Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
725/20.4T9PTL-A.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
OFENDIDO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – O administrador de insolvência da sociedade comercial declarada insolvente não tem legitimidade para, nessa qualidade, se constituir assistente.
II - O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para a constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado no Código Penal no artº 113°, n° 1, para aferir da legitimidade para apresentar queixa, devendo considerar-se, para tal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo.
III - Como claramente emerge do artº 82º, nºs. 1 e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Dec-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, os órgãos sociais do devedor insolvente mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, e durante a pendência do processo de insolvência o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.
IV - Daqui decorrem, de forma clara e transparente, duas consequências essenciais: que os poderes de representação do administrador da insolvência circunscrevem-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência, da qual são afastados os órgãos sociais; e que nos restantes aspectos, particularmente os criminais, a representação do insolvente continua a pertencer aos seus órgãos sociais, gerentes ou administradores.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. Pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, Secção de Ponte de Lima, da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, correu termos o Inquérito nº 725/20.4T9PTL, o qual foi aberto na sequência da queixa-crime que, em 03/12/2020, M. E., na qualidade de administradora de insolvência de «X, Unipessoal Lda.», apresentou contra M. F. e L. P., na qual, em síntese, dava conta que o veículo automóvel de marca «Ford», modelo «Transit», e matrícula IA, apreendido a favor da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência que corre termos sob o nº 1152/20.9T8VCT, no Juízo de Comércio de Viana do Castelo, foi danificado em virtude de um acidente de viação ocorrido no dia 14/09/2020, após a dita apreensão, e enquanto se encontrava na posse da gerente da empresa insolvente, a mencionada M. F..
*
2. A descrita factualidade seria susceptível de, em abstracto, consubstanciar a prática de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo Artº 355° do Código Penal, em concurso aparente com o crime de dano, p. e p. pelo Artº 212°, n° 1, do Código Penal, e em concurso efectivo com o crime de frustração de créditos, p. e p. pelo Artº 227°-A, n° 1, do Código Penal.
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3. Tendo tal inquérito merecido despacho de arquivamento por banda do Ministério Público relativamente aos arguidos M. F. e L. P., por não ter sido possível obter indícios suficientes da prática dos aludidos crimes, veio a identificada M. E., na qualidade de denunciante (e, concomitantemente, de administradora de insolvência da dita sociedade), solicitar a sua constituição como assistente, e requerer a abertura de instrução, em consonância com o disposto nos Artºs. 68º, nº 1, al. a), 286º e 287º, do C.P.Penal.
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4. No exercício do contraditório a que alude o Artº 68º, nº 4, do C.P.Penal, a Exma. Procuradora da República exarou nos autos a promoção cuja cópia consta de fls. 24, que ora se transcreve (1):

“Pedido prévio de constituição como Assistente: Visto.
1) As funções e exercício do administrador de insolvência (em cumprimento de um dever legal de interesse público) prendem-se essencialmente, com a liquidação da massa insolvente.
2) Após a declaração de insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem.
3) Um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime e, assim, a todas essas questões, a representação da sociedade caberá, portanto, ao respectivo gerente.
4) A sociedade não poderá considerar-se extinta enquanto não se mostrar efetuado o registo do encerramento da liquidação.
5) Pelo que, deverá manter-se a representação legal da sociedade insolvente, em conformidade com os termos estatutários.

Assim sendo, o Ministério Público promove a não admissão de constituição de assistente, nos termos do artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal a contrario sensu.
Vão os autos à Mma. Juiz de Instrução
(...)”.
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5. E, nessa sequência, em 16/02/2022 a Mmª Juíza de Instrução Criminal proferiu o despacho cuja cópia consta de fls. 25, com o seguinte teor:

“Verifica-se que M. E. requereu a sua constituição como assistente, sendo que o Ministério Público já se pronunciou sobre essa pretensão, sem nada opor à mesma, e os arguidos, notificados para se pronunciarem, nada disseram.
Assim, dado que o requereu em tempo, dispõe de legitimidade para tal, encontra-se dispensada do pagamento da taxa de justiça respectiva e devidamente representada por advogado, admite-se a denunciante a intervir nos autos com a qualidade de assistente, nos termos dos arts. 68º, nº 1, al .a) e nº 3, al. a); 70º e 519º do C.P.Penal.
(...).
*
6. Inconformado com esse despacho, dele veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos da peça processual que consta de fls. 27/30, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“I. O Ministério Público discorda, em absoluto, com a douta decisão do Tribunal Local Criminal de Ponte de Lima que, em suma, admitiu a constituição de assistente da M. E. (Administradora de Insolvência).
II. A requerente M. E. não requereu a sua constituição como assistente em nome da massa insolvente da «X, Unipessoal Lda.».
III. Nem sequer alegou a requerente M. E. que tivessem sido retirados bens da esfera patrimonial da massa insolvente, nem demandou a restituição à mesma e/ou obtida indemnização equivalente à sua perda ou falta para a massa.
IV. Ora seja, a requerente M. E. não declarou pretender ver deduzido o pedido de indemnização civil nos presentes autos, donde inexiste, no caso concreto, qualquer caráter patrimonial que interessa à insolvência (concretamente à Massa Insolvente da «X, Unipessoal Lda.»).
V. Não se desconhece que, no caso, a gerente não tem legitimidade processual ativa para se constituir assistente, porém, dispõe o artigo 81º n° 4 do CIRE que ‘O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência”, motivo pelo qual vem sendo entendido que o Administrador de Insolvência não representa a sociedade no tocante à responsabilidade criminal da sociedade.
VI. As funções e exercício do administrador da insolvência (em cumprimento de um dever legal de interesse público) prendem-se essencialmente, com a liquidação da massa insolvente.
VII. Um dos aspetos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime e, assim, a todas estas questões, a representação da sociedade caberá, portanto, ao respetivo gerente. A sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efetuado o registo do encerramento da liquidação, pelo que, deverá manter-se a representação legal da sociedade insolvente, em conformidade com os termos estatutários.
VIII. Assim, smo, consideramos que ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 81°, n° 1 e 4 do CIRE e o artigo 68°, n° 3, al a) e b) e artigo 287°, n° 1, al b) do Código Processo Penal, com manifesto erro decisórios nos pressupostos de direito e de facto, que desde já se invocam, devendo ser revogado o aresto em crise.

I. NORMAS VIOLADAS.

Artigo 81 n° 1 e 4 do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - Decreto-Lei n° 53/2004, publicado no Diário da República n° 66/2004, Série 1-A de 2004.03.18) e o artigo 68°, n° 3, al a) e b) e artigo 287°, n° 1, al b) do Código Processo Penal.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado Procedente e, consequentemente, Revogar-se a douta Decisão, recorrida,

Substituindo-se por outra que
a. Não admita M. E. a intervir nos autos com a qualidade de assistente, por falta de legitimidade para tanto, nos termos do artigo 68°, n° 1, alínea a) do Código de Processo Penal a contrario sensu.

Assim se fará Justiça, Senhores Desembargadores.”.
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7. Na 1ª instância a “assistente” M. E. respondeu ao recurso, nos termos constantes de fls. 33 / 36 Vº, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, terminando a sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“1º - Sempre se dirá que bem decidiu o Excelentíssimo Juiz de Instrução ao admitir a constituição de assistente da aqui Administradora de Insolvência da Massa Insolvente da X, Unipessoal, Lda., sendo que foi proferido despacho, no qual é feita a menção de que o Ministério Público não se opõe a essa pretensão
2º - No seguimento da queixa apresentada entende aqui Denunciante entende que foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, previsto e punido pelo art. 355.° do Código Penal, em relação de concurso aparente com o crime de dano, p. e p. pelo art. 212 n.° 1 do Código Penal e em concurso efetivo com o crime de frustração de créditos, p. e p. pelo art. 227° A do Código Penal.
3º - Pelo que, em sede de requerimento a aqui Denunciante na qualidade de administradora de insolvência alegou que a conduta dos arguidos lesou danos, prejudicou todos os credores, uma vez que diminui significativamente o valor do bem, que sem reparação deixou de cumprir as suas funções.
4º - E, caso fosse deduzida acusação a administradora de insolvência como representante da massa insolvente X, Unipessoal, Lda., iria deduzir pedido de indemnização civil no valor do prejuízo causado à massa ou a eventual reparação do veículo nos termos do art. 77.° n.° 3 do Código do Processo Penal, embora, não o tenha manifestado, iria deduzir nos prazos legais.
5º - As condutas dos arguidos lesaram patrimonialmente a massa insolvente e consequentemente todos os credores da mesma, pelo que, nos termos do art. 81º nº 4 do CIRE “o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”, pelo que a acusação com consequente pedido de indemnização civil, tem todo o interesse patrimonial, defendendo os interesses de todos os credores da massa.
6° - Certo é que, tratando-se de responsabilidade criminal dos gerentes da sociedade declarada insolvente, a representação e a defesa dos interesses patrimoniais da sociedade (massa insolvente) perante atos dolosos dos gerentes ou seus administradores pertence ao Administrador da Insolvência.
7º - Efetivamente, como é consabido, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência — art° 81º, n° 1, e 55º, nº 1, do CIRE.
8º - A massa da Insolvente “X, Unipessoal... Lda” destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo — art.° 46°, n° 1, do CIRE.
9º - Por sua vez, é o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência — art.° 810, o e 4, do CIRE — independentemente dos órgãos sociais do devedor se poderem manter em funcionamento após a declaração de insolvência (art.° 82°, n° 1, do CIRE).
10º - Deste regime legal, extrai-se que as funções do administrador da insolvência se direcionam para todos os atos de defesa dos interesses de caráter patrimonial, que interessem à insolvência (nomeadamente a proteção da massa e dos credores), traduzindo, além do mais, o cumprimento de um dever legal de interesse público.
11º - Efetivamente, no caso, a gerente não tem legitimidade ativa para se constituir assistente uma vez que foi ela que, alegadamente, praticou a conduta ou atos dolosos imputados de “destruição de bens/dano/frustração de créditos”, os quais lesam o património da insolvente (massa).
12º - Bem como, a gerente da sociedade insolvente é a arguida no âmbito dos presentes autos, não manifestando interesse em demandar-se a si próprio, nem tão pouco o deve fazer, sob pena de violação do princípio da não auto-incriminação.
13° - Ainda que assim não se entendesse, sempre seria a recorrente admitida a se constituir assistente na medida em que, como vem decidindo a Jurisprudência Superior “Tem legitimidade para adquirir o estatuto de assistente, quem, nos termos do art.° 68° n° 1 ai. a) do CPP, seja, mesmo que, remotamente titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação, devendo ser considerado “ofendido”, atendendo-se ao tipo legal preenchido com a conduta alegadamente criminosa por parte de terceiros, sendo violado ou posto em perigo os seus interesses pela norma ou normas incriminadoras, mesmo que “in casu” se postule por uma conceção restritiva de tal conceito” — vd. Acórdão da Relação de Lisboa, de 29.05.2015, www.dgsi.pt.
14° - Pelo exposto, entende-se que a denunciante deve intervir nos autos na qualidade administradora de insolvência da massa insolvente X, Unipessoal, Lda., como assistente, permitindo assim, seja admitida a deduzir pedido de indemnização civil e, assim, acautelar os interesses dos credores, em face do ato praticado pela gerente arguida e eventualmente pelo seu filho Arguido.

Termos em que,
Deve o recurso interposto pelo Ministério Público ser
considerado improcedente e mantendo-se o douto despacho
proferido se fará V. Exa., inteira e sã
JUSTIÇA!”
*
8. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal da Relação emitiu o seu parecer, nos termos constantes de fls. 40, aderindo aos argumentos expendidos pela Exma. Procuradora da República no recurso, pronunciando-se, pois, pela respectiva procedência.
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9. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal (2), não foi apresentada qualquer resposta.
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10. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2.
Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, a única questão que importa dirimir é a de saber se, tendo sido arquivado o inquérito por insuficiência de indícios da prática dos imputados crimes, tem ou não a denunciante M. E., na qualidade de administradora de insolvência da sociedade «X, Unipessoal Lda.», legitimidade para se constituir assistente (3).
E adiantando a nossa posição, cremos que se impõe uma resposta negativa.
Vejamos.
De acordo com o disposto no Artº 68º, nº 1, al. a), podem constituir-se como assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito os ofendidos, “Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos”.
O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para a constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado no Código Penal no Artº 113°, n° 1, para aferir da legitimidade para apresentar queixa, tendo sido inicialmente consagrado pelo Artº 11° do C.P.Penal de 1929 e, posteriormente, pelo Artº 4°, nº 2, do Decreto-Lei n° 35.007, de 13 de Outubro de 1945.
Segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 504, “diz-se ofendido, em processo penal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo”.
Acrescentando o mesmo Mestre, na sua exposição, na pág. 512, plenamente válida perante o Código actual, que a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervir como assistentes em processo penal, sendo o princípio geral o que consta do transcrito preceito legal.
Podemos, pois, afirmar com segurança, que só ao titular do interesse jurídico tutelado pela norma penal é reconhecida capacidade e legitimidade para intervir no processo penal como assistente.
Não havendo dúvidas, também, que a posição do assistente é a de colaboração com o Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção, salvo as excepções previstas na lei (cfr. Artº 69º), e que para a decisão sobre a legitimidade da constituição como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução, e não pela prova resultante do inquérito.
Ora, com emerge do antecedente relatório, constata-se que, na situação em apreço, investigaram-se factos susceptíveis de, em abstracto, consubstanciarem a prática de um crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo Artº 355° do Código Penal, em concurso aparente com o crime de dano, p. e p. pelo Artº 212°, n° 1, do Código Penal, e em concurso efectivo com o crime de frustração de créditos, p. e p. pelo Artº 227°-A, n° 1, do Código Penal, na sequência de queixa-crime apresentada em 03/12/2020 por M. E., na qualidade de administradora de insolvência de «X, Unipessoal Lda.», contra M. F. e L. P., na qual, em síntese, dava conta que o veículo automóvel de marca «Ford», modelo «Transit» e matrícula IA, apreendido a favor da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência que corre termos sob o nº 1152/20.9T8VCT no Juízo de Comércio de Viana do Castelo, foi danificado em virtude de um acidente de viação ocorrido no dia 14/09/2020, após a dita apreensão, e enquanto se encontrava na posse da gerente da empresa insolvente, M. F..
Mais se constata que o Ministério Público entendeu que, da análise dos elementos constantes dos autos, não resultavam indícios suficientes de que os arguidos tenham praticado tais ilícitos criminais e, em conformidade com esse entendimento, proferiu despacho de arquivamento.
E que, na sequência desse despacho de arquivamento, veio a mencionada M. E., na qualidade de denunciante, solicitar a sua constituição como assistente [e requerer a abertura de instrução], estatuto esse que lhe foi conferido pelo despacho recorrido, ora impugnado.
Sucede que, salvo o devido respeito pela posição da Mmª Juíza a quo, afigura-se-nos que a requerente, na aludida qualidade de denunciante e administradora de insolvência da sociedade de «X, Unipessoal Lda.», não pode ser considerada “ofendida” nos termos e para os efeitos do disposto no supfra transcrito Artº 68º, nº 1, al. a), pois que não é a titular do direito que as normas incriminadoras subjacentes à sua denúncia pretendem proteger com a correspondente incriminação.

É que, como claramente emerge do Artº 82º, nºs. 1 e 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Dec-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, os órgãos sociais do devedor insolvente mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, e durante a pendência do processo de insolvência o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:

a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.

E, nos termos do disposto no Artº 81º, nºs. 1 e 4, do mesmo CIRE, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, o qual assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
Daqui decorrem, de forma clara e transparente, duas consequências essenciais: que os poderes de representação do administrador da insolvência circunscrevem-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência, da qual são afastados os órgãos sociais; e que nos restantes aspectos, particularmente os criminais, a representação do insolvente continua a pertencer aos seus órgãos sociais, gerentes ou administradores.
Ou seja, e dito de outro modo, as funções do administrador da insolvência direccionam-se para a liquidação da massa insolvente, tendo em vista a repartição do respectivo produto pelos credores, e os seus poderes de representação limitam-se aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência.
Limitação essa que bem se compreende, dado que, como se prescreve no Artº 1º do CIRE, “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”.
O que significa que a actuação do administrador da falência é, toda ela, dirigida à preservação da massa insolvente, à sua liquidação e distribuição do produto pelos credores.

Esta é a posição reiterada da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25/06/2014, proferido no âmbito do Proc. nº 2140/06.3TAAVR-A.C1, in www.dgsi.pt, quando a este propósito expende:

“Portanto, após a declaração de insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem.
“Quando assume as vestes de arguida num processo penal, a pessoa colectiva declarada insolvente de modo algum está a desenvolver actos atribuídos por lei ao seu administrador da insolvência - relacionados com a liquidação do seu património, ou com carácter patrimonial que interessem à insolvência -, mas a ocupar uma posição de cariz estritamente pessoal, relativamente à qual a declaração de insolvência não tem quaisquer efeitos”.
(...)
Deste modo, dado que a representação do administrador da insolvência se circunscreve aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, quanto aos demais aspectos, designadamente os que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta) a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes (tratando-se de sociedade anónima, aos seus administradores) – n.º 2 do art. 82º do CIRE.”.

Ou o acórdão da mesma Relação de Coimbra, de 24/05/2017, proferido no âmbito do Proc. nº 108/15.8PCLRA.C1, também relevado pelo Exmo. PGA no seu douto parecer, igualmente disponível in www.dgsi.pt, no qual lapidarmente se afirma:

“Da análise que precede do quadro legal, quer quanto ao fim do processo de insolvência, quer quanto às funções, exercício e poderes do administrador da insolvência, quer, por fim, quanto à coexistência, após a declaração de insolvência – nos termos sobreditos - da sociedade e até à sua extinção, de duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõe (...), não se vê como se possa defender, num processo crime, a admissão como assistente da massa insolvente, representada pelo respetivo administrador.
Nem as normas que dispõem sobre a legitimidade para tanto, a saber as inscritas no artigo 68.º do CPP, o permitem, nem tal se mostra compatível com a posição processual e atribuições do assistente – [cf. o artigo 69º do CPP].”.
Uma nota final para dizer não ter sustentação bastante a crítica que a recorrida invoca na sua resposta ao recurso quando dá especial ênfase à aparente dificuldade [caso não seja admitida a sua intervenção nos autos na qualidade de assistente], em ver ressarcida a massa insolvente da(s) conduta(s) delituosas(s) dos arguidos, entre os quais se incluiu a gerente da sociedade, já que, embora não o tenha manifestado, iria deduzir pedido de indemnização civil no valor do prejuízo causada à massa, ou a eventual reparação do veículo, nos termos do Artº 77º, nº 3.
Pois, como claramente se extrai do Artº 82º, nº 3, do CIRE, tem ao seu dispor uma série de prerrogativas processuais para atingir tal ou tais desiderato(s), tendo, aliás, exclusiva legitimidade para o efeito.
Face ao que se deixa exposto, entendemos que, neste âmbito, a representação da pessoa colectiva se deve fazer por quem a representa e, tratando-se de pessoa colectiva insolvente, deverá a mesma ser representada pelos órgãos sociais com poderes de representação referidos no citado Artº 82º, nº 1 do CIRE.
Assim sendo, e dado que a requerente não tem legitimidade para o efeito, não deveria a mesma ter sido admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, impõe-se a revogação do despacho recorrido, procedendo, pois, o recurso.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogam o despacho recorrido, não admitindo M. E., na qualidade de administradora de insolvência da sociedade “X, Unipessoal Lda.” a intervir nos autos na qualidade de assistente.

Sem custas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 6 de Junho de 2022

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)
Fernando Chaves (Juiz Desembargador Presidente da Secção)



1 - Todas as transcrições ora efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2 - Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3 - Importa sublinhar e esclarecer que, contrariamente ao que se aduz no despacho recorrido, o Ministério Público, ora recorrente, opôs-se (fazendo-o de forma expressa) à requerida constituição de assistente, com claramente emerge da douta promoção que consta de fls. 24, a que supra aludidos em I.4.
Pois, caso contrário, colocar-se-ia a hipótese da rejeição do recurso, dado não estar verificado o pressuposto processual do “interesse em agir” do recorrente Mistério Público ao interpor o presente recurso, por contrariar a jurisprudência emanada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2011, de 16/12/2010, publicado no DR nº 19, Série I-A, de 27/01/2011, segundo a qual, «Em face das disposições conjugadas dos artigos 48º a 53º e 401º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.». Acórdão esse que, em conformidade com o disposto no Artº 446º, nº 3, do C.P.Penal, procedeu ao reexame da jurisprudência constante do Acórdão de fixação de jurisprudência nº 5/94, de 27 de Outubro, in Diário da República, 1ª Série A, nº 289, de 16 de Dezembro de 1994, que havia estabelecido que, “Em face das disposições conjugadas dos artigos 48º a 52º e 401º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, a natureza e a estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.”.