Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
290/15.4IDBRG.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA SEGURANÇA SOCIAL
NOTIFICAÇÃO PREVISTA NO ARTº 105º
Nº 4
AL. B) DO RGIT
REGULARIDADE
AUJ Nº 6/2008
DE 9.04.2008
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Determina o art. 105º, nº 4, alíneas a) e b), do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributária, aprovado pela Lei 15/2001, de 5/6) que os factos (descritos nos números anteriores) só são puníveis se:

a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Acrescenta o nº7 desse mesmo preceito legal que “Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que nos termos da legislação aplicável devem constar de cada declaração a apresentar à administração tributária

II) Ainda que tal notificação apresente alguma desconformidade em termos de valores, designadamente por não ter contemplado a quantia entretanto paga por conta da prestação tributária, tal não se traduz em qualquer irregularidade susceptível de afastar a punibilidade da conduta do recorrente.

III) A notificação em apreço não se destina a dar conhecimento ao devedor, com rigor, das prestações ainda em dívida – o devedor, melhor do ninguém, sabe o que deve - mas antes, conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, agora já com os juros de mora respectivos e o valor da coima aplicável, e, consequentemente, uma vez liquidados tais montantes, eximi-lo de responsabilidade criminal.

IV) Perante tal notificação, o que se impõe a qualquer devedor que pretenda beneficiar de tal factualidade, é que junto da administração tributária se inteire do correto valor global a pagar, seja ele o que lhe tenha sido vertido na notificação ou outro que lhe venha validamente a ser apresentado, e proceda à sua liquidação no prazo de trinta dias que lhe foi concedido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1. No processo comum, com intervenção do tribunal singular, com o número nº290/15.4IDBRG.G1 que corre termos na comarca de Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Guimarães, realizado o julgamento foi proferida sentença que decidiu, para além do mais:

a) Condenar a arguida “X - Transportes, Ldª.”, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art.sº 7.º e 105º, n.º 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis) euros.
b) Condenar o arguido F. L., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art.sº 7.º e 105º, n.º 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis) euros.

2. Não se conformando com essa condenação, veio o arguido/recorrente F. L. recorrer da sentença, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

«Conclusões

PRIMEIRA: A primeira crítica ou censura à sentença recorrida consiste no erro notório na apreciação da prova. – sic. artigo 410º n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal (adiante abreviadamente CPP) e que consistiu, no essencial, na circunstância do Tribunal de 1ª Instância ter subvertido, totalmente, a regra do ónus probatório que, como se sabe, incumbe à acusação.
SEGUNDA: Pois que, como se sabe, a prova da gerência efetiva da sociedade por parte do aqui arguido teria, necessariamente, de ser feita pela acusação, o que, manifestamente, não ocorreu no caso dos autos, como assim acaba por se depreender da sentença proferida, na medida em que sentiu o Tribunal necessidade de dar como não provado um não facto, desde logo por não ter sido sequer alegado.
TERCEIRA: Em face do exposto e sem prejuízo de tudo quanto a seguir se dirá a respeito da impugnação da decisão proferida a respeito da matéria de facto, vai expressamente invocado o erro na apreciação da prova, por subversão das regras do ónus probatório.
QUARTA: Na esteira do que se deixou dito a respeito do erro na apreciação da prova, viria o Tribunal a dar como provada, nos pontos 2 e 9 dos Factos Provados, a gerência efetiva e/ou de facto da sociedade arguida pelo ora recorrente, sem que tivesse sido produzida qualquer prova a esse respeito.
QUINTA: Na verdade, a este respeito, dos autos – como prova documental – apenas consta a certidão de matrícula da sociedade arguida. (como, aliás, assim também resulta da Motivação da sentença recorrida).
SEXTA: Já do depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento nenhuma outra qualquer prova foi produzida no sentido de se atribuir ao ora recorrente a gerência efetiva da sociedade.
SÉTIMA: Com efeito, a testemunha M. M. (ouvida na sessão de julgamento realizada em 04.10.2018), única testemunha que o tribunal considerou ter prestado um “depoimento verosímil”, no que à gerência de facto diz respeito, nada referiu.
OITAVA: Já quanto à testemunha J. P. (que segundo o Tribunal teria prestado um depoimento pouco coerente), ouvida na mesma sessão de julgamento de 04.10.2018, também se extrairá que a mesma nada sabia a respeito da gerência de facto imputada ao aqui recorrente.
NONA: E por último, foi ouvida a testemunha P. P., agora na sessão de julgamento realizada em 15.11.2018, que, não obstante o Tribunal ter apelidado o seu depoimento de incoerente, referiu exatamente o contrário daquilo que o Tribunal viria a dar como provado a respeito da gerência de facto imputada ao aqui recorrente.
DÉCIMA: E não tendo sido produzido outro qualquer elemento probatório, resulta, inequivocamente, que não foi feita qualquer prova que permitisse ao Tribunal dar como provada a gerência efetiva ou de facto ao ora recorrente.
DÉCIMA PRIMEIRA: Pelo contrário, do depoimento da testemunha P. P. – única que a este concreto respeito se referiu – resultou precisamente o contrário, nomeadamente de que no período em causa nos autos não era o ora recorrente quem estava já à frente dos destinos da sociedade arguida.
DÉCIMA SEGUNDA: Mas ainda que o Tribunal não quisesse ou não tivesse dado credibilidade ao depoimento desta testemunha na parte em que referiu a venda da empresa ao cidadão de nacionalidade espanhola – sem que, no entanto, tal depoimento tivesse sido contrariado ou infirmado por outro qualquer elemento probatório – jamais poderia o Tribunal dar como provada a gerência de facto do ora recorrente tendo com base apenas a certidão comercial junta aos autos.
DÉCIMA TERCEIRA: Sem que essa prova documental – que apenas atesta a gerência de direito da sociedade arguida – tivesse sido complementada por outros elementos probatórios.
DÉCIMA QUARTA: Assim, repete-se, ainda que o Tribunal não tivesse dado credibilidade ao depoimento da testemunha P. P., sempre se impunha que o Tribunal tivesse dado como não provado nos pontos 2 e 9 dos Factos Provados que o ora recorrente exercesse à data dos factos as funções concretas de gerência de facto, por a esse respeito não ter sido produzida qualquer prova.
DÉCIMA QUINTA: Vai, por isso, expressamente impugnada a decisão proferida a respeito da matéria de facto dada como provada nos pontos 2 e 9 dos Factos Provados, por total e absoluta falta de prova a respeito da imputação da gerência de facto ao ora recorrente, motivo pelo qual deverá ser tal decisão revogada no sentido de passar a constar no ponto 2 dos factos provados a seguinte factualidade:

