Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4454/18.0T8VCT.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
REGISTO DO ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A dissolução da sociedade comercial opera uma modificação da sua situação jurídica, constituindo um pressuposto para a sua extinção, que só se consuma com o registo do encerramento da liquidação.

II- Até ao registo do encerramento da liquidação as sociedades comerciais continuam a gozar de personalidade jurídica e de personalidade judiciária, pelo que nada impedirá que uma sociedade comercial que se dissolveu por acordo dos sócios e entrou em liquidação, se apresente ela própria à insolvência, ou seja objecto de processo de insolvência requerido por um credor social.

III- Se o registo do encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula só foram feitos dias após a citação pessoal dos sócios da sociedade, já em pleno prazo de oposição ao pedido de declaração de insolvência, e quase um ano depois da data da assembleia geral, é de presumir que ele teve em vista apenas evitar a declaração de insolvência e a satisfação dos créditos dos credores sociais, com o que consubstancia um exercício abusivo do direito (dos sócios a extinguir a sociedade) por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé.

IV- A conduta da Requerida que se considerou consubstanciar um actuação abusiva do direito não é uma conduta processual. Ainda que havendo aquela fundado a oposição na eficácia do referido registo, não se justifica considerar a oposição como manifestamente infundada, com o que se não justifica a condenação como litigante de má fé.
Decisão Texto Integral:
- ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -

A) RELATÓRIO

I.- M. M. veio requerer a declaração de insolvência da sociedade comercial por quotas “X, Lda.” alegando, em síntese, que foi trabalhadora desta e que a mesma, tendo-a despedido, não lhe pagou os direitos respectivos. Recorreu ao Tribunal do Trabalho que condenou a Requerida a pagar-lhe a importância total de € 9.692,91, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de 4% ao ano. Apesar das diversas tentativas para obter a liquidação deste seu crédito, nada conseguiu receber da Requerida, a qual tem outros credores, dentre os quais o Estado, não tendo meios para solver pontualmente os seus compromissos perante estes, tendo cessado a sua actividade, nos termos e do art.º 33.º, n.º 1, alínea b) do Código do IVA.
Foi apresentada contestação, alegando-se, além do mais, que a Requerida se encontra dissolvida e liquidada por deliberação da Assembleia Geral de 15 de Fevereiro de 2018, tendo sido comunicada a cessação da sua actividade aos Serviços Tributários em 28 dos mesmos mês e ano, e a dissolução bem como a liquidação da sociedade, e o cancelamento da matrícula foram já objecto de registo na Conservatória do Registo Comercial.
Uma vez que está extinta já não é dotada de personalidade jurídica, não tendo também personalidade judiciária.
Cumprido o contraditório, pronunciou-se a Requerente no sentido da não aceitação da argumentação deduzida pela Requerida, designadamente porque esta se não encontrava extinta no momento em que deu entrada em Juízo a petição inicial.
Seguidamente foi proferida douta decisão que, considerando que a sociedade Requerida se encontra extinta, por se encontrar dissolvida e ter sido efectuado o registo do encerramento da sua liquidação, julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
Não se conformando com esta decisão, traz a Requerente o presente recurso pedindo que a mesma seja revogada e que se profira acórdão que considere que o encerramento da Requerida e os actos de registo que se lhe seguiram “são nulos e não podem produzir quaisquer efeitos por terem sido baseadas em declarações erradas”.
Mais pede que a Requerida seja condenada como litigante de má fé “por abuso do direito, por ter promovido o registo da dissolução e encerramento da liquidação depois de instaurada e ter sido citada para esta acção de insolvência.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Apelante formula as seguintes conclusões:

I. O crédito da requente é anterior à dissolução e encerramento da liquidação da requerida e até ao momento encontra-se por liquidar.
II. Em virtude do comportamento da requerida, é muito provável que existam outros credores que não foram ainda ressarcidos.
III. Por isso, a dissolução e encerramento da liquidação da requerida foi deliberado com base em falsas declarações ou pelo menos, em erro quanto ao passivo, porquanto, o crédito laboral da requerente é anterior, como se comprova do acordo de revogação por extinção do posto de trabalho outorgado a 24.10.2017. No entanto, não foi tido em consideração no momento da deliberação e encerramento da liquidação.
IV. Nestes termos, a dissolução e o encerramento da liquidação são nulos e não devem produzir quaisquer efeitos, pelo que, a sociedade tem personalidade jurídica e o processo de insolvência deve prosseguir os seus ulteriores termos, de forma a proteger o direito dos credores.
V. Acresce que, o registo da dissolução e encerramento da liquidação foram efetuados na pendência desta ação de insolvência, e após a citação das sócias-gerentes para contestar esta ação. Pelo que, o ato de promoção do registo da dissolução e encerramento da liquidação foi efetuado com manifestado abuso de direito nos termos do artigo 334º do Código Civil, devendo a requerida ser condenada em litigância de má-fé.
VI. Pelo exposto, a requerida tem personalidade jurídica e o processo de insolvência deve prosseguir os seus ulteriores termos, com o decretamento da insolvência da requerida.
VII. Através das declarações constantes da ata de deliberação de dissolução e encerramento da liquidação, a requerida confessa que terá tido um prejuízo no valor de sete vezes o valor do capital social da empresa, pelo que, não tendo sido efetuada prova em contrário cujo ónus corria por conta da requerida, deve ser declarada imediatamente a insolvência da requerida.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões acima transcritas a questão a decidir é a da validade e eficácia do registo de dissolução e encerramento da liquidação e do cancelamento da matrícula efectuados depois de as duas únicas sócias da Devedora terem sido citadas para a presente acção.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- Com relevância para a decisão consta dos autos que:

1.- A Requerente foi admitida a trabalhar para a Requerida por contrato de trabalho com termo certo que celebraram, o qual está datado de 01/06/2013 (cfr. o doc. de fls. 18, que se dá por reproduzido).
2.- Com a data de 26/10/2017 a Requerente e a Requerida celebraram um “Acordo de Revogação do Contrato de Trabalho”, nos termos do qual esta se comprometeu a pagar àquela “a quantia ilíquida de € 2.500,00” relativos a “créditos laborais devidos”, devendo a liquidação desta quantia ser efectuada “através de transferência bancária, em quatro prestações iguais e sucessivas”, vencendo-se a primeira naquele dia 26/10/2017 e a última no dia 31/01/2018 (cfr. doc. de fls. 19 a 22, cujo teor se dá por reproduzido).
3.- A Requerida não pagou à Requerente pelo menos a importância de € 1.875,00 (por confissão, constante dos itens 25 a 27 da Oposição).
4.- Em 29/09/2018 a Requerente fez entrar no Juízo do Trabalho de Viana do Castelo, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, uma acção com processo comum contra a Requerida, pedindo a condenação desta a pagar-lhe as seguintes quantias: € 3.998,17 de créditos laborais pela cessação do contrato de trabalho; € 1.124,00 de salários em dívida, relativos a Setembro e Outubro de 2017; € 2.622,00 a título de formação profissional não proporcionada; € 1.530,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais; e ainda juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4% (cfr. a certidão judicial de fls. 9 e sgs., maxime 9v.º a 17, e 25, cujo teor se dá por reproduzido).
5.- Por sentença de 08/11/2018, transitada em julgado em 03/12/2018, a Requerida foi condenada no pedido formulado pela Requerente, acima referido (cfr. fls. 25v.º e 26, e a certidão de fls. 9, que aqui se dão por reproduzidas).
6.- Em 28/12/2018, às 19:40:50 horas, a Requerente, através do “CITIUS”, entrou com a petição inicial que deu início aos presentes autos, pedindo a declaração de insolvência da Requerida (cfr. fls. 29).
7.- Frustradas as tentativas de citação postal da Requerida, efectuadas em 17/01/2019 e 22 dos mesmos mês e ano, procedeu-se à citação pessoal das suas duas sócias, por cartas registadas que lhes foram enviadas em 25/01/2019, tendo os avisos de recepção sido recebidos no Tribunal em 30 dos mesmos mês e ano (cfr. fls. 41 e 42).
8.- Com a data de “15 de Fevereiro de 2018” foi elaborado o documento de fls. 55v.º e 56, com o título “ACTA DA ASSEMBLEIA GERAL Nº 2” e dela consta, relativamente ao “Ponto 1” da “ordem de trabalhos” que a sócio-gerente, M. S. pediu a palavra e declarou que “… tendo em consideração que a actividade social gerou resultados negativos, no termo do exercício do ano findo (2018), atingiu os 74.463,41€ (…), deve a sociedade ser dissolvida visto já não ter viabilidade económica, face aos prejuízos anuais apresentados”.
Mais ficou a constar, relativamente ao “Ponto 2”: “…, o sócio-gerente A, M. S. … afirmou que, em virtude da sociedade, na presente data, já não ter qualquer ativo nem passivo, se encontrava em condições de poder ser liquidada, conforme tudo decorria da contabilidade social”.
E relativamente ao “Ponto 3”: …, foi unanimemente deliberado que o sócio A M. S., nomeado depositário da escrituração comercial, nos termos do art.º. 157.º do Código das Sociedades comerciais e designado para formalizar os atos de registo comercial, fica igualmente designado representante para efeitos tributários, nos termos do n.º 4 da LGT, aprovada pelo Dl 398/98, de 17 de Dezembro e do art.º. 23.º-A para efeitos do n.º 2 do art.º. 72.º-A, ambos do Código do Registo Comercial, aditados pelo DL 122/09 de 21 de maio de 2019” (a escrita em itálico é da nossa autoria).
9.- Em data que os autos não permitem determinar, a Requerida informou a Autoridade Tributária da cessação da sua actividade em sede de IVA na data de “2018-02-28”, invocando como motivo da cessação “Art. 34 Nº 1 b)”.
10.- Pela Ap. 2 de 04/02/2019 foi levada ao registo a dissolução e o encerramento da liquidação, com a menção “Data da aprovação das contas: 2018-02-15” (cfr. doc. de fls. 58v.º e 59, que se dá por reproduzido).
11.- Pelo An. 1 de 04/02/2019 foi levado ao registo o cancelamento da matrícula.
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V.- Nos termos do disposto no art.º 277.º, alínea e) do C.P.C., a instância extingue-se com a impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide.

Como referem LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida” (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1.º, 3.ª ed., pág. 546).
Nos termos do disposto no art.º 141.º do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), a sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda (dentre outras) por deliberação dos sócios (alínea b)) e pela declaração de insolvência da sociedade (alínea e)).
Naquela primeira forma de dissolução pontifica o interesse dos sócios enquanto que na segunda o primado é o do interesse dos credores sociais já que o processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, tem como objectivo final a satisfação dos seus créditos.
Como refere MENEZES CORDEIRO a deliberação dos sócios como causa de dissolução “é uma manifestação de vontade de dissolver a sociedade, sendo normalmente apontada como a mais natural das causas de dissolução já que consiste no mútuo dissenso ou contrário consenso, que se funda no princípio geral da não vinculação perpétua” (in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 2.ª ed., 2011, pág. 527).
A dissolução opera uma modificação da situação jurídica da sociedade, constituindo um pressuposto para a sua extinção, que só se consuma com o registo do encerramento da liquidação – daí que o S.T.J., no Acórdão de 02/07/1996, tenha decidido que “Uma sociedade comercial que por acordo dos sócios se dissolveu e entrou em liquidação, pode posteriormente, antes do termo dessa liquidação, apresentar-se à falência” (ut Proc.º 96A423, Cons.º Ramiro Vidigal, in www.dgsi.pt).
Com efeito, nos termos do disposto no art.º 5.º do C.S.C., as sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo do contrato pelo qual se constituem, personalidade jurídica que se mantém mesmo quando já estiverem em liquidação, continuando a ser-lhes aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes, ou da modalidade da liquidação”, como refere o n.º 2 do art.º 146.º do mesmo Cód..
Como medida de protecção de terceiros, nomeadamente dos credores sociais ou de quem se apresente a negociar com a sociedade, logo a partir da dissolução deve ser aditada à firma a menção «sociedade em liquidação» ou «em liquidação», nos termos impostos pelo n.º 3 do supramencionado art.º 146.º.
A sociedade dissolvida por deliberação dos sócios entra imediatamente em liquidação.
Os liquidatários devem requerer o registo do encerramento da liquidação, registo que tem eficácia constitutiva, com ele se extinguindo a sociedade, cessando, consequentemente, a sua personalidade jurídica – cfr. art.º 160.º do C.S.C.-, e judiciária – cfr. art.º 11.º, n.º 2 do C.P.C..
No caso de insolvência também é o registo do encerramento do processo após o rateio final que determina a extinção da sociedade, nos termos do n.º 3 do art.º 234.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.).
De acordo com o disposto no art.º 3.º, n.º 1, alínea t) e 15.º, n.º 1, ambos do Código do Registo Comercial (C.R.C.), o encerramento da liquidação é um dos actos sujeitos ao registo obrigatório, que deve ser pedido no prazo de dois meses “a contar da data em que tiver sido titulado”, conforme dispõe o n.º 2 do art.º 15.º.
Sem embargo, a inobservância deste prazo para a efectivação do registo não afecta a validade do acto dando apenas lugar ao pagamento em dobro do emolumento aplicável, nos termos prescritos no n.º 1 do art.º 17.º, ainda do C.R.C..
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VI.- Depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os credores sociais poderão ainda obter a satisfação dos seus créditos, observadas que estejam as condições impostas pelo n.º 1 do art.º 163.º do C.S.C..
Antes disso, os liquidatários estão obrigados a pagar todas as dívidas da sociedade para as quais seja suficiente o activo social, nos termos estabelecidos no n.º 1 do art.º 154.º do C.S.C., podendo ser responsabilizados pelo pagamento daquelas dívidas se, com culpa, nas contas finais e no relatório da liquidação indicarem falsamente que os direitos de todos os credores da sociedade estão satisfeitos ou acautelados – cfr. art.º 158.º do C.S.C..
Porque, como acima se deixou referido, a personalidade jurídica se mantém até ao termo da fase da liquidação, ou, com mais precisão, até ao registo do encerramento da liquidação, nada impedirá que uma sociedade comercial que se dissolveu por acordo dos sócios e entrou em liquidação, se apresente ela própria à insolvência, ou seja objecto de processo de insolvência requerido por um credor social.
Como decidiu a Relação do Porto, no Acórdão de 13/10/2008, “Não obsta à declaração de insolvência a posterior dissolução e liquidação da sociedade” isto porque, argumenta o Acórdão, “os interesses dos credores ficam mais amplamente protegidos no processo de insolvência do que no da dissolução e liquidação” e “a defesa dos interesses dos credores da requerida, da economia nacional e do Estado (artº 188º e segs, do CIRE)” suplantam largamente o risco de duplicação dos efeitos de um processo de liquidação já em curso” (ut Proc.º 0854961, Desemb. Caimoto Jácome, in www.dgsi.pt).
Já, porém, dissolvida por acordo dos sócios, e registado o encerramento da respectiva liquidação, a sociedade comercial não poderá, em princípio, ser objecto de processo de insolvência.
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VII.- Como acima se deixou referido, foi levada ao registo a dissolução da ora Requerida e o encerramento da liquidação, assim como o cancelamento da matrícula pelo que, prima facie, não poderia ela ser objecto deste processo de insolvência visto se considerar já extinta.
No entanto, os contornos fácticos acima descritos impõem que se pondere outra solução.

