-45), do croqui de fls. 135, do relatório táctico de inspecção ocular (fls. 136 - 140), do relatório fotográfico/GNR (fls. 141-157) e do relatório final/GNR (fls. 169-177), quer dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência final, designadamente C. R. (condutora da viatura que embateu com o veículo do autor) e M. C. (passageira da viatura que embateu com o autor), que depuserem de forma clara concisa e desinteressada, resulta sobejamente provado que o veículo conduzido pela infeliz vítima ao descrever uma curva despistou-se, accionou o sistema de travagem e invadiu a faixa de rodagem destinada aos veículos que circulavam em sentido contrário, indo embater no veículo pesado de passageiros que aí circulava, tendo a sua condutora tentado desviá-lo para a berma, sem contudo conseguir evitar o acidente.

Em suma, atenta a prova exuberante produzida relativamente às circunstâncias em que o acidente de viação terá ocorrido, impõe-se a alteração à matéria de facto devendo assim os factos que constam dos artigos 2.º e 3.º da base instrutória ser dados como provados, deles se fazendo constar a seguinte redacção, que será anotada no local próprio.
2 - O FF, conduzido pelo sinistrado, ao descrever a curva que antecedia o km 14 da via de circulação em sujeito, entrou em despiste e, apesar de ter accionado o respectivo sistema de travagem, invadiu a faixa de rodagem destinada aos veículos que circulavam em sentido contrário.
3 - A condutora da viatura JB ainda efectuou uma manobra para se desviar para a berma, por forma a evitar o embate, sem contudo o ter conseguido.
Procede assim nestes termos a impugnação da decisão da matéria de facto.

2 - Da descaraterização do acidente nos termos do artigo 14º n.º 1 al. b) da NLAT.

Importa desde já deixar consignado que o acidente a que os autos se reportam se trata de um acidente de trabalho in itinere e porque o mesmo ocorreu em 31 de Março de 2016, a Lei aplicável, no que respeita ao regime dos acidentes de trabalho é a Lei n.º 98/2009 de 4/09 (doravante NLAT) que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do art. 284º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02.

O normativo mais relevante a ponderar na solução do caso concreto decorre do artigo 14º da NLAT, o qual dispõe o seguinte:

1. O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou se o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2. Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente dificilmente entendê-la.
3. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”

A Recorrente insurge-se contra o facto de na sentença recorrida se ter afastado a descaracterização do acidente, impondo-se agora em face da alteração da matéria de facto averiguar se o acidente ocorreu exclusivamente por negligência grosseira do sinistrado, como está prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14º da NLAT, tal como argumenta a Recorrente.

De acordo com a citada disposição, a empregadora não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.

São dois os requisitos para preenchimento desta exclusão: que o sinistrado aja com negligência grosseira e que essa sua actuação seja condição/causa única do acidente.

Conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, a imprudência, a distracção, a imprevidência ou comportamentos semelhantes, exige-se um comportamento altamente reprovável, indesculpável e injustificada face ao elementar senso comum que seja atentatória do mais elementar sentido de prudência.

Trata-se de uma negligência temerária, que configura uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.

Na verdade, nesta situação, para que se verifique a exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos da profissão, e, para além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.

Como refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 16/06/2016, Proc. n.º 306/11.3TTGRD.C1, in www.dgsi.ptA negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado – na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível. Nos vários cambiantes da culpa, no domínio da negligência, a noção de negligência grosseira equivale à usualmente caracterizada como culpa grave: quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado.

Assim, para a descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que o sinistrado atentou contra o mais elementar sentido de prudência – que a conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. Mas também é preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa da negligência grosseira.”

É assim que tem sido entendido predominante da jurisprudência, citando-se ainda a título de exemplo, os Acórdãos do STJ de 22/09/2011, proferido no processo n.º 896/07.5TTVIS.C1.S1; de 14/02/2007, proferido no proc. 06S3545 e 11/02/15 proferido no processo n.º 1301/10.5T4AVR.C1.S1 e Acórdãos da RP de 4/01/10 e 24/01/11, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Na doutrina é também mais ou menos consensual a definição de negligência grosseira.

Assim, para Maria do Rosário Palma Ramalho - “Direito do Trabalho Parte II – Situações Laborais Individuais”, Almedina, pág. 740 - “não é, pois, excludente da responsabilidade a mera negligência leve do trabalhador, mas apenas a sua falta grave e indesculpável”.

Refere a este propósito Carlos Alegre in “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, Almedina, 2.ª Edição, pág. 61 e seguintes que “será necessário um comportamento temerário ostensivamente indesculpável, com desprezo gratuito pelas mais elementares regras de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, exigindo-se ainda que o mesmo seja causa exclusiva do acidente”. Ainda acrescentando que “o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias”.

Posto isto, podemos desde já afirmar que atentos os factos apurados respeitantes à dinâmica do acidente não se nos afigura, por um lado assacar ao sinistrado a imputada negligência grosseira e, por outro, concluir que o acidente se deu exclusivamente por causa do comportamento estradal do sinistrado.

Analisemos a actuação do sinistrado.

Da factualidade apurada resulta apenas que o veículo conduzido pelo sinistrado ao descrever uma curva à direita despistou-se e apesar de ter accionado o sistema de travagem invadiu a faixa de rodagem destinada aos veículos que circulavam em sentido contrário ao seu, aí embatendo noutro que circulava em sentido contrário, que ainda tentou desviar-se, sem que tivesse conseguido evitar o embate.

Destes factos podemos concluir que o sinistrado com o seu comportamento violou as mais elementares normas de segurança rodoviária, mas os mesmos são insuficientes para podemos concluir que o sinistrado conduzia com uma velocidade excessiva para o local e que conduzia em atitude altamente censurável de leviandade e de descuido.

É indiscutível que o sinistrado ao invadir a faixa de rodagem contrária àquela pela qual seguia, cometeu pelo menos a infracção, prevista na alínea a) do art. 145.º do C.E., designada pela lei como “grave”.

No entanto não foi possível apurar o que esteve na origem da invasão da faixa de rodagem contrária aquela pela qual seguia, não se podendo sem mais concluir que tal invasão se deveu, quer ao excesso de velocidade a que seguia, quer à falta de cuidado ou de atenção do sinistrado, pois pode ter ficado a dever-se por exemplo, a qualquer falha mecânica da viatura, às condições momentâneas do piso, a um problema de saúde momentâneo do sinistrado ou até facto de conduzir a uma velocidade desadequada para o local associado à falta de experiência na condução uma vez que havia obtido a licença de condução recentemente.

Em suma, a factualidade apurada é manifestamente insuficiente para podermos concluir que o sinistrado assumiu um comportamento altamente censurável, irresponsável, insensato e injustificada face ao elementar senso comum, atentatório do mais elementar sentido de prudência

Por fim, importa salientar estando em causa um acidente simultaneamente de viação e de trabalho teremos de ter presente que as razões e finalidades da responsabilidade civil decorrente da circulação rodoviária não se confundem com as inerentes à responsabilidade por acidentes de trabalho, designadamente no que concerne à problemática da descaracterização deste último não se afigurando de adequado aproximação excessiva às regras da responsabilidade civil comum.

Na verdade as infracções estradais são infracções de natureza negligente, cujo desvalor da acção se cinge na violação do dever objetivo de cuidado e na intensidade de tal violação estipulada na norma ou normas infringidas. Assim como sustenta a doutrina e a jurisprudência, em face de uma violação das regras de circulação rodoviária que a lei qualifique como “grave” ou “muito grave”, não pode concluir-se que tal implique necessária e automaticamente a existência de negligência grosseira em sede de acidentes de trabalho, pois os critérios para aferir a culpa numa e noutra situação não são coincidentes. A “negligência grosseira” tem de ser apreciada em concreto nomeadamente em função das condições do próprio sinistrado, enquanto a negligência para efeitos de infracção estradal é apreciada com referência a um padrão abstracto de conduta.

Com efeito, ainda que da factualidade agora fixada pelo tribunal ad quem pudéssemos concluir pela actuação negligente do sinistrado, o conjunto das circunstâncias apuradas ainda assim, não nos permite concluir pela existência de uma “atitude especialmente censurável de leviandade ou de descuido”, nem pelo facto de se encontrarem plasmados traços “particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez”.

Resumindo não é possível afirmar para os efeitos de descaracterização do acidente como de trabalho que o sinistrado tenha agido com negligência grosseira, sendo certo que o ónus da prova dos correspondentes factos impendia sobre a recorrente, por terem natureza impeditiva do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.

Assim sendo fica prejudicada a análise da questão de saber se in casu o acidente proveio de culpa exclusiva do sinistrado e consequentemente improcede o recurso.

DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por X Seguros, S.A., confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Guimarães, 20 de Setembro de 2018

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins