Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
280/17.2T8PVL.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: MURO
COMUNHÃO
AQUISIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I) - A norma do artº. 1370º, n.º 1 do Código Civil permite que o proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio possa adquirir nele comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu valor e metade do valor do solo sobre o qual estiver construído.
II) - O artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil não contempla a possibilidade de aquisição da comunhão forçada de um muro divisório quando um dos proprietários confinantes já antes implantou no seu prédio um caleiro e uma chaminé que invade o espaço aéreo do prédio vizinho, mais especificamente por cima do dito muro.
III) - Assim, tendo os RR. colocado no edifício que constitui a sua casa de habitação, que confina por um dos lados com o prédio da A., um caleiro e uma chaminé em chapa que ocupam parte do espaço aéreo do conjunto predial da A., mais precisamente por cima do muro que pertence em exclusivo àquela e divide os prédios de ambos, ocupação essa efectuada contra a vontade da A., não lhes assiste posteriormente o direito de adquirirem meação no referido muro. E ainda que essa possibilidade não fosse afastada pelo fim prosseguido pelo artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil, sempre se teria de classificar de abusivo o exercício do direito que os RR. pretendem fazer valer, nos termos do artº. 334º do Código Civil.
IV) - A sanção pecuniária compulsória a que alude o artº. 829º-A, nº. 1 do Código Civil encontra-se reservada às obrigações de facto, positivo ou negativo, de natureza infungível, o que não é o caso da imposição da obrigação de se proceder à remoção de um caleiro e de uma chaminé edificados sobre o muro pertencente à A., uma vez que incumprida essa obrigação, a mesma pode ser levada a cabo por terceiro, ou pelo próprio credor, à custa do devedor, em sede de execução para prestação de facto positivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

AA intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra BB e mulher CC, pedindo que se:

a) declare que a Autora é legítima proprietária e possuidora do conjunto imobiliário identificado no artº. 1º, alíneas a) e b) da petição inicial;
b) condenem os Réus a reconhecer que a Autora é legítima proprietária e possuidora do conjunto imobiliário;
c) declare que os Réus se apropriaram ilicitamente da parcela de terreno ocupada pelo caleiro e pela chaminé;
d) condenem os Réus a proceder à retirada do caleiro e da chaminé, no prazo de 15 dias;
e) condenem os Réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, à razão de € 50,00/dia, por cada dia de atraso na retirada do caleiro e da chaminé.

Para tanto alega, em síntese, que o conjunto imobiliário, composto por um prédio misto e um prédio urbano, identificado no artº. 1º, alíneas a) e b) da petição inicial e com as confrontações referidas no artº. 3º do mesmo articulado, é integralmente vedado em todo o seu perímetro, sem interrupções, por um muro construído em alvenaria de pedras justapostas com e sem argamassas de diferentes tipos, com altura variável ao longo do perímetro entre 1,20m e 2,40m e largura variável entre 0,60m e 0,80m.
A Autora adquiriu o mencionado conjunto imobiliário integralmente vedado pelo descrito muro, por escritura pública de compra e venda celebrada em 25/01/1980 com DD, no estado de viúva, relativamente ao prédio misto mencionado no artº. 1º, al. a) e com seus filhos EE e marido FF, GG e mulher HH, relativamente ao prédio urbano mencionado no artº. 1º, al. b), tendo a referida aquisição sido precedida de um contrato-promessa de compra e venda celebrado em 28/08/1979 entre a Autora e DD e a filha II.
O conjunto imobiliário havia sido adquirido pela vendedora JJ, no estado de casada com KK, por escritura pública de compra e venda celebrada em 29/01/1964, tendo os vendedores EE e marido, GG e mulher, adquirido a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio referido no artº. 1º, al. b), em virtude da sua intervenção no fenómeno sucessório do seu falecido pai KK.
Além da aquisição derivada, alega, também, factos inerentes à aquisição originária (por usucapião), por parte da A., do direito de propriedade sobre os aludidos prédios tal como se encontram identificados na petição inicial.
Acrescenta que o referido muro que delimita o conjunto imobiliário, está construído sobre a superfície dos prédios que o integram e, desde sempre, é possuído pela A. que é sua legítima e exclusiva proprietária.
A poente do conjunto imobiliário da A. existe um prédio misto identificado no artº. 26º da petição inicial, que não é murado por todos os lados, que desde há anos vem sendo fruído pelos RR., no qual, a pouca distância do muro da A., foi construído um anexo precário para guardar lenhas, fenos e animais de capoeira, que não contendia com a posse e o direito de propriedade do conjunto imobiliário e do muro, sem prejuízo de um pouco mais para norte se ter consumado uma invasão do direito de propriedade da A. pela construção de um telhado sobre um anexo, cujo beiral goteja sobre o muro, bem como ainda mais para norte um apoio sobre o muro de pequena estrutura também precária de arrumos agrícolas.
O anexo em questão desenvolve-se de poente para norte, ao longo do muro da A., com um cumprimento de cerca de 8,5m até se encostar ao outro anexo, cujo beiral do telhado goteja sobre o muro.
Refere, ainda, que em Março de 2015, os RR. iniciaram obras de reconstrução e ampliação desse anexo, sendo que em Abril de 2015, essas obras evoluíram com a colocação na parte voltada para o muro da A. de mais quatro fiadas em blocos de cimento que alteou o anexo em 80 cm e a ampliação nova para a área interior do prédio que vêm fruindo, tendo essa reconstrução ganhado novas formas ao longo dos meses de Maio e Junho de 2015, evidenciando em Abril de 2016 que a pretensão era a de construção de uma moradia, tal como veio a acontecer a partir de Setembro de 2016.
No dia 10/10/2016, pelas 11h10, os RR. fizeram entrar no conjunto imobiliário da A. três trabalhadores que colocaram na mencionada construção um caleiro recolector de águas pluviais e uma chaminé em chapa para extracção de gases, fumos e cheiros, o que realizaram com a oposição da A., que por isso contra eles apresentou queixa crime no DIAP - Secção ....
O caleiro que os RR. colocaram na sua construção, ocupa os bens imóveis da A., na parte referenciada pelo segmento A do levantamento topográfico que junta como doc. ...3, na extensão de 8,30m, na largura variável de 0,07m a 0,19m medida da face ao exterior do muro de vedação do conjunto imobiliário, e a chaminé ocupa os mesmos bens numa largura de 0,29m.
Conclui, entendendo que a ocupação que os RR. fazem do prédio da A., colocando o dito caleiro e a chaminé, é ilegítima porquanto não é autorizada e mereceu sempre oposição daquela.