Com efeito, a acta da assembleia geral suscita algumas perplexidades que afectam a sua credibilidade:

- sendo datada de 15/02/2018, refere expressamente que “no termo do exercício do ano findo (2018)”, o que dá a entender ter sido escrita no ano de 2019;
- tendo a actividade social no ano de 2018 gerado resultados negativos do montante de € 74.463,41, pelo normal do acontecer, mal se percebe a afirmação da sócia-gerente, constante da acta, segundo a qual “a sociedade não tem passivo”;
- tanto mais que, pelo menos esta sócia-gerente tinha de ter conhecimento da inveracidade da afirmação, mesmo reportada a 15/02/2018, já que a última prestação do crédito da ora Apelante havia-se vencido em 31 de Janeiro, e, tal como as anteriores, não foi paga nem o pagamento foi assegurado, e, confessadamente, havia dívidas ao Fisco e à Segurança Social que ainda agora estão a ser liquidadas.
Não é possível extrair do documento de fls. 61, junto pela Requerida, a data em que terá sido enviado ao Fisco, mas o motivo da cessação, é, nos termos aí indicados, a ausência da prática de actos “relacionados com actividades determinantes da tributação durante um período de dois anos consecutivos”, havendo-se indicado, como data de cessão, “2018-02-28” (desde 28/02/2016 não foram praticados actos determinantes da tributação em IVA?).
Por outro lado, a declaração de inexistência de activo e de passivo permitiu passar directamente ao encerramento da liquidação, aligeirando prazos e diligências até ao registo.
Ora, o registo só foi feito cerca de uma dezena de dias depois da citação pessoal das sócias da Requerida e quase 1 (um) ano depois da alegada data da assembleia geral, sem que tenha sido aditada à firma da Requerida a menção “sociedade em liquidação” ou “em liquidação”, nos termos impostos pelo n.º 3 do art.º 146.º do C.S.C. (e a avaliar pelo que ficou a constar do Ponto 3 da acta da assembleia geral, as sócias da Requerida conhecem bem, ou foram convenientemente informadas, dos deveres legais referentes à liquidação da sociedade posto que mencionam a legislação pertinente).
Como expressivamente refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 19/12/2000, a verdade patrimonial de uma sociedade “não se demonstra com uma simples declaração unilateral dos seus sócios, dizendo que não há activo, principalmente quando tal declaração é proferida já depois de se sentirem acossados com o pedido de declaração de falência”, aí se afirmando ainda que “Dar a situação da requerida por encerrada tão somente com uma simples declaração dos sócios, que sem mais se aceitaria como verídica, seria abrir as portas a todo o tipo de subversão comercial, com incalculáveis consequências na segurança das relações comerciais: o devedor relapso não correria quaisquer riscos, sonegaria os bens que haveriam de garantir o pagamento das dívidas e, quando se lhes afigurasse eminente a declaração de falência, outorgaria, à pressa, uma escritura pública ao estilo da constante dos autos (actualmente, elaboraria uma acta ao estilo da constante dos autos), e ei-lo pronto para repetir a proeza, em idênticos moldes”, concluindo pela nulidade do registo (in Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, tomo V, pág. 42) – nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 22.º, o registo por transcrição é nulo quando for falso ou tiver sido feito com base em títulos falsos.
Tudo ponderado permite concluir que o registo a que (apressadamente) se procedeu, já depois da citação, e em pleno prazo de oposição ao pedido de declaração de insolvência, teve em vista apenas evitar esta declaração e a satisfação dos créditos dos credores sociais, designadamente o da ora Apelante.
Esta apenas poderá aspirar a receber o seu crédito através do Fundo de Garantia Salarial, que tem como pressuposto a declaração de insolvência da entidade patronal, aqui Requerida.
Ora, nos termos do art.º 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
Esta formulação compreende, não apenas o exercício emulativo, ou seja, a adopção de comportamentos que visam somente prejudicar outrem, como, de acordo com RODRIGUES BASTOS, “o exercício de qualquer direito por forma anormal quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que os outros têm de suportar” (in “Das Relações Jurídicas”, vol. V, pág. 10).
De acordo com o Acórdão do S.T.J. de 9/04/2013, “O instituto do abuso do direito relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça” e prossegue ainda, citando o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 28/11/1996, “O abuso do direito pressupõe a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito e casos em que se excede os limites impostos pela boa fé” (in Colectânea de Jurisprudência (C.J.), Acs. do S.T.J., ano IV, tomo III, págs. 118-121).
Refere o Ac. da Rel. do Porto de 31/05/1988 que na fundamentação do abuso do direito “releva um comportamento ético que se desdobra em dois sentidos: na formulação de um juízo de censura ao titular do direito por o exercer em termos de ofender o sentimento jurídico socialmente dominante, contradizendo o próprio direito em si” e “na protecção do direito de outrem, merecedor da tutela jurídica e que o ponha a salvo das ofensas quer legítimas quer ilegítimas” (in C.J., XIII-1988, tomo 3, pág. 234).
É o que, por outras palavras, refere o Ac. da Rel. de Coimbra de 19/07/1983, ao afirmar que o instituto do abuso do direito “não se destina a fazer extinguir direitos, antes se propõe manter o seu exercício em moldes conformes com um salutar equilíbrio de interesses em jogo, requerido pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito” (in C.J., ano VIII, tomo 4, pág. 49).
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO refere-se à “desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem”, aqui integrando “a actuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas” e “o exercício jurídico-subjectivo sem consideração por situações especiais” afirmando ainda que “o exercício jurídico-subjectivo sem consideração por situações especiais integra, de algum modo, o desenvolvimento profundo do dispositivo consagrado, pelo artigo 335.º, à colisão de direitos”, pelo que “para além dos direitos subjectivos alheios, o titular-exercente deve respeitar, no exercício do direito próprio, outras situações especiais, cuja preterição contrarie o clausulado no art.º 334.º” (in “Tratado do Direito Civil, vol. V, págs. 346 e sgs.), ou seja, exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
Na situação sub judicio a actuação da Requerida é revelador de má fé, apresentando-se contrária ao sentimento ético dominante na sociedade posto que, decidida a sua dissolução pela vontade dos seus sócios, não cuidaram estes de solver as dívidas daquela, designadamente a da Apelante (se tivessem querido desresponsabilizar-se bastar-lhes-ia efectuar uma consignação em depósito, nos termos dos art.os 841.º e sgs., do C.C.) a quem ficaram por liquidar salários, ofendendo assim um direito (direito ao salário) equiparado aos direitos de personalidade.
Justifica-se, pois, que se tenha por ilegítimo o encerramento e liquidação da Requerida e o seu posterior (tardio) registo, assim como o registo do cancelamento da matrícula.
Consequentemente, recusando-se o efeito dos referidos registos, impõe-se que os autos prossigam para julgamento, de acordo com o disposto no art.º 35.º do C.I.R.E..
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VIII.- Peticiona a Apelante a condenação da Requerida em multa e indemnização por litigância de má fé, fundamentando na actuação desta com abuso do direito.
Diz-se litigante de má fé a parte (seja a vencedora, seja a vencida) que, com dolo ou negligência grave, tiver algum dos comportamentos tipificados nas quatro alíneas do n.º 2 do art.º 542.º do C.P.C.: a dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento não devesse ignorar; a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa; a omissão grave do dever de cooperação; o uso do processo ou dos meios processuais manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Como refere ALBERTO DOS REIS, “A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, mas ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica põe uma limitação: que o exercício seja sincero e que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão”, referindo ainda que “na base da má fé está a consciência de não ter razão” (actuação dolosa), enquanto que na culpa grave ou no erro grosseiro, “o litigante está convencido de que tem razão, mas não empregou a diligência que devia empregar para desfazer o seu erro” (in “Código de Processo Civil Anotado”, II, págs. 261 a 263. Cfr. ainda Lebre de Freitas, et Al., in “Código de Processo Civil Anotado” vol. 2º., pág. 219).

