Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
987/16.1T9VNF.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: ACUSAÇÃO PÚBLICA
INSUFICIÊNCIA DE FACTOS
NULIDADE
REMESSA AO Mº Pº
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados».

II - Donde, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não podendo o juiz formular convites ou recomendações, e muito menos ordens, ao Órgão Titular da acção penal, para aperfeiçoamento, rectificação, complemento, ou dedução de nova acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais.

III - Por outro lado, os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea [art. 283º nº 3 b) do CPP].

IV - Perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal do crime imputado numa acusação, se o processo for remetido para a fase de julgamento, deve o juiz rejeitar a acusação, por manifestamente infundada [cf. art. 311º nºs 2, a) e 3, d)], e, se assim não for e o processo chegar a julgamento, o julgador deverá absolver o arguido da acusação, em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada pelo AUJ do STJ nº 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015.

V - De todo o modo, uma vez que neste recurso apenas se trata da possibilidade de retorno do processo jurisdicional à fase anterior de inquérito, ou seja, de saber se uma tal acusação pode ser devolvida ao Ministério Público para o efeito de poder ser “ressuscitada”, a resposta a essa questão só pode ser, evidentemente, negativa, pois, perante a insuficiência da acusação deduzida contra um arguido, quanto aos factos integrantes do tipo subjectivo de um dado ilícito, chegado o momento de sobre ela decidir, não podem os autos ser devolvidos ao Ministério Público.

VI - Com efeito, se o actual regime processual, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo (art. 359º do CPP), por maior e reforçada razão, está vedada uma tal via para a situação a que os autos se reportam, em que, bem vistas as coisas, até se depararia com bem mais do que uma mera alteração substancial perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal de crime que era imputado e constituiria um atropelo aos princípios do justo processo, da igualdade de armas, da lealdade processual e da vinculação temática da acusação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o nº 987/16.1T9VNF.G1, que corre termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão, Comarca de Braga, foi proferido despacho, em audiência de julgamento, a considerar nula por não conter a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjectivos do tipo, necessária à verificação do crime, a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos N. A. e Peúgas X, LDA, e determinar a devolução do processo aos serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

Inconformados com a referida decisão, os arguidos interpuseram recurso, cujo objecto delimitaram com as seguintes conclusões:

A. Vêm os recorrentes interpor o presente recurso do despacho proferido nos presentes autos, que decidiu determinar a devolução do processo ao MP para os fins tidos por convenientes, atenta a declaração de nulidade da acusação pública.
B. Como refere o Ac. Relação de Guimarães de 09/01/2017 (proc. 628/11.3TABCL.G1), disponível em www.dgsi.pt. que aqui aderimos integralmente, a consequência da declaração de nulidade da acusação, por violação do disposto no artigo 283°, n° 3, do C. P. Penal, é, não a remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos que tiver por convenientes (como decidiu o despacho recorrido), mas antes o arquivamento dos autos.
C. Neste sentido vide também do Tribunal da Relação de Coimbra de 6-07-2011 (proc. 2184/069.5JFLSB.C1), disponível em www.dgsi.pt “A possibilidade de, após a dedução da acusação pública, na qual não constam todos os elementos típicos do crime imputado, se poder reformular essa peça processual, seria manifestamente violadora do princípio do acusatório e das mais elementares garantias de defesa do arguido.”
D. Do mesmo modo, entendeu o acórdão da mesma Relação de 23-05-2012 (P.126/09.5IDCBR-B.C1 Maria José Nogueira., Ac. RE de 23-02-2016 (103/13.1T3STC.E1 - Martinho Cardoso) e de 07-04-2015 (159/12.4IDSTB.E1- Martinho; RC de 13-1-2016 (540/13.1GBPBL.C1 - Alberto Mira); e da RL de 30-01-2007 (10221/2006 - José Adriano

TERMOS EM QUE deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que arquive o processo contra os arguidos.

O recurso foi regularmente admitido.

O Ministério Público respondeu, defendendo que a tutela da posição do arguido não reclama que a pretensão punitiva do Estado se deva considerar consumida com o despacho de declaração de nulidade ou de rejeição da acusação e que a regressão do procedimento à fase anterior consequente à declaração de nulidade da acusação, em ordem à renovação do acto inválido, não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, nem constitui nenhum atropelo dos princípios do justo processo, da igualdade de armas, da lealdade processual e da vinculação temática da acusação.

Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto e fundamentado parecer divergindo do sentido expendido pelo Ministério Público na 1ª Instância, pugnando pela procedência do recurso justamente por entender que a devolução dos autos ao Ministério público viola os princípios do processo justo, de igualdade de armas e da vinculação temática da acusação.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, nº 3, al. c), do CPP.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscita-se neste recurso a questão de aferir da possibilidade ou não de o juiz, após ter declarado a nulidade da acusação nos termos do nº 3 do art. 283º do CPP, devolver os autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso o teor do despacho recorrido (transcrição):

«No início da audiência de julgamento o arguido suscitou a nulidade da acusação pública deduzida nos autos, nos termos e com os fundamentos exarados a 274 e 275 dos autos. Exercido o contraditório, o MP pugna pelo respectivo indeferimento de acordo com os fundamentos de fls. 283.

Cumpre apreciar e decidir:

Sobre a matéria em apreciação seguiremos, por pertinente o vertido no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 430/15.3GEGMR.G1, de 19-06-2017, acessível em www.dgsi.pt/jtrg, cujo conteúdo aderimos e passamos a transcrever, por economia processual:

“A acusação, sendo formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o seu objecto (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª Edição, Revista e actualizada, pág. 113).

De acordo com o art.º 283.º, n.º 3, al. b), aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do art.º 285.º, a acusação contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada…”.
Decorre a imposição do princípio do acusatório e como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, em respeito pelo art.º 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

O atual modelo, vigente desde o Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, estrutura-se no referido princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, tendo, nessa parte, a respectiva autorização legislativa sido concedida com o sentido e extensão de estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperada com o princípio da investigação judicial [vd. art.º 2.º, n.º 2, 4), da Lei n.º 43/86, de 26 de setembro (autorização legislativa em matéria de processo penal)].
Um dos traços estruturais do princípio acusatório consiste na clara distinção entre, por um lado, a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, se for o caso, sustenta uma acusação, e, por outro lado, uma entidade distinta que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.
A reforma processual penal operada pela Lei n.º 59/98 de 25 de agosto, introduziu determinadas alterações que vieram reforçar o referido modelo, nomeadamente explicitando as funções dos vários sujeitos processuais, afastando várias dúvidas e divergências jurisprudenciais, como sucedeu com o aditamento do n.º 3 do art.º 311.º, em cujos termos:

“… 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime. …”.

Ao prever-se, de modo claro e taxativo, as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, limitaram-se os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento, confinando-os, no ponto de vista material, à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador. Mas, ainda assim, com uma margem de actuação bastante restrita, uma vez que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime, pelo que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, de nada servindo recebê-la e fazer prosseguir o processo, sujeitando o arguido inutilmente a julgamento, quando ela está votada ao insucesso.

Como mais refere o aresto que vimos citando, é sabido que nos elementos do tipo subjectivo de ilícito incluem-se os que se prendem com o dolo ou a negligência, dispondo o art.º 13.º do Código Penal que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.

O dolo, única modalidade de culpa de que pode revestir o crime em questão, é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como “o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito” (cfr. art.º 14.º do Código Penal).

Segundo a doutrina tradicional do crime, sufragada pelo Mestre Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por outro distinto Mestre, Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.
O elemento intelectual traduz-se no conhecimento (enquanto previsão ou representação), pelo agente, das circunstâncias do facto, ou seja, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito, incluindo eventuais circunstâncias modificativas agravantes.
(…) Por seu lado, o elemento volitivo do dolo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto típico, depois de ter representado (ou previsto) as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito. Em função da diversidade dessa atitude, são diversas as espécies de dolo previstas nos vários números do art.º 13.º do Código Penal: dolo directo (em que o agente tem a intenção de realizar o facto criminoso), o dolo necessário (quando o agente não quer o facto, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e o dolo eventual (quando o agente prevê o facto como consequência possível, conformando-se com o resultado).

Para a posição tradicional defendida por Eduardo Correia, o elemento volitivo não se confunde com o aspecto psicológico, traduzido num simples acto de volição, em que o agente quer praticar o facto (naturalístico), tendo representado todos os seus elementos. O que caracteriza o dolo é a vontade do agente revelar a sua personalidade contrária ao direito, ou seja, a sua determinação em sobrepor os seus próprios sentimentos e interesses aos valores tutelados pelo direito criminal. Daí que, para esta posição, o dolo do tipo legal de crime contivesse já o chamado elemento emocional, traduzido na consciência, por parte do agente, de que realizava um tipo objectivo de ilícito e que tal supunha a sobreposição dos seus interesses egoístas aos valores tutelados pela lei.

Já a posição defendida por Figueiredo Dias distingue entre dolo do tipo (de ilícito) e o dolo enquanto pertencente ao tipo de culpa. Segundo esta concepção, «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (por consequência, não é igual ao dolo do tipo), mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”. (…); antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revele no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal» [ob. cit., pág. 350], ou seja, uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo.

Assim, em resumo, de acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias [ob. cit., pág. 529 e ss.], a culpa jurídico-penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.

Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objectivo (dolo do tipo), actue também com consciência do ilícito isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito.

A consciência da ilicitude é também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).

Ora, a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A esses elementos acresce o referido elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso.

Este elemento emocional é dado através da consciência da ilicitude e integra a forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso. Daí que só possa afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.

Todos esses elementos, que constituem os elementos subjectivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

A questão de saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, nomeadamente do dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao art.º 358.º do Código de Processo Penal, integrar os elementos em falta, dividiu a jurisprudência, tendo o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015 [in Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015], acabado por fixar a seguinte jurisprudência uniformizadora: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”

A propósito deste elemento, reconhecendo que modernamente o problema se coloca de forma diferente do que era usual colocar-se, o acórdão uniformizador refere o seguinte (no ponto 10.2.3.1):

«O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. «Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […]» FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 363/364).

A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contraordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.

Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg. (…)

Quanto à consciência da ilicitude, é evidente que ela é uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do ilícito típico. Porém, a sua compreensão dogmática coloca-se a um outro nível e tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude, contemplada no art.º 17.º do CP. O erro sobre a ilicitude não exclui o dolo, ao contrário do erro sobre a factualidade típica, na qual se pode incluir, em certas circunstâncias, como as já referidas, o conhecimento sobre proibições legais. Fica, porém, ressalvada, quanto a este tipo de erro, a punibilidade da negligência nos termos gerais (art.º 16.º). O erro sobre a ilicitude exclui a culpa, se o erro não for censurável ao agente (sendo uma causa de exclusão da culpa), mas faz persistir o dolo, no caso de o erro ser censurável. Daí que o facto praticado sem consciência da ilicitude seja equiparável ao praticado com essa consciência, desde que não possa afastar-se a censurabilidade de tal erro.

Escreve FIGUEIREDO DIAS, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art.º 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art.º 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito [Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.]

Ainda de acordo com o mesmo Mestre, noutra passagem da dita obra, o que se visa com a exigência do conhecimento, representação ou consciência (psicológica ou intencional) de todas as circunstâncias do facto realizador de um tipo de ilícito objectivo, é que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento (sublinhados nossos) [ob. cit., pág. 351].

E, continuando:

«Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.

O problema da relevância ou pouco significativa relevância axiológica da conduta, aflorado no acórdão recorrido, tem relevo, como vimos atrás, em sede de conhecimento da proibição, ou seja, dos elementos do tipo legal, quando seja razoavelmente de exigir o seu conhecimento para uma correta orientação da consciência ética do agente no sentido do desvalor do facto.»

Também no ponto 11 da fundamentação do acórdão se fez constar o seguinte, sendo igualmente nossos os sublinhados:

«Conexionado com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrado no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.
Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.
Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP)”.
Da leitura dos transcritos segmentos da fundamentação do acórdão uniformizador, mormente daqueles que foram sublinhados, parece claro que, contrariamente ao defendido pelo MP, os factos integrantes da consciência da ilicitude, enquanto dolo da culpa, têm necessariamente de ser alegados na acusação.

Neste sentido se pronunciaram, nomeadamente, os acórdãos da Relação de Coimbra de 02-03-2016 [proferido no processo n.º 2572/10.2TALRA-C2, disponível em http://www.dgsi.pt.] e da Relação de Guimarães de 21-11-2016 [proferido no processo n.º 2644/09.6TABRG-G1].

Daí que também não se sufrague o entendimento expendido no acórdão da Relação do Porto de 26-04-2017 [proferido no processo n.º 8473/16.3T9PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.], no sentido de que a jurisprudência fixada constante do acórdão n.º 1/2015, não abrange a consciência da ilicitude, como causa excluidora da culpa.

Continuando na transcrição do citado Acórdão refere-se ainda:

“Com efeito, parece-nos que da fundamentação desse aresto uniformizador parece resultar claro que sendo a consciência da ilicitude, como já referimos, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do facto típico, acrescendo, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso), não pode deixar de constar da acusação.

Assim, a alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Contrariamente, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objectiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjectivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas concepções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na concepção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo subjectivo e os elementos do tipo de culpa.

Ora, in casu, a articulação fáctica constante da acusação publica apenas contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (directo), traduzido na vontade do agente de praticar os factos ilicitos. Em relação ao elemento intelectual do dolo, também sobressai a alegação segundo a qual o arguido agiu de forma consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica (elementos integrantes do tipo).

Já porém em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), enquanto tipo de culpa que supra ficou caracterizado, habitualmente traduzida pela expressão de que “o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência, o que, como vimos, não pode suceder.

Como é sabido, o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.

Embora, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objectivos, tal não dispensa que tenha de constar da acusação, sob pena de nunca estar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretende levar o arguido a julgamento. Por outro lado, de acordo a mencionada jurisprudência fixada por esse aresto, a omissão na acusação da descrição de algum elemento do tipo subjectivo de ilícito, onde se inclui a consciência da ilicitude, não pode ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do art.º 358.º, n.º 1.

Refira-se que essa jurisprudência não tem exclusivamente por objecto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjectivo do crime imputado, abrangendo a omissão de qualquer elemento dele constitutivo, conclusão que resulta da leitura dos segmentos da fundamentação supra transcritos, bem como da utilização, no texto da jurisprudência fixada, da expressão “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem (…)”.

Concluindo-se, assim, que a acusação pública deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado ao arguido, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não resta outra solução senão considerá-la nula por falta dos requisitos legais do nº 3 do art. 283º do CPP, o que se decide e, consequentemente, determina-se a devolução do processo aos serviços do MP para os fins tidos por convenientes.
Consequentemente sem efeito a audiência de julgamento.
Dê baixa.».
*
III – O Direito

Cumpre apreciar e decidir a enunciada questão da possibilidade ou não da remessa dos autos ao Ministério Público em consequência da declaração de nulidade da acusação pública.

Como se disse, o Sr. Juiz no âmbito da audiência de julgamento, após considerar que a acusação não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjectivos dos ilícitos típicos imputados aos arguidos e por tais elementos não poderem vir a ser aditados em julgamento, declarou a nulidade da acusação nos termos do disposto no nº 3 do art. 283º do CPP (1), e, nessa sequência, ordenou a devolução dos autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

Não está em causa, por conseguinte, o acerto da decisão na parte em que declarou a nulidade da acusação, designadamente quanto à oportunidade da respectiva arguição e fundamentos que a suportaram, aspectos que não suscitaram reacção por parte dos intervenientes processuais interessados e, como tal, por não terem sido impugnados, são insusceptíveis de ser sindicados (2).

Como se sabe o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, seja, o thema probandum e o thema decidendum. O objecto do processo penal é, assim, constituído pelos factos alegados na acusação e a pretensão nela também formulada.

Se é a acusação que delimita o objecto do processo, são os factos dela constantes imputados a um concreto arguido que fixam o campo delimitador dentro do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua actividade cognitiva e decisória. Essa vinculação temática do tribunal consubstancia os princípios da identidade – segundo o qual o objecto do processo (os factos) deve manter-se o mesmo, desde a acusação ao trânsito em julgado da sentença –, da unidade ou indivisibilidade – os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente – e da consunção do objecto do processo penal – mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo) (3).

O Tribunal Constitucional, no Ac. 358/04, de 19/05 (P. 807/03, in DR II, de 28/06/04) ponderou:

«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados.»

Donde, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº. 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não podendo o juiz formular convites ou recomendações, e muito menos ordens, ao Órgão Titular da acção penal, para aperfeiçoamento, rectificação, complemento, ou dedução de nova acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais.

Por outro lado, os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea (4).

E, nos termos do art. 283º, n.º 3, b), a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

Como lucidamente escreveu Damião da Cunha, «(…) processualização da acção penal significa que o acto de acusação – a dedução da acusação – tem necessariamente um caracter concreto e afirma-se na expressão de Figueiredo Dias, como poder-dever do Ministério Público propor ao tribunal a apreciação de um tema (a que acrescentaríamos um certo tema) atinente à realização de uma pretensão punitiva do Estado. Esta conclusão permite conferir efectivo significado ao princípio da legalidade penal – sobretudo naquela re-orientação a que por diversas vezes nos referimos –, tal qual ele está contido no art. 283º, transportando, para o âmbito do processo penal, o sentido fundamental que preside à doutrina da infracção criminal e se polariza na própria compreensão do fim da acção penal. (…) Assim, a acção penal é necessariamente conformadora dos limites da intervenção jurisdicional.» (5).

Dito por outras palavras, da estrutura acusatória do processo decorre que impende sobre o Ministério Público, na veste de acusador, a exposição total dos factos que imputa ao arguido. É ao acusador que cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e, através dela, do processo.

No despacho de recebimento da acusação (art. 311º) está constitucional e legalmente vedado ao juiz acrescentar ou suprimir factos da acusação, alterar ou compor uma acusação eventualmente deficiente, sendo actualmente incontroverso que, o juiz não pode interferir na descrição da factualidade imputada ao arguido na acusação pública.

O inquérito é da competência do Ministério Público a quem cabe exclusivamente a sua direcção, não podendo o juiz, por qualquer modo, intrometer-se nessa fase de investigação: a estrutura acusatória do processo impede o desvio do juiz da posição de terceiro imparcial e supra-partes na tríade juiz-acusador-arguido, decorrendo que o acusador não pode ser ajudado nem corrigido pelo juiz, sob pena de violação desse modelo acusatório (6).

Este modelo acabou por ser reforçado pela reforma operada pela Lei n.º 59/98 de 25/8 (7), na medida em que veio aclarar as funções dos vários sujeitos processuais, afastando várias dúvidas e divergências jurisprudenciais, como sucedeu com o aditamento do n.º 3 do art. 311º.

Com esta alteração, foram definidos, expressa e taxativamente, os casos que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, sendo vedado ao juiz, ao proferir o despacho de saneamento do processo previsto no art. 311º, formular um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que a sustentam, ou seja, de assumir um papel equivalente ao do sujeito processual que deduziu a acusação.
No caso vertente, como se disse, a acusação não foi rejeitada nesse momento processual, o que só veio a suceder em plena audiência de julgamento e por se ter dado como adquirido que a mesma não contém a narrativa de todos os factos integrantes dos elementos subjectivos dos crimes. O que poderia desencadear a discussão sobre se a adequada consequência jurídica dessa insuficiência fáctica não deveria ser a própria improcedência da acusação, porquanto a falta de narração, na acusação pública, dos elementos do crime «traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo admissível, posteriormente, por exemplo, em sede de instrução, para efeito de pronúncia, a alteração dos factos da acusação, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do(s) agente(s), uma vez que tal alteração, neste caso, consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica» (8).

A questão de saber se, perante a omissão total ou parcial na acusação de elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito – nomeadamente do dolo –, o tribunal do julgamento pode, com o recurso ao artigo 358º, integrar os elementos em falta gerou controvérsia, mas esta foi resolvida pelo Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão uniformizador n.º 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015, que fixou a seguinte doutrina: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.».

E na fundamentação deste aresto uniformizador de jurisprudência consta, a dado passo, que a falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo seja do tipo subjectivo do ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.

No entanto, neste recurso, de todo o modo, apenas se trata de saber se uma tal acusação pode ser devolvida ao Ministério Público para o efeito de poder ser “ressuscitada” e a resposta a essa questão só pode ser, evidentemente, negativa, como decorre do já exposto.

É certo que, em geral, a declaração de nulidade de um acto processual possibilita a sua repetição, sempre que este seja ainda possível e necessário.

Efectivamente, convém sublinhar que, consagrando o nosso sistema processual penal o princípio da legalidade e taxatividade das nulidades (art. 118º, n.º 1), a falta na acusação de qualquer dos elementos mencionados nas alíneas a) a g) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma, embora constituindo uma nulidade, não é insanável, por como tal não ser prevista na lei.

E quando a lei expressamente comina a nulidade de um acto sem dispor que se trata de nulidade insanável ela é uma nulidade dependente de arguição (art. 120º n.º 2).

Por outro lado, resulta do art. 122º, n.º 2, que a declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário, a sua repetição.

Todavia, não pode olvidar-se que, perante a concreta acusação em apreço, não tendo sido requerida a instrução, o processo foi remetido para a fase de julgamento, devendo o Sr. Juiz rejeitar a acusação, por manifestamente infundada [cf. art. 311º nºs 2, a) e 3, d)], e, não tendo assim sucedido, chegando o processo a julgamento, o Julgador teria de absolver os arguidos da acusação, perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal de crimes que lhes eram imputados, não podendo devolver os autos ao Ministério Público, ou ao acusador particular, para que a mesma fosse completada – em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada para o caso de insuficiência de factos no requerimento de abertura de instrução (AUJ do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I de 4-11-2005), cuja ratio, obviamente, se estende à acusação pública, à luz dos princípios que enformam o nosso processo penal (9). É o que resulta do próprio AUJ:

«A falta de narração de factos na acusação conduzem à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.

O recurso à analogia legis, de resto, só não é de admitir, sendo vedado em processo penal, quando, pelo recurso a ele, derive um enfraquecimento da posição ou diminuição dos direitos processuais do arguido, desfavorecimento do arguido, analogia in malam partem (cf. Professor Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, pp. 96 e 97), este não sendo o resultado negativo a que a rejeição conduz.».
Ademais como preceitua o art. 359º para a aquisição, em julgamento, de uma alteração substancial dos factos descritos na acusação:

1- Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

Ora, se o actual regime processual, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo, por maior e reforçada razão, está vedada uma tal via para a situação a que os autos se reportam, em que, bem vistas as coisas, até se depararia com bem mais do que uma mera alteração substancial (10).

Como se reconheceu no já citado acórdão da RC de 6-07-2011 (cf. nota 8), «A possibilidade de, após a dedução da acusação pública, na qual não constam todos os elementos típicos do crime imputado, se poder reformular essa peça processual, seria manifestamente violadora do princípio do acusatório e das mais elementares garantias de defesa do arguido».

Também no acórdão da mesma Relação de 23-05-2012 (11) se ponderou:

«Com efeito, o que nos parece incontornável é que (…) se iria conferir uma prerrogativa ao Ministério Público que não tem paralelo quanto aos demais sujeitos processuais, aos quais, em posição similar, não é concedida a faculdade de deduzir “nova acusação”. É, manifestamente, o que se passa na situação atrás reportada com o assistente, quando, em caso de crime de natureza pública ou semipública, na sequência do despacho de arquivamento por parte do Ministério Público, vê o requerimento de abertura da instrução por si apresentado indeferido, sem que haja lugar a prévio convite ao aperfeiçoamento, designadamente por falta de narração dos factos integrantes do crime imputado ao arguido.» «(…) é esta a solução que melhor nos parece compatibilizar-se com os princípios estruturantes do processo penal, com o sistema no seu todo, com a “paridade processual”, isto é com a necessidade de garantir “igualdade de tratamento” a situações idênticas.». E, com tais (extractadas) reflexões, rematou com a seguinte síntese conclusiva: «Se ocorrer no âmbito da instrução, no seio da decisão instrutória, aquando do saneamento do processo, a declaração de nulidade da acusação (art.ºs 283º, n.º 3 e 308º, n.º 3, do C. Proc. Penal), a obstar ao conhecimento do mérito da causa, mormente pela ausência da narração dos factos, determinará a não pronúncia e o consequente arquivamento do autos e não a «remessa» dos mesmos ao Ministério Público» (12).

O acórdão de Relação de Évora de 11/6/1995 (13) já concluíra que «Não é admissível ao Juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir com a investigação de forma a abranger outros factos, e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação.».

Temos, assim, como certo, que não é consentido o retorno ao inquérito de um processo transitado para a fase jurisdicional para possibilitar ao MP a reformulação/rectificação ou complemento fáctico da acusação e para assim sanar a respectiva nulidade, porque tal constituiria um atropelo à estrutura acusatória do nosso processo penal.

O recorrente, em defesa da tese por que pugna, cita o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/2017, de 17/07/2017, publicado no Diário da República n.º 142/2017, Série II, de 25/07/2017. Contudo, este aresto não se pronunciou sobre a possibilidade ou não de os autos, em caso de declaração da nulidade da acusação, serem devolvidos ao Ministério Público, questão que não tratou, não analisou, nem sequer aflorou: apenas cuidou do sentido do princípio ne bis in idem, por referência às vicissitudes da dinâmica processual em causa – proibição de dupla punição e de duplo julgamento.

Em síntese conclusiva diremos, acompanhando o parecer da Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, que a decisão de retorno do processo jurisdicional à fase anterior de inquérito para os fins tidos por convenientes, redunda numa determinação para que o Ministério Público rectifique a peça processual que submeteu a julgamento e viola os princípios da igualdade, da proporcionalidade e, particularmente, do acusatório, constituindo um atropelo aos princípios do justo processo, da igualdade de armas, da lealdade processual e da vinculação temática da acusação.

Assim, procede o recurso.
*
IV- Decisão:

Nos termos expostos, acordam os Juízes desta Relação em, concedendo provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido na parte em que decidiu a «remessa dos autos ao Ministério Público» e, consequentemente, em determinar o arquivamento dos autos.

Sem tributação, por dela se encontrar isento o recorrente.
Guimarães, 3/12/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado
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1 Diploma a que pertencem as normas subsequentemente citadas sem indicação de proveniência.
2 Todavia e apesar de tal limitação não podemos deixar de lembrar, num parêntesis, que a tramitação processual tipicamente imposta prevê uma etapa destinada ao saneamento preliminar do processo, ou seja, ao exame sobre os fundamentos da acusação, com vista a decidir se, sim ou não, esta deve ser recebida e, subsequentemente, designado dia para a audiência de julgamento (arts. 311º e 312º). Ora, segundo cremos, uma vez que a acusação tinha passado esse crivo, a declaração da sua nulidade quando o processo ultrapassara já a fase prevista para esse efeito, terá colidido com o princípio da legalidade que enforma o nosso processo.
3 Cf. Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 145), Ac. do STJ de 13-10-2011 (proc.141/06.0JALRA.C1.S1-Rodrigues da Costa) e Desembargador Cruz Bucho (no estudo “Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal”, que apresentou, nomeadamente, numa comunicação feita no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009).
4 Assim, concluiu o STJ no Ac. de 17-06-2004 (04P908 - Santos Carvalho): «Não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado (“procediam à venda de produtos estupefacientes”, “essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos”, “a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína”, utilizavam também “correios”, “utilizavam também crianças”, etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses “factos” provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição.». Ou no Ac. de 2-07-2008 (07P3861 - Raul Borges): «Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.».
5 In o caso Julgado Parcial, pag.349 e 350.
6 Cfr. Ac. da RE de 20-10-2015, proc. 25/13.6TABJA.E1, relatado pela Desembargadora Ana Brito.
7 Vinício Ribeiro in “Código de Processo Penal Anotado”, p. 879.
8 Como ponderou o Ac. da RC de 6-07-2011 (2184/06.5JFLSB - Alberto Mira). Também o Ac. da RP de 27-06-2012 (581/10.0GDSTS.P1 - Pedro Vaz Pato), concluiu: «A acusação à qual falte um dos elementos constitutivos do tipo não é nula mas improcedente. Deduzida acusação improcedente e requerida a abertura de instrução, a circunstância de os factos descritos na acusação não constituírem crime levaria à rejeição desta. E se, mesmo assim, a acusação não tivesse sido rejeitada e viesse a ser realizado julgamento, essa situação levaria à absolvição do arguido com o consequente arquivamento dos autos. Em nenhuma destas situações se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo, em vez do seu arquivamento. A reformulação ou correcção da acusação, nestas circunstâncias, subverteria o sistema processual penal vigente.».
9 «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
10 V., ainda, a doutrina fixada pelo AUJ nº 1/2015 (DR I de 2015-01-27): «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
11 P. 126/09.5IDCBR-B.C1-Maria José Nogueira.
12 Apontam no sentido acabado de expor todas as decisões de 2ª instância a que acedemos via www.dgsi.pt, à excepção do acórdão da RL de 18-07-2006 (3411/2006-Simões de Carvalho) – que, no entanto, sublinhe-se, foi prolatado na vigência do regime que antecedeu a Lei nº 48/2007 –, sendo que a desta Relação de 27-04-2015, p. 708/13.OGAFAF.G1-Ana Martins Teixeira, invocada no âmbito do recurso, versa sobre uma questão de legitimidade. Assim, v., p. ex., os seguintes acórdãos: da RE de 23-02-2016 (103/13.1T3STC.E1-Martinho Cardoso) e de 07-04-2015 (159/12.4IDSTB.E1-Martinho Cardoso): «A consequência da declaração de nulidade da acusação, por violação do disposto no artigo 283º, nº 3, do C. P. Penal, é, não a remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos que tiver por convenientes (como decidiu o despacho recorrido), mas antes o arquivamento dos autos»; de 25/10/2016, (proc. 121/12.7 1DSTR.E1); RC de 13-1-2016 (540/13.1GBPBL.C1-Alberto Mira); 23-05-2012 (P. 126/09.5IDCBR-B.C1-Maria José Nogueira e da RL de 06-04-201 (proc. 402/12.0TAPDL-A.L1-3-Conceição Gonçalves, de 30-01-2007 (10221/2006 – José Adriano): «É nula a acusação pública – conduzindo à sua rejeição por ser de reputar manifestamente infundada – quando a mesma é omissa quanto aos factos que integram o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido. Concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos – nomeadamente, de facto – de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art.º 308º, n.º 1, in fine, do CPP. Não pode, naquele caso, o Juiz de instrução devolver o processo ao MP, para reformular a acusação declarada nula.».
13 Colectânea de jurisprudência Ano XX 1995, Tomo IV, relatado por Políbio Flor.