Os RR. contestaram, aceitando que a A. seja a proprietária do conjunto predial identificado no artº. 1º da petição inicial e alegando que a parte urbana do seu prédio é constituída por dois edifícios paralelos ao prédio da Autora: a) um, localizado a Norte, que há mais de 20 anos foi consumido pelas chamas e que desde então ficou parcialmente em ruínas; b) outro, contíguo ao anterior e localizado a Sul, que foi objecto de obras de reconstrução ao longo dos anos de 2015 e 2016 e que é hoje um prédio urbano destinado a habitação dos Réus.
Reconhecem que com as obras de remodelação do prédio referido na al. b) do artº. 4 da contestação altearam as paredes antigas e que, assim, deixaram de poder invocar a seu favor a antiga servidão de estilicídio.
Mais alegam que entre a parede Nascente do prédio urbano dos RR. e o muro que a A. invoca como seu existe um interstício de terreno, a todo o comprimento da casa e com uma largura média de cerca de 30 cm, que se integra no prédio daqueles, estando o caleiro e a chaminé que os RR. instalaram no seu prédio construído sobre a aludida faixa de terreno que dele é parte integrante, e não sobre o muro em pedra, cuja propriedade exclusiva da A. impugnam.
O caleiro e a chaminé que os RR. colocaram no seu prédio urbano encontram-se a cerca de 5 metros de altura relativamente ao nível do solo, e ainda que os mesmos contendessem com o espaço aéreo correspondente ao direito de propriedade da A., a sua permanência em nada a prejudica seja em termos estéticos, urbanísticos ou de potencialidade construtiva, invocando que a A. litiga com evidente abuso de direito.
Os RR. deduziram, ainda, reconvenção, não aceitando que o muro em pedra que estabelece a linha divisória entre os prédios da A. e os seus prédios seja propriedade exclusiva daquela e, na hipótese de tal muro ser propriedade da A., pretendem os RR. adquirir a comunhão forçada no aludido muro nos termos do artº. 1370º do Código Civil, quer quanto à sua extensão quer quanto à sua altura, mais concretamente no tramo desse muro que se inicia no ângulo de confluência das estremas Norte/Poente - isto na perspectiva do prédio da Autora - e que se prolonga para Sul na extensão de 30 metros.
Na hipótese de aquisição forçada de comunhão no muro, em toda a sua extensão, altura e largura, os RR. disponibilizam-se a pagar à A. metade do valor do muro e do valor do solo sobre o qual o mesmo se encontra edificado, e sendo o muro meeiro, o caleiro e a chaminé podem sobre ele ser e manterem-se edificados, porquanto não ultrapassam o meio do muro.
Concluem, pugnando pela improcedência da acção e sua absolvição dos pedidos contra eles formulados, ou caso assim se não entenda, pretendem que seja reconhecido e declarado que a A. litiga com evidente abuso de direito, ultrapassando grosseiramente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico do direito que pretende fazer valer, decretando-se ilegítimo o exercício de tal direito.
E ainda caso assim se não entenda, pugnam pela procedência do pedido reconvencional, devendo ser declarada e reconhecida a comunhão forçada do tramo do muro identificado nos artºs 27º e 28º da contestação, mediante o pagamento à A. de metade do respectivo valor e de metade do valor do solo sobre o qual o mesmo está construído, condenando-se a A. a reconhecer que os RR. se tornam proprietários meeiros de tal tramo de muro e que, em consequência, o caleiro e a chaminé poderão ser, e manterem-se, sobre ele edificados.

A A. apresentou réplica, invocando a ineptidão da reconvenção na medida em que o pedido formulado está em contradição com a causa de pedir, porquanto os RR./reconvintes formulam pedido para que seja declarada e reconhecida a comunhão forçada do tramo e do muro, mediante o pagamento de metade do respectivo valor e do solo sobre o qual está construído, mas expressamente alegam, por outro lado, que “não aceitam a pretensão da autora que o muro em pedra que estabelece a linha divisória entre os respectivos prédios seja desta propriedade exclusiva”.
Referem, ainda, que o prédio urbano dos RR./reconvintes é paralelo ao muro da A./reconvinda, à parte o interstício inferior a 30 cm, não tendo aqueles para a construção dessa tal casa, reclamado a comunhão forçada do muro da A., faculdade que lhes era reconhecida pelo nº. 1 do artº. 1370º do Código Civil.
Termina, pugnando pela improcedência da excepção deduzida pelos RR., bem como do pedido reconvencional.

Realizou-se a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção da ineptidão do pedido reconvencional invocada pela A., se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova, que não sofreram reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Após, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgando a ação e a reconvenção:
· Declaro a A. proprietária do conjunto imobiliário identificado no art. 1º, al. a) e b) dos factos provados.
· Declaro que os RR. ocuparam, com o caleiro e chaminé que construíram, parte do referido muro nos precisos termos dados como provados.
· Reconheço aos RR./Reconvintes o direito a adquirirem forçadamente em toda a sua extensão, altura e largura (espessura) o muro identificado nos factos assentes, no tramo com a extensão de 30 metros que se inicia no ângulo de confluência das extremas norte/poente – na perspectiva do prédio da A./Reconvinda – e se prolonga para sul naquela extensão, por aplicação do disposto no art. 1370, nº 1 do C. Civil, com o consequente pagamento imediato por parte dos RR./Reconvintes à A./Reconvinda de metade do valor desse muro e de metade do valor do solo onde ele se mostra implantado, fixando, desde já, o valor a pagar pelos RR./Reconvintes à A./reconvinda, pela extensão de 15,90 metros definida pelo Sr. perito, em € 1.122,74 (€ 1.096,50 correspondente a metade do valor do muro e € 26,24 correspondente a metade do valor do solo), relegando para execução de sentença a fixação do restante valor a pagar (pela outra parte do muro e respetivo solo na restante extensão de 14,10 metros).
· Declaro, em consequência, que os identificados caleiro e chaminé deverão manter-se edificados sobre o referido muro nos precisos termos descritos na matéria de facto provada.

Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

O presente recurso tem por objeto a douta sentença proferida nos autos, que julga verificados todos os pressupostos exigidos pelo artº 1370º, nº 1, C.C., para que seja declarada a aquisição forçada por parte dos Réus/reconvindos, de metade do muro identificado nos autos, com obrigação de pagamento do valor do muro e do solo onde se mostra implantado, bem como o restante valor do solo relegando, nos termos do artº 370º, nº 1, C.C., para execução de sentença final.
A douta sentença proferida considera ser manifesta a violação do direito de propriedade da Autora/recorrente, na parte em que o aludido caleiro e chaminé estão a ocupar parte do interior do seu prédio, contra a sua vontade, consubstanciando-se o dano da privação da Autora do uso absoluto e exclusivo do direito de propriedade,
configurando assim a atuação dos Réus ato ilícito, culposo e causalmente danoso que em princípio confere direitos á sua restituição e, consequentemente, à retirada e eliminação dos referidos caleiro e chaminé.
No entanto, a sentença decide que a atuação dos Réus/reconvintes está a coberto do disposto no artº 1370º, nº 1, C.C., que lhes confere a prorrogativa de exercer o direito protestativo depois de praticar o ato ilícito de violação do direito de propriedade, tornando lícito o ilícito.
A jurisprudência citada considera que a aquisição da propriedade nos moldes definidos pelo preceito em causa, tem por escopo objetivos bem distintos daqueles que os Réus visam atingir, pois que apenas pretendem, por via da aquisição que só agora reclamam, conferir licitude a uma atuação de outro modo dela está arredada.
O artº 1370º, nº 1, CC, não contempla a possibilidade de aquisição da comunhão forçada de um muro divisório quando um dos proprietários confinantes já antes construiu, em propriedade exclusiva, um caleiro e chaminé que ocupa parte do referido muro, nos precisos termos dados como provados.
Assim deve improceder o reconhecimento do direito dos Réus/reconvintes à aquisição da comunhão do referido muro, pelo que a sentença em mérito incorre em erro de indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes à boa decisão do presente litígio.
Termina entendendo que o presente recurso deve ser julgado procedente.

Os RR. apresentaram contra-alegações, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 7/11/2022 (refª. ...68).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Autora, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação da questão de saber se é aplicável ao caso do muro identificado nos autos o instituto da comunhão forçada consagrado no artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil.

Na sentença recorrida foram considerados provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos [transcrição]:


No Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., existe um conjunto imobiliário constituído por:
a) prédio misto, composto por uma morada de casas e terreno junto denominado de “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº. ...06, aí registado a favor da Autora pela Ap. ..., de 1979/11/20, inscrito na matriz predial urbana sob o artº. ...2 e na matriz predial rústica sob o artº. ...08;
b) prédio urbano, composto por uma morada de casas com quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº. ...06, aí registado a favor da Autora pela Ap. ..., de 1979/11/20, inscrito na matriz predial urbana sob o artº. ...4.

O prédio mencionado no artigo 1º, al. a) está atualmente inscrito na parte rústica, na respetiva matriz sob o artº. ...08, sendo certo que corresponde à antiga matriz rústica sob o artº. ...66, embora sem referência à correspondência com a anterior matriz, a qual também não é estabelecida pelo Serviço de Finanças ... por falta de elementos.

O referido conjunto imobiliário tem as seguintes confrontações atuais:
Norte – LL;
Nascente e sul – caminho;
Poente – BB.

O descrito conjunto imobiliário é integralmente vedado em todo o seu perímetro, sem interrupções, por um muro construído em alvenaria de pedras justapostas com e sem argamassas de diferentes tipos, com altura variável ao longo do seu perímetro, sendo que tal muro, que tem uma extensão de cerca de 30 metros na confinância do prédio da A. com o prédio dos RR. (tramo que se inicia no ângulo de confluência das extremas norte/poente – na perspetiva do prédio da A. – e se prolonga para sul naquela extensão de 30 metros), na zona que confina com a construção dos RR. referida infra tem duas alturas médias, sendo que o primeiro tramo do muro, ao lado dessa construção, tem uma altura média de 1,47 metros e o segundo tramo do muro, ao lado dessa construção, tem uma altura média de 1,30 metros.

A A. adquiriu o descrito conjunto imobiliário, por negócio jurídico de compra e venda celebrado com DD, no estado de viúva, relativamente ao prédio misto mencionado no supra artigo 1º, al. a), e com seus filhos EE e marido, FF, e GG e mulher, HH, relativamente ao prédio urbano mencionado no supra artigo 1º, al. b), em 25 de Janeiro de 1980, por escritura pública lavrada no extinto ... Cartório Notarial ..., a fls. 7vº a 12, Lvº. 70-D., aquisição que registou a seu favor.

A referida aquisição foi precedida de um contrato-promessa de compra e venda celebrado a 28 de Agosto de 1979 entre a Autora e DD, viúva, e a filha EE.

O referido conjunto imobiliário havia sido adquirido pela vendedora JJ, no estado de casada com KK, também por negócio jurídico de compra e venda celebrado em 29 Janeiro de 1964, titulado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial ... a fls. 27vº a 29, Lvº para Escrituras Diversas C-nº 9.

Os vendedores EE e marido, GG e mulher, adquiriram a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio referido no artigo 1º, al. b), em virtude da sua intervenção do fenómeno sucessório do seu finado pai KK.

A A., por si e seus antecessores, há mais de 20 e 25 anos, está na posse pública, pacífica, exclusiva e contínua, sem interrupção, do referido conjunto imobiliário (e respetivo e mencionado muro de vedação), sempre, reiteradamente, aproveitando as suas utilidades, nele levando a cabo e custeando-as, obras de conservação e melhoramentos, designadamente nas casas e muro, nos terremos plantando árvores, videiras, semeando e colhendo vegetais e cereais, erguendo e cuidando dos muros de suporte, cortando árvores, pagando os respetivos impostos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e com ânimo de sobre tal conjunto predial (e muro de vedação) exercer os poderes correspondentes ao direito de propriedade.
10º
A poente do referido conjunto imobiliário, existe um prédio misto, composto de casa, anexo e terrenos adjacentes com horta, árvores de fruto, e outras produções agrícolas de época para consumo doméstico, propriedade dos RR.
11º
A parte urbana do referido prédio dos RR. é constituída por dois edifícios paralelos ao aludido conjunto predial da A.:
a) um, localizado a Norte parcialmente em ruínas;
b) outro, contíguo ao anterior e localizado a Sul, que foi objeto de obras de reconstrução por parte dos RR. ao longo dos anos de 2015 e 2016 e que é hoje um prédio urbano destinado a habitação dos RR.
12º
Os aludidos edifícios têm mais de 20, 30 e 50 anos (inclusive o que foi reconstruído pelos RR. à data do início da reconstrução) e o telhado do edifício referido em 11º, al. a) supra, ultrapassava a linha divisória que separava aquele prédio dos RR. do prédio da A. escorrendo a água das chuvas por esse telhado para o interior do aludido prédio da A.
13º
Após as obras de reconstrução efetuadas pelos RR. nos termos referidos em 11º, al. b) supra, nos anos de 2015 e 2016, o edifício/anexo foi alteado, sendo que na confinância com o prédio da A. foi alteado com cerca de 4 fiadas de blocos, em cerca de 0,80 metros, e passou a ter (1) um caleiro recolector de águas pluviais numa extensão de cerca de 7,40 metros que penetra, ao longo dessa extensão, no espaço aéreo do referido conjunto predial da A. mais especificamente por cima do referido muro (depois de a parte de cima do referido anexo/edifício - parede superior - onde esse caleiro está acoplado passar por cima do trato de terreno dos RR. referido em 14º infra), numa largura variável entre 0,07 metros e 0,19 metros, medição efetuada da face exterior desse muro, encontrando-se a uma altura do solo de cerca de 4,57 metros, e encaminhando as águas para o interior do prédio dos RR. e (2) uma chaminé em chapa para extração de gases, fumos e cheiros que por baixo desse caleiro, penetra no espaço aéreo do referido conjunto predial da A. mais especificamente por cima do referido muro (e depois de a parte de cima - parede superior - do anexo/edifício onde essa chaminé está acoplada passar por cima do trato de terreno dos RR. referido em 14º infra), numa largura de 0,29 metros, medição efetuada da face exterior desse muro, encontrando-se a base da chaminé a uma altura do solo de cerca de 4,12 metros, ocupação essa (caleiro e chaminé) efetuada contra a vontade da A.
14º
Nessa extensão de 7,40 metros, a parede exterior e inferior da casa dos RR. não encosta ao referido muro, existindo um espaço entre a casa dos RR. e o referido muro, com uma largura de aproximadamente 0,40 metros no seu ponto mais a sul e uma largura de aproximadamente 0,32 metros mais a norte.
15º
O custo para a construção de um muro com as características do referido muro da A., na zona em que está ao lado das referidas construções dos RR. numa extensão de 15,90 metros, é, por m2, de cerca de € 100,00, sendo que metade do valor da parte do referido muro é de € 1.096,50.
16º
O custo do solo para a implantação de um muro com as características do referido muro da A., na zona em que está ao lado das referidas construções dos RR. numa extensão de 15,90 metros (que apresenta, nessa parte, uma espessura média de 0,60 metros), é, por m2, de cerca de € 5,50, sendo que metade do valor do solo sobre o qual está implantada a referida parte do muro é de € 26,24.
17º
A distância que medeia entre o prédio urbano da A. e o anexo reconstruído pelos RR. é de aproximadamente 60,00 metros, sendo que na parcela de terreno do referido prédio da A. que fica próxima do referido prédio urbano dos RR. existem árvores de grandes dimensões e densidade, nomeadamente carvalhos, sobreiros e eucaliptos, o que não impede que do prédio urbano da A. seja visível o prédio reconstruído pelos RR.

Por outro lado, na sentença recorrida, quanto a factos não provados, é referido o seguinte [transcrição]:
Não se provaram todos os demais factos alegados nos articulados, quer por sobre eles não ter sido produzida prova bastante (cf. infra – A CONVICÇÃO DO TRIBUNAL) quer por estarem em oposição ou em contradição com os factos provados, sendo que outros, finalmente, se mostram irrelevantes para a decisão (para a qual se remete, pois só assim se conclui pela sua relevância/irrelevância), factos esses constantes dos pontos I./2./2.1., I./2./2.2. e I./2./2.3. supra e que se dão por reproduzidos (com exclusão dos dados como provados, como é evidente).
*
Apreciando e decidindo.
A A., ora recorrente, insurge-se contra a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” que julgou verificados todos os pressupostos exigidos pelo artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil para que seja declarada a aquisição da comunhão forçada por parte dos RR./reconvintes de metade do muro de vedação identificado no ponto 4 dos factos provados, e não condenou estes a retirarem o caleiro e a chaminé em chapa que colocaram no prédio urbano que constitui a sua habitação e ocupam o espaço aéreo do conjunto predial da A. identificado nos pontos 1 e 2 dos factos provados, mais especificamente por cima do referido muro, nos termos descritos no ponto 13 dos factos provados, tendo, em vez disso, acolhido a pretensão dos RR., reconhecendo-lhes o direito a adquirirem a comunhão forçada naquele muro, com obrigação de pagamento de metade do valor do muro e do solo onde ele se mostra implantado, e declarando que as referidas estruturas deverão manter-se edificadas sobre o aludido muro.
Alega a recorrente que a obra em causa viola o seu direito de propriedade (na parte em que o caleiro e a chaminé estão a ocupar parte do interior do seu prédio, contra a sua vontade) e que os RR. pretendem, por via da aquisição que só agora reclamam, conferir licitude a uma actuação que é ilícita.
Entende a recorrente que o artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil não contempla a possibilidade de aquisição da comunhão forçada de um muro divisório quando um dos proprietários confinantes já antes construiu, em propriedade exclusiva, um caleiro e chaminé que ocupa parte do referido muro, nos precisos termos dados como provados.
Vejamos se lhe assiste razão.
Em causa estão dois prédios entre si confinantes: o conjunto predial da A./recorrente, constituído por um prédio misto e um prédio urbano identificados em 1 e 2 dos factos provados, que confronta a poente com um prédio misto propriedade dos RR./recorridos identificado em 10 e 11 dos factos provados, sendo separados por um muro em alvenaria de pedras justapostas com e sem argamassas de diferentes tipos, com altura variável ao longo do seu perímetro, que tem uma extensão de cerca de 30 metros na confinância do prédio da A. com o prédio dos RR., melhor descrito em 4 dos factos provados, pertencente à recorrente.
Resulta, ainda, da factualidade apurada que após as obras de reconstrução efectuadas pelos RR. nos anos de 2015 e 2016, o edifício destinado à habitação daqueles, na confinância com o prédio da A., foi alteado com 4 fiadas de blocos, em cerca de 0,80 metros, tendo os RR. colocado no mesmo um caleiro recolector de águas pluviais numa extensão de cerca de 7,40 metros que ocupa, ao longo dessa extensão, o espaço aéreo do conjunto predial da A., mais especificamente por cima do referido muro, numa largura variável entre 0,07 metros e 0,19 metros (medição efectuada da face exterior desse muro), encontrando-se a uma altura do solo de cerca de 4,57 metros, que encaminha as águas para o interior do prédio dos RR., e uma chaminé em chapa para extracção de gases, fumos e cheiros que por baixo desse caleiro, invade o espaço aéreo do conjunto predial da A., mais especificamente por cima do referido muro, numa largura de 0,29 metros (medição efectuada da face exterior desse muro), encontrando-se a base da chaminé a uma altura do solo de cerca de 4,12 metros, ocupação essa (do caleiro e da chaminé) efectuada contra a vontade da Autora.
De acordo com o disposto no artº. 1305º do Código Civil, “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
No caso em apreço, a recorrente pretende reagir, com a acção interposta, contra o facto dos RR. terem implantado um caleiro para condução das águas pluviais e uma chaminé em chapa para extracção de fumos e cheiros sobre o muro daquela, numa extensão e largura nos termos supra referidos, ocupando assim o correspondente espaço aéreo.
Dispõe o nº. 1 do artº. 1344º do Código Civil que “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico”.
Os RR./recorridos não põem em causa o facto de terem implantado o caleiro e a chaminé, ocupando parte do muro pertencente à A. nos precisos termos dados como provados na sentença recorrida.
Contudo, entendem os RR. que o presente recurso deve improceder por lhes assistir o direito a adquirirem a comunhão forçada no aludido muro de vedação, nos termos do artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil, defendendo que este direito potestativo pode ser exercido mesmo depois de terem praticado um acto ilícito, acto esse que, “in casu”, se consubstancia na ocupação do espaço aéreo do prédio da A. com as estruturas por eles erigidas.
O artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil em que os RR. se apoiam determina que “o proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio pode adquirir nele comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu valor e metade do valor do solo sobre que estiver construído”.
Este preceito legal contempla uma forma coactiva ou coerciva de transferência de propriedade: o proprietário confinante pode exigir a comunhão forçada, no todo ou em parte, de parede ou muro divisório alheio, suportando metade do preço, quer do muro ou parede em causa, quer do solo sobre o qual estão construídos.
Traduz, simultaneamente (tal como ocorre nas servidões legais, com a imposição do encargo ao prédio serviente), um limite ao direito de propriedade do dono da parede ou muro, pela introdução das restrições próprias da compropriedade, que lhe é imposta.
Como é sabido, o direito de propriedade nem sempre tem natureza absoluta, podendo sofrer as limitações necessárias para assegurar a tutela de direitos sociais, ou mesmo de natureza particular que com ele possam conflituar.
Como escreve Carvalho Fernandes (in “Lições de Direitos Reais”, 6ª ed., pág. 216 e 217), “as limitações ao conteúdo dos direitos reais decorrentes da contemplação de interesses particulares, numa sua primeira modalidade, estão relacionadas com a maneira de ser de certas categorias de coisas sobre que os direitos reais incidem.
Na verdade, a contiguidade e a proximidade que frequentemente existe entre os prédios, sejam rústicos, sejam urbanos, faz com que o exercício de direitos reais sobre um deles se projecte sobre prédios vizinhos ou, com mais rigor, sobre o interesse de quem sobre eles detém direitos. Por isso se fala, com propriedade, de limitações impostas por relações de vizinhança”.
Neste contexto, reconhece o artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil o direito potestativo ao proprietário do prédio confinante de obter a aquisição, mediante a correspondente contrapartida económica, da compropriedade de muro ou parede que separe o seu prédio do prédio vizinho, impondo ao proprietário deste a sujeição a essa transferência.
São pressupostos legais do exercício deste direito potestativo de aquisição da comunhão forçada: (i) a existência de dois prédios confinantes (que se verifica “in casu”), (ii) a existência de um muro alheio a dividir os prédios (que é o muro da A.) e (iii) o pagamento de metade do valor desse muro e do valor do solo sobre o qual estiver construído (pagamento esse que os RR. estão dispostos a fazer).
No caso vertente, o prédio urbano dos RR. confina, por um dos lados, com um muro em pedra, que se encaixa no conceito de muro exigido pelo citado artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil, pertencente à recorrente, o qual separa aquele prédio urbano do conjunto predial da Autora.
Resultou provado, ainda, que numa extensão de 7,40 metros, a parede exterior e inferior da casa dos RR. não encosta ao referido muro, existindo um espaço entre a casa dos RR. e o muro, com uma largura de aproximadamente 0,40 metros no seu ponto mais a sul e uma largura de aproximadamente 0,32 metros mais a norte.
Conforme se alcança dos autos, o anexo dos RR., que após as obras de reconstrução e alteamento das respectivas paredes passou a constituir a casa de habitação daqueles, é paralelo ao muro da A., à parte o interstício entre 32 cm e 40 cm, não tendo os RR. para a edificação de tal casa e colocação do aludido caleiro e da chaminé na mesma, reclamado a comunhão forçada no muro da A./recorrente, faculdade que lhes era reconhecida pelo nº. 1 do artº. 1370º do Código Civil.
Só posteriormente à implantação daquelas estruturas, com as características e nas condições descritas na matéria de facto provada, e perante a reacção da recorrente que, por via da acção proposta, pretende a retirada do caleiro e da chaminé, por violação do seu direito de propriedade, é que os RR. formularam a pretensão de adquirir forçadamente a comunhão no muro pertencente àquela, através do mecanismo do artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil.
Coloca-se a questão de saber se o direito potestativo previsto no supra citado preceito legal pode ser exercido depois do respectivo titular ter praticado um acto ilícito, acto esse que, “in casu”, se consubstancia na ocupação do espaço aéreo do prédio da A. com o caleiro e a chaminé colocados pelos Réus.
Embora o Tribunal “a quo” tenha entendido que é manifesta a violação do direito de propriedade da A., porquanto o aludido caleiro e a chaminé estão a ocupar parte do interior do prédio da A. (no caso, parte do espaço aéreo correspondente à superfície) contra a sua vontade, configurando a actuação dos RR. um acto ilícito, culposo e causalmente danoso, consubstanciando-se o dano na privação da A. do uso absoluto e exclusivo do seu direito de propriedade – tendo a A., em princípio, direito à restituição da parte do prédio ilicitamente ocupada e, consequentemente, à retirada/eliminação dos referidos caleiro e chaminé – no entanto, decidiu na sentença sob escrutínio que a actuação dos RR., ao abrigo do disposto no artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil, confere-lhes a prorrogativa de exercer o seu direito de “aquisição forçada” de metade do referido muro depois de praticar um acto ilícito, isto é, “já depois da colocação no muro, ou no seu espaço aéreo, de coisas e estruturas”.
Socorre-se a sentença do argumento de que a “aquisição forçada” nestes termos compõe justamente o litígio, pois «caso aos RR. fosse negado, em via reconvencional, o exercício do seu direito seriam eles, então, condenados a retirar quer o caleiro quer a chaminé.
Uma vez retirado o caleiro e a chaminé, não estariam certamente impedidos, logo a seguir, de exercer o seu direito (pois a prática do ato ilícito e a reconstituição natural levada a cabo não extinguiriam na sua esfera jurídica tal direito potestativo).
Assim, exercendo os RR., neste exemplo, o direito à aquisição forçada, adquiririam a respetiva meação sobre o muro e recolocariam, então, o caleiro e a chaminé no preciso local onde agora essas estruturas se mostram implantadas».
No entanto, como bem refere a recorrente, este raciocínio jurídico é manifestamente enganador, porquanto distancia-se dos conceitos de litispendência e caso julgado, bem como dos respectivos requisitos previstos nos artºs 580º e 581º do NCPC, assim como dos efeitos que decorrem do valor da sentença transitada em julgado.
Ou seja, caso os RR. fossem condenados, em sede de reconvenção, a retirar o caleiro e a chaminé, essa decisão, uma vez transitada em julgado, teria força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos termos do artº. 619º do NCPC, pelo que, contrariamente ao que é referido na sentença sob censura, aqueles ficariam impedidos de exercer o seu direito de aquisição da comunhão forçada no muro em questão, não podendo, por isso, recolocar o aludido caleiro e a chaminé no mesmo local onde agora se encontram implantados.
A recorrente invocou, na réplica (e também neste recurso), jurisprudência na qual fundamenta a tese de que atentos os contornos do caso concreto, os RR. estão a afastar-se do fim prosseguido pelo artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil e, em última análise, estão a agir em abuso de direito.
Na sentença recorrida, o Tribunal “a quo” afirma não desconhecer essa jurisprudência, mas manifesta a sua divergência quanto à mesma, argumentando, por um lado, que “a aquisição forçada nos termos legais não torna lícito o ilícito”, ou seja, vai, certamente, obstar à eliminação ou à retirada das referidas estruturas, mas jamais poderia extinguir a responsabilidade civil dos Réus - se a A. tivesse peticionado danos patrimoniais (por exemplo, despesas com a actuação dos RR. ou outras) e danos não patrimoniais, teriam tais danos, verificados os respectivos pressupostos legais, que ser por eles indemnizados/compensados, independentemente daquela posterior aquisição.
Para sustentar a sua tese, refere, ainda, aquele Tribunal que «em termos gerais, não pode falar-se em abuso de direito a respeito do exercício de um direito potestativo.
Na verdade, encontrando-se o titular investido numa “postestas” e o sujeito passivo em “estado de sujeição”, a regra geral a este nível é a de que só em caso de renúncia é que o direito potestativo não pode ser exercido (mas aí não se trata de uma verdadeira situação de abuso mas de “exercício” de um direito que já não existe na esfera do sujeito).
No limite, talvez numa especial situação de “comportamento contraditório” (o venire…) se pudesse conjeturar tal abuso, mas com pressupostos tão exigentes que, no limite, o primeiro comportamento do titular devesse configurar, mais corretamente, uma renúncia (tácita)».
Relacionado com esta questão, veja-se Cunha Gonçalves (in “Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil”, artºs 2328º a 2337º, § 1805, Vol. XII, 1937, pág. 99) que escreveu o seguinte (que de certa forma contraria a posição defendida pelo Tribunal recorrido):
“A simples faculdade de adquirir a comunhão, porém, não autoriza o proprietário do terreno a antecipar o exercício do seu direito, sem que a comunhão tenha sido regularmente adquirida. Assim, se aquele proprietário introduzir trave ou fizer qualquer obra no muro alheio ou na parede alheia, cometerá actos de esbulho de posse e dano, pelos quais ficará sujeito às acções competentes e incorrerá em responsabilidade civil (…); essa obra poderá ser embargada e demolida em virtude de sentença que julgar procedente a acção, salvo se antes dela a comunhão for pedida e paga”.
No caso em apreço, acolhemos a posição defendida no acórdão da RC de 15/03/2011 (proc. nº. 180/07.1TBTCS, disponível em www.dgsi.pt), invocado pela recorrente e que aborda uma situação similar, segundo o qual o direito potestativo à aquisição da compropriedade do aludido muro, nos moldes definidos pelo artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil, tem por escopo objectivos bem distintos daqueles que os RR. visam atingir. Com efeito, estes apenas pretendem, por via da aquisição da comunhão forçada que só agora reclamam, conferir licitude a uma actuação que, de outro modo, dela está arredada. Ou seja, colocado o caleiro e a chaminé em clara afronta ao direito de propriedade da recorrente, porque foram implantados paralelamente sobre parte do muro exclusivamente pertencente àquela, os RR. visam, com a obtenção da comunhão forçada do dito muro, “branquear” a ilicitude da obra em causa.
Entendemos, pois, que o artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil não contempla a possibilidade de aquisição da comunhão forçada de um muro divisório quando um dos proprietários confinantes já antes implantou no seu prédio um caleiro e uma chaminé que invade o espaço aéreo do prédio vizinho, mais especificamente por cima do dito muro.
Assim, tendo os RR. colocado no edifício que constitui a sua casa de habitação, que confina por um dos lados com o prédio da A, um caleiro e uma chaminé em chapa que ocupam parte do espaço aéreo do referido conjunto predial da A., mais concretamente por cima do muro pertencente àquela e que divide os prédios de ambos, nos moldes descritos nos factos provados, ocupação essa efectuada contra a vontade da A., não lhes assiste posteriormente o direito de adquirirem meação no referido muro. E ainda que essa possibilidade não fosse afastada pelo fim prosseguido pelo artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil, sempre se teria de classificar de abusivo o exercício do direito que os RR./recorridos pretendem fazer valer, nos termos do artº. 334º do Código Civil (neste sentido, vide também acórdão da RC de 29/04/2014, proc. nº. 2463/09.0TBVIS, disponível em www.dgsi.pt).
Por tudo o que se deixou exposto, terá de proceder, nesta parte, o recurso interposto pela Autora com a revogação parcial da sentença recorrida, não se reconhecendo o direito dos RR./reconvintes à aquisição da comunhão forçada no referido muro e condenando-se os mesmos a retirarem, no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão, o caleiro e a chaminé que edificaram sobre o muro que pertence em exclusivo à recorrente.
No mais, deverá manter-se a sentença recorrida, mais concretamente na parte em que declarou a A. proprietária do conjunto imobiliário identificado no artº. 1º, al. a) e b) dos factos provados e que os RR. ocuparam, com o caleiro e a chaminé que construíram, parte do referido muro nos precisos termos dados como provados.
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Por último, na petição inicial, a A. formulou o pedido de condenação dos RR. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, à razão de € 50,00 por cada dia de atraso na retirada do caleiro e da chaminé.
Uma vez que na sentença recorrida, foi reconhecido aos RR. o direito a adquirirem a comunhão forçada no muro identificado nos factos provados, por aplicação do disposto no artº. 1370º, nº. 1 do Código Civil, com o consequente pagamento por parte dos RR. à A. de metade do valor desse muro e de metade do valor do solo onde ele se mostra implantado e, em consequência disso, a manterem os mencionados caleiro e chaminé edificados sobre o referido muro nos precisos termos descritos na matéria de facto provada, o Tribunal “a quo” não conheceu do aludido pedido de condenação dos RR. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.
Tendo este Tribunal de recurso acolhido a pretensão da A./recorrente, no sentido de condenar os RR. a retirarem o caleiro e a chaminé que edificaram sobre o muro que pertence em exclusivo à recorrente, por não lhes reconhecer o direito à aquisição da comunhão forçada no referido muro, julgando desta forma procedente o recurso, entendemos que a apreciação, por este Tribunal, daquele pedido formulado pela A. decorre da procedência do recurso, estando, a nosso ver, implícito no objecto do mesmo.
Vejamos então.
A sanção pecuniária compulsória prevista no artº. 829º-A, n.º 1 do Código Civil é uma medida coerciva, de natureza pecuniária, que se consubstancia numa condenação acessória da condenação principal, que tem por escopo compelir o devedor ao cumprimento do julgado, sob a intimidação do pagamento duma determinada quantia por cada dia de atraso no cumprimento da prestação ou por cada infracção.
Ou seja, a sanção pecuniária compulsória destina-se a forçar o demandado resistente a abster-se de um comportamento que lhe está proibido, designadamente fazendo “acompanhar a condenação no cumprimento de medidas destinadas a exercer pressão sobre a vontade do devedor, capazes de vencer a sua rebeldia e de decidi-lo a cumprir voluntariamente” (Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1995, pág. 372).
Por não ter natureza indemnizatória, a sanção pecuniária compulsória pode ter lugar independentemente da existência ou não daquela e do respeito devido da condenação efectuada. Limita-se a, acessoriamente, reforçar esta última.
Contudo, a sanção pecuniária compulsória só é possível em relação às obrigações de facere ou non facere infungíveis (cfr. acórdãos da RP de 4/06/2012, proc. nº. 3317/08.7TBSTS-A, da RG de 28/09/2010, proc. nº. 1038/09.8TBFAF-A e da RL de 13/02/2014, proc. nº. 7706/06.9TCLRS, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Tratando-se de uma prestação de facto fungível, a mesma pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem que daí resulte qualquer prejuízo para o interesse do credor, sendo que a fungibilidade aparece legalmente consagrada no artº. 767º do Código Civil (vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, pág. 97).
De acordo com o disposto no artº. 767º do Código Civil, o cumprimento por terceiro só não é admissível – sendo, nesse caso, a prestação infungível –, se tiver sido acordado expressamente que a prestação deve ser feita pelo devedor, ou se a substituição por outrem prejudicar o credor.
Assim, conforme decorre do artº. 829º-A do Código Civil e é jurisprudência unânime nos nossos tribunais superiores, apenas nas prestações de facto infungíveis é que há lugar à condenação e pagamento dessa sanção, não fazendo sentido que tal suceda noutras situações.
“E compreende-se que assim seja, pois que consistindo a sanção pecuniária compulsória uma medida coercitiva de carácter compulsório que visa forçar o devedor a cumprir, não faz sentido que essa coercividade seja usada nas situações em que o facto possa ser prestado por terceiro ou até pelo próprio credor que depois pode fazer repercutir esse custo na esfera patrimonial do devedor” (cfr. acórdão do STJ de 19/09/2019, proc. n.º 939/14.6T8LOU-H, disponível em www.dgsi.pt).
Se os devedores não cumprirem o ordenado segue-se a execução para prestação de facto na qual o facto ou a obra ordenada pode ser realizada por terceiro à custa daqueles – cfr. artºs 868º e seguintes do NCPC, quanto à execução para prestação de facto e à possibilidade de o exequente optar pela prestação de facto por outrem ou executá-la ele próprio.
Conforme se pode ler em Antunes Varela, obra citada, pág. 99: “O campo de aplicação das sanções pecuniárias compulsórias limita-se às prestações de facto não fungíveis. Como o devedor não pode ser substituído, sem prejuízo para o credor, na realização das prestações dessa natureza por terceiro que fosse chamado a fazê-lo no próprio processo de execução forçada, a lei não encontra outro meio de procurar satisfazer o interesse do credor que não seja o de impor ao obrigado uma espécie de multa civil por cada dia que ele tarde a cumprir ou por cada vez que ele falte ao cumprimento”.
Compreende-se que assim seja, pois nas prestações de facto em que o devedor não pode ser substituído por terceiro, não há possibilidade de cumprimento coercivo, pois na execução não se pode fazer cumprir a obrigação por terceiro (cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 371 e seguintes e 450).
Em suma, saber se a prestação é ou não fungível é, pois, questão cuja resposta se surpreende, em termos práticos, na afirmação ou na negação da possibilidade de aquela poder ser cumprida por terceiro.
Ora, no caso em apreço, não existe qualquer impedimento a que os trabalhos de remoção do caleiro e da chaminé edificados sobre o muro pertencente à A./recorrente, determinados neste acórdão, não sendo efectuados pelos RR. ou a mando destes, sejam executados por terceiros, ou pelo próprio credor (no caso a A.) em nada ficando prejudicada a A. por esse facto.
Estamos perante um facto fungível que pode ser prestado por terceiro, ou pelo próprio credor (neste caso, a Autora).
Daí que, caso os RR./recorridos não cumpram com aquela prestação de facto positivo, retirando aquelas estruturas no prazo para tanto fixado por este Tribunal, poderá a A. requerer a execução para prestação de facto positivo, na qual é possível proceder à remoção do caleiro e da chaminé mediante recurso a terceiro (artºs 868º, nº. 1 e 870º, nº. 1 do NCPC), ou podendo ser feita por ela própria (artº. 871º do NCPC), à custa dos Réus (neste sentido cfr. acórdãos da RE de 5/11/2015, proc. nº. 5621/13.9TBSTB, da RP de 4/06/2012, proc. nº. 3317/08.7TBSTS-A e da RC de 9/02/2010, proc. nº. 1506/03.5TBPBL, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Decorre do atrás exposto, que não se encontram preenchidos os requisitos legais enunciados no n.º 1 do artº. 829º-A do Código Civil, para aplicação “in casu” da sanção pecuniária compulsória (cfr. acórdãos RG de 25/02/2021, proc. nº. 335/20.6 T8GMR-B e de 31/10/2018, proc. nº. 418/15.4T8CMN, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Concluindo-se, pois, pela fungibilidade da prestação em causa, é manifesto que não pode proceder o pedido de condenação dos RR. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto pela Autora.
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III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Autora AA e, em consequência, revogam parcialmente a sentença recorrida, decidindo:

a) - não reconhecer o direito dos RR./recorridos à aquisição da comunhão forçada no muro de vedação identificado nos factos assentes, pertencente em exclusivo à A./recorrente;
b) – condenar os RR. a retirarem, no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado deste acórdão, o caleiro e a chaminé que edificaram sobre o mencionado muro.
No mais, decide-se manter a sentença recorrida, mais concretamente na parte em que declarou a A. proprietária do conjunto imobiliário identificado no artº. 1º, al. a) e b) dos factos provados e que os RR. ocuparam, com o caleiro e a chaminé que construíram, parte do muro que pertence em exclusivo à Autora nos precisos termos dados como provados, bem como na parte em que não condenou os RR. no pagamento de qualquer sanção pecuniária compulsória.

Custas por ambas as partes, na proporção de 3/4 para os recorridos e 1/4 para a recorrente.
Notifique.
Guimarães, 12 de Janeiro de 2023
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)