Nos termos que vêm referidos no Ac. do S.T.J. de 30/09/2004, “a má fé psicológica, o propósito de fraude, exige, no mínimo, uma actuação com conhecimento ou consciência do possível prejuízo do acto; tal conhecimento ou consciência pode corresponder, quer ao dolo eventual quer a negligência consciente e, neste último quadro, aquela consciência pode reportar-se a uma simples previsão do prejuízo resultante do acto, nada se fazendo para o evitar, isto é, mesmo assim pratica-se o acto que se tem como potencialmente lesante” (ut Proc.º 04B2279, in www.dgsi.pt).
A conduta da Requerida que se considerou consubstanciar um actuação abusiva do direito (reconhecido aos sócios de dissolverem a sociedade), não é uma conduta processual.
Ainda que se havendo fundado a oposição na eficácia do referido registo, não se justifica considera-la como manifestamente infundamentada.
Assim como não há elementos que apontem para uma alteração da verdade para a decisão, tanto mais que o processo não entrou na fase do julgamento.
Os demais comportamentos tipificados nas alíneas c) e d) – omissão grave do dever de cooperação e uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais – não têm o mais leve reflexo na conduta processual da Requerida.
Não há, pois, fundamento para a condenar por litigância de má fé, consequentemente improcedendo a pretensão da Apelante.
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C) DECISÃO

Considerando quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente:

- declarar ilegítimo e, por via disso, sem efeito, o encerramento da liquidação da Requerida e o respectivo registo, assim como o registo do cancelamento da matrícula;
- determinar o prosseguimento dos autos para julgamento;
- desatender a pretensão da Apelante quanto à condenação da Requerida por litigância de má fé.
Custas da apelação pela parte vencida a final.
Guimarães, 17/10/2019

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho