Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
232/14.4TBGMR-C.G2
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
SIMULAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Perante um quadro fáctico em que:

- Em 2000, os simuladores (embargantes) alienaram um imóvel a uma sociedade comercial da qual o embargante marido é, juntamente com um filho, sócio-gerente, com a finalidade de o retirar do seu património a fim de o subtrair à ação dos seus credores;
- Em 2007, por apresentar uma situação financeira bastante difícil e a fim de evitar que o imóvel fosse penhorado e com o propósito de prejudicar o exequente e demais credores, essa sociedade “adquirente”, representada pelo embargante marido, alienou o referido imóvel à executada, valendo-se do facto desta ter como gerente um dos filhos dos embargantes.
- Nos referidos negócios nunca foi paga qualquer quantia a título de preço, tendo sido efetuados apenas com o intuito de prejudicar terceiros, sendo que a vontade declarada não correspondia à vontade dos contraentes.

II - Agem com abuso do direito os simuladores que, na sequência da penhora do imóvel decretada em 2014 no âmbito duma execução instaurada contra uma daquelas duas sociedades (a que não foi declarada insolvente), tendo como título executivo uma sentença proferida na ação de impugnação pauliana, na qual se declarou a ineficácia das compras e vendas efetuadas entre as aludidas sociedades e o direito do autor de obter a satisfação do seu crédito à custa dos bens imóveis aí identificados, pretendem fazer valer os efeitos da nulidade dos negócios jurídicos, de modo a que esse imóvel seja excluído do processo executivo e lhes seja restituído.

III - Considerando que todos os negócios foram efetuados para prejudicar os credores, o exercício do direito dos embargantes à restituição desse imóvel apresenta-se ilegítimo, por se traduzir num exercício que excede ostensivamente os limites impostos pela boa-fé, não se coadunando com um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correção e lealdade, respeitando as razoáveis expectativas dos credores que interagiram negocialmente com os mesmos e posteriormente com a sociedade “adquirente”, na aparência de que o prédio em causa era um ativo desta e, como tal, suscetível de responder pelas suas dívidas.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Nos presentes autos de embargos de terceiro que J. C. e mulher M. A. movem contra 1- A. R., 2- X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Limitada e 3- Y – Imobiliária, Lda., os requerentes peticionam:

a) a declaração de nulidade, e sem nenhum efeito, por simulação absoluta, nos termos do disposto no artigo 240.º do C. Civil, as escrituras públicas de compra e venda, constantes dos documentos n.º 6 e 7, do prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e logradouro, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., do concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 294/... (...), com as demais consequências da lei;
b) a condenação dos Embargados a reconhecer, que os Embargantes são os donos e legítimos proprietários do prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e logradouro, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., do concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 294/... (...), ou, subsidiariamente, declarar-se a aquisição, pelos Embargantes, desse mesmo prédio, por usucapião, conforme supra alegado;
c) o levantamento do acto de penhora sobre o bem imóvel prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e logradouro, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., do concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 294/... (...), constante do lote n.º 11 do auto de penhora de fls. …;
d) o cancelamento do registo predial da penhora a favor do Embargado A. R., sobre o aludido imóvel;
e) a rectificação do registo predial, inscrevendo o aludido prédio a favor dos Embargantes;
f) a suspensão dos termos dos presentes autos de execução (art. 347.º do Cód. Proc. Civil).

Para tanto alegaram, em síntese, que foi penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 294/... (...), tendo os embargantes tomado conhecimento da penhora efectuada nos autos de execução, em 16.03.2016.

O referido imóvel pertence aos embargantes, que o compraram em 7 de Outubro de 1971, registando o mesmo a seu favor, construindo a sua casa de habitação, obra que terminou em 1972, habitando os embargantes tal casa desde essa data.

No ano de 2000, o embargante marido possuía dívidas decorrentes da sua actividade empresarial e, para não ter o seu património penhorado e vendido, os embargantes declararam vender a sua casa à sociedade Y, cujo gerente, J. P., é seu filho, nunca tendo sido pago qualquer preço, nem transferida a posse.

No ano de 2007, uma vez que a Y se encontrava numa situação financeira muito difícil, e com o mesmo objetivo de os embargantes evitarem a penhora e alineação judicial do dito imóvel, tal sociedade, por ordens e instruções dos embargantes, declarou vender o imóvel à executada X, empresa cujo proprietário é também filho de ambos os embargantes, de seu nome N. F., tendo sido celebrada a escritura de compra e venda do prédio, em 13.06.2007, sendo que a Y, neste ato representada por J. C., declarado vender à X, o referido prédio pelo preço de € 13.000,00, nunca tendo sido paga qualquer quantia, além de que o preço estabelecido é de montante muito inferior ao valor real, que é de € 90.000,00, nunca tendo sido transferida a posse sobre o prédio, que sempre se manteve com os embargantes, evitando assim, mais uma vez, a penhora e alienação da sua casa de morada de família.

Entretanto a sociedade Y foi declarada insolvente, em 14.02.2012, no âmbito do Processo nº 4227/11.1TBGMR, do extinto 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães.

As escrituras de compra e venda foram simuladas, não correspondendo a vontade declarada das partes à vontade de nenhum dos contraentes, nem tendo sido pago qualquer preço, tendo sido outorgadas com o único intuito de enganar e prejudicar os credores do embargante marido.

Subsidiariamente, alegam a posse sobre o bem imóvel e a aquisição do direito de propriedade por via da usucapião.
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Por despacho datado de 14/11/2006, os embargos de terceiro foram liminarmente indeferidos (cfr. fls. 46 a 48).
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Interposto recurso dessa decisão, por acórdão desta Relação de 26/10/2017 foi concedido provimento ao recurso e, consequentemente, revogada a decisão recorrida (cfr. fls. 101 a 113).
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Nessa decorrência, os embargos de terceiro foram liminarmente admitidos (cfr. fls. 123 e 124).
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O embargado A. R. apresentou contestação, pugnando pela improcedência dos embargos de terceiro (cfr. fls. 136 a 144).

Para tanto alega, em resumo, que o embargado já havia celebrado, em 7 de Fevereiro de 2000, com a Y, representada pelo referido J. C., um contrato promessa de compra e venda de um pavilhão, a construir no Lote .., sito no Lugar de …, freguesia de …, Póvoa de Lanhoso, cuja escritura pública deveria ser outorgada até 30 de Outubro de 2000 e o embargante tomou posse do referido pavilhão em fevereiro de 2001.

A referida Y não cumpriu o contrato promessa celebrado, comunicou a revogação do contrato promessa celebrado com o embargado, vendendo o pavilhão a M. J., em 12 de novembro de 2003.

