Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3037/18.0T8BRG-C.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MARTINS MOREIRA DIAS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
DIREITO DE RETENÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- O contrato-promessa com traditio do prédio objeto desse contrato, sem eficácia real, apenas confere aos promitentes um direito de crédito à celebração do contrato definitivo, direito esse que, atenta a eficácia relativa dos contratos, apenas produz efeitos vinculativas entre as partes contratantes, não sendo oponível aos terceiros. Daí que esse contrato-promessa com traditio, não opere efeitos translativos de direitos reais não conferindo, em princípio, ao promitente comprador a qualidade de possuidor sobre a coisa que lhe foi entregue, por lhe faltar o animus possessório, sendo este mero detentor dessa coisa.
2- Apenas não será assim e deve considerar-se que o promitente comprador, a quem o promitente vendedor entregou a coisa objeto do contrato-promessa, no âmbito da celebração desse contrato, detém a qualidade de possuidor quando pagou integralmente, ou quase integralmente, o preço acordado ao promitente vendedor e este lhe entregou a coisa para que este sobre ela atuasse como se ela já fosse sua.
3- O direito de retenção conferido ao promitente comprador, no caso de incumprimento de contrato-promessa com traditio confere-lhe um direito de crédito de uso do prédio e um direito real de garantia – não de gozo -, conferindo-lhe o direito a reter o prédio enquanto não lhe for pago os créditos previstos no art. 442º do CPC pelo promitente vendedor inadimplente (restituição do sinal em dobro, ou do valor do prédio entregue, determinado objetivamente, à data do incumprimento do contrato-promessa, com dedução do preço convencionado, acrescido do sinal e da parte do preço que tenha pago) e que lhe permite executar esse prédio, na esfera jurídica do promitente vendedor, ou de terceiro para quem aquele o tenha transmitido, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de se fazer pagar pelo seu crédito pelo produto da venda, com preferência sobre os demais credores do devedor, incluindo, os credores hipotecários.
4- Contudo, esse direito de retenção não confere a qualidade de possuidor do prédio ao promitente-comprador, nem impede que esse prédio seja apreendido, nomeadamente, penhorado e vendido judicialmente, na medida em que os direitos reais de garantia caducam com a venda judicial do prédio, transferindo-se a garantia conferida pelo direito de retenção para o produto da venda.
5- Daí que o direito de retenção não constitua fundamento de embargos de terceiro contra qualquer ato judicialmente determinado de apreensão, venda judicial e de entrega de prédio onerado por esse direito real de garantia.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

RELATÓRIO

AA instaurou, em 05/06/2018, ação especial de divisão de coisa comum contra BB e Banco 1... S.A., tendo por objeto o prédio urbano constituído por fração autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao ... andar do prédio constituído em propriedade horizontal, com entrada pelo n.º ...56 do Largo ..., União de Freguesias ... (... e ...), ... ..., inscrito na matriz sob o art. ...3... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11..., alegando que esse prédio é sua compropriedade e da requerida BB e encontra-se onerado com três hipotecas constituídas a favor da requerida Banco 1..., não pretendendo aquele permanecer na indivisão.
Tendo os autos prosseguido os seus termos legais, realizada a conferência de interessados em 05/04/2019, frustrou-se o acordo dos interessados quanto à adjudicação do prédio, na sequência do que, nos termos do disposto no art. 929º, n.º 2 do CPC, determinou-se que os autos prosseguissem com a venda do prédio, de acordo com as formalidades legais prescritas para a ação executiva e determinou-se que se procedesse às citações previstas no art. 786º do mesmo Código.
Por despacho proferido em 12/06/2019, determinou-se que a venda fosse realizada mediante propostas em carta fechada.
Frustrada a venda por propostas em carta fechada, por despacho proferido em 05/11/2019, ordenou-se a venda por negociação particular.
Tendo sido apresentadas várias propostas de aquisição, em 09/12/2020 proferiu-se despacho em que se determinou que a encarregada da venda vendesse o prédio pela proposta mais elevada.
Em 23/12/2020, a encarregada da venda juntou aos autos o comprovativo do pagamento do preço de aquisição do prédio pela M..., Lda., no montante de 147.500,00 euros, e requereu que fosse emitida certidão da documentação necessária à celebração da escritura pública de compra e venda.
Após vicissitudes várias, em 26 de maio de 2022, foi celebrada escritura pública de compra e venda mediante a qual se procedeu à venda do prédio à M..., Lda. – cfr. requerimento e documentos juntos aos autos de ação de divisão de coisa comum em 31/05/2022.
Ainda nos autos de ação de divisão de coisa comum, em 06/07/2022, proferiu-se sentença em que se julgou extinta a instância, constando essa sentença do seguinte teor:
“Nos presentes autor de divisão de coisa comum, mostrando-se vendido o bem objeto de divisão, mais não resta que determinar a extinção da presente instância, assim cessando a compropriedade que está na origem da presente ação.
Custas por Autor e Ré em partes iguais.
Registe e notifique.
Valor da ação – 147.500,00 euros.
Salvaguardando-se o pagamento das custas do processo, proceda-se à entrega do produto da venda aos credores conforme decidido no apenso A.
Sobejando alguma quantia deverá atender-se às penhoras indicadas.
Finalmente, se após alguma quantia restar entregue-se às partes”.

Por despacho proferido em 12/07/2022, ordenou-se “o cancelamento das hipotecas registadas sobre o imóvel vendido, o qual foi vendido livre de ónus e encargos, tendo os credores com garantias reais sido citados, reclamado os seus créditos, sendo-lhes dado pagamento com o produto da venda obtido” e determinou-se “o cancelamento do registo da presente ação, uma vez que findou”.
A sentença e o despacho acabados de enunciar foram notificados às partes, que deles não interpuseram recurso, encontrando-se transitados em julgado.
Por requerimento entrado em juízo em 02/01/2023, a compradora M... requereu que fosse investida na posse efetiva do prédio que comprou, devendo para o efeito ser requisitada a força policial, com arrombamento da porta, alegando que o ocupante do prédio persiste em não lho entregar.
Observado o contraditório, em 18/01/2023, a 1ª Instância proferiu o despacho que se segue:
“Estando já o adquirente investido na posse do imóvel, e considerando que apesar de notificação expressa deste Tribunal, até ao momento, o mesmo não lhe foi disponibilizado pelas partes dos autos – os anteriores proprietários – nem pela pessoa que presentemente o ocupará, sem qualquer título ou fundamento que possa ser oponível ao aqui adquirente, tal como já fizemos constar do despacho de 12.12.2022, determino que se efetive entrega do imóvel ao adquirente, nos termos do artº 757º do CPC,        através da encarregada de venda, com recurso ao auxílio da força policial, assim, como, caso venha a ser necessário, desde já, se concede autorização para arrombamento de portas”.
 
Por apenso aos autos de ação de divisão de coisa comum, em 20/01/2023, CC, instaurou autos de embargos de terceiro contra M..., Lda., BB e AA, pedindo que se ordenasse a restituição ao embargante da fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao ... andar, com entrada pelo número ..., destinada a habitação, sita no ... do Largo ..., ..., da freguesia ... (...), concelho ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artº ...48, do prédio constituído em regime da propriedade horizontal composto de cave, ... e seis pisos, descrito sob o número .../... (...) da ... Conservatória do Registo Predial ..., com todas as demais legais consequências.
Para tanto alegou, em síntese, não ser parte nos autos de ação de divisão de coisa comum.
Em 18/01/2023, no âmbito desses autos, foi determinado que se efetivasse a entrega do imóvel à aí adquirente, DD, nos termos do artºs 757º do CPC, através da encarregada de venda, com recurso ao auxílio da força policial, assim, como, caso viesse a ser necessário, se concedeu autorização para arrombamento de portas.
Acontece que o Autor celebrou em 17/03/2020, com a 1ª Ré BB, com o conhecimento do 2º Réu, um contrato-promessa de compra e venda tendo por objeto a fração objeto daquela ação de divisão de coisa comum, mediante o qual a 1ª Ré prometeu vender-lhe, e o Autor prometeu comprar-lhe, a referida fração, pelo preço de 195.000,00 euros, a ser pago 15.000,00 euros, a título de sinal, no ato de assinatura desse contrato-promessa, que o mesmo pagou, e o remanescente na data da celebração da escritura pública de compra e venda, a qual deveria ser celebrada no prazo de 120 dias a contar da data da celebração do contrato-promessa, ao qual os contratantes atribuíram força de execução específica.
Em 25/07/2020, Autor e 1ª Ré, esta com o conhecimento do 2º Réu, celebraram um aditamento ao identificado contrato-promessa, nos termos do qual esta entregou ao Autor as chaves da identificada fração, entregando-lhe este a quantia de 75.000,00 euros, a título de reforço do sinal.
Sucede que a 1ª e 2º Réus não marcaram a escritura de compra e venda e a fração objeto do contrato-promessa foi alvo de licitação pela 4ª Ré no âmbito da ação de divisão de coisa comum, a quem ainda essa fração não foi adjudicada.
O Autor instaurou ação contra os 1º, 2º, 3º e 4ºs Réus, que corre termos no Juízo Central Cível do Tribunal ..., Juiz ..., sob o n.º 4145/21...., onde pediu que: 1- fosse proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta, com vista à efetivação do contrato prometido e se condene a 1ª Ré e o 2º Réu a entregar ao Autor o valor correspondente ao montante do débito garantido pela hipoteca à Banco 1..., bem como os juros vencidos e vincendos até integral pagamento, para efeitos de expurgação da referida hipoteca, registada sobre o imóvel em causa; 2- Ou, em alternativa, no caso de impossibilidade de execução específica, nos termos peticionados, se declarasse resolvido o contrato-promessa de compra e venda com eficácia real e se condenasse a 1ª Ré e o 2º Réu a reconhecer tal resolução e, consequentemente, a pagar ao Autor a quantia de €180.000,00 (cento e oitenta mil euros), a título de restituição em dobro do montante global prestado a título de sinal, sempre acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; 3 – E, se reconhecesse ao Autor o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender; 4- Ou, ainda, em alternativa, para o caso de improcedência dos anteriores pedidos, mantendo-se, neste caso, o peticionado direito de retenção, nos moldes peticionados, se condenasse a 1ª Ré na devolução ao Autor da quantia entregue a título de sinal prestado, como consta do contrato-promessa e aditamento, no montante de €90.000,00 (noventa mil euros), acrescida de juros de mora contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Acontece que, em 20/01/2023, a encarregada da venda, acompanhada da 4ª Ré, mudou as fechaduras da fração objeto do contrato-promessa e entregou-a à última, estando o Autor, desde então, privado da posse do imóvel, situação que pretende reverter com os presentes embargos, atenta a ação que ainda pende e o direito à execução específica e o direito de retenção de que se arroga titular sobre a mencionada fração.
Em 30/01/2023, a 1ª Instância proferiu decisão em que indeferiu liminarmente os presentes embargos de terceiro com fundamento na sua manifesta improcedência, constando essa decisão da seguinte parte dispositiva:
“Pelo exposto, tudo visto e ponderado, decide-se considerar o pedido do embargante manifestamente improcedente e, consequentemente, rejeito liminarmente os presentes embargos de terceiro.
Custas pelo embargante.
Fixo o valor dos embargos em 90.000,00 euros”.

Inconformado com o assim decidido, o embargante interpôs o presente recurso de apelação em que formula as conclusões que se seguem:

1 - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nestes autos que decide considerar o pedido do embargante manifestamente improcedente e, consequentemente, rejeita liminarmente os presentes embargos de terceiro.
2 – Embargos de terceiro é um procedimento disposto no Código de Processo Civil que tem como objetivo possibilitar que um terceiro, não parte do processo em questão, possa defender seus bens/direitos que sejam indevidamente alvo de constrição dentro da demanda judicial.
3 - A oposição por embargos de terceiro visa a defesa da posse ou de qualquer direito incompatível com ato judicial ordenado ou realizado, como seja o caso de penhora ou outro ato de apreensão judicial de bens – artº 342º, nº1, do CPC.
4 – Os embargos de terceiro e a ação de restituição de posse são meios de tutela da posse, residindo na proveniência da lesão a diferença específica entre os dois expedientes processuais que a lei põe ao dispor do possuidor esbulhado para lhe ser restituída a posse.
5 - Quando a sua posse haja sido ofendida por uma diligência ordenada judicialmente (penhora, arrolamento, posse judicial, despejo), o possuidor tem ao seu dispor, como meio de defesa, os embargos de terceiro; se o esbulho tiver outra origem, deve usar a ação de restituição de posse.
6 - Consta dos factos provados da sentença recorrida que: “A 25.5.2022, veio a requerida BB comunicar a pendência do processo 4145/21...., no Juízo Central Cível ... Juiz ..., requerendo a suspensão da instância por causa prejudicial, visto naquela ação estar pedida a execução específica do contrato-promessa por si o imóvel que constituiu objeto da ação de divisão de coisa comum.”
7 – Ação aquela que se encontra registada na Conservatória do Registo Predial, pelo que, é do conhecimento público.
8 - A identificada ação judicial foi intentada contra os aqui requerente e requerida, Banco 1... e a M..., LDª;
9 – Por conseguinte, as partes e intervenientes na ação de divisão de coisa comum são também Réus na ação identificada na conclusão 6 na qual se peticiona que:
“1 - Seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta, com vista à efetivação do contrato prometido e se condene a 1ª Ré e o 2º Réu a entregar ao Autor o valor correspondente ao montante do débito garantido pela hipoteca à Banco 1..., bem como os juros respetivos vencidos e vincendos até integral pagamento, para efeitos de expurgação da referida hipoteca, registada sobre o imóvel em causa;
2 - Ou, em alternativa, no caso de impossibilidade de execução específica, nos termos peticionados, se declare resolvido o contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, se condene a 1ª Ré e o 2º Réu a reconhecer tal resolução e, consequentemente, a pagar ao Autor a quantia de €180.000,00 (cento e oitenta mil euros), a título de restituição em dobro do montante global prestado a título de sinal, sempre acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
3 – E, se reconheça ao Autor o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender, fração ... correspondente ao ... andar, com entrada pelo número ..., destinada a habitação, sita no ... do Largo ..., ..., freguesia ... (...), concelho ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artº ...48, do prédio constituído em regime da propriedade horizontal composto de cave, ... e seis pisos, descrito sob o número .../... (...) da ... Conservatória do Registo Predial ..., para garantia do seu crédito de €180.000,00 (cento e oitenta mil euros) e, bem assim, dos respetivos juros, resultante da condenação supra requerida;
4- Ou, ainda, em alternativa, para o caso de improcedência dos anteriores pedidos, mantendo-se, neste caso, o peticionado direito de retenção, nos moldes peticionados, se condene a 1ª Ré na devolução ao Autor da quantia entregue a título de sinal prestado, como consta do contrato promessa e aditamento, no montante de €90.000,00 (noventa mil euros) acrescida de juros de mora contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.”
10 – Ou seja, os fundamentos invocados naquela ação assentam num direito de crédito e na posse da fração autónoma pelo aqui recorrente, comprovada por documento e abundantemente demonstrada nestes autos.
11 – Pelo que, deveria a ação de divisão de coisa comum ser suspensa nos termos do disposto no artº 272º nº 1 do CPC por se estar perante uma causa prejudicial que justificava aquele efeito.
12 - Com os presentes embargos o recorrente pretende defender o seu direito de posse que também legitima o pedido formulado naquela ação.
13 – Encontrando-se demonstrado que o recorrente tem a posse da fração autónoma objeto da ação de divisão de coisa comum, melhor identificada no pedido formulado nestes embargos de executado, desde data anterior à sua adjudicação à aqui recorrida e Ré naqueloutra ação declarativa.
14 – Não pode a recorrida e Ré, como não podem as partes demais intervenientes na ação de divisão de coisa comum ignorar o efeito pretendido com a identificada ação declarativa, registada na Competente Conservatória do Registo Predial.
15 – Da mesma forma que não a pode ignorar a Mª Juiz que proferiu a sentença recorrida.
16 – Tem ainda de se considerar surpreendente e excecional que nesta ação a Mª Juiz “a quo” se tenha pronunciado acerca da ação atrás identificada, fazendo tábua rasa de todo o processado naqueles autos, designadamente da posição processual das respetivas partes.
17 - A oposição por embargos de terceiro constitui uma das modalidades de oposição cujas regras gerais estão previstas nos artigos 342.º e ss. do CPC.
18 - No que respeita aos seus fundamentos, dispõe o n.º 1 do artigo 342.º do CPC que um lesado que não seja parte numa causa mas que veja a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência serem ofendidos por uma penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, pode fazê-lo valer mediante embargos de terceiro.
19 - Não pode deixar de se dar por demonstrado que o embargante, terceiro, dispõe de posse suscetível de defesa por meio de embargos de terceiro;
20 - Face aos factos alegados na petição inicial, tem de se dar como provada a posse real e efetiva do embargante sobre a fração autónoma. Posse que não é colocada em causa por quem quer que seja.
21 - O embargante alegou que está na posse do bem em questão, expondo os factos justificativos da sua alegação, o que desde logo e à partida não compromete o êxito dos embargos.
22 – A sentença recorrida faz errada interpretação do disposto no artº 342º e ss. do CPC e viola o disposto no artº 1351º do Código Civil.

TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO MERECER PROVIMENTO E POR VIA DISSO, DEVE SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR DECISÃO QUE RECEBA OS PRESENTES EMBARGOS DE TERCEIRO E ORDENE A SUA NORMAL TRAMITAÇÃO, COM TODAS AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, COMO É DE INTEIRA J U S T I Ç A!

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, a única questão que se encontra submetida à apreciação do tribunal ad quem consiste em saber se ao indeferir liminarmente a petição inicial de embargos de terceiro, com fundamento na manifesta improcedência destes, a 1ª Instância incorreu em erro de direito e se, em consequência, se impõe revogar essa decisão e receber os embargos, determinando-se o respetivo prosseguimento legal.
Note-se que apesar de, nas conclusões 6ª a 11ª das alegações de recurso, o apelante se insurgir quanto ao facto de, no âmbito da ação de divisão de coisa comum a que os presentes autos se encontram apensos, se ter indeferido a pretensão aí formulada pela aqui apelada BB (ali requerida) no sentido de se suspender a instância dessa ação de divisão de coisa comum enquanto não fosse decidida, por sentença transitada em julgado, a ação declarativa que o apelante instaurou contra os aqui 1º, 2º, 3º e 4ºs Réus, que corre termos no Juízo Central Cível do Tribunal ..., Juiz ..., sob o n.º4145/21...., imputando a essa decisão de indeferimento erro de direito por, na sua perspetiva, “nos termos do disposto no art. 272º, n.º 1, do CPC, se estar perante uma causa prejudicial que justificativa aquele efeito”, do objeto do presente recurso de apelação não faz parte a sindicância do pretenso erro de direito que afetará essa decisão que indeferiu a suspensão da instância da ação de divisão de coisa comum.
Com efeito, a impugnação dessa decisão apenas podia ter lugar no âmbito da ação de divisão de coisa comum em que foi proferida, e não nos presentes autos de embargos de terceiro, os quais, apesar de se encontrarem regulados nos arts. 342º a 350º do CPC em sede de incidentes da instância, consubstanciam uma verdadeira ação declarativa, autónoma e especial, apensa à ação ou à execução em cujo âmbito foi praticado o ato judicialmente ordenado alegadamente ofensivo da posse do embargante sobre a coisa ou de um qualquer outro direito de que este se arroga titular sobre a mesma[1].
Deste modo, qualquer impugnação do despacho que indeferiu a  pretensão da nela Ré, BB, no sentido de que a ação de divisão de coisa comum fosse suspensa até que a ação declarativa que se encontra pendente no Juízo Central ... se encontre decidida, por decisão transitada em julgado, teria de ser impugnada no âmbito da referida ação de divisão de coisa comum em que esse decisão de indeferimento foi proferida, naturalmente dentro do prazo legal estabelecido no art. 638º do CPC para que ocorresse essa impugnação, sob pena desta transitar em julgado, não podendo posteriormente ser impugnada.
Note-se que à impugnação dessa decisão proferida no âmbito da ação de divisão de coisa comum não obsta o facto de o qui apelante não ser parte nessa ação, na medida em que o n.º 2, do art. 631º do CPC reconhece legitimidade para recorrer das decisões proferidas nessa ação não apenas a quem nela detém a qualidade processual de parte principal e tenha ficado vencido com o decidido nessa decisão, isto é, a quem a decisão de indeferimento de suspensão da instância dessa ação seja objetiva e diretamente desfavorável (critério material), mas também a todos aqueles que, não sendo partes nessa ação, sejam direta e efetivamente prejudicados por essa decisão, sendo atingidos negativamente pelos respetivos efeitos na sua esfera pessoal e/ou patrimonial[2].
Daí que caso o apelante entenda que a pretensa decisão que foi proferida no âmbito da ação de divisão de coisa comum e que indeferiu a pretensão da aí Ré BB no sentido de que a instância dessa ação fosse suspensa até à decisão final a proferir naquela outra ação declarativa que pende no Juízo Central Cível ... lhe é prejudicial, aquele terá que impugná-la, querendo, no âmbito da identificada ação de divisão de coisa comum, naturalmente caso ainda não se mostre decorrido o prazo legalmente fixado para dela interpor recurso e, consequentemente, a mencionada decisão não se encontre transitada em julgado.
Destarte, atento os fundamentos que se acabam de enunciar, não se conhecerá no âmbito do presente recurso de apelação da impugnação operada pelo apelante quanto ao identificado despacho proferida no âmbito da ação de divisão de coisa comum a que os presentes autos de embargos de terceiro se encontram apensos que indeferiu a pretensão da aí requerida EE para que essa ação fosse suspensa até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no âmbito da ação declarativa que corre termos no Juízo Central Cível ....
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada com relevância para a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos, “além da alegação do requerente”, os seguintes factos:

1- A 5.6.218 deu entrada a ação de divisão de coisa comum, a que estes autos se mostram apensos.
2- Ali figuram como requerente AA e requerida BB, logo se indicando na petição que a Banco 1... SA era credor hipotecário.
3- Sendo objeto da ação/divisão a fração autónoma designada pela letra ... correspondente ao ... andar, com entrada pelo número ..., destinada a habitação, sita no ... do Largo ..., ..., freguesia ... (...), concelho ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artº ...48, do prédio constituído em regime da propriedade horizontal composto de cave, ... e seis pisos, descrito sob o númeno .../... (...) da ... Conservatória do Registo Predial ....
4- Efetuada a citação, não foi apresentada contestação.
5- Por despacho de 6.2.2019, e estando assente a indivisibilidade do bem, fixou o tribunal os quinhões das partes, e designou conferência de interessados com as finalidades previstas no nº 2 do art. 929º do CPC.
6- Nessa conferência foi pedida a suspensão da instância, em virtude das partes estarem a tentar formalizar acordo, desde logo, se designando data para continuação da diligência, se o acordo não fosse alcançado.
7- Frustrado o acordo, realizou-se a conferência, proferindo-se o seguinte despacho:
“Uma vez que a requerida bem como a I. mandatária da mesma não compareceram não havendo assim possibilidade de acordo quanto à adjudicação do bem em divisão, nos termos do artigo 929.º, n.º 2, do CPC, determino que os autos prossigam com a venda do imóvel, de acordo com as formalidades prescritas para a ação executiva, como decorre do nº 2 do art.º 549º do CPC.
Assim, cumpram-se as citações previstas no artigo 786.º do CPC.
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Decorrido o prazo para reclamar créditos, notifique os consortes, credor hipotecário e os eventuais reclamantes para se pronunciarem quanto à modalidade da venda e valor base de venda.
Advertem-se os interessados que, devido à posição já manifestada nos autos pelos mesmos, bem ainda o teor da certidão predial de fls. 8 a 11 verso, está assente nos autos que o credor Banco 1..., SA., que é parte principal nos autos, é credor hipotecário, já citado, havendo apenas que, oportunamente, liquidar o valor do capital em dívida ao mesmo.”
8- Citados os credores, foram reclamados créditos pela C..., proferindo-se sentença, no apenso A, onde o crédito da Banco 1... foi graduado primeiramente em face do crédito reclamado da C..., determinando-se que só após pagamento destes credores, e havendo remanescente, este seria dividido pelos comproprietários.
9- A 12.6.2019, após notificação das partes, proferiu o tribunal o seguinte despacho:
“Uma vez que a A. dispõe de apoio judiciário, torna-se inviabilizada a venda por leilão, ocorrendo a mesma mediante abertura de propostas em carta fechada, como habitual, nestas situações, sendo oficial de justiça o responsável pela venda.
Para abertura de propostas designo o dia 6.9.2019, pelas 10h15.
Valor base – 200.000,00€, aceitando-se propostas de 85% desse valor, sem prejuízo, de ulteriormente, e caso se frustre a venda por este valor seja reajustado o mesmo em conformidade com o referido pelo credor hipotecário.
DN.”
10- No dia aprazado, e porque comunicou o requerente José que a requerida BB não facultava o acesso ao imóvel de potenciais interessados, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Considerando o exposto pelo requerente no requerimento que antecede e porque o imóvel apesar de existirem interessados, não pôde ser visitado, o tribunal entende designar nova data para abertura de propostas, o dia 5 de novembro de 2019, às 13:55 horas.
Desde já o tribunal determina com vista a acautelar que potenciais interessados visitem o imóvel, que se notifique a requerida que ali reside, para que faculte a entrada no mesmo, todas as sextas-feiras do mês de outubro de 2019, entre as 18:00 e as 19:30 horas.
Notifique.”
11- Na data agendada, e porque não foram apresentadas propostas determinou-se que se procedesse à venda por negociação particular, tendo sido nomeada encarregada da venda.
12- A 9.12.2020 determinou-se que efetuasse a Sra. Encarregada a venda pelo valor mais elevado, à proposta mais elevada apresentada.
13- Aos autos, foram, entretanto, chegando diversas comunicações de penhoras, incidentes sobre o produto que viesse a caber, após a venda, aos comproprietários.
14- A requerida suscitou nos autos a sua intenção de adquirir a 1/2 fração, que não lhe pertence, apresentando proposta nesse sentido.
15- A 11.2.2021, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Tal como já decidido por despacho transitado em julgado, a venda é efetuada atenta a melhor proposta apresentada, pelo que nada mais temos a ordenar, sempre se precisando que a venda é feita à proposta mais elevada da coisa a vender, e aqui deverá entender-se a proposta por referência à coisa na sua totalidade e não de uma parte, uma vez que à venda está o todo e não parte.”
16- A 22.3.2021 apresentou a requerida recurso, que veio a ser admitido, com efeito suspensivo.
17- Na sequência de requerimento do requerente, por despacho de 7.6.2021, foi ordenado o registo da ação.
18- O Tribunal da Relação, no apenso B, julgou improcedente o recurso interposto, confirmando o decidido por este Tribunal, ou seja, que a venda era da coisa na totalidade e não apenas a ½ que pretendia a requerida BB adquirir.
19- Na sequência do decidido pelo Tribunal da Relação a 5.5.2022, ordenou-se a efetivação da venda pela encarregada da mesma, à proponente M..., Lda., NIF - ..., Endereço: Rua ..., ... ..., pela quantia de €: 147.500,00 (cento e quarenta e sete mil e quinhentos euros), o valor mais alto proposto/oferecido nos autos.
20- A 9.5.2022, a Requerida insistiu que deveria ser a sua proposta a considerada, mais avançando que a sua filha e do requerente, tinha intenção de exercer direito de remição.
21- Foi junta procuração aos autos, a 9.5.2022, pela filha de requerente e requerido a favor da mandatária que já representava nos autos a requerida.
22- Por despacho de 12.5.2022 foi decidido o seguinte:
“Como decidido e confirmado pelo Tribunal da Relação a coisa a vender é na sua totalidade, razão pela qual, pretendendo a Requerida na sua proposta apenas adquirir a parte do requerente, nunca a sua proposta poderia, como não foi, considerada a de mais elevado valor apresentado, por referência à totalidade da coisa a vender, não podendo a requerida vir suscitar permanentemente questões aos autos que foram já decididas por despachos transitados em julgado e/ou confirmados pelo Tribunal da Relação.
Como se diz no Acórdão da Relação “De qualquer modo, mesmo que assim não fosse, não se vê como é que a decisão de mandar vender a totalidade do imóvel pela melhor proposta impede os comproprietários de "concorrer à venda do bem comum". A requerida não fica, por essa via, impossibilitada de formular a sua proposta, que será a vencedora se nenhuma outra ultrapassar o valor nela oferecido. No cenário da presente ação, a requerida só não será a compradora do bem se não apresentar qualquer proposta ou se houver alguém que apresente uma mais elevada do que a sua.”, ou seja, não tendo a requerida apresentado proposta para aquisição da totalidade da coisa, apenas se propôs a comprar a parte do requerente, invocando ser já dona da outra parte, olvidando, que do que se trata, nesta fase, é vender e dividir a quantia obtida pelos comproprietários, levando em conta que sempre se pagarão primeiro os credores e só sobejando alguma quantia será dividida pelas partes conforme o respetivo quinhão.
Nestes termos, a certidão emitida está correta reportando-se à proposta mais elevada apresentada versando a totalidade da coisa a vender.
No mais, é apenas anunciado que uma filha dos comproprietários pretende exercer direito de remição, nada sendo em concreto requerido, nem exercido qualquer direito, pelo que nada temos a ordenar.
... ds”.
23- Tal despacho não foi objeto de recurso.
24- A 20.5.2022, o ilustre mandatário do embargante requereu acesso aos autos os de divisão de coisa comum, que lhe foi concedido pela secção.
25- A 24.5.2022 juntou a encarregada da venda comprovativo do pagamento integral do preço pela proponente M..., Lda.
26- A 25.5.2022, veio a requerida BB comunicar a pendência do processo 4145/21...., no Juízo Central Cível ... Juiz ..., requerendo a suspensão da instância por causa prejudicial, visto naquela ação estar pedida a execução específica do contrato promessa por si o imóvel que constituiu objeto da ação de divisão de coisa comum.
27- A 31.5.2022, juntou a encarregada da venda cópia da escritura celebrada, onde a 26.5.2022, foi vendido o imóvel à sociedade M..., Lda.
28- A 6.7.2022, foi, então, proferida a seguinte decisão:
“Fixo em 3% do valor do bem vendido a remuneração ao encarregado da venda, entendendo que neste valor estão já incluídas as despesas havidas – artº 17º nº 3 do RCP.
*
Nos presentes autos de divisão de cosa comum mostrando-se vendido o bem objeto de divisão, mais não resta que determinar a extinção da presente instância, assim cessando a compropriedade que está origem da presente ação.
Custas por A. e R., em partes iguais.
Registe e notifique.
Valor da ação – 147.500,00€
Salvaguardando-se o pagamento das custas do processo, proceda-se à entrega do produto da venda, aos credores conforme decidido no apenso A.
Sobejando alguma quantia deverá atender-se às penhoras comunicadas.
Finalmente, se após alguma quantia restar entregue-se às partes.
*
Atenta a sentença ora proferida, e porque o bem objeto de divisão está vendido e já pertence, por conseguinte, a terceiro que o adquiriu, estando este processo findo, fica prejudicada a apreciação da requerida suspensão dos autos por causa prejudicial.
Comunique-se a presente decisão ao processo nº 4145/21...., que pende na ... Juiz ....
*
Quanto à devolução da quantia depositada nos autos pela requerida decorrente da proposta de compra da fração que efetuou, devolva-se como requerido, uma vez que as penhoras comunicadas apenas se reportam ao crédito resultante do remanescente da venda do imóvel, nunca se aludindo a penhora da quantia depositada pela requerida nos autos na sequência de proposta de compra efetuada.
... ds”.
29- Tal decisão não foi objeto de recurso.
30- A 12.7.2022 na sequência de requerimento da encarregada da venda foi proferido o seguinte despacho:
“Determino o cancelamento das penhoras e hipotecas registadas sobre o imóvel vendido, o qual foi vendido livre de ónus e encargos, tendo os credores com garantias reais sido citados, reclamado os seus créditos, sendo-lhes dado pagamento com o produto da venda obtido.
Mais se determina o cancelamento do registo da presente ação, uma vez que findou.
Quanto ao registo da ação que pende na Instância Central, não temos competência para ordenar o cancelamento do mesmo, devendo a questão ser suscitada junto do Mmo Juiz que a tramita, sendo certo, que qualquer discordância quanto à decisão do Ex.mo Conservador quanto ao registo do bem poderá ser objeto de recurso com tramitação própria e autónoma dos presentes autos.
... ds”
31- A 21.9.2022, veio a adquirente do imóvel M..., Lda., comunicar aos autos que apesar de realizada a escritura, de ter o prédio definitivamente registado a seu favor livre de ónus e encargos e pago o preço, não lhe é facultado acesso ao imóvel, requerendo que o tribunal o invista na posse e determine a sua entrega com recurso a auxílio de força policial e arrombamento, se necessário.
32- O Tribunal deu o contraditório às partes, que nada vieram dizer.
33- Por despacho de 19.10.2022, este tribunal ordenou o seguinte:
“Notifique-se as partes (requerente e requerido) anteriores proprietários do imóvel vendido nestes autos, para em 10 dias procederem à sua entrega ao adquirente, visto que com a venda efetuada, deixaram de ter qualquer direito sobre o mesmo.
... ds”
34- A 31.10.2022, determinou o Tribunal que se efetuassem os pagamentos aos credores.
35- A 2.11.2022, comunicou o Requerente José aos autos que há muito não tem acesso ao imóvel, informando que estava o mesmo ocupado pelo aqui embargante ou familiar deste, aludindo ao contrato celebrado pela requerida BB e objeto da ação que pende na instância central.
36- A 18.11.2022 foi proferido o seguinte despacho:
Refª ...44: Nos termos do artº 861º nº 3 do CPC, invisto o adquirente na posse do imóvel adquirido.
Notifique os interessados e alegado detentor do imóvel CC (para a morada do imóvel), nos termos da parte final do citado preceito”.
37 – Por requerimento de 2.12.2022, veio o embargante aos autos de divisão de coisa comum, invocar a pendência da ação por si interposta que pende na instância central, onde a adquirente é também parte, requerendo a final designadamente que: “… por se revelar prejudicial relativamente a esta ação a que se encontra pendente Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Cível ... – Juiz ... – Proc.º 4145/21...., desde data anterior à aquisição efetuada pela sociedade “M... Ld.ª”, relativamente ao aqui exponente é inexistente e ineficaz o despacho proferido nestes autos com a Refª ...44.”
38- A 6.12.2022, pugnou a adquirente pela efetivação da entrega do imóvel, visto o ter comprado há mais de 6 meses e continuar sem a sua posse, invocando que a ação intentada pelo aqui embargante é posterior aos presentes autos, e mostra-se já cancelado o seu registo, por via da venda aqui efetuada, livre de qualquer ónus e encargo.
39- Por despacho de 12.12.2022, decidiu o tribunal o seguinte:
“Requerimento de 2.12.2022 – considerando a venda que foi efetuada na presente ação de divisão de coisa comum, a fração em causa nos autos foi transmitida livre de ónus e encargos, abarcando aqui todos os direitos reais de garantia que oneravam o bem vendido e incluindo o pretenso direito de retenção do requerente, cujo reconhecimento está peticionado no âmbito da ação que pende na instância central, relembrando-se que face à venda aqui operada a execução especifica não mais poderá ter lugar.
Neste ponto sufragamos o entendimento que o direito de retenção conferido pelo artº 755º nº 1 al f) do CC, não tem características que se assemelhem a um direito real de gozo, que justifique que sobreviva a uma venda judicial.
Assim sendo, a venda operada nestes autos implica a caducidade de qualquer direito de retenção que incidisse sobre o bem objeto de venda, mesmo que seja de reconhecimento posterior, como será sempre nesta situação, uma vez que ainda pende a ação onde se peticiona o seu reconhecimento.
Isto posto dizemos, que mesmo que se reconheça no âmbito da ação que ainda pende, que assistia o direito de retenção do promitente comprador (requerente no req. de 2.12.2022) sobre o objeto do contrato promessa - a fração aqui vendida – tal não faz renascer esse direito de retenção, visto o mesmo ter caducado por força do regime inserto no artº 824º nº 2 do CC, aquando da venda levada a cabo nestes autos.
Concluindo, o despacho proferido vincula o requerente e todo aquele que se arrogue titular de direito sobre o bem aqui vendido, advertindo-se que caso não dê cumprimento ao ordenado no despacho que antecede, em 10 dias, o tribunal deferirá a pretensão da entidade que adquiriu a fração, no sentido de ser requisitada a força pública e, se necessário for recorrer-se-á a arrombamento para a efetiva entrega do bem, a quem por ele pagou no âmbito da venda efetuada nesta ação.
Quanto ao requerimento de 6.12.2022 – nada a ordenar atento o despacho supra proferido.
Notifique, incluindo quem apresentou o requerimento a 2.12.2022 e a compradora do imóvel.
... ds”.
40- O despacho aludido em 39 transitou em julgado, não tendo sido interposto recurso nem deduzidos embargos quanto ao mesmo.
41- A 2.1.2023, comunicou a adquirente do imóvel que o mesmo não lhe foi entregue, apesar do ordenado a 12.12.2022.
42- Por despacho de 18.1.2023 decidiu o tribunal:
“Estando já o adquirente investido na posse do imóvel, e considerando que apesar de notificação expressa deste Tribunal, até ao momento, o mesmo não lhe foi disponibilizado pelas partes dos autos – os anteriores proprietários – nem pela pessoa que presentemente o ocupará, sem qualquer título ou fundamento que possa ser oponível ao aqui adquirente, tal como já fizemos constar do despacho de 12.12.2022, determino que se efetive entrega do imóvel ao adquirente, nos termos do artº 757º do CPC, através da encarregada de venda, com recurso ao auxílio da força policial, assim, como, caso venha a ser necessário, desde já, se concede autorização para arrombamento de portas”.
43- Pela Sra. encarregada da venda, foi a 20.1.2023, efetivada a entrega do imóvel ao adquirente, aqui 1ª embargada, mudando as fechaduras do imóvel, em cumprimento do despacho aludido em 42.
44- Tendo o aqui embargante deduzido embargos de terceiro, alegando estar, desde então, privado da posse do imóvel.
45- Posse que alega ter desde 25.7.2020, data em que o imóvel lhe foi entregue pela requerida BB, no âmbito do CPCV com ela celebrado.
47- Situação que pretende reverter com estes embargos, atenta a ação que ainda pende na instância central, onde pretende exercer o direito à execução específica ou o direito de retenção, de que se arroga titular sobre a aludida fração.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Os embargos de terceiro são um meio de defesa contra certos atos do Estado: os atos executivos e cautelares de apreensão de bens. Já se a perturbação ou esbulho da posse (ou até o mero receio) provier de um ato particular, o processo adequado é o previsto nos arts. 1276º e 1278º do CC[3].
Antes da revisão ao CPC operada pelo D.L. n.º 329-A/95, de 12/12, os embargos de terceiro constituíam o meio processual que a lei adjetiva colocava ao dispor de terceiro, isto é, quem não fosse parte na ação ou execução em que fosse determinado ato judicial de apreensão ou de entrega de bem, sempre que esse ato ofendesse a posse desse terceiro sobre esse bem (art. 1037º do CPC, na redação anterior ao D.L. n.º 329-A/95, de 12/129), tendo então os embargos de terceiro como única finalidade a defesa da posse em sentido técnico-jurídico do terceiro sobre o bem.
Acontece que a reforma ao CPC de 1995/1996, introduzida pelo identificado diploma, ampliou a função dos embargos de terceiro, passando estes a ter por função não apenas a defesa da posse de um terceiro sobre o bem, mas também a defesa de um qualquer direito de que este se arrogasse titular e que fosse incompatível com a realização ou o âmbito de diligência judicialmente determinada de apreensão ou entrega do bem (art. 342º, n.º 1 do CPC, na sua atual redação).
Conforme antedito, apesar dos embargos de terceiro se encontrarem regulados no CPC em sede de incidentes da instância, os mesmos configuram uma verdadeira ação declarativa, autónoma e especial, que corre por apenso à ação ou execução em cujo âmbito foi ordenado o ato judicial de apreensão ou de entrega do bem alegadamente ofensivo da posse ou de direito de terceiro  incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicialmente ordenada, (art. 344º, n.º 1 do CPC), tendo os embargos de terceiro por finalidade defender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito dessa diligência de que o embargante se arrogue titular.
Trata-se de um processo que apresenta uma dupla estrutura procedimental: uma fase cautelar, dita de “introdutória”, a que se reporta o art. 345º do CPC, e uma fase declarativa e contraditória, que se segue àquela no caso dos embargos serem recebidos, a qual segue os termos do processo comum (art. 348º, n.º 1)[4].
Refira-se que os embargos de terceiro podem ter natureza repressiva ou preventiva.
Nos embargos de terceiro com natureza repressiva o embargante visa reagir contra a ofensa da posse ou do direito de que se arroga titular sobre o bem objeto de apreensão ou de entrega judicialmente determinada quando esse ato judicial já tenha sido realizado e, consequentemente, a ofensa à posse ou ao direito de que se arroga titular já se encontra concretizada.
O embargante terá de deduzir os embargos de terceiro com função repressiva contra as partes primitivas da ação ou execução em que foi proferido o ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega do bem, mediante a apresentação de  petição inicial, em que terá de alegar os factos essenciais integrativos da posse em sentido técnico-jurídico de que se arroga titular sobre o bem, ou que sejam constitutivos de um direito sobre o bem em causa, em que, uma vez ponderada a natureza desse direito e o regime jurídico substantivo a que se encontra submetido, se verifique que o mesmo é incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicialmente ordenada, por aquele não poder ser legitimamente atingido pelo ato de apreensão ou de entrega do bem judicialmente determinado, dado ser oponível aos interessados que promoveram ou a quem aproveita a referida diligência[5], no prazo de 30 dias subsequentes àquele em que essa diligência foi realizada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de o bem ter sido judicialmente vendido ou adjudicado, oferecendo logo as provas (n.º 2, do art. 344º do CPC).
Já nos embargos de terceiro com natureza preventiva o embargante visa evitar a lesão à posse ou ao direito de que se arroga titular e que entende ser incompatível com a realização ou o âmbito de diligência judicialmente ordenada de apreensão ou de entrega do bem.
Os embargos de natureza preventiva terão de ser deduzidos, mediante a entrada de petição inicial em juízo, por apenso à ação ou à execução em que essa diligência foi ordenada, contra as partes primitivas dessa ação ou execução, depois dessa diligência judicial ter sido ordenada mas antes de ter sido realizada, sem prejuízo de, caso os embargos de terceiro com natureza preventiva terem dado entrada em juízo depois de ordenada a diligência e antes desta ter sido realizada, o juiz, quando essa diligência vier a ser realizada antes de apreciar a sua admissão (admitindo-os os rejeitando-os), no caso de admissão, dever convolar os embargos de terceiro com função preventiva instaurados para embargos com função repressiva, ao abrigo do princípio da adequação formal[6].
 Conforme resulta do que se vem dizendo e do disposto no art. 345º do CPC, os embargos de terceiro, quer tenham natureza preventiva ou repressiva, estão sujeitos a despacho liminar, devendo ser indeferidos liminarmente sempre que tenham sido apresentados depois de decorrido o prazo legal para a respetiva dedução e essa intempestividade resulte evidente do teor da petição inicial e dos demais elementos recolhidos no processo, ou sempre que ocorram outras razões para o imediato indeferimento da petição, como é o caso da ilegitimidade do embargante e/ou a manifesta improcedência do pedido.
 Não ocorrendo fundamento de indeferimento liminar, segue-se, então, a fase introdutória em que se realizam as diligências probatórias necessárias, em que os embargos são recebidos ou rejeitados conforme exista ou não probabilidade séria da existência da posse ou do direito invocado pelo embargante (art. 345º, in fine, do CPC).
Nessa fase introdutória o juiz limita-se, com base na prova informativa produzida, a formular um juízo valorativo sumário, de simples probabilidade ou verosimilhança, sobre a existência do direito invocado pelo embargante, constituindo esse despacho de recebimento mera condição de prosseguimento dos embargos, podendo esse juízo valorativo ser infirmado após a dedução da contestação[7].
Os embargos de terceiro a que se reportam os autos têm natureza repressiva.
Com efeito, o apelante instaurou os presentes embargos de terceiro por apenso aos autos de divisão de coisa comum que AA instaurou contra BB e Banco 1..., S.A., tendo por objeto o prédio urbano constituído por fração autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, inscrito na matriz sob o art. ...3... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11..., em que alegou  que esse prédio é sua compropriedade e da requerida BB, e encontra-se onerado com hipotecas constituídas a favor da Ré Banco 1... e pretende pôr termo à compropriedade.
Uma vez frustrado o acordo dos interessados quanto à adjudicação do prédio, nos termos do disposto no art. 929º, n.º 2 do CPC,  no âmbito dessa ação, ordenou-se que os autos prosseguissem os seus termos legais para venda do mencionado prédio, de acordo com as formalidades prescritas para a ação executiva, e onde, uma vez frustrada a venda por propostas em carta fechada, este veio a ser vendido, por negociação particular, à apelada M..., Lda., por escritura pública de compra e venda celebrada em 26 de maio de 2022.
Tendo no âmbito dos autos de divisão de coisa comum, por despacho de 18/01/2023, sido determinada a entrega do prédio à compradora M..., o apelante, que não é parte nessa ação de divisão de coisa comum, sendo, por isso, terceiro em relação a essa ação, deduziu os presentes embargos de terceiro alegando ser possuidor do identificado prédio, por via do contrato-promessa que celebrou, em 25 de julho de 2020, com a apelada BB, em que esta, com o conhecimento do apelado AA, lhe prometeu vender, e o apelante lhe prometeu comprar, o identificado prédio, pelo preço de 195.000,00 euros, do qual o apelante já lhe pagou a quantia global de 90.000,00 euros a título de sinal, no âmbito do qual a promitente vendedora, BB, lhe entregou esse  mesmo prédio, em 25 de julho de 2020, e onde o apelante e o seu agregado familiar passaram a residir desde então.
Alega o apelante que a promitente-vendedora incumpriu o contrato-promessa, estando-lhe, por isso, conferido o direito de retenção previsto no art. 755º, n.º 1, al. f), do CC, o qual, na sua perspetiva, lhe confere a posse sobre o prédio e que esse direito se mostra incompatível com a apreensão e venda desse prédio no âmbito da ação de divisão de coisa comum e com o ato judicialmente determinado, de 18/01/2023, em que a 1ª Instância, no âmbito dessa ação de divisão de coisa comum, ordenou que o prédio fosse entregue à compradora, a apelada M..., Lda.
Entendeu a 1ª Instância que, diversamente da posição propugnada pelo apelante, o contrato-promessa com traditio do prédio objeto do contrato-promessa celebrado entre o apelante e a apelada e objeto de venda judicial no âmbito da ação de divisão de coisa comum não confere ao apelante a qualidade de possuidor  deste e, bem assim, que o direito de retenção “conferido pelo art. 755º, n.º 1, al. f) do CC, não tem características que se assemelham a um direito real de gozo, que justifique que sobreviva a uma venda judicial”, a qual “implica a caducidade de qualquer direito de retenção que incidisse sobre o bem objeto da venda, mesmo que seja de reconhecimento posterior” e, em consequência, indeferiu os presentes embargos de terceiro por manifesta improcedência, por ser “manifesto não ter o embargante a titularidade de um qualquer direito incompatível com o ato judicialmente ordenado (entrega da fração ao seu adquirente na divisão da coisa comum)”.
Com este entendimento não se conforma o apelante, imputando ao decidido erro de direito, insistindo que é possuidor do prédio e que o direito de retenção do art. 755º, n.º 1, al. f), do CC é incompatível com a decisão de 18/01/2023, em que a 1ª Instância ordenou a entrega do prédio à sua compradora no âmbito da ação de divisão de coisa comum, conferindo-lhe o direito a retê-lo enquanto não for decretada a execução específica do contrato-promessa com traditio celebrado ou enquanto não lhe for satisfeito o direito de crédito que lhe é conferido pelo art. 442º do CC, decorrente da promitente vendedora ter incumprido esse contrato-promessa, direitos esses que exerce no âmbito da ação declarativa que instaurou contra os aqui apelados e que se encontra a correr termos no Juízo Central Cível ....
Vejamos se assiste razão ao apelante para os erros de direito que assaca à decisão recorrida, que rejeitou liminarmente os embargos de terceiro que instaurou, com fundamento na sua manifesta improcedência.
Neste conspecto, cumpre referir que embora o Código Civil não contenha uma definição de contrato-promessa, decorre do disposto no  art. 410º, n.º 1 do CC, que este é “a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato”, o denominado contrato-prometido[8].
O contrato-promessa é, assim, o acordo de vontades em que uma das partes contratantes (no caso de contrato-promessa unilateral) ou ambas (no caso de contrato-promessa bilateral) se obrigam a celebrar um determinado contrato, verificadas que sejam as condições acordadas no contrato-promessa para a respetiva celebração, isto é, de emitir a declaração negocial correspondente ao contrato prometido (celebrar um contrato de compra e venda, locação, sociedade, trabalho, etc.).
O contrato promessa cria, assim, para um dos contraentes (na promessa unilateral) ou para ambos (no bilateral) um direito de crédito traduzido numa obrigação de facto que corresponde à obrigação de celebrar o contrato prometido verificadas que sejam os pressupostos acordados para a sua celebração.
Por força do princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406º, do CC),  as obrigações de crédito emergentes da celebração do contrato-promessa são em princípio apenas oponíveis entre os contratantes, não vinculando terceiros[9].
Acontece que o art. 413º do CC, permite que os contratantes atribuam eficácia real ao contrato-promessa que celebrem, situação em que o promitente adquirente é investido não apenas num direito de crédito sobre o promitente-vendedor à celebração do contrato prometido, mas também  num direito real de aquisição, o qual é oponível aos terceiros[10] e, portanto, tem eficácia vinculativa erga omnes, determinando que o direito real de aquisição que assiste ao promitente adquirente sobre o prédio objeto do contrato-promessa com eficácia real, depois do registo desse contrato-promessa, prevaleça sobre todos os direitos pessoais ou reais que sejam adquiridos por terceiros sobre o bem objeto do contrato-promessa depois da inscrição deste no registo, determinando a invalidade ou  a ineficácia desses atos jurídicos de aquisição ou de oneração de tais bens por parte dos terceiros.
Acontece que a atribuição de eficácia real ao contrato-promessa apenas é admitida quando este tenha por objeto a transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, e desde que adicionalmente se verifiquem preenchidos os seguintes requisitos legais cumulativos: a) constar a promessa com eficácia real de escritura pública, salvo se para o contrato prometido a lei não exigir escritura, porque nesse caso basta que o contrato-promessa com eficácia real seja celebrado por documento particular; b) que no contrato-promessa, os contratantes lhe atribuam expressamente eficácia real; e c) que o contrato-promessa, com eficácia real, seja inscrito no registo (art. 413º do CC).
Note-se que, uma vez incumprido o contrato-promessa por parte do promitente vendedor, nos termos dos arts. 442º, n.ºs 2, 3  e 4 e 830º do CC, o promitente comprador tem direito a obter a execução específica daquele, isto é, a obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que não exista convenção em contrário e quando a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida; no caso de não optar pela execução específica do contrato-promessa ou nos casos em que a mesma seja impossível, no caso de existência de sinal, o promitente comprador tem direito a reclamar do promitente vendedor a restituição do sinal em dobro  ou, em alternativa, nos casos em que exista tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, a exigir do promitente vendedor o valor da coisa, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, acrescido do sinal e da parte do preço que tenha pago.
Sendo o contrato-promessa celebrado com eficácia real, na medida em que este, uma vez inscrito no registo, goza de eficácia relativamente a terceiros, no caso de incumprimento por parte do promitente vendedor, o promitente adquirente, nos termos do art. 830º do CC, poderá  obter a execução específica daquele, através da emissão de sentença substitutiva da declaração do promitente faltoso, sempre que não exista convenção em contrário e a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida e ainda que o promitente vendedor inadimplente tenha transmitido o bem objeto do contrato promessa a terceiro, contanto que esse ato de transmissão seja posterior à inscrição do contrato-promessa, com eficácia real, no registo.
No entanto, caso o contrato-promessa tenha sido celebrado sem eficácia real, uma vez que esse contrato apenas produz efeitos inter partes e apenas confere ao promitente adquirente não faltoso um direito de crédito sobre o promitente vendedor a celebrar o contrato prometido, o qual não tem eficácia erga omnes, não sendo oponível a quem não seja parte no contrato-promessa incumprido, uma vez alienada a coisa a terceiro pelo promitente-vendedor e, assim, incumprido em definitivo o contrato-promessa, não pode o promitente-comprador não inadimplente recorrer à execução específica do contrato-promessa, porquanto, o tribunal não pode substituir-se ao promitente vendedor faltoso na emissão de uma declaração de vontade que perfecione a venda, dado que essa declaração implicaria a transmissão de um bem que já não é propriedade do promitente vendedor, ainda que o promitente comprador instaure ação contra o promitente-vendedor requerendo a execução específica do contrato-promessa incumprido e proceda ao registo dessa ação antes do bem objeto desse contrato-promessa ser transmitido ao terceiro adquirente.
Com efeito, no ordenamento jurídico nacional o registo é um instrumento de tutela, de defesa, de conservação e de segurança jurídica, destinando-se a dar publicidade aos direitos que a lei sujeita a registo, não assumindo, em regra, eficácia constitutiva de direitos.
Daí que, destinando-se o registo apenas a dar publicidade aos factos a ele sujeitos com vista à salvaguarda da segurança jurídica, não pode o promitente comprador, mediante o registo da ação em que pede a execução específica do contrato-promessa incumprido pelo promitente vendedor, pretender que o tribunal decrete a execução específica desse contrato-promessa quando o bem dele objeto seja vendido a um terceiro, pelo promitente vendedor, após o registo da ação, uma vez que tal corresponderia a atribuir-se eficácia real a um contrato promessa que dele é destituída[11].
Acresce dizer que o contrato promessa pode ser celebrado com transmissão da coisa dele objeto para o promitente comprador – traditio – ou sem essa transmissão.
Quando o contrato-promessa seja celebrado com traditio, o promitente comprador adquire um direito obrigacional (de crédito) e pessoal de gozo sobre a coisa objeto desse contrato, o qual radica na entrega ou na tradição desta por parte do promitente vendedor no âmbito do contrato-promessa, e que se assemelha ao direito de crédito de que beneficia o locatário ou o comodatário e, bem assim, nos termos do art. 755º, n.º 1, al. f) do CC, beneficia de um direito de retenção sobre a coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento do contrato promessa imputável à outra parte, nos termos do disposto no seu art. 442º.
O direito de retenção integra o elenco das garantias especiais das obrigações, dedicando-lhe o Código Civil os arts. 754º a 761º.
Segundo Vaz Serra “a razão de ser prática de retenção está na consideração de que é equitativo reconhecer ao detentor de uma coisa o direito de a reter enquanto a outra parte não cumprir a obrigação  em que se constituiu para com o detentor por causa da mesma coisa”[12].
O direito de retenção constitui uma forma de autotutela de direitos, que exerce uma função de garantia, ao conferir ao detentor da coisa o direito de não a entregar a quem lha possa exigir, enquanto este não cumprir com a obrigação a que se encontra adstrito para com aquele; e exerce uma função coerciva ou compulsória, ao compelir o inadimplente ao cumprimento, sabendo que a coisa não lhe será entregue pelo detentor enquanto não cumprir com as obrigações que tem para com ele e que incumpriu e, bem assim, que tratando-se de direito de retenção que incide sobre coisa imóvel, o detentor, nos termos do art. 759º do CC, poderá executá-la, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, incluindo, com preferência sobre os credores hipotecários (art. 759º, n.ºs 1 e 2 do CC).
Como claramente se depreende do que se acaba de dizer, o direito de retenção destina-se não só a proporcionar o gozo ou fruição da coisa ao titular desse direito, mas a permitir-lhe a execução da coisa retida e a fazer pagar-se sobre o valor dela com preferência sobre os demais credores.
O direito de retenção encontra-se previsto, com caráter genérico, no art. 754º do CC, onde se prescreve que “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados” e em que, por conseguinte, se confere um direito de retenção de caráter genérico ao detentor da coisa quando este seja devedor da obrigação de entrega da coisa e simultaneamente credor da pessoa com direito a recebê-la, sempre que esse seu direito de crédito resulte de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados.
A afirmação desse direito de retenção de caráter genérico depende, assim, da verificação dos seguintes pressupostos legais cumulativos: a) que o detentor da coisa a detenha de forma lícita; b) que essa coisa deva por ele ser entregue a outrem; c) que o detentor da coisa seja simultaneamente credor da pessoa a quem a tenha de entregar; e d) que exista uma conexão direta e material entre o crédito do detentor e a coisa detida, isto é, que o crédito do detentor da coisa sobre o credor da obrigação de entrega resulte de despesas realizadas com a coisa ou de danos pela mesma produzida[13].
Para além do direito de retenção de natureza genérica previsto art. 754º, o legislador consagrou no art. 755º do CC uma série de casos especiais de direito de retenção, em que apesar de não existir ou se encontrar diluída a referida conexão objetiva entre a coisa e o crédito, ainda assim se justifica a concessão dessa garantia.
Com interesse para o caso dos autos, nos termos da al. f), do n.º 1, do art. 755º do CC, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º.
O referido direito de retenção especial foi introduzido na ordem jurídica nacional pelo D.L. n.º 236/80, de 18/07, com o objetivo, expresso no respetivo preâmbulo, de reforçar a posição jurídica do promitente-comprador, especialmente no campo das transações de imóveis urbanos para habitação.
Mediante a consagração legal do direito de retenção previsto nessa al. f), confere-se, assim, ao promitente comprador que obteve a tradição da coisa, em caso de incumprimento do contrato-promessa imputável à outra parte, o direito de a reter, enquanto o crédito a que alude o art. 442º do CC não lhe for satisfeito, isto é, havendo sinal, enquanto o sinal em dobro não lhe for satisfeito ou, no caso de optar pela indemnização prevista na parte final do n.º 2, do art. 442º, enquanto o valor da coisa entregue, objetivamente determinado ao tempo do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago, não lhe forem restituídos.
Nos termos do art. 758º do CC, recaindo o direito de retenção sobre coisa móvel, o respetivo titular goza dos direitos e encontra-se sujeito às obrigações do credor pignoratício, salvo pelo que respeita à substituição ou reforço das garantias, e recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, nos termos do art. 759º, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, prevalecendo o direito de retenção sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente, sendo que, até à entrega da coisa, são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor, com as necessárias adaptações.
Decorre do regime legal que se acaba de enunciar que o direito de retenção constitui um verdadeiro real, não de gozo, mas sim de garantia, como resulta da circunstância de se encontrar consagrado no Código Civil entre as garantias especiais das obrigações, paredes meias com o penhor, a hipoteca e os privilégios creditórios, mas principalmente do regime traçado nas mencionadas disposições legais, as quais equiparam o titular do direito de retenção ao credor pignoratício (arts. 758º e 759º, n.º 3, do CC) e ao colocá-lo expressamente à frente do credor hipotecário, ainda que a hipoteca tenha sido anteriormente registada[14].
 Como enfatiza Antunes Varela, o direito de retenção é hoje um verdadeiro direito real de garantia – que não de gozo – em virtude do qual o promitente-comprador que seja credor da indemnização prevista no art. 442º, goza, contra quem quer que seja, da faculdade de não abrir mão da coisa, enquanto se não extinguir o seu crédito[15], representando o direito de retenção uma garantia direta e especialmente concedida pelo legislador, que decorre de uma certa conexão por este eleita e que o leva a conceder este especial direito real, que à semelhança dos privilégios creditórios, não se encontra sujeito a registo, produzindo efeitos jurídicos em relação às partes e a terceiros independentemente dele.
É que resultando o direito de retenção diretamente da lei e não de um negócio jurídico ou de outro ato de conteúdo singular, v.g. ato administrativo ou sentença, entende-se que a sua publicidade encontra-se assegurada pelo próprio texto legal que o admite e pelas situações materiais ou ostensivas a que se aplica, facilmente reconhecíveis para qualquer terceiro[16].
 Como é próprio dos direitos reais, o direito de retenção é dotado do poder de sequela, produzindo efeitos erga omnes, podendo o titular daquele reter a coisa, inclusivamente, contra terceiros adquirentes desta, enquanto o (seu) crédito não for satisfeito e até, tratando-se de imóvel, nos termos do n.º 1, do art. 759º do CC, executar este no património do terceiro adquirente, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor pignoratício com vista à satisfação do seu crédito.
Assentes nas premissas que se vêm enunciando, o contrato-promessa com traditio celebrado entre o apelante e a apelada BB, apesar de ter por objeto um prédio urbano, não foi celebrado mediante escritura pública, conforme seria necessário para que lhe fosse atribuída eficácia real pelos contratantes, nem estes nele declararam (nem o apelante o alega) pretenderem atribuir-lhe eficácia real, ou ter procedido ao registo desse contrato-promessa caso ao mesmo tivesse sido atribuída eficácia real, o que não é manifestamente o caso.
Assim, contrariamente ao pretendido pelo apelante, o contrato-promessa com traditio que celebrou, por documento particular, com a apelada BB tem eficácia meramente obrigacional, pelo que ao apelante apenas assiste o direito obrigacional à celebração do contrato definitivo.
Esse direito obrigacional apenas tem eficácia entre as partes, sendo que, o seu incumprimento por parte da promitente vendedora apenas confere ao apelante o direito a obter a execução específica desse contrato, caso esta seja ainda possível ou, não pretendendo recorrer à execução especifica do contrato, ou não sendo esta já possível, a obter a condenação daquela apelada a pagar-lhe o sinal em dobro ou a pagar-lhe o valor do prédio, objetivamente determinado ao tempo do incumprimento do contrato-promessa, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago (art. 442º, n.ºs 2 e 3 do CC).
Embora a entrega pela promitente vendedora do prédio objeto do contrato-promessa ao promitente comprador (apelante) lhe confiram um direito obrigacional de uso e fruição desse prédio, na medida em que o contrato-promessa é a convenção mediante a qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato, criando, portanto, uma mera obrigação dos contratantes a celebrar no futuro o contrato definitivo, cremos ser entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico ou, pelo menos, largamente maioritário, que nos contratos-promessa que tenham por objeto a transmissão ou a constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis, acompanhados de entrega do bem dele objeto - traditio -, este não confere a qualidade de possuidor ao promitente comprador sobre o bem entregue.
Na verdade, adotando o art. 1251º do CC uma conceção subjetivista de posse, ao dispor que “posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”, para que exista uma situação de posse é necessário que se preencham dois elementos cumulativos: um elemento material – corpus -, que se identifica com os atos materiais (detenção, fruição, ou ambos conjuntamente) praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a mesma por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real; e um elemento psicológico – animus – que se traduz na intenção de se comportar sobre a coisa, praticando os mencionados atos em que se consubstancia o corpus possessório, como titular do direito real correspondente a esses atos praticados[17].
Ora, produzindo o contrato-promessa efeitos meramente obrigacionais, criando tão somente a obrigação para os contratantes de celebrar, no futuro, o contrato definitivo que, no caso de celebração de contrato-promessa de transmissão ou de constituição de direitos reais será quem operará esses efeitos translativos ou constitutivos do direito real sobre a coisa objeto do contrato-promessa, é apodítico que o contrato-promessa, com entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo do direito real, só por si, não é suscetível de transmitir a posse ao promitente adquirente, por lhe faltar o animus possessório, ou intenção de exercer o poder de facto  em termos de direito real de propriedade ou outro, sendo aquele mero detentor ou possuidor, em nome alheio, da coisa que lhe foi entregue pelo promitente vendedor no âmbito do contrato-promessa celebrado.
Na verdade, o promitente-comprador não pode ignorar não ter celebrado com o promitente-vendedor qualquer negócio translativo do direito de propriedade ou de outro direito real sobre o bem que este lhe entregou por via da celebração do contrato-promessa e que, por isso, o direito de uso e de fruição que o promitente vendedor lhe concedeu é um direito meramente obrigacional (de crédito), precário, apenas oponível, em princípio, entre os próprios contratantes e dependente da celebração futura do contrato prometido.
Apenas não será assim, em casos excecionais, em que se deve considerar que o promitente comprador é já verdadeiro possuidor da coisa objeto do contrato-promessa celebrado e que lhe foi entregue pelo promitente comprador por força da celebração do contrato-promessa, como é o caso em que o promitente comprador pagou integralmente, ou quase integralmente, o preço acordado ao promitente-vendedor e em que este lhe entregou  a coisa para que o promitente comprador passasse a atuar sobre a mesma como se esta já fosse sua. Muito embora o promitente-comprador saiba não ser proprietário do bem que lhe foi entregue pelo promitente-vendedor, objeto do contrato-promessa, e, como decorrência da celebração deste, as circunstâncias em que a coisa lhe foi entregue, em que aquele pagou integralmente, ou quase integralmente o preço ao promitente vendedor, que, nessa sequência, lhe entregou o bem como se este já fosse seu, permite-lhe agir sobre esse bem como verdadeiro possuidor, isto é, com corpus e animus possessórios[18].
Não sendo esta a situação alegada pelo apelante, o qual inclusivamente aduz que o preço de aquisição do prédio objeto do contrato-promessa celebrado, acordado com a promitente-vendedora (apelada BB) ascende à quantia de 195.000,00 euros, e que apenas lhe entregou a quantia global de 90.000,00 euros a título de sinal, naturalmente que os poderes de facto – corpus possessório – que o mesmo exerce sobre o prédio que esta lhe entregou são destituídos de animus possidendi e, por conseguinte, trata-se de um mero detentor precário e em nome alheio (da promitente vendedora) do prédio, cuja posse jurídica está dependente da celebração do contrato definitivo, filiando-se essa detenção do prédio pelo apelante num direito obrigacional pessoal de uso e fruição que a promitente-vendedora lhe conferiu sobre esse prédio e que assenta no contrato-promessa que celebraram.
Esse direito tem natureza meramente obrigacional e eficácia inter partes, não conferindo, portanto, ao apelante a qualidade de possuidor, nem obstando à apreensão do prédio e à sua venda na ação de divisão de coisa comum[19].
Destarte, ao indeferir liminarmente os embargos de terceiro por manifesta improcedência, com fundamento de que a celebração do contrato-promessa com traditio não confere ao apelante a posse jurídica sobre o prédio, a 1ª Instância não incorreu nos erros de direito que este lhe imputa, improcedendo este fundamento de recurso.
Avançando…
Pretende o apelante que o direito de retenção que lhe é reconhecido pelo art. 755º, n.º 1, al. f), do CC, por via da celebração do contrato-promessa com a apelada BB, com traditio do prédio objeto desse contrato e o incumprimento deste por parte da última, lhe confere a qualidade de reter o mesmo enquanto não lhe for reconhecido o direito à execução específica daquele contrato, que pede, a título principal, na ação que instaurou e que se encontra a correr termos no Juízo Central Cível ..., ou, enquanto não lhe for paga a indemnização que lhe é reconhecida pelo art. 442º do mesmo Código, que aí também peticiona, a título subsidiário, pretendendo que esse direito de retenção lhe confere a qualidade de possuidor ou de titular de um direito incompatível com o âmbito da diligência de entrega desse prédio à compradora (a apelada M...), no âmbito dos autos de ação de divisão de coisa comum, determinada por despacho proferido nessa ação em 18/01/2023, posse ou direito esse que lhe conferem o direito a embargar de terceiro contra essa diligência na defesa da sua pretensa posse ou direito. Antecipe-se, desde já, sem evidente fundamento jurídico.
Conforme antedito, o direito de retenção é um direito real de garantia que nos termos da al. f), do n.º 1, do art. 755º do CC, garante ao apelante o cumprimento da indemnização que lhe é reconhecida pelo art. 442º do CC, sobre a promitente-vendedora, conferindo-lhe o direito a reter o prédio que esta lhe entregou com a celebração do contrato promessa enquanto essa indemnização não lhe for paga e, inclusivamente, confere ao apelante o direito a executar esse prédio, na esfera patrimonial da própria promitente-vendedora, enquanto este aí permanecer, ou na esfera jurídica de terceiros adquirentes para quem esta o transmita, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores daquela, incluindo credores hipotecários (art. 759º, nºs 1 e 2 do CPC).
Ou seja, contrariamente ao que parece ser entendimento do apelante, o direito de retenção em análise não garante a execução específica do contrato-promessa incumprido pela promitente vendedora, mas apenas o direito daquele a obter desta o sinal em dobro que lhe entregou ou o direito a dela obter o valor do prédio entregue, determinado objetivamente, à data do não cumprimento do contrato promessa pela promitente vendedora, deduzido do preço convencionado, acrescido do sinal e da parte do preço que lhe tiver pago (n.º 2, do art. 442º do CC).
Sendo o direito de retenção um direito real de garantia, este também não tem a virtualidade de conferir a posse jurídica ao apelante sobre o prédio objeto do contrato-promessa celerado, que a apelante lhe entregou por via da celebração desse contrato-promessa e com base nessa pretensa posse (que é inexistente) embargar de terceiro.
Acresce dizer que, sendo o direito de retenção um direito real de garantia – que não um direito real de gozo –, a existência do mesmo não obsta à penhora e posterior venda judicial do prédio, designadamente, em execução instaurada contra a promitente-vendedora ou, como foi o caso dos autos, no âmbito da ação especial de divisão de coisa comum em que o mencionado prédio acabou por ser vendido judicialmente à apelada M... e à entrega deste a essa compradora.
Com efeito, prevendo o art. 824º do CC, que a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (n.º1) e que os bens são transmitidos ao adquirente livres dos direitos de garantia que os oneram (n.º 2), os quais se transferem para o produto da venda dos respetivos bens (n.º 3), o direito de retenção que assiste ao apelante por via do contrato-promessa com traditio e do incumprimento desse contrato-promessa pela promitente-vendedora apenas lhe garante as indemnizações reconhecidas pelo art. 442º, n.º 2 do CC,  nunca impedindo a apreensão e a venda judicial do prédio, na medida em que vendido este, caduca o direito de retenção, transferindo-se a garantia por este conferida para o produto da venda do mesmo.
Logo, vendido judicialmente o prédio objeto do contrato-promessa, o direito de retenção que assiste ao apelante decorrente de ter celebrado o contrato-promessa com a promitente vendedora em que esta lhe entregou esse prédio e do incumprimento desse contrato por parte desta, que garante ao apelante a satisfação dos créditos previstos no art. 442º, n.º 2 do CC, com preferência sobre os demais credores da promitente vendedor, incluindo os hipotecários, transfere-se para o produto da venda judicial desse prédio, continuando o apelante a dispor dessa preferência no pagamento, contanto que reclame esse crédito no âmbito da ação em que foi vendido, nos termos do art. 786º do CPC, a fim de aí ser verificado, graduado e pago[20].   
Destarte, resulta do que se vem dizendo que o direito de retenção previsto na al. f), do n.º 1, do art. 755º do CC que vem alegado pelo apelante decorrente de ter celebrado o contrato promessa com a apelada BB e desta lhe ter entregue  o prédio objeto desse contrato promessa e de ter pretensamente incumprido esse contrato-promessa, não confere àquele a qualidade de possuidor desse prédio, nem consubstancia qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência ordenado no âmbito da ação de divisão de coisa comum, em que, uma vez apreendido e vendido o prédio à apelada M..., compradora deste, por despacho judicial de 18/01/2023, proferido nessa ação, se determinou que o mesmo fosse entregue a essa compradora, não assistindo, consequentemente, ao apelante fundamento  legal para embargar de terceiro.
Assim, ao rejeitar os presentes embargos, por manifesta improcedência, salvo o devido respeito e melhor opinião, a 1ª Instância não incorreu em qualquer erro de direito, impondo-se concluir pela improcedência da apelação e confirmar a decisão recorrida.
De qualquer forma, nos termos do art. 344, n.º 2, in fine, do CPC, os presentes embargos de terceiro sempre teriam de ser liminarmente indeferidos, porquanto foram deduzidos quando, em 26 de maio de 2022, já tinha sido vendido o prédio objeto do contrato-promessa à apelada M..., Lda. no âmbito da ação de divisão de coisa comum.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- O contrato-promessa com traditio do prédio objeto desse contrato, sem eficácia real, apenas confere aos promitentes um direito de crédito à celebração do contrato definitivo, direito esse que, atenta a eficácia relativa dos contratos, apenas produz efeitos vinculativas entre as partes contratantes, não sendo oponível aos terceiros. Daí que esse contrato-promessa com traditio, não opere efeitos translativos de direitos reais não conferindo, em princípio, ao promitente comprador a qualidade de possuidor sobre a coisa que lhe foi entregue, por lhe faltar o animus possessório, sendo este mero detentor dessa coisa.
2- Apenas não será assim e deve considerar-se que o promitente comprador, a quem o promitente vendedor entregou a coisa objeto do contrato-promessa, no âmbito da celebração desse contrato, detém a qualidade de possuidor quando pagou integralmente, ou quase integralmente, o preço acordado ao promitente vendedor e este lhe entregou a coisa para que este sobre ela atuasse como se ela já fosse sua.
3- O direito de retenção conferido ao promitente comprador, no caso de incumprimento de contrato-promessa com traditio confere-lhe um direito de crédito de uso do prédio e um direito real de garantia – não de gozo -, conferindo-lhe o direito a reter o prédio enquanto não lhe for pago os créditos previstos no art. 442º do CPC pelo promitente vendedor inadimplente (restituição do sinal em dobro, ou do valor do prédio entregue, determinado objetivamente, à data do incumprimento do contrato-promessa, com dedução do preço convencionado, acrescido do sinal e da parte do preço que tenha pago) e que lhe permite executar esse prédio, na esfera jurídica do promitente vendedor, ou de terceiro para quem aquele o tenha transmitido, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de se fazer pagar pelo seu crédito pelo produto da venda, com preferência sobre os demais credores do devedor, incluindo, os credores hipotecários.
4- Contudo, esse direito de retenção não confere a qualidade de possuidor do prédio ao promitente-comprador, nem impede que esse prédio seja apreendido, nomeadamente, penhorado e vendido judicialmente, na medida em que os direitos reais de garantia caducam com a venda judicial do prédio, transferindo-se a garantia conferida pelo direito de retenção para o produto da venda.
5- Daí que o direito de retenção não constitua fundamento de embargos de terceiro contra qualquer ato judicialmente determinado de apreensão, venda judicial e de entrega de prédio onerado por esse direito real de garantia.
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Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência:
- confirmam a decisão recorrida, que indeferiu liminarmente os presentes embargos de terceiro.
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Custas da apelação pelo apelante (arts. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC)
*
Notifique.
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Guimarães, 27 de abril de 2023

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:
José Alberto Moreira Dias – Relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes - 1ª Adjunta
Rosália Cunha - 2ª Adjunta--.


[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 417, nota 1, em que expendem: “Os embargos de terceiro, que constituem uma subespécie da oposição espontânea, servem para um sujeito, que não é parte na causa, reagir contra a penhora ou outro ato de apreensão ou entrega de bens, alegando a ofensa da sua posse ou a titularidade de outro direito incompatível com a diligência realizada ou com o seu âmbito. Os embargos aqui previstos são de cariz repressivo e, posto que assumam formalmente o figurino de um incidente, consubstanciam, na realidade, uma ação declarativa autónoma apensa à ação ou execução em cujo âmbito o ato é praticado (art. 341º, n.º 1)”.
No mesmo sentido, Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, Ediforum, pág. 389, nota 4: “Na sua atual configuração, os embargos de terceiro, apesar de regulados em sede de incidente da instância, continuam a consubstanciar uma verdadeira ação declarativa, autónoma e especial enxerta numa execução, visando acautelar não só a posse, as qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada”.
[2] Teixeira de Sousa, “Legitimidade e interesse no recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes”, Coimbra, 2004, pág. 948: “O interesse em recorrer e, consequentemente, a legitimidade ad recursum, ao contrário do que é característico da legitimidade processual, não assenta numa relação da parte com o objeto da causa, mas antes nas consequências que uma decisão pode produzir na esfera jurídica de um sujeito: este sujeito pode recorrer se a decisão lhe for prejudicial e, portanto, se ele pretender afastar esse prejuízo através da revogação da decisão pelo tribunal de recurso”; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, ob. cit., pág. 783, nota 2; Ac. TC, de 26/06/1996, DR. II, de 05/03/1998, pág. 2845; Ac. STJ., de 15/12/2011, Proc. 767/06.2TVYVNG.P1.S1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venham a mencionar sem referência em contrário.
[3] Ac. R.L. de 07/02/1991, proc. 0035432; Rui Pinto, “A Ação Executiva”, 2018, AAFDL, pág. 704.
[4] Rui Pinto, ob. cit., pág. 701.
[5] Lopes do Rego, “Comentário ao Código de Processo Civil”, 199, pág. 262; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 417, em que expendem: “Para fundar a procedência dos embargos fundados na posse, esta será em nome próprio, constituindo presunção da titularidade de um direito incompatível com a diligência (art. 1268º do CC). Tratando-se de posse em nome de outrem (diverso do executado), deve decorrer de um direito pessoal de gozo ou de aquisição sobre o bem penhorado. Essencial é que o embargante se encontre numa situação que seja materialmente oponível à diligência efetuada. A incompatibilidade do direito deverá ser aferida tendo em conta a função e a finalidade concreta que se pretende obter com a diligência ou ato judicial, pelo que, quando esteja em causa a penhora de um bem, um direito será incompatível com essa diligência se esse direito prevalecer ou não dever caducar com a venda executiva, nos termos do art. 824º, n.º 2, do CC”.
[6] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 424.
[7] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 421.
[8] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, pág. 317.

[9] Antunes Varela, ob. cit., pág. 335.
[10] Ac. RC. de 15/01/2013, proc. 511/10.0TBEI-E.C1.
[11] Acs. STJ., de 12/03/1991, AJ, 17º, pág. 17; de 08/05/1991, ROA, 52º, abril/92, págs. 182.
[12] Vaz Serra, BMJ, n.º 65, págs. 103 e ss.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 773, nota 3; Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 12º ed., Almedina, págs. 974 e 975.
[14] Acs. STJ. de 14/12/2016, Proc. 662/09....; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 781, em que expendem: “Distingue a lei duas modalidades do direito de retenção: aquele que recai sobre coisas móveis e o que recai sobre coisas imóveis. À primeira refere-se o art. 758º; à segunda, o artigo seguinte. A qualquer delas atribuiu-se a configuração de um verdadeiro direito real de garantia, seja qual for a origem do direito de retenção”; Almeida Costa, ob. cit., págs. 978 e 979: “O direito de retenção desempenha uma função de garantia. (…).Um outro meio de autotutela do crédito reside na compensação (…). Todavia, as diferenças relativas ao direito de retenção apuram-se com grande nitidez: este consiste num direito real, (…). É nos arts. 758º e 759º que bem se caracteriza o direito de retenção como uma verdadeira garantia real das obrigações”.
[15] Antunes Varela, R.L.J. ano 124º, pág. 351.
[16] Almeida Costa, ob. cit., pág. 981; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 774, nota 6.
[17] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, 1970(1971, págs. 195 e ss.
[18] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. II, págs. 6 e 7; Acs. STJ., de 11/03/1999, CJ/STJ., 1999, t. 1º, pág. 137; 17/04/2007, Proc. 07...; 13/09/2007, Proc. 07...; 05/03/2009, CJ/STJ, 2009, t. 1ª, pág. 136; 25/10/2012, Proc. 3637/07....; RC. de 15/01/2013, Proc. 511/10.0TBEI-E.C1, RP. de 27/11/2017, Proc. 909/15.....
[19] Neste sentido, ainda Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 418, em que ponderam: “Com alguma frequência, são deduzidos embargos contra a penhora pelo promitente-comprador do bem pertencente ao executado, invocando a titularidade de um direito pessoal de gozo decorrente da coisa. Trata-se de uma situação que não e oponível ao exequente, sendo também inoponível a invocação da titularidade de um direito de crédito sustentando no incumprimento de contrato-promessa dotado de garantia real conferida pelo direito de retenção, caso a que se ajusta a oportuna reclamação na ação executiva e não a defesa por embargos de terceiro. Trata-se, aliás, de jurisprudência corrente”
[20] Acs. STJ., de 13/09/2007, Proc. 07...; de 08/10/2013, Proc. 10262/06.....