Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
125/17.3T8TMC-A.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
INTEMPESTIVO
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
BOA DECISÃO DA CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I- O princípio do inquisitório consagrado nos arts. 411º e art. 452º do CPC permite ao juiz por sua iniciativa que, aliás pode ser suscitada pelas partes, determinar o depoimento de parte em qualquer estado do processo, sobre quaisquer factos, independentemente de admitirem ou não confissão ou de se revelarem ou não prejudiciais à parte; ponto é que se trate de factos que interessem à decisão da causa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – Relatório

Inconformada com a decisão que indeferiu o requerimento de depoimento de parte da 1ª Ré por considerar intempestivo/extemporâneo, veio o autor interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

A. Os aqui recorrentes intentaram uma acção de processo comum contra os ora recorridos M. L., J. J., e “X – COMPANHIA DE SEGUROS S.A” através da qual peticionam a condenação dos mesmos ao pagamento de uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual.
B. A mencionada acção teve por base, em suma, duas inundações, sendo que a primeira ocorreu em Fevereiro de 2015, e a segunda em finais de Agosto do mesmo ano, na habitação do recorrente M. J., que teve origem na habitação vizinha, da qual são proprietários os 1.ª e 2.º RR. melhor identificados nos autos.
C. A referida habitação constitui património da herança de M. E., mulher do aqui recorrente M. J. e mãe do recorrente J. F., falecida a -.11.2015, daí que a presente acção tenha necessariamente como AA. os herdeiros da falecida, nos termos do art. 2091.º, n.º 1, do Código Civil.
D. Assim, no seguimento dos trâmites processuais, e depois de proferido o despacho saneador, foi ordenada prova pericial, tendo os recorrentes sido notificados do mesmo.
E. Considerando o conteúdo do mesmo, os recorrentes apresentaram um requerimento aos autos 21 de Janeiro de 2021 através do qual pretenderam os recorrentes a realização do depoimento de parte da R. M. L., uma vez que, como decorre do relatório pericial, designadamente do ponto 3.2, parágrafos 2 e 3, a 1.ª R. declarou a ocorrência de um conjunto de factos relevantes para a boa decisão da causa, tendo sido os mesmos objecto de alegação na p.i., nos arts. 11.º, 13.º, 14.º, 16.º a 18.º, 21.º e 23.º.
F. Considerando o exposto, entenderam os recorrentes ser essencial, adequado e totalmente imprescindível o depoimento de parte da R. quanto aos factos alegados nos arts. supra, mencionados da p.i..
G. No entanto, por despacho datado de 22.04.2021, do qual se recorre, entendeu o Tribunal a quo que não existe base legal para o requerimento de depoimento de parte da R., considerando que é extemporânea a apresentação do referido requerimento e que, tendo sido proferido despacho saneador a 6.7.2019, no qual se admitiu um depoimento de parte, e nada tendo feito os recorrentes no prazo previsto no art. 593.º, n.º 3 do CPC, encontra-se precludida a faculdade de o fazer posteriormente.
H. O Tribunal a quo não alcançou o conteúdo do requerimento apresentado pelos recorrentes, isto porque ainda que estes não tenham requerido o depoimento de parte de nenhum dos RR. até ao despacho saneador, o objectivo do dito requerimento foi o de solicitar a ordenação oficiosa do mesmo por parte do Juiz, no exercício dos seus poderes-deveres de gestão processual e adequação formal e face ao disposto no art. 467.º, n.º 1 do CPC.
I. Os recorrentes não pretendem exercer um direito reportado à audiência prévia, previsto no n.º 3 do art. 593.º do CPC, conforme se refere no despacho de que se recorre.
J. O despacho proferido nada refere quanto à pertinência do invocado pelos recorrentes, ignorando por completo o peticionado, limitando-se a indeferir o requerimento com base na extemporaneidade do exercício do direito à audiência prévia, algo que os recorrentes nunca pretenderam.
K. Face ao alegado pelos recorrentes nos artigos 11.º, 13.º, 14.º, 16.º a 18.º, 21.º e 23.º da sua p.i. e ao constante no relatório pericial, designadamente do ponto 3.2, parágrafos 2 e 3 é por demais evidente que o depoimento de parte da 1.ª R. sobre tais factos é essencial para a boa composição do litígio, e que permitirá provar os factos dos referidos arts. da p.i., designadamente que ocorreu um novo sinistro em Agosto de 2015, não tendo este consistido num agravamento do primeiro, com todas as legais consequências quanto pedidos formulados.
L. Portanto, somente através do relatório pericial é que os recorrentes tomaram conhecimento das declarações da 1.ª R., e por esse motivo, só requereram o depoimento de parte da R. após a notificação do mesmo, motivo pelo qual requereram que o douto Tribunal a quo, por recurso ao princípio do dever de gestão processual previsto no art. 6.º do CPC e ao abrigo do art. 467.º, n.º 1 do CPC, que exercesse o seu poder-dever de ordenar oficiosamente a realização de tal meio de prova, com vista à confissão da 1.ª R., uma vez que, conforme consta do relatório pericial, esta confessou diversos factos imputados pelos recorrentes na p.i., nomeadamente, que os danos na sua habitação já foram reparados, que foram efectuadas duas intervenções distintas, em momentos distintos, nos WCs da sua habitação e, especificamente, que foi reparada a causa da fuga de água na primeira intervenção, e que apenas na segunda intervenção é que foi substituída a canalização.
M. Face ao exposto, é totalmente imprescindível a prestação de depoimento de parte da 1.ª R., sobre os factos vertidos nos arts. 11.º, 13.º, 14.º, e 16.º a 18.º da p.i.
N. O artigo 411.º do CPC consagra o princípio do inquisitório, nos termos do qual incumbe ao juiz ordenar, mesmo oficiosamente, a prova, assim, o método de apuramento da verdade é um método de cooperação, como comunidade de trabalho entre o juiz e as partes, desde logo porque a verdade sobre os factos relevantes da causa constitui uma condição necessária para a justiça da decisão, não obstante o facto de ser uma relação privada, há um interesse público, daí que tanto o juiz como as partes são, de certo modo, responsáveis pela prova.
O. Como decorre do princípio do inquisitório, consagrado no art. 411.º do CPC, o Tribunal a quo deveria ter ordenado as diligências indispensáveis para que o processo seguisse os seus trâmites, motivo pelo qual a sua omissão violou o exercício de um poder-dever autónomo de indagação oficiosa, o que constitui uma nulidade por omissão, o que desde já se argui para todos os efeitos legais, uma vez que influenciará o exame e a judicativa decisão da causa (art. 195.º, n.º 1 do CPC), o que prejudicará os recorrentes, a descoberta da verdade material e, em ultima ratio, a justiça.
P. Impõe-se, pois, que se apure, com suficiência probatória os factos supra mencionados, já que a diligência requerida afigura-se além de útil, essencial para a justa com posição do litígio.
Q. Não tendo mencionado a circunstância pela qual decidiu não ordenar oficiosamente a diligência probatória que lhe foi requerida, incorre a decisão que corporiza a omissão em nulidade, nos termos dos artigos 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, a qual se argui para todos os legais efeitos.
R. Tudo isto, evidencia o desajuste da decisão de que ora se recorre.
S. Por tudo o exposto, foram violados, entre outros, mas especificamente, os arts. 410.º, 411.º, 413.º, 5.º, n.º 1, 195.º, 3.º, n.º 3, 6.º n.º 1, 547.º, 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte e 644.º, n.º 2, alínea d) todos do Código de Processo Civil e arts. 2.º e 20.º da CRP”.
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A R Seguradora apresentou contra-alegações e pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

A questão decidenda a apreciar é delimitada pelas conclusões do recurso, as quais são as seguintes:
- se o depoimento de parte da 1ª Ré devia ter sido ordenado pelo tribunal, sob pena de nulidade, por ter sido requerido depois da audiência prévia e por força do disposto no artigo 411.º (e 452º)do CPC, onde se dispõe que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
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III – Fundamentação

É o seguinte o contexto processual relevante:
- Com a petição o autor juntou prova documental, arrolou prova testemunhal, requereu prova pericial.
- Apresentadas as contestações pelos RR, igualmente, cada um deles juntou prova documental, arrolou prova testemunhal.
- Na última sessão da audiência prévia que teve lugar no dia, 12-06-2019 com as finalidades previstas nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 591º do CPC, foi, além do mais, admitido o depoimento de parte do autor requerido pela Ré seguradora e admitido um documento e dado prazo para pronúncia sobre o objeto da perícia, e no mais foi ordenada conclusão para proferir despacho saneador.
-em 05.07.2019 foi proferido despacho saneador, tendo sido admitidos os meios de prova requeridos e ordenada a perícia.
- em 21.01.2021, após junção do relatório da perícia, O autor, veio, nessa sequência, e em face do teor do mesmo, onde é alegado que ré M. L. declarou a ocorrência de um conjunto de factos deveras relevante para a boa decisão da causa, os quais, de resto, foram alegados na petição inicial, requerer o depoimento de parte da mesma aos factos vertidos nos artigos 11, 13, 14, 16 a 18, 21 e 23 daquele articulado.
- Em 21-04-2021 foi proferido o seguinte despacho a respeito e que se transcreve:
“ Requerimentos de 21.01.2021 e 28.01.2021:
O autor, devidamente notificado do relatório pericial, veio, nessa sequência, e em face do teor do mesmo, onde é alegado que ré M. L. declarou a ocorrência de um conjunto de factos deveras relevante para a boa decisão da causa, os quais, de resto, foram alegados na petição inicial, requerer o depoimento de parte da mesma aos factos vertidos nos artigos 11, 13, 14, 16 a 18, 21 e 23 daquele articulado.
Por sua vez, a ré X de Seguros, S.A., veio pugnar pelo indeferimento do requerido depoimento de parte, o qual se afigura extemporâneo, pois podia e deveria ter sido requerido oportunamente no tempo e momentos próprios.

Cumpre apreciar e decidir.

Desde já, cumpre deixar consignado que o Código de Processo Civil, ao contrário do que sucede para as declarações de parte e para o aditamento do rol de testemunhas, não contém norma que permita ao autor, depois de decorrido o respectivo prazo legal, apresentar novo requerimento a solicitar a prestação do depoimento de parte pela parte contrária.
Assim, é ponto assente que sem prejuízo das alterações aos requerimentos probatórios referidos nos artigos 552º n.º 6 e 572.º alínea d), do Código de Processo Civil, a parte deve requerer a produção de todos os meios de prova com os articulados.
Conforme referem RAMOS DE FARIA e LUÍSA LOUREIRO, em anotação ao artigo 598.º do Código de Processo Civil, “se na lei antiga se admitia a indicação dos meios de prova na audiência preliminar, agora só se admite a alteração do requerimento probatório na audiência prévia, sem possibilidade de a relegar para momento ulterior. A alteração do requerimento probatório pressupõe que já tenha sido apresentado um requerimento que então se altera. Esta modificação pode, todavia, ser da mais diversa ordem, desde a ampliação do rol de testemunhas – dentro dos limites fixados por lei -, até à apresentação de diferente meio de prova, passando pelo requerimento de notificação de testemunhas já arroladas.”( RAMOS DE FARIA, Paulo e LUÍSA LOUREIRO, Ana, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, 2014, 2.ª Edição, Volume I, Almedina, p.475. )
No caso dos autos foi proferido despacho saneador em 06.07.2019 [ref.ª 22006601], onde, além do mais, foi admitido o depoimento de parte requerido, nos termos do artigo 452.º e seguintes do Código de Processo Civil, aos pontos indicados no requerimentos de fls.284 verso, que sejam reconduzíveis em confissão, sem que, todavia, o autor tivesse vindo, no prazo a que alude o artigo 593.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, pelo que se encontra precludida a possibilidade de, na presente fase em que se encontram os autos, requerer o depoimento de parte da ré.
Face a todo o exposto, por intempestivo/extemporâneo, indefere-se o requerido depoimento de parte da ré M. L..
Notifique.”

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

Em termos mais concretos, a questão objeto de recurso é a de saber se, tendo sido indeferido o depoimento de parte da 1ªRé. visando obter a sua confissão sobre factos alegados na p.i, por ser intempestivo o requerimento do autor nos termos do art. 598º,nº1 e nº3 do art. 593º, ambos do CPC, pode a iniciativa do tribunal nos termos do art. 411º e 452º do CPC ser suscitada pela parte e determinar afinal a 1ª Ré a ser admitida a prestar tal depoimento sobre os mesmos factos.
Importa, por isso, analisar, em traços gerais, o regime legal da prova por depoimento de parte e densificar o princípio do inquisitório.
*
Prima facie, saliente-se que estamos no âmbito do direito probatório formal, o qual “ regula o modo da produção das provas ( meios de prova) em juízo- os actos processuais tendentes à sua utilização ( procedimentos probatórios)” (1) e cuja sede é, no nosso direito interno, o Código Processo Civil.

Vejamos até que momento se pode requerer o depoimento de parte ( proposição da prova (2)):
O artigo 552º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe, “requisitos da petição inicial”, preceitua no seu nº 2 que “ no final da petição, o autor deve apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; caso o réu conteste, o autor é admitido a alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, podendo fazê-lo na réplica, caso haja lugar a esta, ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação”.

O artigo 572º (Elementos da contestação) refere que:
Na contestação deve o réu:
d) Apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; tendo havido reconvenção, caso o autor replique, o réu é admitido a alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, no prazo de 10 dias a contar da notificação da réplica”.

O artigo 598º (Alteração do requerimento probatório e aditamento ou alteração ao rol de testemunhas) preceitua o seguinte:
1 - O requerimento probatório apresentado pode ser alterado na audiência prévia quando a esta haja lugar nos termos do disposto no artigo 591º ou nos termos do disposto no nº 3 do artigo 593º.
2 - O rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias.
3 - Incumbe às partes a apresentação das testemunhas indicadas em consequência do aditamento ou da alteração ao rol previsto no número anterior.

O artigo 452º (Depoimento de parte), estabelece que:
1 - O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
2 - Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.

Sem prejuízo das alterações aos requerimentos probatórios referidos nos artigos 552º nº 2 e 572º alª d), a parte deve requerer a produção de todos os meios de prova com os articulados.
Têm regime especial o documento e o monumento ( a apresentar, em princípio com os articulados, mas ainda, com sujeição a multa, até 20 dias antes da data em que se eraliza a audiência final: arts. 423 e 416-1), bem como as testemunhas ( até 20 dias antes da data em que se realiza a audiência final, quando em aditamento ou alteração ao rol primitivo: 598º-2) e as declarações de parte ( até ao início das alegações orais em 1ª instância: 466-1).” (3)

Ou seja, conforme impressivamente se expõe no Ac. Da RG de 18.06.2020 ( in dgsi) “ O momento preclusivo para alteração do requerimento probatório (descurando agora os casos especiais da prova documental, das declarações de parte, da alteração do rol de testemunhas ou até da conformação do objecto da prova pericial) é, nas acções contestadas, a audiência prévia, quando (como no caso presente) a esta haja lugar (art. 598º, nº 1 do CPC).
Se a parte tiver apresentando alteração do requerimento probatório (requerendo, em adiamento, meio probatório diverso dos anteriormente propostos – v. g., requerendo o depoimento de parte da contraparte, em acrescento à prova documental, à prova testemunhal e às declarações de parte requeridas no requerimento probatório proposto com o articulado) em momento anterior ao da audiência prévia a que haja lugar, terá de concluir-se que o faz tempestivamente.
Sendo esse (audiência prévia) o momento preclusivo (termo final peremptório) da oportunidade de a requerer, pode a parte apresentar até tal momento pretensão de alterar o requerimento probatório – as partes podem alterar na audiência prévia, por substituição ou ampliação, a proposição da prova constituenda feita nos articulados, devendo mesmo ser concedida às partes a alteração do requerimento probatório no prazo geral de 10 dias contados da notificação do despacho previsto no art. 596º, nº 1 do CPC, ainda que tal conduza à rectificação do despacho de programação da audiência final (não se justificaria que o direito das partes à alteração do requerimento probatório precludisse com a dispensa da audiência prévia) (11).
A rejeição da pretensão de alteração do requerimento probatório por intempestividade justifica-se nas situações em que a parte a deduz depois de decorrido o momento legalmente assinalado como termo final de tal faculdade – a perda do direito (de requerer a alteração do requerimento probatório) ocorre com a prática do acto processual (audiência prévia) até ao qual aquele direito podia ser exercido (12). O efeito preclusivo, que importa a perda do direito, está associado à não apresentação de requerimento de alteração do requerimento probatório até à audiência prévia.”

O Prof. Lebre de Freitas justifica do seguinte modo tal regime “ se se tiver em conta que o juiz pode tomar iniciativas probatórias, sem estar sujeito a idênticos limites temporais, a disciplina a que as partes estão sujeitas só se justifica com objetivo de evitar abusos dilatórios ou anarquizantes” (4)

Volvendo ao caso sub judicio, desde já, dir-se-á que, numa primeira aproximação, se concorda com a decisão recorrida no que respeita à questão da oportunidade do requerimento por parte do autor do depoimento de parte da Ré.
Com efeito, no caso dos autos, o autor requereu o depoimento de parte da ré por requerimento apresentado em 21.01.2021 e a audiência prévia foi realizada em 12.06.2019, e ali foi admitido o depoimento de parte do autor e junção de documentos, tendo sido proferido despacho saneador em 05.07.2019, e admitidos os demais meios de prova requeridos e ordenada a perícia.
Ora, como acertadamente decidiu o despacho recorrido, em termos de oportunidade tout court, o requerimento de depoimento de parte naquela fase processual é inquestionavelmente intempestivo e extemporâneo, do ponto de vista da iniciativa da parte.
Sem embargo, a questão basilar deste recurso e que importa conhecer é se houve incumprimento pelo Tribunal a quo do poder-dever, que lhe é imposto, no domínio da instrução da causa, pelos artigos 411º e 452º, de ordenar o depoimento de parte oficiosamente ainda que por sugestão da parte.
Dito de outro modo: a questão objeto do recurso contende com a questão de saber se, na sequência do referido requerimento, efetuado após a audiência prévia e despacho saneador, devia ter sido espoletada a inquisitoriedade e ordenada a realização do depoimento de parte da 1ª Ré, conforme sugerido pelo autor para aqueles pontos referidos na p.i. e atento o teor que ressumou do relatório pericial, tudo para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Vejamos a lei e a interpretação que dela é feita pela doutrina e pela jurisprudência e as consequências do não uso dos poderes inquisitórios pelo juiz, na instrução da causa.
Se já face à lei antiga muitos eram os autores que entendiam que o juiz podia oficiosamente ordenar o depoimento de parte ( v.g.Prof. A. Reis, CPC Anotado, Vol.IV, p. 130), atualmente ao abrigo do disposto no art. 411º e 452º do CPC é inequívoco o poder do juiz de determinar a produção do depoimento de parte (5).
E pode faze-lo em qualquer estado do processo, mas com sujeição ao disposto no art. 456º.
“ A inovação da revisão de 1995-96 representou um passo importante no caminho da busca da verdade material e da consequente quebra de rigidez dos institutos processuais. Note-se que a orientação restritiva anterior a essa revisão implicava que o juiz só pudesse ouvir uma das partes, quando apenas a parte contrária a essa tivesse requerido a produção do depoimento…
…independentemente de o juiz poder ordenar a comparência pessoal de uma só parte, quando entenda que circunstâncias particulares do processo o aconselham, a regra deve ser a de, em igualdade, ouvir ambas” (6)

Assim e sob a epígrafe “ princípio do inquisitório”, dispõe art. 411.º do CPC, “[i]ncumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
O princípio do inquisitório não se confunde com o princípio da gestão processual ( art. 6º).
Alguns autores falam num princípio inquisitório amplo que encontra acolhimento, quer no âmbito do poder-dever de gestão processual, quer no campo das instrução ( princípio inquisitório em sentido estrito) (7).
Este último princípio consignado no art. 411º do CPC aponta para uma conceção do processo em que a investigação da verdade material é também da responsabilidade do juiz, constituindo, dessa forma, uma compressão ao princípio do dispositivo.
Daí o juiz poder oficiosamente ordenar a realização de provas, como o depoimento de parte, ainda que restringido “ aos factos de que lhe é lícito conhecer” e que nos termos do art. 5º delimitam o âmbito dos poderes de cognição do tribunal.
Não se olvida que aquele mesmo princípio, porque coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão, da autorresponsabilidade das partes, não poderá ser invocado de forma automática, por forma a superar as eventuais falhas de instrução que seja de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meio de prova, como ocorreu no caso apreciado no Ac da RC de 12-03-2019 ( p.141/16).
Ali tratou-se de um caso de total inércia da parte e que perante tal circunstância a parte pretendia ver colmatada tal falha com a posterior intervenção oficiosa do tribunal.
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Vejamos o caso concreto.
Da conjugação dos artigos 411º e 452º, conclui-se que este constitui mais uma materialização do princípio do inquisitório, como já afirmamos, resultando, assim, que o juiz deve exercitar os seus poderes inquisitórios- são poderes vinculados (nunca discricionários), embora “preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade” (8), quando concluir pela necessidade ou conveniência, ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, de realização de diligências de prova suplementares às promovidas pelas partes.
Assim, a “intervenção oficiosa do juiz deve assumir uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas designadamente através da omissão de apresentação do requerimento probatório em devido tempo ou sequer da alteração do rol de testemunhas até ao limite definido pelo art. 598º, nº2” (9)
Sem embargo, o disposto no “art. 452º permite ao juiz oficiosamente determinar o depoimento de parte em qualquer estado do processo, sobre quaisquer factos, independentemente de admitirem ou não confissão ou de se revelarem ou não prejudiciais à parte. Ponto é que se trate de factos que interessem à decisão da causa” (10).
Ora, é precisamente o que se verifica no caso sub judicio.
Apesar de as questões terem sido enunciadas na pi. ( conforme indicado pelo autor-art. 11º,13º,14º,16 a 18,21º,23º) e de o Autor ter tido a possibilidade de indicar o depoimento de parte da 1ª ré a tais factos, e não o fez, apenas tendo sobrevindo com mais acuidade tal conhecimento pessoal da 1ª Ré e assunção pela mesma de tais factos após a junção aos autos do relatório pericial, tal não constitui impedimento de, apesar de o Autor já não poder indicar tal meio de prova, vir alertar, sugerir ou mesmo requerer ao Tribunal que, lançando mãos dos seus poderes inquisitórios, proceda à sua inquirição.
Na verdade, os referidos poderes-deveres do juiz decorrentes da inquisitoriedade – art. 411º - “não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, como mostra o segmento “mesmo oficiosamente”. Ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade ou à justa composição do litígio” (11).
Assim sendo, desde que haja elementos do processo que levem a crer que existe conhecimento e que seja conveniente para a descoberta da verdade, tal é suficiente para que, considerada a relevância dos factos ( ainda controvertidos) para a decisão da causa, o depoimento seja ordenado. (12)

Ora, a produção oficiosa do depoimento de parte da 1º R e referido pelo Autor impõe-se, in casu, atento o teor do que ressuma do relatório pericial a respeito da assunção de factos por parte da 1ª ré, podendo, assim, resultar num meio de prova importante para a boa decisão da causa e apuramento da verdade.
Procedendo as conclusões da apelação, por ocorrer violação princípio do inquisitório, consagrado nos artigos 411º e 452º, que permite que o Tribunal, por iniciativa sua ou das partes, ordenar a produção do depoimento de parte da 1ª R à matéria indicada pelo autor, tudo em vista da descoberta da verdade material, deve a decisão recorrida ser revogada e determinada o seu depoimento.
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IV – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que constituem este Tribunal em julgar:
- procedente o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que admite o depoimento de parte da 1ª ré à matéria indicada pelo autor.

Custas pelos RR, partes vencidas ( cfr. art. 527º do CPC).

Notifique.
Guimarães, 16 de dezembro de 2021

Assinado electronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Jorge dos Santos e
Margarida Pinto Gomes



1. In Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 193, em contraponto ao direito probatório material, o qual nas palavras do mesmo autor, “ regula o ónus da prova, a admissibilidade dos diversos meios probatórios e a sua força ou valor.”
2. “ Diz-se proposição o requerimento de produção dos meios de prova constituendos ( a produzir no processo, como o testemunho, o depoimento de parte ou a prova pericial) ou a junção dos meios de prova constituídos ( já produzidos extra-processualmente, como o documento). Fala-se a este propósito de direito à proposição da prova”( In Lebre de Freitas, “ Ação Declarativa Comum..”, p. 98,nota 9, 4ed
3. In Lebre de Freitas, “ Ação Declarativa Comum..”, p. 224, 4ed.
4. In “ Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais”, p. 101,nota 17, 1996
5. Vide sobre a querela doutrinal e da jurisprudencial – no sentido de ser de admitir a determinação oficiosa das declarações de parte, o recente AC da RG de 11.02.2021.
6. In CPC Anotado de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre,vol 2º, p.284, 4ªed.
7. “Elementos de Direito Processual Civil”-UCP-Rita Lobo Xavier, Inês Folhadela e Gonçalo Castro, p.146
8. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina pág. 503 e seg., 2ªed. de 2021
9. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina pág. 598, 2ªed. de 2021
10. António Santos Abrantes Geraldes, ob cit, Idem, p. 540, 2ªed. de 2021
11. In Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob cit, pág. 208.
12. Vide neste sentido o Ac da RP de 21.10.2019 ( p.18884/18) nos termos do qual se sumariou o seguinte:
“ I - O princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, pois, de solicitação das partes.
II - Destarte, não se excluem, para o despoletar, alertas, sugestões e, mesmo, requerimentos, a apresentar pela parte nelas interessadas, tendo, cada uma delas o direito de influenciar o Tribunal em busca de decisão, a si, favorável.
III - O art. 526º, do CPC, materializando aquele princípio, visa salvaguardar a possibilidade de se inquirir uma pessoa sobre quem se gerou a convicção de o seu depoimento se revelar importante para a boa decisão da causa, por dos autos (dos articulados da causa ou de qualquer meio de prova produzido ao longo do processo e não, meramente, em audiência de julgamento) decorrer a presunção de conhecer os factos em discussão, impondo-se, nesse caso, ao juiz que ordene a sua notificação para depor.
IV - Tal imposição é independente e autónoma da posição que as partes tenham tomado quanto à seleção de meios de prova e da possibilidade, que tenha havido, de indicação do concreto meio em causa, bastando que objetivamente se revele necessário à realização dos referidos fins.”