Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1167/18.7T8PTL.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: USUCAPIÃO
FRACCIONAMENTO DO PRÉDIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

- para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, sendo que, se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora;

- Perante as antecedentemente enunciadas divergências relativas à questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode ou não incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C.C, torna-se manifesta a natureza interpretativa do art. 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio – art. 161º, al. c) da CRP -, como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre aquela temática;

- Da conjugação do disposto no art. 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09.2019 e arts.º 1376.º/1 com o n.º1 do art.º 1379.º, ambos do CC, na sua versão atual, fica excluída a aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- RELATÓRIO:

José (…) e mulher (…) intentaram a presente ação declarativa em processo comum contra Maria (…) e (…) pela qual pretendem a declaração de que o prédio identificado no artigo 1º supra se encontra materialmente dividido, por usucapião, em três parcelas distintas e autónomas, pela forma descrita nos artigos 6º e 7º supra; e que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 6º, alínea A) da petição inicial correspondente à parcela assinalada com a letra A no croquis.
Alegam para tanto, no essencial, que um prédio rústico que identificam no artigo 1.º da petição inicial se “acha dividido por usucapião, na forma indicada nos artigos 6º e 7º” da petição inicial, nos termos de planta topográfica que juntaram.
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Regularmente citados, os réus, sem espanto, não contestaram.
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Foi, após, junto por requerimento transação no âmbito da qual se peticiona, no fundo, que o tribunal declare o prédio indicado no artigo 1.º da petição inicial dividido nas parcelas que também na petição inicial se descrevem.
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Foi proferida sentença, nos seguintes termos:

“Não homologar a transação e, em consequência, julgar a ação totalmente improcedente, dela se absolvendo os réus do pedido.”
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É desta decisão que vem interposto recurso pelos AA, os quais terminam o seu recurso formulando as seguintes conclusões:

- Com a acção proposta os Recorrentes não pretenderam dividir o terreno do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, mas obter um título, ou seja, uma sentença que legitime a propriedade das parcelas de terreno discriminadas no artigo 6º da petição inicial, que aqui, para os devidos e legais efeitos se dá por integralmente reproduzido.
- Entendendo-se que é legalmente possível reconhecer a propriedade dessas parcelas de terreno, com base na posse por usucapião, que passaram a constituir parcelas ou prédios rústicos autónomos, ao contrário do que foi defendido na douta sentença recorrida pelo Tribunal “a quo”.
- Os Recorrentes na petição inicial invocaram a seu favor a usucapião como forma de aquisição originária do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno, identificada no artigo 6º, alínea A) da petição inicial, que se funda directa e imediatamente na posse, tendo para o efeito arrolado prova.
- No entanto, o Tribunal “a quo” não permitiu aos Recorrentes a prova dos requisitos atinentes à prescrição aquisitiva, e julgou improcedente a acção intentada pelos Autores/Recorrentes, absolvendo os Réus/Recorridos do pedido, defendendo que o fracionamento é ilegal atendendo ao disposto nos artigos 1376º e 1379º, nº 1 do Código Civil.
- Com efeito, o Tribunal “a quo” não deu aos Recorrentes a oportunidade de beneficiar daprescrição aquisitiva, parapoderem ver reconhecido o seu direito depropriedadesobreaparcela de terreno referida na alínea A) do artigo 6º da petição inicial.
- No caso sub judice, não está em causa nenhuma situação de loteamento ilegal.
- A usucapião invocada com base na posse apenas se prende com a extensão das áreas de terreno, detidas por Autores/Recorrentes e Réus/Recorridos, que se mostram inferiores face à área mínima da unidade de cultura para a região do Minho.
- Tem sido entendimento pacífico da jurisprudência que a usucapião prevalece sobre o regime estabelecido no artigo 1376º, nº 1, do Código Civil.
- É unanimemente aceite que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária, e das regras da usucapião, decorre que o direito correspondente à posse exercida é adquirido “ex novo”.
10ª - A usucapião sempre foi aceite como o instrumento capaz de se sobrepor a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais, relativamente a actos de alienação ou oneração de bens.
11ª - A jurisprudência maioritária tem defendido que a proibição do fracionamento de terrenos aptos para a cultura em parcelas com área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura, não impede que operada a divisão material de um prédio rústico em parcelas com área inferior se consolidem por usucapião as situações possessórias subsequentemente constituídas.
12ª - O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido em 01.03.2018, no âmbito do processo 1011/16.0T8STB.E1.S2, disponível in www.dgsi.pt, abordando já a questão da divisão material à luz das alterações introduzidas pela Lei nº 111/2015 de 27 de Agosto, pronunciou-se no sentido de que o artigo 1376º do Código Civil, não configura “disposição em contrário” para efeitos da ressalva estatuída no artigo 1287º do Código Civil.
13ª - Com especial destaque para os pontos:
14ª - “ V. A usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, que surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, irrelevando, por isso, quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial.
15ª -VI. Operada a divisão material de um prédio rústico em duas parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura fixada na Portaria 202/70, de 21/04 e verificados os requisitos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma destas parcelas, esta aquisição prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, 1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato defracionamento previsto no 1 do art. 1379º do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei 111/2015, de 27.08).
16ª -VII. A usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer na proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse.
17ª - Sufragando que a proibição legal do fracionamento de terrenos agrícolas em parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura, não colidem ou impedem a usucapião.
18ª - A doutrina, desde sempre, defendeu que a nulidade pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva, vide: Manuel Andrade (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 418); Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª Edição, pág. 269); Mota Pinto (in “Teoria Geral do direito Civil”, pág. 470) e Luís Carvalho Fernandes (in Lições de Direitos Reais, 3ª Edição, pág. 230).
19ª - Ou seja, a doutrina e jurisprudência maioritárias têm defendido que a aquisição originária por usucapião prevalece sobre as regras de fracionamento dos prédios rústicos.
20ª - Isto é, a prescrição aquisitiva prevalece sobre a nulidade.
21ª - De entre muitos outros possíveis, menciona-se decidido nos seguintes Acórdãos: Ac. do STJ de 12.07.2018, no âmbito do processo nº 7601/16.3T8STB.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt; Ac. do STJ de 04.02.2014, no âmbito do processo nº 314/2000.P1.S1., disponível in www.dgsi.pt; Ac. do STJ, de 06.04.2017, no âmbito do processo nº 1578/11.9TBVNG.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt; A. do TRG de 01.02.2018, no âmbito do processo nº 290/15.4T8PRG.G1, disponível in www.dgsi.pt; e, Ac. do TRE de 02.05.2019, no âmbito do processo 941/17.6T8BNV.E1, disponível em www.dgsi.pt;
22ª - Sendo esta jurisprudência pacífica e dominante, entende-se que se impõe uma alteração ao direito aplicado na douta sentença recorrida.
23ª-Salvo o devido respeito por melhor opinião, não se aceita aposição sufragada na douta sentença recorrida pelo Meritíssimo Juiz “a quo” quando refere “a inadmissibilidade legal do pretendido, por disposição imperativa e expressa – a da norma do artigo 1376.º, nº 1 do CC, atento o entendimento acima exposto – que impede o fracionamento pretendido. E impede-o quer pela inadmissibilidade de transação que, a ser homologada, seria nula – artigo 280.º, nº1 CC, quer pela improcedência da ação.”
24ª - Acrescentando ainda que: “O fracionamento pretendido nestes autos, aliás em tudo semelhante a inúmeros que chegaram e ainda chegam a este Tribunal – que mais não pretende do que, ao arreio das autoridades administrativas, dividir em, ínfimas parcelas aquilo que já é o minifúndio – é, de alguma forma, o espelho de que, muito provavelmente, a interpretação aqui acolhida sobre o preceito legal 1376.º, 1 do CC está correta.”
25ª – A posição sufragada pelo Tribunal “a quo”, interpretando que o artigo 1376º, nº 1 do Código Civil, constitui disposição em contrário para efeito do artigo 1287º do Código Civil, contraria totalmente a jurisprudência e doutrina dominantes.
26ª - A posição que, neste recurso é defendida pelos Recorrentes, o próprio Meritíssimo Juiz “a quo”, na douta sentença recorrida a fls. 12, reconhece que, até ao momento em que proferiu apresente sentençarecorrida, também decidiu, sufragouereconheceu queasuaposiçãofoi sempre no sentido de admitir que se verifica a divisão material por usucapião, com base na posse, de parcelas de terreno, derivadas de um só artigo rústico.
27ª - Ao decidir pela improcedência total da acção o Tribunal “a quo”, violou o disposto nos artigos 1287º, 1288º e 1289º do Código Civil e artigos 290º e 567º do Código de Processo Civil.
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Os RR não apresentaram contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.

O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.

Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido.
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II-FUNDAMENTAÇÃO

As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:


i. Da reapreciação da matéria de direito: No caso em apreço, o recurso prende-se exclusivamente com uma questão de direito, a qual consiste em saber se a usucapião opera e produz efeitos em detrimento de normas que proíbem o fracionamento de terrenos aptos para a cultura.
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Vejamos a fundamentação de facto que assenta a decisão:

“ aferir se os factos alegados na petição inicial, quer se entenda estarem demonstrados pela falta de contestação quer se ficcionem como provados [na eventualidade de se considerar que estão subtraídos à disponibilidade das partes (o que não é entendimento do signatário, pois não se confunde direitos indisponíveis, dos quais os direitos patrimoniais constituem exemplo oposto, com impossibilidade legal], permitem a procedência do pedido. Para as questões a decidir, a apreciação do direito é, no entanto, a mesma.”
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III. Reapreciação de direito.

No caso concreto, é pacífico que na génese da alegada usucapião invocada pelos AA ( não contestada pelo RR e objeto da transação entre as partes) está um fracionamento ilegal.
A sentença recorrida, no essencial, entende que aquela ( usucapião) não deve prevalecer sobre normas de ordenamento do território ( para além de entender que é inadmissível a aquisição por usucapião de parcelas de prédios rústicos em violação do disposto no art. 1376º,nº1 do CC, por ser coisa indivisível e a posse sobre coisa indivisível só ser possível em relação à globalidade da coisa).

O recorrente entende o contrário.

Cada uma das posições é sustentada, respetivamente, pela jurisprudência e doutrina que, atenta a polémica e divisão que ocorre acerca desta temática, ora dá razão a uma ou a outra.

A sentença recorrida depois de fazer alusão às duas teses que se vêm formulando para, ora permitir o fracionamento, ora o negar, opta, no essencial, pela tese que nega a possibilidade da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura fixada prevalecer sobre a proibição de fracionamento contida no art. 1376.º, n.º 1, do Código Civil, na redação que foi introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27.08 quer na redação anterior.

Ora, a questão colocada não tem merecido posição concordante na jurisprudência.

Citando o AC da R.E de 25-05-2017, a sentença faz a seguinte resenha a propósito desta temática:

“Com efeito, têm-se apontado dois caminhos totalmente opostos.
O primeiro… defende que o fracionamento do prédio rústico em parcela de área inferior a superfície correspondente à unidade de cultura fixada para essa zona do País não obsta à invocação da usucapião, verificados os respetivos pressupostos, prevalecendo sobre o regime prescrito no art.º 1376.º do C. Civil, como se escreveu, a título de exemplo, nos Acórdãos do S. T. J., de 19/10/2014 (Azevedo Ramos), e de 04/02/2014 ( Fernandes do vale), disponíveis em www.dgsi.pt; e de 27/6/2006, CJ/STJ, 2006, 2.º, pág. 133, neste último se afirmando “Porque a usucapião se funda direta e imediatamente na posse, a invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada e a ilegalidade do fracionamento ( falta de escritura pública e área inferior à unidade de cultura), carecem de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância daquela forma de aquisição da parcela”.
Esta orientação assenta basicamente no conceito de posse previsto no art.º 1287.º do C. Civil e conteúdo normativo da usucapião, bem como na ausência de norma excecional que estabeleça taxativamente que determinada posse não conduz à usucapião.

Também Castro Mendes, “Teoria Geral”, 1979, Vol. II, pág. 235, defendia que não obsta à aquisição por usucapião de parte de prédio, dividido verbalmente pelos anteriores comproprietários, o facto de a sua superfície ser inferior a meio hectare, tendo em conta o valor da unidade de cultura fixado pela Portaria 202/70, de 21/4, mantida em vigor pelo art.º 53.º do Dec. Lei n.º 103/90, de 23/3.

Esta parece ser igualmente a interpretação de Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, pág. 269, que a este propósito referem o seguinte:

“Se, através de um negócio jurídico nulo (v.g., por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião)".

A segunda orientação defende posição totalmente oposta, sustentado que se as normas relativas ao ordenamento do território defendem o interesse público, “proíbem fracionamentos e destaques ilegais, enquanto resultado, pelo que também proíbem os meios indiretos de lá chegar, pelo que carecendo a usucapião de invocação, e sendo esta um ato jurídico dependente da manifestação de vontade, esse ato jurídico está ferido de nulidade e não poderá, pois, atento o disposto nos artigos 294.º e 295.º do Código Civil, ter por efeito a aquisição da propriedade, se a posse que se invoca contraria disposições legais imperativas como as que disciplinam o loteamento, o destaque ou o fracionamento de prédios”, como se escreveu no Acórdão do STJ de 26/01/2016 (Sebastião Póvoas), disponível em www.dgsi.pt .
Nesta segunda orientação se pronunciaram também os Acórdãos do STJ de 19/10/2004, Proc. n.º04B3293; de 03/12/2009, Proc. n.º 1102/03.7TBILH.C1.S1; de 02-02-2010, Proc. n.º 1816/06.0TBFUN.L1.S1; de 16/03/2010, Proc. n.º 636/09.4YFLSB (CJ – 2010, I, 133); de 01/06/2010, Proc. n.º 133/1994.L1.S1; de 19-04-2012, Proc. n.º 34/09.0T2AVR.C1.S1; de 13/02/2014, Proc. n.º 1508/07.2TCSNT.L1.S1; de 06/03/2014, Proc. n.º 1394/04.4PCAMD.L1.S1; de 20/05/2014, 11430/00.8TVPRT.P1.S1; e de 30/4/2015 (Salazar Casanova), todos disponíveis em www.dgsi.pt, sumariando-se neste último:” II - O reconhecimento da usucapião com base em atos possessórios sobre parcela de prédio rústico com área inferior à unidade de cultura resultante de mera divisão material, conduziria, dada a impossibilidade de ser proposta ação de anulação face a inexistência de negócio constitutivo do fracionamento do prédio que deu origem a essa parcela, a um resultado que a lei possibilita e pretende evitar quando esse ilegal fracionamento resulta de negócio jurídico. III - A lei não permite a divisão da propriedade de terrenos aptos para cultura em unidades, parcelas ou lotes de área inferior a unidade de cultura (art. 1376.º, n.º 1, do CC) salvo, designadamente, se o fracionamento tiver por fim a desintegração do terreno para construção (art. 1377.º, n.º 2, al. c), do CC)”.
Das duas posições em confronto, partilhamos e aderimos à segunda, por nos parecer a mais conforme com as disposições legais em confronto, tal como naquele aresto (e nos demais, acima citados) se analisa e cuja fundamentação, por uma questão de economia, se dá por reproduzida.
Ainda assim, dir-se-á o seguinte.
Essencialmente, os argumentos avançados em abono da tese da não prevalência da aquisição originária por usucapião sobre as regras de fracionamento dos prédios rústicos – radicam no entendimento de que as normas do artigo 1376.º do CC configuram a “disposição em contrário” que a norma do artigo 1287º do C. Civil acautelou.
Conforme se afirma nos ACs do STJ e 26.01.2016 e 30.04.2015, citados na sentença:
“A observância das normas administrativas respeitantes ao ordenamento do território é – na posição que adotamos – não só necessária nos procedimentos de justificação que têm como fundamento a usucapião que correm perante os notários e conservadores, como também quando a mesma é invocada perante os tribunais.
Os tribunais judiciais não podem, pois, manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar o estado de unicidade nas relações entre ambos estes ramos do direito”.
(…)
E como se reafirma no citado Acórdão do STJ de 30/04/2015, “A circunstância de, uma vez celebrado o negócio contra disposição imperativa, este ser anulável, não significa que o Tribunal consinta, por exemplo, em proceder à divisão de prédio rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, tratando como divisível o que a lei prescreve ser indivisível; tão pouco significa que se imponha ao oficial público ou outra entidade com poderes para o efeito a outorga de escritura de divisão de imóvel em que declaradamente se desrespeite o mencionado artigo 1376.º/1 do Código Civil”.
Concorda-se, assim, com a sentença, quando, acompanhado de perto o citado Ac. do STJ de 26/1/2016, se conclui “Assim, se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a redação atual do n.º1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º.
Ora, quando a lei proíbe obtenção de um determinado resultado, tem de proibir necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
Por isso, não faria sentido cominar esses atos de fracionamento contra o disposto no art.º 1376.º, mas permitir o seu fracionamento físico, material e jurídico em consequência da sua aquisição por usucapião, sob pena de, por essa via, estar encontrada a solução para afastar a proibição legal, ou seja, permitia-se a entrada pela janela, já que a porta estava fechada.
Acresce que o próprio art.º 1287.º do C. Civil, admite exceções ao instituto da usucapião, enquanto forma originária de aquisição do direito real de propriedade, ao prever expressamente que “a posse do direito de propriedade ou outro direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito correspondente a sua atuação”.
Repare-se que nesta disposição legal não se estabelece “salvo disposição expressa em contrário”, o que permite afirmar que da conjugação do disposto no art.º 1376.º/1 com o n.º1 do art.º 1379.º, na sua versão atual, fica excluída a aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura.
Acompanhamos, pois, de perto, o que se escreveu no citado Acórdão do STJ de 26/1/2016, “O diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismo e o objetivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fracionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.
Os tribunais judiciais não podem manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar este estado “monocromático” das relações entre ambos estes ramos do direito.”
Acresce que com a entrada em vigor da Lei 89/2019, de 03.09.2019 ( e que procedeu à “primeira alteração à Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, que estabelece o regime jurídico da estruturação fundiária, dotando de maior eficácia a unidade de cultura e alargando os incentivos e isenções à anexação de prédios rústicos e à melhoria da estrutura fundiária da propriedade”) foi incluída uma nova norma do art. 48º,nº2, nos termos da qual se prevê que “ A posse de terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de atos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.”( sublinhado nosso)
O nº3 do art. 48º prevê “ São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior

É inequívoco que o legislador veio tomar posição sobre esta temática e atualmente prevê naquela norma excecional taxativamente que determinada posse não conduz à usucapião.
Cumpre, assim, apurar, para efeitos da sua aplicação à situação que nos vem presente, a natureza da norma em causa, já que, como princípio geral, vigora na codificação substantiva civil nacional, o da não retroactividade – art. 12º, n.º 1 -, o qual, porém, não é extensível às normas interpretativas – art. 13º, n.º 1.
Ora, “para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, sendo que, se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora”. (1)
Perante as antecedentemente enunciadas divergências relativas à questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode ou não incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C.C, torna-se manifesta a natureza interpretativa da referida norma, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio – art. 161º, al. c) da CRP -, como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre aquela temática, situando-se a solução definida pela nova lei dentro dos quadros da controvérsia, optando por uma das teses.
Temos, portanto, que, perante factos consbstanciadores de uma posse conducente à usucapião, como forma originária de adquirir, não pode aquela usucapião incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C.C.
Em verdade, saliente-se que o art. 1287.º, do Código Civil prescreve que «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.»( sublinhado nosso).
Uma parte da jurisprudência – de que é exemplo, o Ac. RE de 25.05.2017, processo n.º 1214/16.7T8STB.E1– e da doutrina já entendia que aquele normativo admite exceções ao instituto da usucapião, enquanto forma originária de aquisição do direito de propriedade, ao fazer a ressalva «salvo disposição em contrário».
Agora, com a Lei 89/2019 e inclusão daquela nova disposição ( art. 48º,nº2) que estabelece que uma posse exercida sobre terreno que tenha na sua génese um fracionamento ilegal não pode conduzir à usucapião, ou seja, uma norma que proíbe a aquisição por usucapião de prédios rústicos que tivessem na sua origem um fracionamento ilegal, entendemos que o citado art. 48º, nº2 da Lei 89/2019 cai exatamente naquela previsão “ salvo disposição em contrário”.
Vale tudo por dizer que da conjugação do disposto no art. 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09.2019 e arts.º 1376.º/1 com o n.º1 do art.º 1379.º, na sua versão atual, fica excluída a aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura.

E o que dizer sobre a retroatividade da lei interpretativa e seus limites?

A eficácia da retroatividade da lei interpretativa-aplicabilidade da lei interpretativa a factos e situações anteriores à data do seu início de vigência- encontra fundamento em várias razões.
“ Reconhecer-se-á, por uma parte, que resultando da lei interpretativa a fixação de um sentido com que os interessados podiam e deviam contar, a correspondente eficácia retroativa não monta à frustração de quaisquer expectativas legítimas dos indivíduos. Considerações de justiça relativa e, em particular, o desiderato do tratamento uniforme de casos essencialmente idênticos concorrem, acrescidamente, para fundamentar a eficácia retroativa da lei interpretativa. Enfim, justifica-a a certeza jurídica, pois que, de outro modo, os interessados não saberiam qual o tratamento que, em definitivo, viriam a dar aos factos regulados pela lei ( interpretada).” (2)
Sem embargo, a retroatividade da lei interpretativa não é irrestrita, dado que não atinge todos os factos passados e todos os efeitos já produzidos.
Nos termos do art. 13º do CC não atinge os efeitos já produzidos pelo cumprimento das obrigações, pelo caso julgado, pela transação ou atos de natureza análoga.
Qual a ratio desta limitação?
“Já vimos que a retroatividade da lei interpretativa se justifica pelo facto de não violar expectativas fundadas. Ora, em todas as hipóteses acabadas de referir, sem os direitos e obrigações ou situações jurídicas em causa alguma vez foram duvidosas ou controvertidas acabaram por se tornar certas e pacíficas, já através da decisão judicial, já através de um novo acordo das partes destinado a arredar toda a controvérsia ou dúvida, já através de uma conduta das partes que por forma concludente confirma, dá execução e põe termo à relação jurídica que as ligava. Em todos estes casos se pode dizer que a solução jurídica concreta como que veio a ser concretamente consolidada por um novo título que firma a convicção de se achar definitivamente arrumado o assunto e excluída a possibilidade de uma reabertura do mesmo. Entre os atos de natureza análoga a que se refere a parte final do nº1 do art. 13 parece que podem indicar-se, por argumento à contrario do nº2 do mesmo art. 13º, a desistência e confissão judicialmente homologadas, e ainda como ensinam P. Lima e A. Varela, “ todos os atos que importem a definição ou reconhecimento expresso do direito e, duma maneira geral, os factos extintivos, tais como a compensação e novação”. (3)
Problema que agora se coloca é de saber se, estando nós perante uma lei interpretativa e com eficácia retroativa, em face da transação realizada nos presentes autos e que alberga a situação de um fracionamento ilegal, estamos perante uma limitação à retroatividade da lei interpretativa e, nessa medida, aquela transação ( não homologada) produziu os seus efeitos ou não?
Perentoriamente, dizemos que não, reiterando as razões que anteriormente levavam a sufragar da tese da não admissibilidade da aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura e que acima estão plasmadas.
E aplicando tal tese ao caso vertente, como o fez a sentença, conclui-se como ali:
de acordo com os factos provados (ou ficcionados como provados) o prédio que se identifica no artigo 1.º da petição inicial é um prédio rústico, na aceção do artigo 204.º, 2 do CC, apto para cultura. Por outro lado, quer de acordo com a Portaria 202/70, quer com a Portaria n.º 219/2016 (que revogou a primeira), o fracionamento do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial nos termos aí avançados determinaria a divisão do prédio em parcelas com área inferior a qualquer uma das unidades de cultura nessas portarias fixadas (em hectares) para o Minho/Distrito de Viana do Castelo (cfr. áreas do artigo 6.º da pi).
Daqui se retira, portanto, a inadmissibilidade legal do pretendido, por disposição imperativa expressa – a da norma do artigo 1376.º, 1 do CC, atento o entendimento acima exposto – que impede o fracionamento pretendido. E impede-o quer pela impossibilidade de transação que, a ser homologada, seria nula – artigo 280.º, 1 do do CC, quer pela improcedência da ação.
O fracionamento pretendido nestes autos, aliás em tudo semelhante a inúmeros que chegaram e ainda chegam a este Tribunal – que mais não pretende do que, ao arredio das autoridades administrativas, dividir em ínfimas parcelas aquilo que já é o minifúndio – é, de alguma forma, o espelho de que, muito provavelmente, a interpretação aqui acolhida sobre o preceito do artigo 1376.º, 1 do CC será a correta.”
Por essa razão, a decisão recorrida deverá ser mantida por ter acolhido a tese de que sufragamos e agora mais clara em face da Lei 89/2019, pelo que improcede a apelação.
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IV - DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a presente apelação, confirmando na íntegra a douta sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 05.12. 2019

Anizabel Sousa Pereira
Rosália Cunha
Lígia Venade


1. “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Prof. Baptista Machado, pág. 247.
2. Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, p.65 ( anotação de Maria João Matias Fernandes)
3. Prof. Batista Machado, in ob. cit. p. 249.