2. O gerente de direito da sociedade arguida era o arguido F. L.;

DÉCIMA SEXTA: Levando-se à matéria dos factos Não Provados que o arguido F. L. fosse o gerente de facto da sociedade arguida e fosse ele que, á data dos factos, tomasse todas as decisões respeitantes ao seu funcionamento.
DÉCIMA SÉTIMA: De igual modo, e agora quanto à matéria factual vertida no ponto 9 dos Factos Provados, deverá a mesma ser levada à matéria dos Factos Não Provados.
DÉCIMA OITAVA: E ainda quanto ao ponto 9 dos factos provados, sempre se teria de dar como não provada aquela concreta factualidade, agora na parte, - posto que ultrapassada a questão da gerência de facto – em que o Tribunal deu como provado que o arguido teria atuado com plena consciência de que a sua conduta era proibida por lei.
DÉCIMA NONA: É que a única testemunha que se referiu a esta concreta factualidade foi o contabilista J. P., que, como se deixou reproduzido no corpo destas alegações de recurso, nenhuma advertência terá feito ao ora recorrente a respeito das consequências do não pagamento dos tributos.
VIGÉSIMA: Logo, não tendo ficado sequer demonstrado que o arguido, ora recorrente, tivesse sido advertido do não cumprimento das obrigações fiscais, jamais o Tribunal poderia ter dado como provado – sem prejuízo de tudo quanto alegado a respeito da gerência de facto – que o arguido tivesse plena consciência de que a sua conduta era proibida por lei.
VIGÉSIMA PRIMEIRA: Pelo que sempre iria expressamente impugnada a decisão proferida que deu como provada esta concreta factualidade, por absoluta e total falta de prova – sendo que a mesma sempre teria que ser, como se propugna, levada à matéria dos Factos Não Provados -, com a consequente absolvição do arguido da prática do crime de que vinha acusado.
VIGÉSIMA SEGUNDA: No ponto 7 dos factos provados, viria o Tribunal a dar como provado que a sociedade arguida recebeu 98% do IVA liquidado no período em causa nos presentes autos e que corresponde a um valor de €15.791,80.
VIGÉSIMA TERCEIRA: A decisão da matéria de facto vertida no ponto 7, e consequentemente no ponto 8, dos Factos Provados ter-se-á fundado nos documentos juntos aos autos e no depoimento da testemunha M. M., inspetor tributário, e que nos dizeres do Tribunal terá relatado que a sociedade recebeu os montantes apurados, ainda que não os 100%, até à data limite de pagamento.
VIGÉSIMA QUARTA: Refira-se, desde já, que em momento algum aquela testemunha referiu que aqueles montantes tivessem sido recebidos pela sociedade até à data limite de pagamento.
VIGÉSIMA QUINTA: Por outro lado, também se refira que os documentos juntos não fazem prova do pagamento das faturas em causa, e muito menos que tais pagamentos tivessem ocorrido até à data limite de pagamento.
VIGÉSIMA SEXTA: Os documentos em questão – não obstante não terem sido discriminados ou mencionados na sentença recorrida – correspondem a meras fotocópias de cheques e a notas de lançamento/pagamento, e são aqueles que foram enviados por e-mail para a inspeção de finanças.
VIGÉSIMA SÉTIMA: Ora, facilmente se haverá de concluir que não será com base em meras fotocópias de cheques e notas de lançamento/pagamento, que se haverá de dar como demonstrado ou provado o efetivo pagamento.
VIGÉSIMA OITAVA: Já quanto ao relatado pela testemunha – cujo depoimento jamais seria suficiente para debelar a inexistência de prova documental – pode extrair-se que não foi ele quem tratou de obter os documentos probatórios em causa; que a Colega dele não conseguiu obter prova junto da empresa; que foi a Colega dele quem obteve os documentos que se mostram juntos aos autos através do cliente da sociedade arguida; que, ainda assim, reconheceu a testemunha ouvida que não conseguiram obter o comprovativo do recebimento de todas as faturas; que, jamais, em momento algum, referiu a testemunha que os valores do IVA tenham sido recebidos até à data limite de pagamento; e, por último, admitiu esta testemunha que os documentos que comprovam os aludidos pagamentos são as notas de liquidação e as fotocópias dos cheques.
VIGÉSIMA NONA: Ora, jamais poderá aceitar-se que uma nota de liquidação e uma mera fotocópia de um cheque, sem que se mostre documentado o movimento desse cheque e bem assim quem foi o seu beneficiário, possa servir de prova bastante para o efetivo pagamento de uma fatura.
TRIGÉSIMA: E, assim, na total e absoluta falta de prova, não podia o Tribunal dar como provado que a sociedade arguida tivesse recebido dos seus clientes o valor constante das faturas;
TRIGÉSIMA PRIMEIRA: Vai, assim, expressamente impugnada a decisão vertida no ponto 7 dos Factos Provados, que terá de ser levado à matéria dos Factos Não provados, por falta de prova bastante, e vai, em consequência, impugnada a decisão vertida no ponto 8 dos Factos Provados, na medida em que, como se viu, não foi feita prova de que a sociedade tivesse recebido dos seus clientes os montantes faturados, que também terá de ser levado à matéria dos Factos Não Provados.
TRIGÉSIMA SEGUNDA: E nessa medida, e como assim foi decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 8/2015, haverá o ora recorrente e, concomitantemente, a sociedade arguida serem absolvidos do crime de que vinham acusados, porquanto só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105, n.º 1 e 2 do RGIT, se o agente tiver, efetivamente, recebido as quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação.
TRIGÉSIMA TERCEIRA: Mas mais do que isso, seguindo-se agora de perto a mais recente orientação jurisprudencial de que só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal se o agente tiver efetivamente recebido ATÉ À DATA LIMITE DO PAGAMENTO as quantias derivadas do imposto sobre o valor acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação,
TRIGÉSIMA QUARTA: Haverá de se concluir e decidir pela revogação da sentença proferida no sentido de serem, quer o ora recorrente, quer a sociedade arguida, absolvidos da prática do crime de que vinham acusados, POR NÃO TER SIDO FEITA QUALQUER PROVA DE QUE OS QUANTITATIVOS EM CAUSA TIVESSEM SIDO RECEBIDOS PELA SOCIEDADE ATÉ À DATA LIMITE DO PAGAMENTO DO IVA.
TRIGÉSIMA QUINTA: É QUE na falta de documentos comprovativos da data em que os cheques foram movimentados, também não podia o Tribunal dar como provado que a sociedade arguida tivesse recebido dos seus clientes o valor constante das faturas ATÉ À DATA LIMITE DO PAGAMENTO DO IVA.
TRIGÉSIMA SEXTA: Pelo que também, agora por este motivo, se impõe seja a sentença revogada e substituída por douta decisão que absolva os arguidos da prática do crime de que vinham acusados.
TRIGÉSIMA SÉTIMA: Acrescenta-se que não se mostra sequer dado como provado que a sociedade arguida tivesse recebido os quantitativos referentes às faturas em causa ATÉ Á DATA LIMITE DO PAGAMENTO DO IVA, pelo que, agora sem necessidade de se haver por impugnada a decisão proferida a respeito da matéria de facto, por se verificar tratar-se de uma requisito indispensável para a condenação, sempre os arguidos haverão de ser absolvidos.
TRIGÉSIMA OITAVA: Por último e sem prescindir, poderá atentar-se nas notificações pessoais dirigidas ao arguido, ora recorrente, e à sociedade, nos termos e para efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT que em tais notificações foram ambos os arguidos interpelados para, no prazo de 30 dias, liquidarem o montante de 14.256,45€, correspondente à quantia que deveria ter sido entregue ao Erário Público.
TRIGÉSIMA NONA: Como se lê da matéria factual vertida no ponto 6 dos factos provados, tais notificações ocorreram em 20.02.2017.
QUADRAGÉSIMA: Porém, como se lê do ponto 10 dos Factos Provados, em 19.02.2015, isto é dois anos antes e quatro dias após a data limite do seu pagamento, a sociedade arguida entregou, por conta do valor em falta, a quantia de 5.000,00€.
QUADRAGÉSIMA PRIMEIRA: O certo é que, quando os arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos previstos na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, não cuidou a Administração Tributária de abater ao valor cujo pagamento lhes reclamava aquele quantitativo de 5.000,00€.
QUADRAGÉSIMA SEGUNDA: Como assim decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão datado de 13-05-2015, em que foi Relator Augusto Lourenço, disponível em www.dgsi.pt, ocorreu agora no caso dos presentes autos errada ou incorrecta notificação prevista no artº 105º, n.º 4 b) do RGIT, que constitui irregularidade de conhecimento oficioso e que afecta o valor do ato praticado.
QUADRAGÉSIMA TERCEIRA: Com efeito, foi então decidido que, tal como no caso dos presentes autos, a notificação efetuada nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT foi feita de forma irregular, por então ter sido exigido o pagamento de um valor superior àquele que efetivamente era devido.
QUADRAGÉSIMA QUARTA: Assim, dando por reproduzido, por brevidade, o teor constante daquele mencionado douto aresto, vai arguida a irregularidade, do conhecimento oficioso e, como tal, deveria ter sido ordenada reparar pelo juiz de 1ª Instância, e deverá ser ordenada reparar por V/ Exas, Juízes Desembargadores, decorrente da errada e incorreta notificação feita aos arguidos, por lhe ter sido exigido o pagamento de quantia que não era já devida, na medida em que afeta o valor do ato praticado, que, no caso, consiste num requisito objetivo de punibilidade e, como tal, também haverá de determinar a absolvição dos arguidos, por vício nesse concreto requisito objetivo de punibilidade.