Por transacção celebrada no processo nº 823/03.9TBPVL, do Tribunal Judicial da Póvoa de Lanhoso, em 3 de outubro de 2006, a Y obrigou-se, entre o mais, a transmitir ao embargado, por escritura pública de compra e venda, o pavilhão do Lote .., no prazo de 1 ano, sendo que a referida Y não cumpriu as obrigações a que se obrigou.
O embargado intentou uma execução, tendo, no decurso da mesma, averiguado que, no acordado prazo de um ano, a Y, simuladamente, vendeu a quase totalidade dos seus bens à X (cujo gerente, N. F., é filho de J. C.), onde se incluía o prédio em causa nos autos.

Por fim, intentou contra a Y e a X uma acção pauliana, com o n.º de processo n.º 66/10.5TCGMT, da 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães, onde se decidiu, entre outros bens imóveis, declarar a ineficácia das compras e vendas, formalizadas pelas escrituras outorgadas em 20.12.2006, 16.02.2007, 27.03.2007, 31.05.2007; 13.06.2007; 19.06.2007 e 05.12.2007, todas do Cartório Notarial de C. T., incluindo do bem imóvel em causa nos autos.

Termina, peticionando que os embargos sejam julgados improcedentes ou que seja declarado abuso de direito, com as legais consequências.
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Foi realizada audiência prévia, com elaboração do despacho saneador, no qual foram considerados válidos e regulares os pressupostos objetivos e subjetivos da instância; procedeu-se à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova, bem como foram admitidos os meios de prova (cfr. fls. 217/218).
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Procedeu-se a audiência de julgamento (cfr. fls. 266 a 271 e 273 a 278).
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Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu sentença (cfr. fls. 279 a 291), nos termos da qual julgou parcialmente procedentes os embargos de terceiro e, em consequência:

a) Declarou nulas, por simulação absoluta, as escrituras públicas de compra e venda, constantes dos documentos n.º 6 e 7, do prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e logradouro, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., do concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 294/... (...), com as demais consequências da lei;
b) Declarou que os embargantes são os donos do prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e logradouro, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., do concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 294/... (...).
c) Julgou improcedente o pedido de levantamento do acto de penhora sobre o bem imóvel prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e logradouro, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., do concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....º e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 294/... (...).
d) Julgou improcedente o cancelamento do registo predial da penhora a favor do Embargado A. R., sobre o aludido imóvel.
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Inconformados, os embargantes interpuseram recurso dessa sentença (cfr. fls. 296 a 310) e, a terminar as respetivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«Face ao exposto impõe-se que a sentença recorrida seja revogada e substituída, POIS:

A. Vem o presente recurso de apelação interposto da mui douta sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos de terceiro, isto porque não podem os Recorrentes conformar-se com o teor da mesma.

Vejamos porquê:

DO OBJECTO DO RECURSO

B. Os Recorrentes não se conformam com a sentença recorrida, na parte em que não ordenou o levantamento e cancelamento do registo da penhora sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n° 294/... (...), essencialmente por dois aspectos: i) em primeiro lugar, não se conformam com os factos dados como provados, mormente os pontos 11) e 27) dos factos provados; e ii) em segundo lugar, por entenderem que não incorreram ou agiram em abuso de direito.
C. Entendem, assim, os Recorrentes que se impunha uma decisão diversa da recorrida e que julgasse os embargos de terceiro totalmente procedentes, ordenando o levantamento e cancelamento do registo da penhora sobre o imóvel, casa de habitação dos Recorrentes.

DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

D. Como se alegou supra, os Recorrentes pretendem, com o presente recurso, ver reapreciadas as seguintes questões: 1. Impugnação da matéria de facto dada como provada, nomeadamente os seus pontos 11 e 27; e 2. A existência ou não de abuso de direito por parte dos Recorrentes.

1. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E REAPRECIAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA

E. A Meritíssima Juiz a quo julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, declarou os Embargantes como donos do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n° 294/... (...). No entanto, não ordenou o levantamento e cancelamento do registo da penhora sobre o mesmo imóvel, por entender que os Embargantes agiram em abuso de direito.
F. Tal condenação alicerçou-se e tem como fundamento, entre outros, os pontos 11) e 27) dos factos dados como provados e que rezam assim:
«( ... ) 11) J. C. participou nos negócios invocados.
( ... )
27) A sede social da Y sempre se situou no imóvel identificado em 2)>>.
G. Contudo, entendem os Recorrentes que tais factos, salvo o devido respeito, não deveriam ter sido dados como provados.

PONTO 11) DOS FACTOS PROVADOS

H. A motivação e fundamentação da matéria de facto dada como provada, designadamente relativamente ao ponto 11), é a seguinte: «Desde logo, importa salientar que foram valorados os seguintes documentos: (. . .) - Escrituras públicas de compra e venda juntas a fls. 15/17, 19/24, no que respeita à factualidade constante em 11), 12), 18) e 20) e 24), verificando-se que a morada dos embargante e da referida sociedade é a mesma (fls. 19v).».
I. A fundamentação é esta, apenas esta, e não é feita qualquer referência a qualquer outro meio de prova.
J. Assim, conclui-se que o ponto 11) dos factos dados como provados «<.11) J. C. participou nos negócios invocados.») o foi apenas e só com base em escrituras públicas de compra e venda.
K. Ora, salvo o devido respeito, em primeiro lugar não podemos aceitar que tais documentos possam levar a essa conclusão; quanto muito, o Tribunal poderia ter dado como provado que J. C. participou na escritura pública de compra e venda outorgada em 14.09.2000, no Segundo Cartório Notarial de …, em que os Recorrentes declararam vender a sua casa de habitação à sociedade comercial "Y - Imobiliária, Lda.".
L. Já nas outras escrituras, em momento algum participou, como outorgante, qualquer dos Recorrentes.
M. Daí que, entendem os Recorrentes que não podia o Tribunal a quo dar como provado o ponto 11) dos factos provados.

PONTO 27) DOS FACTOS PROVADOS

N. A motivação e fundamentação da matéria de facto dada como provada, designadamente relativamente ao ponto 27), é a seguinte: «Desde logo, importa salientar que foram valorados os seguintes documentos: (. . .) - Escrituras públicas de compra e venda juntas a fls. 15/17, 19/24, no que respeita à factualidade constante em 11), 12), 18) e 20) e 24), verificando-se que a morada dos embargante e da referida sociedade é a mesma (fls. 19v).».
O. A fundamentação é esta, apenas esta, e não é feita qualquer referência a qualquer outro meio de prova.
P. Assim, conclui-se que o ponto 27) dos factos dados como provados «<27) A sede social da Y sempre se situou no imóvel identificado em 2).»), o foi apenas e só com base em duas escrituras públicas de compra e venda.
Q. Ora, salvo o devido respeito, também não podem os Recorrentes aceitar que tais documentos possam levar a essa conclusão
R. Com efeito, enquanto na primeira dessas escrituras, outorgada em 14.09.2000, ficou exarado que os Recorrentes e a sociedade comercial "Y" têm como morada e sede, respectivamente, a Rua ..., na freguesia de ...; já na segunda escritura, outorgada em 13.06.2007, a morada dos Recorrentes é na Rua da …, da freguesia de ..., enquanto que a sede da sociedade comercial "Y" era, na altura, na Rua ..., da mesma freguesia.
S. Por último, mas não menos importante, importa referir que em momento algum, quer os Embargantes, quer os Embargados, alegaram tal facto, motivo também pelo qual o mesmo não pode ser atendido e considerado como provado.
T. Daí que, entendem os Recorrentes que não podia o Tribunal a quo dar como provado o ponto 27) dos factos provados.
U. Atento o supra exposto, devem os pontos 11) e 27) dos factos dados como provados ser julgados como não provados, atenta toda a prova (não) produzida.
v. Ora, julgando V. Exas. procedente a impugnação da matéria de facto apresentada pelos Recorrentes, retirando dos factos provados os supra aludidos pontos 11) e 27), naturalmente cai por terra qualquer actuação, por parte dos Recorrentes, em abuso de direito.
SEM PRESCINDIR,

2. ABUSO DE DIREITO

w. Os Recorrentes não podem aceitar que tenham actuado, alguma vez, em abuso de direito. Sobretudo a Recorrente mulher, conforme se explicitará infra.
X. A sentença a quo considerou que, não obstante os Recorrentes sejam os donos do aludido prédio penhorado, os mesmos actuaram em abuso de direito, daí que não tenha deferido o pedido de levantamento da penhora e o seu respectivo cancelamento no registo predial
Y. Salvo o devido respeito, os Recorrentes não podem aceitar, de forma alguma, tal argumentação.
Z. Desde logo, esta argumentação não colhe relativamente à Embargante mulher. Na verdade, nada foi alegado e muito menos provado que pudesse levar a uma conclusão dessas. E um entendimento contrário a este não tem qualquer suporte nos autos e na prova produzida.
AA. Sem prescindir, a Recorrente mulher nunca teve qualquer intervenção, nem nos negócios alegados nos autos, nem nas diversas acções e execuções instauradas. Aliás, ela nem conhece o Embargado A. R.!
BB. No entanto, a sentença recorrida fará com que a mesma perca a sua única casa de habitação, caso não seja ordenando o levantamento da penhora sobre a mesma.
cc. E correr-se-á, eventualmente, o risco de ao pretender-se menorizar um prejuízo (neste caso do Embargado A. R.), estar a criar-se um prejuízo muito maior e irreparável: a perda da casa de habitação da Recorrente mulher.
DD. Mas, também relativamente ao Embargante marido, os Recorrentes não podem aceitar a fundamentação aduzida.
EE. Desde logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, os Recorrentes não são parte na acção executiva, nem nunca foram parte em qualquer uma das acções declarativas anteriores, interpostas pelo Embargado A. R..
FF.Mais, resulta da matéria dada como provada que os Recorrentes são e sempre foram os únicos e exclusivos donos do aludido prédio e que sempre exerceram a posse sobre o mesmo, sempre à vista e com conhecimento de todos e sem oposição de ninguém.
GG. E com os presentes embargos pretenderam apenas e só manter na sua posse aquilo que estava à vista de todos. Onde está o comportamento imoral ou abusivo dos Recorrentes? E em que momento terão enganado o Embargado A. R.?
BB. Mais, os recorrentes nunca tiveram, a título pessoal - e é esta a qualidade em que estão nos presentes autos - qualquer negócio com o Embargado A. R..
II. Também nunca tiveram nenhuma acção judicial contra este ou vice-versa. JJ. E nunca foram seus devedores ou lhe causaram qualquer prejuízo.
KK. E como pretenderia o Embargado A. R. retirar aos Recorrentes a sua casa de morada de família quando o mesmo - como toda a gente -, sempre soube que esta é, apenas e só, dos Recorrentes, como, aliás, resultou como provado?
LL. Ora, Venerandos Desembargadores, em momento algum, salvo o devido respeito, os Recorrentes agiram em abuso de direito perante os Embargados!
MM. Finalmente, e a este propósito, chama-se aqui à colação o mui douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26.10.2017, proferido no âmbito dos presentes autos (recurso relativo ao indeferimento liminar dos embargos de terceiro), em cujo sumário se pode ler: «( ... )2 - A qualidade de gerente de uma sociedade comercial é distinta da esfera jurídica pessoal e patrimonial desse gerente( ... )>> (sublinhado e negrito nossos).
E, na fundamentação deste acórdão, é ainda dito que: «( ... ) é verdade que (. . .) o embargante foi o representante legal da sociedade, Y mobiliária, Lda, no processo onde foi proferida a sentença dada à execução. Mas, não é nessa qualidade que este embargante se opõe à penhora. É, antes, a título pessoal.
Por conseguinte, não tendo sido afastada judicialmente a diferenciação de personalidades jurídicas, também não podem confundir-se os papéis desempenhados a cada um dos títulos. Isto para já não falar da embargante, em relação á qual não há qualquer indício de que tenha sido parte em qualquer dos processos referidos.».
NN. Destarte, atento todo o supra exposto não se alcança onde, quando e como terão os Recorrentes actuado em abuso de direito, perante o Embargado A. R..
00. A sentença recorrida violou, assim, os artigos 342.º e ss. do Código de Processo Civil e o artigo 334.º do Código Civil.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos de terceiro, devendo a mesma ser substituída por acórdão que julgue os embargos de terceiro totalmente procedentes, deferindo o pedido de cancelamento da penhora sobre o imóvel propriedade dos Embargantes e ordenando o cancelamento do registo predial dessa mesma penhora, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!».
*
Contra-alegou o co-embargado A. R., pugnando pela improcedência do recurso interposto pelos embargantes (cfr. fls. 311 a 318).
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. fls. 319).
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s) – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

1.ª – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
2ª – Da não verificação da exceção (perentória) do abuso de direito por parte dos embargantes.
*
III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto

A. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos (que se transcrevem):

1) No dia 12-02-2014, no âmbito dos autos de execução com o nº 232/14.4TBGMR, a que os presentes autos se encontram apensos, em que é exequente A. R., e executada X – Aluguer de Equipamento de Construção, Lda., foram penhorados os bens imóveis descritos nas verbas 1 e 13 do auto de penhora que consta a fls. 70 a 81 da execução apensa, constando, entre outros:
2) Verba 11: Prédio urbano composto por cada de dois pavimentos e logradouro, sito no Lugar ..., freguesia de ... (...), concelho de Guimarães, confronta a Norte com J. M., a Sul com M. C., Nascente com Estrada Nacional e Poente com F. F. e outro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 294/... (...), com o valor patrimonial de € 49.393,83.
3) Foi dada à execução a sentença proferida em 7.11.2013, no Processo nº 66/10.5TCGMT, da 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães - acção de impugnação pauliana intentada pelo exequente A. R., contra Y – Imobiliária, Lda., e X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda., a qual declarou a ineficácia das compras e vendas ali identificadas, efectuadas entre as aludidas sociedades, e o direito do autor de obter a satisfação do seu crédito à custa de destes bens imóveis.
4) O exequente, A. R., pretende executar, no património da sociedade X, os imóveis melhor identificados na sentença dada à execução, entre os quais o descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº 294/... (...).
5) Por sentença de 6.10.2006 foi homologado o acordo celebrado entre o exequente, A. R., e a sociedade Y – Imobiliária, Lda., representada por J. C., no qual esta se obrigou a marcar a escritura de compra e venda do pavilhão do Lote 13 e que caso a escritura não fosse outorgada, por causa imputável à sociedade Y – Imobiliária, Lda., esta obrigava-se a pagar ao exequente a quantia de € 134.675,43, acrescida de juros.
6) A sociedade Y – Imobiliária, Lda., não marcou a escritura de compra e venda, nem cumpriu as demais obrigações estabelecidas na aludida transacção homologada por sentença.
7) A sociedade Y – Imobiliária, Lda., representada por J. C., com vista a desviar o seu património para a sociedade X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda., para prejudicar o exequente e demais credores, procedeu à venda dos seus imóveis à X, designadamente, por escritura pública, celebrada em 13 de Junho de 2007, o prédio urbano identificado em 2), conforme resulta da sentença dada à execução, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
8) A sociedade Y – Imobiliária, Lda., foi constituída em 1994, sendo seus sócios e gerentes J. C., e o seu filho J. P..
9) No ano de 2012, a referida sociedade foi declarada insolvente, passando a ser administrada pelo administrador de insolvência Dr. J. A..
10) Pela Insc. 1 Ap. 29/20031013 foi inscrita a X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda., com o objecto, entre outros, de “Compra e venda de bens imóveis”, constando como sócio e gerente N. F., conforme certidão junta a fls. 40 e seguintes, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
11) J. C. participou nos negócios invocados.
12) Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 07.10.1971, no Cartório Notarial de Guimarães, os embargantes declararam comprar e José e mulher declararam vender um prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 26765, conforme documento junto a fls. 14/17, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
13) Os embargantes efectuaram o registo do mesmo a seu favor em 08.02.1972.
14) Em Novembro de 1972, os embargantes obtiveram, junto da Câmara Municipal de …, uma licença de construção.
15) Os Embargantes iniciaram a construção da sua casa de morada de família, obra essa que terminou no ano de 1972 e que deu origem à sua habitação, que ainda hoje está no local e que corresponde à descrição que dela consta do seu registo predial actual.
16) Os embargantes encontram-se a habitar a casa desde 1972.
17) No ano de 2000, o embargante marido tinha diversas dívidas fiscais e tributárias e bancárias e para evitar que o imóvel fosse penhorado para pagamento de tais dívidas, alienou-o.
18) Por escritura pública de compra e venda outorgada em 14.09.2000, no Segundo Cartório Notarial de …, os Embargantes declararam vender, pelo preço de 4.500.000$00 (22.445,91 €) à sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda.”, representada nesse acto pelo filho de ambos, J. P., o prédio identificado em 2).
19) No ano de 2007, a sociedade comercial Y começava a ter algumas dívidas e estava numa situação financeira bastante difícil, para evitar que o imóvel fosse penhorado e com as finalidades constantes em 7), alienou-o à executada, empresa cujo proprietário, N. F., é filho dos embargantes.
20) Por escritura pública de compra e venda, exarada em 13.06.2007, no Cartório Notarial de C. T., a sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda., neste acto representada pelo embargante marido na qualidade de gerente, declarou vender à sociedade comercial “X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Limitada”, pelo preço de € 13.000,00.
21) No negócio identificado em 18), a sociedade nunca pagou qualquer quantia pelo preço, nem o imóvel foi vendido, tendo sido efectuado apenas com o intuito de prejudicar terceiros.
22) No negócio identificado em 20), o imóvel nunca foi pago o preço. 23) Em nenhuma das escrituras celebradas a vontade declarada correspondia à vontade dos contraentes.
24) Desde 1971, os embargantes gozaram de todas as utilidades do prédio, habitando-o, recebendo correio, aí recebendo visitas de amigos e familiares, procedendo a diversas obras de conservação e melhoramento, colhendo os seus frutos.
25) O que aconteceu sempre à vista e com conhecimento de toda a gente,
26) Sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta, pagando os encargos com a luz, com a intenção e convicção de que exerciam um direito próprio.
27) A sede social da Y sempre se situou no imóvel identificado em 2).
*
B. E deu como não provado, com relevância para a decisão da causa, os restantes factos alegados na petição inicial, nomeadamente:

a) O imóvel identificado em 2) tem o valor de mercado de € 90.000,00.
*
V. Fundamentação de direito

1 – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

1.1. Em sede de recurso, os apelantes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o/a recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, o qual dispõe que:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».

Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que os recorrentes indicam quais os factos que pretendem que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada (da modificação dos factos não provados para provados), como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua ótica o impõe(m), pelo que podemos concluir que cumpriram suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640º.
*
1.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Por sua vez, segundo os n.ºs 4 e 5 do art. 607º do CPC:

4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

Por referência às suas conclusões, extrai-se que os recorrentes pretendem a alteração das respostas positivas para negativas dos pontos 11) e 27) dos factos provados da decisão recorrida.

Os referidos pontos fácticos objeto de impugnação têm o seguinte teor:

«11) J. C. participou nos negócios invocados».

«27) A sede social da Y sempre se situou no imóvel identificado em 2)».
Com vista a justificar a sua impugnação defendem os recorrentes, no tocante ao ponto 11) dos factos provados, que o Tribunal “a quo”, alicerçou-se unicamente nas escrituras públicas de compra e venda juntas a fls. 15/17, 19/24, as quais são insuficientes à demonstração do facto impugnado. Admitem, no entanto, que, quanto muito, poderia o Tribunal ter dado (apenas) como provado que J. C. participou na escritura pública de compra e venda outorgada em 14.09.2000, no 2º Cartório Notarial de .., em que os recorrentes declararam vender a sua casa de habitação à sociedade comercial "Y - Imobiliária, Lda.".
Já relativamente ao ponto 27) dos factos provados, considerando que na motivação e fundamentação da matéria de facto dada como provada é feita apenas menção às “escrituras públicas de compra e venda juntas a fls. 15/17, 19/24”, não sendo aduzida referência a qualquer outro meio de prova, sustentam os recorrentes que tais documentos não permitem retirar a conclusão firmada.
Acresce que, em momento algum, quer os embargantes, quer os embargados, alegaram tal facto, motivo por que, concluem, o mesmo não pode ser atendido e considerado como provado.
Vejamos, pois, se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde, de facto, à prova realmente obtida.

< ponto 11) dos factos provados.

Estão em causa dois contratos de compra e venda do imóvel identificado nos autos que, no dizer dos embargantes e conforme o sufragado na sentença recorrida, enfermam de vício da vontade (divergência entre a vontade e a declarada), mais propriamente simulação absoluta (art. 240º do CC), geradora da nulidade de tais contratos (n.º 2 do citado normativo).

Conforme está provado, por escritura pública de compra e venda outorgada em 14.09.2000, no 2º Cartório Notarial de …, os embargantes declararam vender, pelo preço de 4.500.000$00 (22.445,91 €), à sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda.”, representada nesse acto pelo filho de ambos, J. P., o prédio identificado em 2) [ponto 18) dos factos provados].
Por sua vez, resulta também provado nos autos que, por escritura pública de compra e venda, exarada em 13.06.2007, no Cartório Notarial de C. T., a sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda., neste acto representada pelo embargante marido, na qualidade de gerente, declarou vender o referido prédio à sociedade comercial “X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Limitada”, pelo preço de € 13.000,00 [ponto 20) dos factos provados].
A demonstração dessa facticidade alicerçou-se, respetivamente, nas escrituras públicas de compra e venda juntas a fls. 19 e 20 e 21 a 24.
Acontece, porém, que apenas relativamente à escritura outorgada em 14.09.2000 o embargante J. C. interveio a título pessoal, na qualidade de comprador, já que na escritura pública celebrada em 13.06.2007 a sua intervenção foi “na qualidade de gerente e em representação” da sociedade Y – Imobiliária, Lda, e não a título pessoal.

Nesta conformidade e até para que não subsista qualquer ambiguidade, obscuridade ou, até mesmo, contradição com a matéria inserida no ponto 20 dos factos provados, impõe-se inelutavelmente a alteração da resposta ao ponto 11 dos factos provados, passando este a valer com a seguinte redação:

«11) J. C. participou, a título pessoal, na qualidade de vendedor, no negócio aludido no ponto 18 e interveio, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Y – Imobiliária, Lda, no negócio aludido no ponto 20.
Uma breve nota final para especificar que essa factualidade sempre se extrairia da conjugação da matéria inserta nos pontos 18) e 20) dos factos provados, pelo que nada obsta (nos termos agora delineados) à sua autonomização no elenco da matéria de facto provada.

< ponto 27) dos factos provados.

Conforme resulta da respetiva certidão permanente (cfr. documento de fls. 36 a 39), a sociedade Y – Imobiliária, Lda tinha sede no Lugar ..., Distrito de Braga, concelho de Guimarães, ... e ….
Por sua vez, segundo a escritura pública de compra e venda celebrada em 14.09.2000 (junta a fls. 19 e 20), a morada dos embargantes e da referida sociedade é a mesma (fls. 19v).
De igual modo, por referência à cópia da escritura pública de compra e venda celebrada em 12.11.2003 (junta a fls. 157 e 158), na qual intervieram como outorgantes a sociedade Y – Imobiliária, Lda e M. J., a morada ali indicada do sócio gerente em representação da referida sociedade (o ora embargante J. C.) e da sociedade Y coincidem (fls. 157 vº).

Acresce que, em sede de declarações de parte (a cuja audição se procedeu na íntegra (1), os embargantes J. C. e mulher M. A., bem como o legal representante da X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Limitada, N. F., filho dos embargantes, e a testemunha J. P., também filho dos embargantes e que era gerente da Y, foram perentórios e unânimes em declarar que os embargantes encontram-se a habitar a casa identificada no ponto 2 dos factos provados desde 1972, pelo que também por esta via probatória fica estabelecida (ainda que indiretamente) a conexão entre o aludido imóvel e a sede social da Y, posto ser naquele que os embargantes têm a sua residência habitual.
Nesta conformidade, é de manter inalterada a resposta a este ponto fáctico impugnado.
*
Em suma, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto nos termos supra explicitados (2).
*
2 – Enquadramento jurídico dos factos provados.

2.1. – Da não verificação do exercício abusivo do direito por parte dos embargantes.

Na sentença recorrida foi decidido que, mercê da declaração da nulidade dos contratos de compra e venda em causa nos autos, por via da simulação absoluta, o bem imóvel reingressaria na esfera jurídico-patrimonial dos embargantes, com a consequente procedência dos embargos de terceiro.
Tendo, porém, enquadrado a atuação dos embargantes no instituto do abuso de direito, foi determinado neutralizar a antijuricidade desse exercício, o que se consubstanciou na “não restituição do prédio aos embargantes (procedência de excepção material peremptória), mantendo-se este afecto aos fins da execução, pelo que [se] mantém a penhora efectuada na execução apensa a favor do exequente e o registo da mesma, sem prejuízo de aos embargantes, que são donos do prédio, vir a ser restituído o que eventualmente remanescer a esses fins”.
Desse segmento da decisão (na parte em que não ordenou o levantamento e cancelamento do registo da penhora sobre o descrito imóvel) discordam os embargantes, os quais rejeitam que alguma vez tenham actuado em abuso de direito (perante o embargado A. R.), sobretudo a recorrente mulher.

Vejamos se lhes assiste razão.

Preceitua o art. 334º do Cód. Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Para Manuel de Andrade, “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual” (3).

No entendimento de Vaz Serra, o ato abusivo é, em regra, o exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na coletividade social. Só excecionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede (4).
Nas palavras de Antunes Varela, “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” (5).
Daí que, segundo Pires de Lima e Antunes Varela (6), o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido “em termos clamorosamente ofensivos da justiça” ou “do sentimento jurídico socialmente dominante”.
Como refere Almeida Costa (7), o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais.
O abuso de direito surge, pois, como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, funcionando, por um lado, “como válvula de escape a situações que os limites apertados na lei não regulam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico”, e obstando, por outro, a que, “observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se exceda manifestamente os limites que se devem observar, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo” (8).
Ressalve-se, no entanto, que “a utilização do abuso do direito não deve constituir panaceia fácil de toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respectivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo” (9). Importa evitar a todo o custo «a utilização da boa fé como um “nevoeiro” que serve para tudo» (10).
O abuso de direito pressupõe logicamente que o direito existe, embora o seu titular se exceda no exercício dos seus poderes.
A fórmula adotada no atual Código Civil não se delimita tão só ao acto de emulação, entendido como o exercício de um direito sem utilidade própria e só para prejudicar outrem. Numa visão bem mais abrangente e ampla, o citado preceito normativo abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que outros têm de suportar (11).
Segundo o legislador, a determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, ou seja, da existência ou não de abuso do direito, afere-se a partir de três conceitos: a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito (12).
A manifestação mais clara do abuso do direito é a chamada conduta contraditória (“venire contra factum proprium”) em combinação com o princípio da tutela da confiança - exercício dum direito em contradição com uma conduta anterior em que a outra parte tenha confiado, vindo esta com base na confiança gerada e de boa fé a programar a sua vida e a tomar decisões (13).
Conforme sublinha Baptista Machado (14), a ideia imanente a esta proibição é a do dolus praesens, isto é, que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas ponto de referência para, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da legitimidade da conduta atual.

Na decorrência do exposto, enumera o citado autor (15), três pressupostos para o desencadeamento dos efeitos do instituto:

1º - uma situação objetiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
2º - investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que surgirão danos, se a confiança legitima vier e ser frustrada.
3º - boa fé da contraparte que confiou: nos casos em que a intenção aparente do responsável pela confiança diverge da sua intenção real, a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá proteção jurídica quando este esteja de boa-fé e tenha agido com cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico.

A caracterização da proibição do comportamento contraditório, nos seus elementos fundamentais, mostra-se feita no Ac. do STJ de 12/11/13 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt., nos seguintes termos:

«Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano. Os pressupostos enumerados não podem em caso algum ser aplicados automaticamente pois, (…), o venire contra factum proprium é, em última análise, “uma técnica que não dispensa, e antes pressupõe, um controlo da adequação material da solução, com uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima”; por isso, todos aqueles pressupostos “deverão ser globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo».

Analisando, agora, o caso dos autos importa atentar na seguinte facticidade apurada:

- No ano de 2000, o embargante marido tinha diversas dívidas fiscais e tributárias e bancárias e, para evitar que o imóvel identificado em 2) fosse penhorado para pagamento de tais dívidas, alienou-o.
- Para o efeito, por escritura pública de compra e venda outorgada em 14.09.2000, no 2º Cartório Notarial de …, os embargantes declararam vender, pelo preço de 4.500.000$00 (22.445,91 €) à sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda.”, representada nesse acto pelo filho de ambos, J. P., o aludido prédio.
- No ano de 2007, a sociedade comercial Y começava a ter algumas dívidas e estava numa situação financeira bastante difícil, pelo que, para evitar que o imóvel fosse penhorado e com o propósito de prejudicar o exequente e demais credores, alienou-o à executada, X, empresa cujo gerente é N. F., filho dos embargantes.
- Assim, por escritura pública de compra e venda, exarada em 13.06.2007, no Cartório Notarial de C. T., a sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda., neste acto representada pelo embargante marido, na qualidade de gerente, declarou vender o mencionado imóvel à sociedade comercial “X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Limitada”, pelo preço de € 13.000,00.
- No negócio celebrado em 14.09.2000, a Y nunca pagou qualquer quantia pelo preço, nem o imóvel foi vendido, tendo sido efectuado apenas com o intuito de prejudicar terceiros e quanto ao negócio outorgado em 13.06.2007 também nunca foi pago o preço do imóvel. - Em nenhuma das escrituras celebradas a vontade declarada correspondia à vontade dos contraentes.
- O embargante marido participou, a título pessoal, na qualidade de vendedor, no primeiro negócio e interveio, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Y – Imobiliária, Lda, no segundo negócio.
- As sociedades envolvidas nos negócios têm (tinham (16)) como representantes um filho dos embargantes, sendo que o embargante marido era também sócio gerente da Y.
Sendo esta a facticidade apurada dela sobressai desde logo o papel nuclear assumido pelo embargante marido na concepção e execução de um plano que, num primeiro momento, passou por (aparentemente) retirar do património dos embargantes o imóvel identificado nos autos, a fim de o subtrair à acção dos seus credores – visando, por conseguinte, prejudicá-los, e não apenas enganá-los –, uma vez que aquele tinha diversas dívidas (fiscais, tributárias e bancárias).

Para o efeito, aproveitando-se do facto da sociedade Y ter como sócios gerentes o próprio embargante marido e um filho dos embargantes, os embargantes celebraram com a referida sociedade um contrato de compra e venda do imóvel, dando assim ensejo a um negócio simulado (art. 240º do CC), visto que a vontade nela declarada não correspondia à vontade dos contraentes, sendo que nunca foi pago o respectivo preço, nem o imóvel alienado. Os embargantes valeram-se dessa suposta venda nos termos e para os fins supra referidos, dela se prevalecendo e mantendo-a enquanto a mesma se manteve conveniente aos seus interesses, assim logrando colocar esse bem a salvo dos credores do embargante marido.

Todavia, no ano de 2007, revelando a sociedade Y uma situação financeira bastante difícil e a fim de evitar que o imóvel fosse penhorado e com o propósito de prejudicar o exequente e demais credores, foi decidido alinear o referido imóvel à executada, X, prevalecendo-se, mais uma vez os embargantes, do facto desta sociedade ter como gerente um outro filho dos embargantes, no caso o N. F..

Foi inclusivamente, o embargante marido quem interveio nessa escritura de compra e venda celebrada com a X, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Y – Imobiliária, Lda.

Também esta situação (de aparência jurídica) manteve-se por alguns anos dado se mostrarem devidamente salvaguardados os interesses (ilegítimos) dos embargantes, até ao momento em que o referido imóvel foi penhorado no âmbito da ação executiva de que estes embargos de terceiro são dependentes, sendo que a execução tem como título a sentença proferida em 7.11.2013, no processo nº 66/10.5TCGMT, da 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães, no âmbito duma acção de impugnação pauliana intentada pelo exequente A. R., contra Y - Imobiliária, Lda, e X - Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda., na qual se declarou a ineficácia das compras e vendas ali identificadas, efectuadas entre as aludidas sociedades, e o direito do autor de obter a satisfação do seu crédito à custa dos aí identificados bens imóveis.

Ou seja, foi na iminência do referido imóvel ter de responder pela satisfação do direito de crédito que o autor A. R. possui sobre a Y, o que a suceder comprometerá irremediavelmente as finalidades que presidiram às simuladas vendas [de eximir esse bem à ação dos credores dos embargantes e da sociedade Y], levadas a cabo pelo embargante marido, quer por si, quer na qualidade de legal representante da Y, que os embargantes vieram invocar a nulidade dos negócios, por simulação, porquanto tal situação aparente por eles motivada deixou de lhes convir e é prejudicial aos seus ilegítimos interesses.

Às considerações antecedentes importa ainda salientar (17) que o imóvel penhorado pertença dos embargantes foi por estes, a partir do ano de 2000, colocado e mantido juridicamente como sendo pertença da co-embargada Y até 13.06.2007 e a partir dessa data como sendo pertença da co-embargada X, e, como tal, como coisa aparentemente integrante do património destas sociedades.

As aludidas sociedades comerciais figuraram, no confronto dos embargantes, apenas como uma espécie de “instrumento” ao serviço dos interesses destes, não passando por isso de meras intermediárias, e cujo interesse se resumia à salvaguarda dos interesses daqueles, tendo para o efeito sido decisivas as relações de parentesco existentes entre embargantes e os legais representantes de tais sociedades, sendo inclusivamente o embargante marido sócio gerente de uma delas.

Temos assim que quiseram os embargantes que, na aparência jurídica, tudo se passasse como se o referido imóvel pertencesse às ditas sociedades, como se fizesse parte do seu património. Porém, ao mesmo tempo, sempre se percecionaram os embargantes como os donos do imóvel, jamais deixando de gozar de todas as utilidades que o mesmo era suscetível de propiciar, designadamente habitando-o, recebendo correio, aí recebendo visitas de amigos e familiares, procedendo a diversas obras de conservação e melhoramento, colhendo os seus frutos.

Sendo assim, todas as vicissitudes inerentes a essa realidade jurídico formal devem ser vistas, nomeadamente no confronto dos credores (face às naturais expetativas que a aparência das coisas criava), como coenvolvendo os próprios embargantes, e não como restritas às sociedades comerciais.

Tendo sido com esta aparência, criada pelos próprios embargantes, que a situação jurídica do imóvel perdurou desde 2000 até 2014, em termos tais que suscitou a confiança das pessoas, é a todos os títulos intolerável, por violador do vetor da boa-fé, a pretensão dos embargantes à exclusão da imóvel do processo executivo, como se nem o imóvel, nem eles tivessem alguma coisa a ver com a emergência dos créditos que justificaram a instauração da execução.
É, por conseguinte, irrelevante a argumentação de que os recorrentes nunca tiveram, a título pessoal qualquer negócio com o embargado A. R., nem nunca tiveram nenhuma acção judicial contra este ou vice-versa e nunca foram seus devedores.

A situação evidenciada nos autos consubstancia, pois, uma grosseira violação da confiança, na modalidade de venire contra factum proprium, com a qual o sistema não pode contemporizar.

Com efeito, sufragando o aduzido na sentença impugnada, «(…) a embargada/exequente logrou provar que os embargantes agiram um modo tal que é a todos os títulos intolerável, por violador do princípio da boa-fé, a pretensão dos mesmos à exclusão deste imóvel aos fins da execução apensa.

Não se pode olvidar todos os negócios que foram efectuados para prejudicar os credores, sendo que o exercício do direito dos embargantes à restituição deste imóvel apresenta-se claramente ilegítimo, precisamente por se resolver num exercício que excede manifestamente (ostensivamente, grosseiramente, gritantemente) os limites impostos pela boa-fé, não se coadunando com um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correcção e lealdade, respeitando as razoáveis expectativas dos credores que interagiram negocialmente com os mesmos e posteriormente com a sociedade Y contando que o prédio em causa nos autos respondesse pelas suas dívidas”.

Contrapõem, porém, os embargantes dizendo que a argumentação que serviu de base à verificação da situação de abuso de direito não colhe relativamente à embargante mulher, quer por nada ter sido alegado e muito menos provado que pudesse levar a uma conclusão dessas, além de que a recorrente mulher nunca teve qualquer intervenção, nem nos negócios alegados nos autos, nem nas diversas acções e execuções instauradas, não conhecendo sequer o embargado A. R..

Com o devido respeito, não colhem a enunciadas objecções.

Permitimo-nos para tanto destacar a facticidade incluída nos pontos 18, 21 e 23 da matéria provada, donde resulta que a embargante mulher teve direta intervenção no primeiro negócio simulado celebrado em 14/09/200, o qual foi efectuado apenas com o intuito de prejudicar terceiros (simulação fraudulenta).

Acresce que as dívidas do embargante marido, contraídas no exercício da sua atividade de empresário individual, e que foram o principal motivo para o casal (aparentemente) se “desfazer” do imóvel, não eram indiferentes à embargante mulher, dada a sua comunicabilidade (art. 1691º, n.º 1, al. d) do CC) (18), pelo que por elas responderiam os bens comuns do casal (como seja o imóvel em apreço), e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. (art. 1695º, n.º 1 do CC).

Por outro lado, se atentarmos na petição inicial, é a própria alegação dos embargantes que infirma por completo esse alegado alheamento da embargante mulher nos negócios em apreço, tais como:

- “21. o Embargante marido, conjuntamente com a sua mulher, declararam vender a sua casa de morada de família, (…)”;
22. E, para que se mantivessem na posse e como verdadeiros e únicos proprietários desse imóvel, os Embargantes declararam vendê-lo a uma sociedade comercial sob a firma “Y – IMOBILIÁRIA, LDA.”, aqui 3.ª Embargada, empresa esta cujo gerente e proprietário era o filho de ambos, J. P.”.
23. Assim, por escritura pública de compra e venda, lavrada em 14.09.2000, no Segundo Cartório Notarial de Guimarães, do Notário J. G.,
24. Os Embargantes declararam vender, pelo preço de 4.500.000$00 (22.445,91 €) à sociedade comercial “Y – IMOBILIÁRIA, LDA.” (3.ª Embargada), representada nesse acto pelo filho de ambos, J. P., o aludido prédio (…)”;
25. Ora, acontece que essa sociedade nunca pagou qualquer quantia pelo preço dessa compra e venda”.
27. Acresce ainda que, ao contrário do declarado nessa escritura pública, nunca esse imóvel foi efectivamente vendido, e muito menos transferida a posse sobre o mesmo, que sempre se manteve com os Embargantes”.
28. Mais tarde, no ano de 2007, e porque aquela “Y – IMOBILIÁRIA, LDA.” (3.ª Embargada) começava a ter também algumas dívidas, e com o mesmo objectivo de os Embargantes evitarem a penhora e alienação judicial do dito imóvel” (sublinhado nosso),
29. essa sociedade comercial, por ordem e instruções dos Embargantes, declarou vendê-lo à “X – ALUGUER DE EQUIPAMENTOS DE CONSTRUÇÃO, LIMITADA”, ora Embargada/Executada, empresa cujo proprietário é também filho de ambos os Embargantes, de seu nome N. F.” (sublinhado nosso).
34. E, assim, com a celebração desta escritura de compra e venda, os Embargantes, mais uma vez, evitaram a penhora e alienação da sua casa de morada de família (sublinhado nosso).
40. Na verdade, nada os Embargantes quiseram vender e nada a “Y” e a “X” quiseram comprar”.
42. Ao celebrarem assim os referidos contratos de compra e venda, constantes dos documentos n.º 6 e 7, os Embargantes, a “Y” e a “X”, esconderam um prédio que sempre responderia pelas dívidas do Embargante marido, prejudicando dessa forma os credores deste” (sublinhado nosso).

Sendo assim, não colhe a argumentação de vitimização esgrimida pela embargante mulher, posto a mesma não ser (de todo) alheia nem indiferente à situação jurídica criada com as vendas simuladas.
Por último, é certo que no Acórdão desta Relação de 26.10.2017, proferido no âmbito dos presentes autos (recurso relativo ao despacho de indeferimento liminar dos embargos de terceiro, que foi julgado procedente), foi destacada a diferenciação entre a intervenção do embargante marido na qualidade de representante legal da sociedade Y, no processo onde foi proferida a sentença dada à execução, por contraposição à sua qualidade de demandante, a título pessoal, nos presentes embargos de terceiro, pelo que “não tendo sido judicialmente a diferenciação de personalidades jurídicas”, concluiu-se que também não podiam “confundir-se os papéis desempenhados a cada um dos títulos”. E em relação à embargante mulher mais se explicitou inexistir “qualquer indício de que tenha sido parte em qualquer dos processos referidos».

Porém, como também aí logo se aduziu, o “que se poderia questionar é se a sua pretensão [dos embargantes] não é ilegítima ou abusiva em termos substantivos; designadamente, por terem dado causa aos alegados negócios simulados que pretendem impugnar (…)”.

O que significa que a própria fundamentação do citado acórdão não excluiu a eventual verificação da questão do exercício abusivo do direito por parte dos embargantes.

Termos em que, pelos fundamentos expostos, se confirma o ajuizado na sentença recorrida no sentido de a actuação dos embargantes se enquadrar no instituto do abuso de direito, sendo, portanto, ilegítima.
É, igualmente, de manter a adotada sanção ou consequência inerente ao exercício abusivo do direito dos embargantes (19), cuja neutralização da antijuridicidade desse exercício se traduz na “não restituição do prédio aos embargantes (procedência de excepção material peremptória), mantendo-se este afecto aos fins da execução, pelo que [se] mantém a penhora efectuada na execução apensa a favor do exequente e o registo da mesma, sem prejuízo de aos embargantes, que são donos do prédio, vir a ser restituído o que eventualmente remanescer a esses fins”.
A sentença recorrida merece, assim, plena confirmação, improcedendo as conclusões dos apelantes.
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As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I - Perante um quadro fáctico em que:
- Em 2000, os simuladores (embargantes) alienaram um imóvel a uma sociedade comercial da qual o embargante marido é, juntamente com um filho, sócio-gerente, com a finalidade de o retirar do seu património a fim de o subtrair à ação dos seus credores;
- Em 2007, por apresentar uma situação financeira bastante difícil e a fim de evitar que o imóvel fosse penhorado e com o propósito de prejudicar o exequente e demais credores, essa sociedade “adquirente”, representada pelo embargante marido, alienou o referido imóvel à executada, valendo-se do facto desta ter como gerente um dos filhos dos embargantes.
- Nos referidos negócios nunca foi paga qualquer quantia a título de preço, tendo sido efectuados apenas com o intuito de prejudicar terceiros, sendo que a vontade declarada não correspondia à vontade dos contraentes.
II - Agem com abuso do direito os simuladores que, na sequência da penhora do imóvel decretada em 2014 no âmbito duma execução instaurada contra uma daquelas duas sociedades (a que não foi declarada insolvente), tendo como título executivo uma sentença proferida na acção de impugnação pauliana, na qual se declarou a ineficácia das compras e vendas efectuadas entre as aludidas sociedades e o direito do autor de obter a satisfação do seu crédito à custa dos bens imóveis aí identificados, pretendem fazer valer os efeitos da nulidade dos negócios jurídicos, de modo a que esse imóvel seja excluído do processo executivo e lhes seja restituído.
III - Considerando que todos os negócios foram efectuados para prejudicar os credores, o exercício do direito dos embargantes à restituição desse imóvel apresenta-se ilegítimo, por se traduzir num exercício que excede ostensivamente os limites impostos pela boa-fé, não se coadunando com um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correcção e lealdade, respeitando as razoáveis expectativas dos credores que interagiram negocialmente com os mesmos e posteriormente com a sociedade “adquirente”, na aparência de que o prédio em causa era um ativo desta e, como tal, suscetível de responder pelas suas dívidas.
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VI. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo dos apelantes.
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Guimarães, 10 de julho de 2019

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)




1. Tenha-se presente que no âmbito da apreciação de impugnação da matéria de facto o Tribunal da Relação deve formar a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes).
2. Por se tratar de uma ampliação muito limitada, dispensamo-nos de transcrever de novo toda a factualidade provada e não provada, devendo considerar-se aquele ponto objeto de alteração incluído nos factos provados nos termos explicitados.
3. Cfr. Teoria Geral das Obrigações, 3ª ed., Almedina, pp. 63-64.
4. Cfr. Abuso de Direito, BMJ n.º 85, p. 253.
5. Cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª edição, Almedina, p. 516.
6. Cfr. Código Civil Anotado, Vol. 1, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 299.
7. Cfr. Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, p. 64.
8. Cfr. Acs. do STJ de 13/03/2008 (relator Santos Bernardino) e de 8/10/2009 (relator Serra Baptista), disponíveis em www.dgsi.pt.
9. Cfr. Ac. do STJ de 24/01/2002, CJSTJ, 2002, T. I, pp. 53/54
10. Cfr. Paulo Mota Pinto, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil, BFDUC, Volume Comemorativo (2003), p. 302.
11. Cfr. neste sentido, entre outros, J. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, Vol. II, p. 102, Antunes Varela, RLJ, ano 114º, p. 75 e Das obrigações Em Geral Vol. I, 6ª ed., p. 515 e o Ac. do STJ de 28.11.1996, CJSTJ, 1996, T. III, p. 118.
12. O agir de boa fé envolve, além do mais, no quadro das relações jurídicas, a actuação honesta e conscienciosa, isto é, numa linha de correcção e probidade, não procedendo de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável tolera. Os bons costumes, por seu turno, são, grosso modo, o conjunto de regras de comportamento relacional acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis, conforme as concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade. Por fim, o fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos. – cfr. Acs. do STJ de 25 de Junho de 2009 (relator Salvador da Costa) e de 8/10/2009 (relator Serra Baptista), disponíveis em www.dgsi.pt.
13. Cfr. Vaz Serra, RLJ, 111º, p. 296.
14. Cfr. Tutela da Confiança e “Venire Contra Factum Proprium”, in “Obra Dispersa”, vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, pp. 385, 415 e 416.
15. Cfr. Estudo e obra citada, pp. 415 a 418.
16. Tendo em conta que a sociedade Alhabita foi, entretanto, declarada insolvente (ponto 9 dos factos provados).
17. Na fundamentação a seguir explanada seguiremos de perto, com as devidas adaptações, a que foi aduzida no Ac. do STJ de 17/04/2018 (relator José Rainho), disponível in www.dgsi.pt.
18. Segundo o que consta da cópia da certidão de fls. 19 e 20 os embargantes são casados no regime de comunhão de adquiridos.
19. À semelhança da solução consagrada no já citado Ac. do STJ de 17/04/2018 (relator José Rainho), disponível in www.dgsi.pt.