TERMOS EM QUE DEVERÁ SER A SENTENÇA REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA DECISÃO QUE ABSOLVA O ORA RECORRENTE, E BEM ASSIM A PRÓPRIA SOCIEDADE ARGUIDA, POR TER OCORRIDO EVIDENTE ERRO DE APRECIAÇÃO DA PROVA; POR PROCEDÊNCIA DO PRESENTE RECURSO QUANTO À IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO; POR NÃO TEREM FICADO DEMONSTRADOS OS REQUISITOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS DE PUNIBILIDADE DO CRIME EM APREÇO NOS AUTOS; E, AINDA, POR TER OCORRIDO GRAVE IRREGULARIDADE NA NOTIFICAÇÃO AOS ARGUIDOS, NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO ART. 105º, N.º 4, AL. B), QUE, POR AFETAR O VALOR DO ACTO PRATICADO, DEVERIA TER SIDO SUPRIDO, OFICIOSAMENTE, PELO TRIBUNAL DE 1ª INSTÂNCIA».

3. A Exma Procuradora- Adjunta junto da primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
4. Neste Tribunal da Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.

5. Cumprido o art. 417º, nº2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta pelo arguido.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal ( diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência) que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

O objecto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.III, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).

O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.

Como expressamente afirma o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol.III, 1994,pág.340, “São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem que apreciar”.

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo arguido/recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

- Erro notório da apreciação da prova (art. 410,nº2,alc), do C.P.P.
- Impugnação da matéria de facto provada por erro de julgamento.
- Irregularidade da notificação prevista no art.105º,nº4,al.b), do RGIT.

B) Da decisão recorrida

Para a apreciação do presente recurso, importa ter presente o seguinte teor da sentença recorrida (transcrição).

«II - Fundamentação

2.1. Os factos

Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. A sociedade “X Transportes, Lda.ª, sociedade por quotas, contribuinte n.º …, com sede na Rua …, Guimarães, está registada em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) na actividade de transportes rodoviários de mercadorias (CAE: …), tendo como competente o Serviço de Finanças de … e está enquadrada, para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade trimestral.
2. O gerente de direito e de facto da sociedade arguida era o arguido F. L., sendo este que tomava todas as decisões respeitante ao seu funcionamento.
3. A sociedade referida realizou operações tributáveis, tendo procedido ao apuramento do IVA e ao envio das declarações periódicas referidas no artº. 41º do CIVA, mas não entregou, simultaneamente com a referida declaração periódica, a prestação tributária necessária para satisfazer o imposto exigível, abaixo referida.
4. Período a que respeita a infracção: 4.º Trimestre de 2014 - Montante do Imposto Exigível: €16.134,04 - Montante da prestação tributária em falta: €14.256,45 - Data Limite de Pagamento: 16.02.2015.
5. Ascende deste modo a € 14.256,45 (catorze mil duzentos e cinquenta e seis euros e quarenta e cinco cêntimos), o montante de imposto sobre o valor acrescentado apurado e não entregue, tendo decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega, sem que tenha sido realizada qualquer diligência no sentido da sua regularização.
6. Uma vez que a prestação tributária em causa nos autos foi comunicada à administração tributária através da respectiva declaração, em 20.02.2017 foram efectuadas as notificações pessoais ao arguido e à sociedade, nos termos da al. b) do n. 4 do artigo 105.º do RGIT.
7. A sociedade arguida recebeu 98% do IVA liquidado no período em causa nos presentes autos o que corresponde a um valor de €15.791,80 (antes de considerar o crédito de imposto a favor da sociedade arguida no valor de €1.877,59).
8. Porém, a arguida, não deu a esses montantes o destino devido, não os entregando ao Erário Público, como devia, nos prazos legais, nem regularizando tal pagamento noventa dias volvidos sobre essas datas, como estava legalmente obrigada, e integrou tais quantias no montante global de € 14.256,45 (catorze mil duzentos e cinquenta e seis euros e quarenta e cinco cêntimos), no seu património, apropriando-se dos mesmos, como era seu propósito.
9. O arguido F. L. agiu, por si e na qualidade de sócio-gerente da sociedade arguida, em clara violação das disposições legais relativas ao dever de entrega, como se estas integrassem os activos que se servia para suportar o giro comercial, sabendo que não lhe pertenciam e com plena consciência de que a sua conduta era proibida por lei.
10. A sociedade arguida entregou, em 19.02.2015, à A.T., por conta do valor em falta, a quantia de €5.000,00.
11. No ano de 2016, o arguido declarou em sede de IRS rendimentos no valor de €12.819,12.
12. O arguido trabalha para a empresa “… Empresa de Trabalho Temporário, Unipessoal, Lda, desde 04.10.2017, e declarou ao I.S.S. em Janeiro de 2018 a quantia de €868,00.
13. Em 22.03.2018, nas bases de dados da A.T., não constava relativamente à arguida, qualquer património mobiliário sujeitos a registo, imobiliário ou rendimentos.
14. O arguido tem antecedentes criminais: 1 crime de desobediência, praticado em 26.01.2017, condenado em 19.02.2018, na pena de 70 dias de multa à taxa de €6,00.
15. A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.
***
Factos não provados.

a. O arguido vendeu a sociedade arguida, no ano de 2012, a um individuo de nacionalidade espanhola, que passou a ser gerente de facto.
***
2.2. Motivação

A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida em audiência, apreciada criticamente, segundo as regras da experiência comum. Em particular, assentou nos documentos juntos aos autos.

- nos depoimentos das testemunhas:
- M. M., inspector tributário, a qual prestou um depoimento verosímil por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que a sociedade arguida emitiu quatro facturas a duas empresas, recebeu os montantes apurados, ainda, que não os 100%, até à data limite de pagamento, para efeitos criminais a quantia de €15.794,80 de IVA, conforme conseguiu apurar da prova junta, devendo deduzir-se o crédito de imposto.
Após a data limite de pagamento a sociedade arguida pagou €5.000,00, em 19.02.2015.
- J. P., contabilista, a qual prestou um depoimento pouco coerente, por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que acompanhou a contabilidade da sociedade arguida entre final de 2012 até ao final de 2014, tendo sido contratado por uma funcionária administrativa de nome Ana Paiva. Afinal não existiu qualquer contrato, apenas deu uma ajuda. Não processava os salários. Quem fazia a contabilidade era a arguida sociedade.
Advertia essa funcionária sobre as consequências do não cumprimento das obrigações fiscais.
- P. P., a qual prestou um depoimento incoerente, por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que o arguido era o dono da sociedade arguida, e ela ajudava-o a lançar facturas. Era ele que lhe dizia como fazer o trabalho.

Como o arguido foi detido em 2006/2007, decidiu vender a empresa a um individuo espanhol, talvez em 2011, sendo que ela o ajudou até 2012/2013. Foi o arguido que lhe disse que ia vender a empresa.

Lembra-se de ter elaborado uma factura de venda de equipamentos, tendo vendido a totalidade dos bens à empresa Y. Ela e o arguido eram sócios da empresa Y em 2014. O arguido quis ser sócio da Y, mas não da sociedade arguida.
*
Feita esta breve súmula da prova produzida, concluímos que devem ser dados como provados os factos que mereceram resposta positiva. Vejamos.

No que se refere ao valor e período de IVA não entregue, valoraram-se os documentos juntos, conjugados com o depoimento da primeira testemunha, a qual os confirmou, sabendo esclarecer com minucia o período em causa, bem como as operações de IVA, o valor que foi recebido pela sociedade arguida, e não entregue, bem como que acabou por pagar a quantia de €5.000,00, a esse título, já após a data limite de pagamento.

No que se refere à gerência de facto da sociedade arguida, valorou-se a certidão comercial junta aos autos, donde resulta que era o arguido o único gerente da sociedade, conjugada com o depoimento da testemunha P. P., a qual soube esclarecer que era o arguido o dono/gerente e que era ele que lhe dava ordens dizendo-lhe o quê e como facturar. Ora, se assim era, não pode haver dúvidas que ele era quem geria a sociedade e decidia se pagava ou não os impostos de tais facturas. Acresce que as facturas em causa, têm a ver com venda de bens usados na própria empresa – como referiu a testemunha P. P. – pelo que sendo o arguido seu dono sabia bem das operações e obrigação de entrega do IVA correspondente.

Já a versão da testemunha P. P. no sentido de que o arguido vendeu a empresa em 2011 porque tinha sido detido (em 2006/2007), não passou de uma tentativa vã de o tentar desresponsabilizar, atento que está em desacordo com juízos de experiência comum e normal acontecer. É que esta testemunha é pessoa comprometida, e assim nada isenta, visto ser até sócia do arguido, tal como ela confirmou “eram ambos sócios da Y, em 2014” – vide, ainda, fls. 198. Acresce que, por um lado, refere que ajudou o tal espanhol desde 2011 até 2012/2013, mas por o outro, nem o soube identificar devidamente, o que mostrou bem o seu fito de tentar “arranjar” uma venda da empresa exactamente no período em que foi cometido o ilícito em causa. Acresce, ainda, que disse que o arguido como foi detido em 2006/2007, em França, deixou de querer ser sócio da sociedade arguida – o que aliás nem consta da certidão comercial -, mas por outro já quis ser seu sócio da Y. É tamanha a contradição e inverosimilhança da sua versão, que nesta parte, não mereceu a mínima credibilidade.

No que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.

Assim conjugando toda esta prova testemunhal e por documentos juntos não há dúvidas que os factos ocorreram como consta dos factos dados como provados, pelo que mereceram resposta positiva.

No que diz respeito à (in)existência de antecedentes criminais dos arguidos, o tribunal teve também em consideração os crc(s) juntos ao processo, e documentos juntos, nomeadamente de fls. 198 e ss., quanto a situação económica.»

C) Apreciando

- Vejamos se existe o invocado vício do art. 410,nº2, do C.P.P. - erro notório na apreciação da prova.

Estabelece o citado artigo 410 nº2, que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: al.a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; al. b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e al.c) erro notório na apreciação da prova».

Como resulta do referido preceito, tais vícios têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para os fundamentar como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

Nesta forma de reagir - invocação dos vícios do art. 410º,nº2 - contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto - denominada “revista alargada” - o tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios que a sentença em si mesmo evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art.426º,nº1).

O arguido/recorrente veio invocar que da parte do tribunal colectivo houve um erro notório na apreciação da prova.

Assentou o mesmo na circunstância do tribunal ter dado como não provado que “ o arguido vendeu a sociedade arguida, no ano de 2012, a um individuo de nacionalidade espanhola, que passou a ser gerente de facto”.

E isto, porque, não tendo tal factualidade sido alegada na contestação, o tribunal ao pronunciar-se sobre a mesma subverteu o ónus probatório que incumbe à acusação, a quem competia a prova da gerência efectiva por parte do arguido.

Conclui o recorrente que o tribunal ao fazer constar na sentença recorrida um “não facto” como não provado incorreu em erro notório na apreciação da prova, invocando o disposto no art. 410º,nº2, al. c), do C.P.P..

Ora, este vício ocorre quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte que se deu como provado algo que não podia ter acontecido ou que se deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido ou, ainda, quando se retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Existe este vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Como se salienta no Ac.do STJ de 9/4/2008, no processo nº1188/06 e constitui jurisprudência pacífica no mais alto tribunal “ o erro notório na apreciação da prova, como os demais vícios elencados no nº2, do art.410º do C.P.P., deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, e tem de ser de tal modo evidente que uma pessoa de mediana compreensão o possa descortinar. E existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.

Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao recorrente na invocação do vício em apreço.

Desde logo, não tem qualquer razão quando vem dizer que o tribunal deu como não provado “um não facto”.

Tal facto, ainda que não invocado na contestação, foi trazido à liça em julgamento em pretensa defesa do arguido, designadamente por uma testemunha por si arrolada – que pretendeu sem dúvida desresponsabilizar o arguido – testemunha essa que embora tenha vindo a ser por si prescindida, acabou por ser ouvida ao abrigo do art. 340º, do C.P.P., na sequência de requerimento formulado pelo Ministério Público.

E tendo tal facto sido trazido à liça no decurso da audiência de julgamento e revelando-se o mesmo de interesse para a boa decisão da causa, designadamente na apreciação da questão atinente à gerência efectiva da empresa, cremos que bem andou o tribunal em pronunciar-se sobre o mesmo.

Ora, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 374º, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, para além do mais, da enumeração dos factos provados e não provados.

Por seu lado, em face do disposto no art. 368º, n.º 2, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua aprecia­ção e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa.

Dispõe expressamente o n.º 4 do art. 339º que a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.

A enumeração dos factos provados e não provados revela quais os factos que foram efetivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.

Ora, a nossa estrutura processual penal básica é uma estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação, de acordo com o qual o tribunal tem o poder-dever de esclarecer e instruir autonomamente – isto é, independentemente das contribuições da acusação e da defesa – o «facto» sujeito a julgamento, criando ele próprio as bases necessárias à sua decisão.

Da conjugação do preceituado no artigo 124.º sobre os factos objeto da prova e do citado art. 339, nº4 que define o objeto da discussão da causa, conclui-se que esta versa sobre todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável (para além do que respeita ao pedido cível), de acordo com todas as soluções jurídicas pertinentes, quer os factos tenham sido alegados pela acusação e pela defesa, quer resultem da prova produzida ao longo da discussão da causa.

E daí que, quando o tribunal de 1ª instância deixe de pronunciar-se sobre factos que, revelando interesse para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão da causa, estejamos perante insuficiência de factos para a decisão da causa.

No caso vertente, o facto em apreço, na medida em que contende com a questão da gerência de facto por banda do arguido/recorrente, factualidade que este último pretende impugnar com vista à sua absolvição, sem dúvida que tem interesse para a decisão da causa.

O recorrente não tem, portanto, qualquer razão, quando vem dizer que o tribunal deu como não provado um facto não alegado; basta que se trate de factos relevantes que tenham resultado da prova produzida.

E, no caso vertente, tal foi o caso.

Por tudo o exposto, não vislumbramos qualquer erro notório na apreciação da prova, pelo que, nesta parte, improcede o recurso.

- Passemos agora à apreciação do invocado erro de julgamento.

O erro de julgamento, ínsito no art.412,nº3, do C.P.P., ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos mencionados nº3 e 4 do art.412.

Com efeito, nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente (neste sentido, acórdãos do STJ de 17/2/2005, 16/6/2005, publicados em www.dgsi.pt, Ac. do Tribunal Constitucional nº59/2006, de 18/1/2006, proferido no processo nº199/2005, publicado no D.R.IISérie, nº74, de 13/4/2006 e Paulo Saragoça da Mata, in “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág.253).

O que se visa com a impugnação ampla é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

E na medida em que o recurso em que se se impugne amplamente sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação das normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação das normas de direito processual), que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos do art.412º.

Exige-se pois ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.

Mais se exige a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.

No fundo o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão de que se recorre, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Foi este o sentido do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Março de 2012, publicado no D.R,I, Série, nº77, de 18 de Abril.

Pretende o recorrente que os factos alegados nos pontos 2 e 9 e 7 e 8, sejam dados como não provados.

No que tange aos pontos 2 e 9 da factualidade provada, consta dos mesmos o seguinte:

Do ponto 2: “ O gerente de direito e de facto da sociedade arguida era o arguido F. L., sendo este que tomava todas as decisões respeitante ao seu funcionamento”.

Do ponto 9: “ O arguido F. L. agiu, por si e na qualidade de sócio-gerente da sociedade arguida, em clara violação das disposições legais relativas ao dever de entrega, como se estas integrassem os activos que se servia para suportar o giro comercial, sabendo que não lhe pertenciam e com plena consciência de que a sua conduta era proibida por lei”.

Pugna o recorrente no sentido de que no ponto 2 apenas deverá manter-se que “ o gerente de direito da sociedade arguida era o arguido F. L.”, devendo o demais ser dado como não provado, bem como tudo o demais alegado no ponto 9.

O recorrente não concorda com as razões aduzidas pelo tribunal para fundamentar a sua convicção no sentido apontado.

Alega o mesmo – trazendo à liça os três depoimentos testemunhais prestados em audiência de julgamento, transcrevendo passagens dos mesmos - que o tribunal a quo deu como provados tais factos, atinentes à gerência efectiva e de facto da sociedade arguida, sem que tivesse sido produzida qualquer provada a tal respeito: a testemunha M. M., no que à gerência de facto diz respeito, nada referiu; a testemunha J. P. nada sabia a respeito da gerência de facto; a testemunha P. P., referiu exactamente o contrário daquilo que o tribunal viria a dar como provado a respeito da gerência de facto imputada ao recorrente, nomeadamente, de que no período em causa nos autos “não era o recorrente quem estava já à frente dos destinos da sociedade arguida”. Alega ainda o recorrente que mesmo que o tribunal não quisesse dar credibilidade a esta última testemunha, cujo depoimento, aliás, nessa parte não foi contrariado por qualquer outro meio probatório, jamais poderia dar como provada a gerência de facto com base apena na certidão comercial junta aos autos.

O Ministério Público, por sua vez, concordou com o teor do decidido, pugnando pela sua manutenção.

Ora, o julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a determinados princípios estabelecidos na lei, entre os quais avulta o da imediação na recolha da prova, o qual assegura uma relação direta de contacto pessoal entre o julgador e a prova sujeita à apreciação.

E, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no citado artigo 127º, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Tal assume especial relevância na audiência de julgamento. É pois na audiência de julgamento que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.

O princípio da imediação pressupõe uma relação de contacto directo, pessoal entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.

Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205, que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”

Ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz ainda o mesmo professor, na obra citada, pág. 233/234 « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) Só estes princípios, com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais »

Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo”, como vem sendo entendida pela jurisprudência dos tribunais superiores, é formada pela análise dialéctica dos elementos de natureza documental e pericial e ainda pelos depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das respectivas razões de ciência, da serenidade e coerência com os que os prestam, dos avanços e recuos que vão fazendo ao longo do depoimento, das contradições em que vão incorrendo, das evidências que afirmam, das alterações de voz, da postura que evidenciam, etc.

É o juiz do julgamento que por força do contacto directo, vivo, visível com quem presta as suas declarações/depoimentos, recolhe, apreende os pormenores, questiona e, por isso, está numa situação privilegiada para intuir todos os pormenores.

E ponderando, nessa posição privilegiada, todo o material probatório, estará em condições de optar entre depoimentos divergentes em pormenores ou até contraditórios por aquele que de acordo com a sua convicção lhe surge como o mais acertado à luz da sua convicção, explicando, naturalmente, o porquê dessa opção e o processo lógico-formal que lhe serviu de suporte.

O respeito pelos princípios da oralidade e imediação na produção de prova, passará pois por o tribunal de recurso manter a decisão do juiz “a quo” sempre que estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum.

“Quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002, in C.J. , ano XXVII Tomo 2º , página 44 ).

Como refere Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág.253 « é em face dessa prova que, em sede de recurso se vai aferir da observância dos juízos de racionalidade, de lógica e de experiência e se estes confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos, cuja veracidade cumpria demonstrar. Caso esteja demonstrado que o juízo constante da decisão recorrida é compatível com aqueles critérios não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não estiver, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância»

Em suma, a reapreciação da decisão da primeira instância quanto à matéria de facto, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessários, face aos referidos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.

O recurso da matéria de facto não tem por finalidade, nem pode ser confundido com a realização de um segundo julgamento, fundado numa nova convicção, mas apenas apreciar a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido em relação aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera imporem uma decisão diversa (sublinhado nosso).

Como se refere no Ac. da Relação do Porto de 12/10/2016, em que foi relator, Manuel Soares, “Entender o contrário equivaleria a considerar que o legislador teria instituído um sistema ilógico, autorizando uma avaliação sucessiva das provas em dois momentos, mas com ferramentas diferentes, em que, incoerentemente, a decisão final caberia não à instância que avaliou com imediação toda a prova mas sim àquela que apenas a avaliou de forma mediada e parcial e está, por isso, menos apetrechada com os instrumentos necessários para reproduzir a verdade histórica do facto sujeito a julgamento”.

Assim, para que ocorra erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso, é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de determinado facto é implausível face às provas, ou então existem outras hipóteses de verdade, também plausíveis que desmentem o facto provado ou o tornam duvidoso.

Volvendo-nos no caso vertente e tendo este tribunal procedido à audição na íntegra dos três depoimentos testemunhais produzidos – ainda que com alguns ruídos de fundo e interrupções, tal não prejudicou a sua inteligibilidade geral – adianta-se desde já que, de facto, dos depoimentos das testemunhas M. M. e J. P., nada se extrai a respeito da mencionada gerência de facto por banda do arguido/recorrente, como, aliás, resulta da motivação aduzida na decisão recorrida.

Resta, então, o depoimento da testemunha P. P., para além ainda, claro está, dos demais elementos probatórios de natureza documental juntos aos autos, sendo certo que o arguido não compareceu à audiência de julgamento.

Vejamos em que é que o Mmo Juiz assentou a sua convicção e se a conclusão a que chegou a respeito dos factos em apreço padece de algum erro de julgamento em face dos elementos probatórios trazidos à liça.

A propósito do depoimento da testemunha P. P. referiu, o tribunal a quo, que a mesma “ … prestou um depoimento incoerente, por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que o arguido era o dono da sociedade arguida, e ela ajudava-o a lançar facturas. Era ele que lhe dizia como fazer o trabalho. Como o arguido foi detido em 2006/2007, decidiu vender a empresa a um individuo espanhol, talvez em 2011, sendo que ela o ajudou até 2012/2013. Foi o arguido que lhe disse que ia vender a empresa. Lembra-se de ter elaborado uma factura de venda de equipamentos, tendo vendido a totalidade dos bens à empresa Y. Ela e o arguido eram sócios da empresa Y em 2014. O arguido quis ser sócio da Y, mas não da sociedade arguida.

Mais à frente, aduziu-se na decisão recorrida o seguinte: “No que se refere à gerência de facto da sociedade arguida, valorou-se a certidão comercial junta aos autos, donde resulta que era o arguido o único gerente da sociedade, conjugada com o depoimento da testemunha P. P., a qual soube esclarecer que era o arguido o dono/gerente e que era ele que lhe dava ordens dizendo-lhe o quê e como facturar. Ora, se assim era, não pode haver dúvidas que ele era quem geria a sociedade e decidia se pagava ou não os impostos de tais facturas. Acresce que as facturas em causa, têm a ver com venda de bens usados na própria empresa – como referiu a testemunha P. P. – pelo que sendo o arguido seu dono sabia bem das operações e obrigação de entrega do IVA correspondente”.

Já a versão da testemunha P. P. no sentido de que o arguido vendeu a empresa em 2011 porque tinha sido detido (em 2006/2007), não passou de uma tentativa vã de o tentar desresponsabilizar, atento que está em desacordo com juízos de experiência comum e normal acontecer. É que esta testemunha é pessoa comprometida, e assim nada isenta, visto ser até sócia do arguido, tal como ela confirmou “eram ambos sócios da Y, em 2014” – vide, ainda, fls. 198. Acresce que, por um lado, refere que ajudou o tal espanhol desde 2011 até 2012/2013, mas por o outro, nem o soube identificar devidamente, o que mostrou bem o seu fito de tentar “arranjar” uma venda da empresa exactamente no período em que foi cometido o ilícito em causa. Acresce, ainda, que disse que o arguido como foi detido em 2006/2007, em França, deixou de querer ser sócio da sociedade arguida – o que aliás nem consta da certidão comercial -, mas por outro já quis ser seu sócio da Y. É tamanha a contradição e inverosimilhança da sua versão, que nesta parte, não mereceu a mínima credibilidade. No que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.

Assim conjugando toda esta prova testemunhal e por documentos juntos não há dúvidas que os factos ocorreram como consta dos factos dados como provados, pelo que mereceram resposta positiva”.

Mas, será que o raciocínio seguido pelo tribunal a respeito da factualidade em apreço afrontou as regras da experiência comum?

Será que a apreciação dos meios probatórios feita pelo tribunal recorrido e nos quais fundou a sua convicção no sentido apontado na decisão recorrida mostra-se manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis?

Claro que não.

Ora, resulta da certidão de matrícula da sociedade arguida que o arguido é único gerente da sociedade.

É certo que tal facto objectivo, por si só, não permite que se conclua pela respectiva gerência de facto.

Mas, o tribunal a quo foi mais além.

Na verdade, ateve-se ainda no depoimento da testemunha P. P., desde logo, naquilo que lhe pareceu verosímil à luz do mencionado elemento objectivo e das regras da experiência comum, mais concretamente, quando deu a saber que auxiliou em serviços administrativos a empresa arguida, da qual era dono o arguido F. L., serviços esses que passaram por emitir facturas, fazer lançamentos dos movimentos, com base nos documentos que lhe iam chegando à mão e segundo indicação daquele.

Tal colaboração da testemunha na empresa arguida foi, aliás, corroborada pela testemunha J. P., a qual tendo procedido ao acompanhamento da contabilidade da sociedade arguida entre final de 2012 e final de 2014 (o contabilista era, segundo referiu, um tal D. M., marido da testemunha P. P.), e procedido ao envio da declaração do último trimestre de 2014 (a que se encontra junta aos autos), deu a saber ter sempre contactado com a mencionada testemunha, na qualidade de administrativa da empresa, tendo sido a mesma quem o contatou para fazer o acompanhamento da contabilidade.

Ainda a respeito do depoimento da testemunha P. P., foi possível reter que a mesma deu a saber ao tribunal que a empresa arguida tratava-se de uma empresa de serviços de transportes, tendo como único funcionário o arguido F. L..

Acresce que a mesma confirmou igualmente que à data dos factos em apreço (quarto trimestre de 2014) era sócia juntamente com o arguido da empresa Y, facto objectivo que se extrai do teor do documento de fls. 138 a 141 e do qual consta ser o arguido também gerente dessa mesma empresa, a qual mais não é do que aquela que figura como cliente/compradora nas transacções que estão na origem da emissão das facturas em apreço e, consequentemente, da prestação tributária em falta, transacções essas atinentes à venda de bens do imobilizado da própria empresa arguida, designadamente de reboques, como também foi adiantado pela testemunha P. P..

É certo que esta testemunha fez menção no seu depoimento que o ora arguido, em virtude de ter sido preso em França, em data que não logrou concretizar, mas situou em 2006/2007, vendeu em 2011 a empresa arguida a um indivíduo espanhol (um tal J. de Barcelona, altura em que foi libertado, porquanto, como também adiantou, queria deixar a sociedade, individuo esse a quem ela também chegou a prestar colaboração até 2014., a qual situou em é 2012/2013, pese embora tenha acabado por admitir ter tido intervenção na facturação ora em apreço, a pedido do tal espanhol, esta ocorrida em 2014.

Não beneficiando este tribunal da imediação com que o Mmo Juiz a quo pode contar, a verdade é que da simples audição de tal depoimento, ficou este tribunal com a convicção segura que, nesta parte, o depoimento da testemunha P. P. evidenciou um claro propósito em desresponsabilizar o arguido da situação em apreço.

Um depoimento sem consistência, com avanços e recuos e com justificações de todo inverosímeis à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, como explicou o Mmo Juiz na sua motivação, depoimento apenas justificável pela sua particular ligação ao arguido, ambos sócios-gerentes, à data dos factos, da empresa Y.

Bem andou o tribunal em não lhe conceder qualquer credibilidade nesta parte.

E, de facto, se atendermos a que o arguido era o único sócio gerente da sociedade arguida, situação que ainda se mantinha à data dos factos, o único funcionário da mesma, como referiu a testemunha P. P., aquele que chegou a dar instruções a esta a respeito do que devida ser facturado e lançado e, por último, que as facturas em apreço contendem com a venda de bens que dizem respeito ao próprio giro da empresa arguida, do seu próprio imobilizado, bens esses que foram adquiridos por outra sociedade da qual o arguido também era sócio e com funções de gerência, cremos que, sob pena de violação das mais elementares regras da experiência, impõe-se concluir que o arguido era quem de facto dispunha na empresa, aquele que tomava todas as decisões respeitantes ao seu funcionamento, desde logo também as respeitantes ao cumprimento das suas obrigações fiscais, as quais, atenta essa sua qualidade, tinha de facto de conhecer.

O arguido foi pois quem decidiu vender os bens em apreço e quem decidiu incumprir as suas obrigações fiscais dai decorrentes, com plena consciência de que a sua conduta era proibida por lei.

Não vislumbramos pois que o raciocínio seguido pelo tribunal seja ilógico ou violador das regras da experiência comum e da normalidade da vida, não assistindo pois qualquer razão ao recorrente quando invoca que o tribunal deu como provada a factualidade atinente à gerência de facto com base apenas na certidão comercial junta aos autos.

O recorrente não concorda, não se revê na decisão do tribunal, pretende impor a sua própria convicção que retirou dos meios probatórios, mas, na verdade, mostrando-se a opção feita pelo tribunal a quo admissível à luz das regras da experiência comum e da normalidade, o qual pode contar, como já referimos, com os benefícios da imediação e da oralidade na produção da prova, não há pois que alterar o decidido.

Consequentemente, nada se impõe alterar no que tange aos mencionados pontos 2 e 9 da factualidade provada.

Pugna ainda o recorrente pela existência de erro de julgamento no que respeita aos pontos 7 e 8 da factualidade provada, os quais pretende que sejam dados como não provados.

Consta dos mesmos a seguinte factualidade:

“7. A sociedade arguida recebeu 98% do IVA liquidado no período em causa nos presentes autos o que corresponde a um valor de €15.791,80 (antes de considerar o crédito de imposto a favor da sociedade arguida no valor de €1.877,59).

8. Porém, a arguida, não deu a esses montantes o destino devido, não os entregando ao Erário Público, como devia, nos prazos legais, nem regularizando tal pagamento noventa dias volvidos sobre essas datas, como estava legalmente obrigada, e integrou tais quantias no montante global de € 14.256,45 (catorze mil duzentos e cinquenta e seis euros e quarenta e cinco cêntimos), no seu património, apropriando-se dos mesmos, como era seu propósito.”

A respeito da factualidade em apreço, extrai-se da motivação aduzida que o Mmo Juiz fundou a sua motivação nos elementos documentais juntos aos autos, em conjugação com o depoimento da testemunha M. M., inspector tributário.

“No que se refere ao valor e período de IVA não entregue, valoraram-se os documentos juntos, conjugados com o depoimento da primeira testemunha, a qual os confirmou, sabendo esclarecer com minucia o período em causa, bem como as operações de IVA, o valor que foi recebido pela sociedade arguida, e não entregue, bem como que acabou por pagar a quantia de €5.000,00, a esse título, já após a data limite de pagamento”

A respeito da primeira testemunha, o mencionado inspector tributário fez-se constar da motivação que: “… prestou um depoimento verosímil por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que a sociedade arguida emitiu quatro facturas a duas empresas, recebeu os montantes apurados, ainda, que não os 100%, até à data limite de pagamento, para efeitos criminais a quantia de €15.794,80 de IVA, conforme conseguiu apurar da prova junta, devendo deduzir-se o crédito de imposto. Após a data limite de pagamento a sociedade arguida pagou €5.000,00, em 19.02.2015.”

Adianta-se desde já que não assiste qualquer razão ao recorrente nas considerações que aduziu para fundamentar a existência de um erro de julgamento no que tange a tal factualidade.

Na verdade, conjugando o depoimento testemunhal invocado com os documentos juntos aos autos, nenhum reparo merece o decidido.

Mais uma vez, o recorrente pretende impor a sua convicção.

Desde logo, não concorda com a credibilidade dada aos documentos, designadamente com aquela que foi atribuída aos elementos com base nos quais a inspecção tributária chegou à conclusão de que o montante do IVA a entregar ao Estado foi efectivamente recebido pela sociedade arguida até à data limite de pagamento.

Compulsados os autos, mais concretamente o teor da análise efectuada pela equipa da inspecção tributária, subscrita pela técnica A. J., conforme informação de fls. 65/66, elaborada com base na declaração periódica apresentada pela sociedade arguida e nos documentos que logrou obter junto das empresas adquirentes Transportes Y, Lda e W-Transportes Lda. (documentos juntos a fls.67a 89), face à ausência de qualquer resposta por banda dos responsáveis pela sociedade arguida ou pela contabilidade da mesma, extrai-se dessa mesma informação que das quatro facturas emitidas pela sociedade no período em causa - três delas tendo como adquirente a Y e uma delas a empresa W - apenas três, as respeitantes à Y e que representam 98% das vendas do trimestre em causa (vendas de bens do imobilizado) foram tidas para efeitos criminais, porquanto só relativamente a estas foi comprovado o seu efectivo pagamento.

Para tal comprovação foram tidos em conta pela técnica responsável as três facturas, os respectivos meios de pagamento e extracto da conta corrente – 22 documentos no total – cujas respectivas cópias juntou.

Para além desta informação e com base, no essencial, nos elementos por esta recolhidos, foi elaborado o Parecer junto aos autos a fls. 145 a 155, subscrito pelo já identificado inspector tributário, cujo depoimento foi, aliás, no sentido já ai apontado e apreendido pelo Mmo Juiz a quo.

Ainda que, como referiu, não tenha sido o mesmo a proceder à sua recolha, deu a saber ao tribunal o modo como se processou a averiguação, as diligências levadas a cabo pela colega que procedeu à sua recolha, na sequência do levantamento do auto de notícia, resultando, claro, que a conclusão a que chegou no seu parecer teve por base tais elementos, naturalmente na posse dos serviços de cujos quadros a testemunha faz parte e que teve acesso por via do exercício das respectivas funções, tendo, aliás, sido na mesma que foram delegados os actos de inquérito, cfr. despacho de fls. 89.

Elementos dos quais se serviu para comprovar o montante do IVA efectivamente recebido e bem assim a data em que o pagamento ocorreu por parte da empresa adquirente, este ocorrido, de facto, em data anterior à data limite do pagamento do imposto, ou seja, antes de 16/2/2015, bastando, para tal, atentar nas datas dos cheques emitidos pela Y para pagamento da factura 2014/13, emitida em 3/10/2014, cfr cópia dos mesmos e respectivo extracto da conta corrente relativo à empresa fornecedora (arguida), cheques esses cuja provisão não foi de modo algum infirmada, bem como, no que toca às facturas 14 e 15, as notas de pagamento e de recebimento, constantes de fls.86 e 87, datadas de 26/1/2015.

E, com franqueza, não vemos porque razão o tribunal a quo não devia ter dado valor a tais elementos probatórios e, consequentemente, às informações elaboradas pela inspecção tributária com base nos mesmos, os quais, na verdade, permitem concluir que a sociedade arguida recebeu da empresa cliente o valor contante das facturas.

Tais elementos documentais foram validamente obtidos junto das empresas adquirentes, na impossibilidade de os obter junto do recorrente e da sociedade arguida, não foram impugnados em qualquer fase processual, não tendo sido produzida qualquer prova que contrariasse os factos neles descritos e a conclusão a que com base nos mesmos chegou a inspecção tributária.

Tratam-se de documentos que estão sujeitos à livre apreciação do tribunal, não se vislumbrando que a credibilidade que lhes foi atribuída configure qualquer erro de julgamento.

Os documentos constantes do processo constituem provas que, forçosamente, estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de serem lidas, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo (cfr. art. 355º do CPP).

Considerada, como se disse, a legalidade da obtenção de todos os documentos por força da inspecção realizada, os mencionados elementos constituem meios de prova, assumindo relevância jurídica livremente apreciada pelo Tribunal, tendo-se assegurado o princípio do contraditório.

Bem andou o tribunal a quo em dar-lhes credibilidade, em conjugação também, claro está, com o depoimento da testemunha em apreço.

Inexistem pois as mínimas razões para pôr em causa a convicção alcançada pelo tribunal a quo nos termos expostos, não se impondo, assim, qualquer censura no processo lógico e racional subjacente à formação dessa convicção.

Consequentemente, nada se impõe alterar no que tange aos pontos 7 e 8 da factualidade provada, improcedendo também, nesta parte, o recurso interposto.

- Irregularidade da notificação prevista no art.105º,nº4,al.b), do RGIT.

Por último, vem o recorrente invocar que as notificações pessoais dirigidas a si e à sociedade, nos termos e para efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, ocorridas em 20.02.2017, mostram-se irregulares, porquanto, o valor que foram interpelados a pagar, correspondente à quantia que deveria ter sido entregue ao Erário Público (14.256,45€), não teve em conta que em 19.02.2015, isto é, dois anos antes e quatro dias após a data limite do seu pagamento, a sociedade arguida entregou, por conta do valor em falta, a quantia de 5.000,00€.

Assim, não tendo sido abatido tal valor, exigindo-se o pagamento de um valor superior àquele que efetivamente era devido, tal configura uma irregularidade, do conhecimento oficioso, que deveria ter sido suprida pelo juiz de 1ª Instância, o que não foi e que por isso determinará a absolvição do arguido por falta de requisito objectivo de punibilidade.

Salvo o devido respeito, adiantando a nossa conclusão, não assiste qualquer razão ao recorrente, não sendo desde logo verdade que a notificação em apreço não tenha contemplado o montante já pago por conta da prestação tributária em falta.

Determina o art. 105º, nº 4, alíneas a) e b), do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributária aprovado pela Lei 15/2001, de 5/6, relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, que os factos (descritos nos números anteriores) só são puníveis se:

a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Acrescenta o nº7 desse mesmo preceito legal que “Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que nos termos da legislação aplicável devem constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”

Com a citada norma da alínea b), introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29/12, pretendeu o legislador «evitar a proliferação de procedimentos criminais, a melhoria da eficiência do sistema, bem como distinguir em lei expressa o comportamento do arguido cumpridor das suas obrigações declarativas perante a administração fiscal e a segurança social daqueles outros que ocultam tal informação, por não serem actuações com a mesma valoração criminal».

O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2008, de 9-04-2008, pôs termo à controvérsia gerada a respeito da interpretação de tal preceito, fixando jurisprudência nos seguintes termos: «A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT)».

Esse segmento uniformizador da jurisprudência foi fundamentado em tal acórdão, nomeadamente, com os seguintes trechos:

«Suportados na letra da lei, mas fazendo apelo a um critério teleológico na sua interpretação e com plena consciência de que o direito criminal se dirige à protecção de valores, ou bens jurídicos, não vislumbramos uma outra intenção do legislador que não a de evitar a criminalização de condutas que podiam ter um mero tratamento de natureza administrativa. Então, a denominada proliferação de inquéritos será evitada dando àquele que assumiu a sua obrigação declarativa perante a Administração Fiscal a possibilidade de regularizar a sua situação tributária.

Os elementos teleológico e histórico convergem, assim, em abono de uma interpretação segundo a qual o legislador terá pretendido descriminalizar o facto nos casos em que, tendo havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento, este vem a ser efectuado após intimação da Administração para que o "indivíduo" regularize a sua situação tributária.

Pretendeu-se alcançar tal objectivo fazendo surgir para Administração Fiscal a obrigação de notificar o contribuinte em mora (e não em falta de declaração) e para este a condição de pagamento do montante em falta como condição de não accionamento do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal.

(…) A alteração legal produzida, repercutindo-se na punibilidade da omissão e ligada, de forma inextricável, ao tipo de ilícito é, todavia, algo que é exógeno ao mesmo tipo.
(…)
As condições objectivas da punibilidade são aqueles elementos da norma, situados fora do tipo de ilícito e tipo de culpa, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção anti-jurídica tenha consequências penais.

(…) As condições objectivas de punibilidade são, assim, circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar anti jurídico importe consequências penais. São condições em que uma ponderação das finalidades extrapenais tem prioridade em face da necessidade da pena.
(…) As condições objectivas de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito estabelecidas para os elementos do tipo. Jeschek exemplifica com a aplicabilidade da função de garantia da lei penal ou as exigências de prova sobre as mesmas condições.».

Temos assim que somente após o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária e, ainda, do não pagamento, no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito, da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, é que «estão verificados no crime todos os pressupostos indispensáveis para que a punição possa desencadear-se» .

Volvendo-nos no caso vertente, temos que o arguido e a sociedade arguida foram notificados pessoalmente, em 20 de fevereiro de 2017, para os efeitos do citado art. 105º,nº4,al.b), cfr. notificação junta aos autos a fls. 119 e 120.

De tal notificação consta que a fim de poderem beneficiar da extinção do procedimento criminal, deverão no prazo de 30 dias, a contar da referida data, efectuar o pagamento dos impostos/prestações ainda em falta no inquérito, acrescida de juros respectivos e da coima aplicável que se mostre devida.

Se é certo que no campo respeitante ao montante da prestação tributária em falta por declaração (IVA), fez-se constar o valor de €14.256,45, como se impunha de acordo com o nº7, do citado art. 105º, por ser este que deve constar da declaração a apresentar à administração tributária, também é verdade que de tal notificação ficou a constar que por conta do valor do imposto em falta já se encontravam pagos 5.000,00€, pelo que, o valor em dívida é de apenas 9.256,45€ (atente-se no teor da nota 1 aludida no mencionado campo).

De tal notificação resulta assim claro que para poder beneficiar da extinção do procedimento criminal, o recorrente teria de ter procedido ao pagamento da prestação tributária em falta, no valor 9.256,45€, bem como dos respectivos juros e da coima, esta no montante de 4.317,56€, o que não ocorreu.

Em face do exposto, nenhum reparo nos merece a notificação em apreço.

Mas, ainda que a mesma apresentasse alguma desconformidade em termos de valores, designadamente não tivesse contemplado a quantia entretanto paga por conta da prestação tributária, tal não redundaria em qualquer irregularidade susceptível de afastar a punibilidade da conduta do recorrente.

Como se referiu no acórdão da Relação do Porto, de 7 de Janeiro de 2015, proferido nos autos 735/09.2TAOAZ.P1, disponível in www.dgsi.pt, onde estava em causa tão somente a ausência da liquidação dos concretos montantes referentes aos juros vencidos, que não constavam da notificação:

«I. A nova redação do artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, estabelece um pressuposto adicional de punibilidade segundo o qual a não punição resultará de uma atitude positiva do agente que obsta a essa consequência penal, pagando a dívida.

II. A condição de punibilidade não é a notificação para pagamento, mas sim a atitude que o contribuinte toma perante ela, liquidando (ou não) as quantias em causa [condição de não punibilidade].

III. Na notificação realizada ao abrigo do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, não têm que ser indicadas as concretas importâncias em dívida».

E isto porque, no bom rigor, a notificação em apreço não se destina a dar conhecimento ao devedor, com rigor, das prestações ainda em dívida – o devedor, melhor do ninguém, sabe o que deve - mas antes, conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, agora já com os juros de mora respectivos e o valor da coima aplicável, e, consequentemente, uma vez liquidados tais montantes, eximi-lo de responsabilidade criminal.

Perante tal notificação, o que se impõe a qualquer devedor que pretenda beneficiar de tal factualidade, é que junto da administração tributária se inteire do correto valor global a pagar, seja ele o que lhe tenha sido vertido na notificação ou outro que lhe venha validamente a ser apresentado, e proceda à sua liquidação no prazo de trinta dias que lhe foi concedido.

Não foi isso que fez o recorrente e dai o prosseguimento dos presentes autos para efeitos criminais.
Por tudo o exposto, não se vislumbrando qualquer irregularidade na notificação efectuada, improcede também o recurso nesta parte.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente/arguido F. L., confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º,nº1 do C.P.P. e 8º,nº9, do Regulamento das custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 10 de julho de 2019

Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira.