Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
470/17.8GBVLN.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
PERÍCIA TAXA DE ÁLCOOL
CONSENTIMENTO DO VISADO
VALORAÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. A colheita de sangue com vista à realização de perícia à taxa de álcool não constitui em si qualquer declaração, nem visa a condenação do respetivo sujeito, destinando-se exclusivamente a averiguar a verdade material sobre o seu estado de influenciado de álcool, que é desconhecido e, à partida, tanto pode servir a acusação como beneficiar a defesa.

II. A lei não impõe nem exige o consentimento expresso do visado para essa colheita de sangue, quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. Nesta matéria, encontram-se apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em a ele se sujeitar.

II. As circunstâncias de onde decorre a validade de um meio de obtenção de prova, se bem que tenham que emanar dos autos, não têm que ser descritas na acusação/pronúncia nem de constar do elenco dos factos que, a final, são dados como provados e não provados na sentença.
O n.º 2 do artigo 368.º do Código de Processo Penal, onde são expressa e taxativamente enunciados os factos a incluir na fundamentação factual da sentença, entre eles manifestamente não inclui aqueles de onde decorram os pressupostos da validade de cada meio de obtenção de prova que for considerado.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)
Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Maria José Matos.

I. RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 470/17.8GBVLN, do Juízo de Competência Genérica de Valença, Juiz 1, da comarca de Viana do Castelo, foi submetida a julgamento a arguida A. P., com os demais sinais dos autos.

A sentença, proferida a 5 de junho de 2018 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:

«- Condenar a arguida A. P. pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 12 (doze) meses;
- Condenar ainda a arguida na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Custas pela arguida, que se fixam em duas UC nos termos do artigo 8.º, n.º 9, do RCC, a que acrescem os custos processuais.
*
Após trânsito, remeta boletins ao Registo Criminal e comunique ao IMTT e à ANSR – artigo 500.º, n.º 1, do CPP.
Notifique, sendo ainda a arguida com a advertência expressa de que deverá proceder à entrega da sua licença de condução na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial da área da sua residência no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado desta sentença, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência»
*
Inconformada, a arguida interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

I- Dos factos que foram dados indevidamente como provados

1. A Arguida foi condenada pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 12 (doze) meses.
2. Foi a Arguida ainda condenada na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses, ao abrigo do disposto no art.º 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
3. O Tribunal a quo considerou provada, nomeadamente, a seguinte matéria de facto:

“No dia 4 de Junho de 2017, pelas 02h40m, a arguida conduzia automóvel com a matrícula (...), no parque de estacionamento das (...), sito no Lugar (...), em (...), neste concelho de Valença, quando sofreu um despiste.”
4. Salvo o devido respeito, que é muito, não podia o tribunal recorrido ter dado como provados tais factos (concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados, em obediência ao artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal).
5. A única Testemunha arrolada neste processo foi o Militar da GNR M. R., tendo a mesma sido indicada pelo Ministério Público na acusação, desta forma, a convicção do Tribunal a quo assentou, tal como é expressamente referido na própria sentença ora recorrida, “…no depoimento prestado pelo Guarda da GNR M. R. …”
6. Acontece que, salvo melhor opinião, o depoimento da referida Testemunha foi, por si só, insuficiente para que se pudesse concluir com toda a certeza que era a Arguida quem naquelas circunstâncias de tempo e lugar conduzia o veículo automóvel.

Observemos,

7. Diz a sentença em crise que: “Explicou o depoente que quando chegou ao local identificado no ponto 1 dos factos provados a arguida assumiu perante si ser a condutora do veículo acidentado, (…)”
8. Do que acabou de se transcrever verifica-se que a Testemunha não viu a Arguida a conduzir a supra referida viatura, nem tão pouco presenciou o despiste da mesma, tendo baseado a sua convicção de que seria a arguida quem estaria ao volante da viatura, por ter sido ela quem, perante si, terá assumido ser a condutora do veículo acidentado.
9. Contudo, do depoimento prestado pela Testemunha em sede de audiência de discussão e julgamento não é esta a mesma conclusão que se pode retirar.
10. Conforme decorre das declarações da testemunha, militar da GNR M. R., com início às 14:29:13, do dia 29.05.2018, em particular no minuto 00:01:56, a Arguida ter-lhe-á relatado o acontecido e dito que era ela quem conduzia a viatura.
11. Sucede que posteriormente no decorrer das suas declarações, quando questionado pela Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público sobre se a Arguida teria assumido perante si ser a condutora do veículo, a testemunha refere apenas que: “em nenhum momento me disse o contrário”.
Cfr. (Declarações da Testemunha com inicio às 14:29:13, do dia 29.05.2018, minuto 00:04:03 e ss.)
12. Daqui resulta que em nenhum momento a Testemunha afirmou com total certeza que quem conduzia o veículo era a Arguida, tendo a sua convicção de que seria a Arguida quem conduzia a viatura, o que aliás, bem se compreende, pois não assistiu ao mesmo.
13. Pelo contrário, da análise das declarações da Testemunha resulta que a mesma garante que a Arguida nunca lhe disse que não era a condutora do veículo.
14. Ora, daqui não se poderá deduzir, sem mais, que por a mesma não ter referido em momento algum que não ser a conduta do veículo, isso tenha que significar obrigatória ou logicamente que o era.
15. Mais, a Testemunha refere claramente nas suas declarações que no local do acidente um indivíduo, dono de uma das viaturas que se encontrava no local, terá dito à Testemunha que era a Arguida quem conduzia a viatura supra identificada.
Cfr. (Declarações da Testemunha com inicio às 14:29:13, do dia 29.05.2018, minuto 00:01:56 e ss.)
16. Contudo, refira-se desde já que se desconhece qual a identidade do referido indivíduo e que o mesmo não se encontrava presente na audiência de discussão e julgamento, não podendo o depoimento da Testemunha quanto a este aspecto específico, uma vez que consubstancia um depoimento indirecto, servir como meio de prova, de acordo com os termos previstos no art.º 129.º, n.º 1 e 3 do CPP, o que se argui para os devidos efeitos legais.
17. Ainda durante as declarações da Testemunha, ao minuto 00:01:56, o mesmo refere que com a Arguida se encontrava um individuo do sexo masculino, ora visto que a mesma não presenciou o acidente, nada garante que não fosse esse cidadão do sexo masculino quem conduzia o veículo. Aliás, sem pretensiosismos de género, facto é que é habitual serem os homens a conduzir os veículos automóveis.
18. E mais, resulta também das declarações da Testemunha, que a Arguida nem sequer aparentava estar alcoolizada!!!!
19. No caso sub judice o Tribunal a quo procedeu na sentença ora recorrida à imputação de um facto capaz de consubstanciar a prática de um crime à Arguida, com base nas declarações de uma Testemunha que não viu a Arguida a conduzir a supra identificada viatura, nem presenciou o despiste, não obstante, a sua declaração foi fundamental para a sua condenação na prática do crime aqui em causa, uma vez que não existem quaisquer outras provas.
20. A tudo o que foi dito até aqui acresce que o arguido tem os direitos previstos no art.º 61.º CPP, bem como um regime específico previsto para a leitura das suas declarações consagrado no art.º 357.º CPP, ao dar como provado com tal facilidade o cometimento de um crime à Arguida, sem que a mesma sequer tivesse estado presente na audiência de discussão e julgamento, sem que esta tenha confessado a prática do mesmo, de acordo com os termos previstos no art.º 344.º CPP, e sem que tenham sido arroladas quaisquer outras testemunhas que tenham presenciado a prática do facto criminoso, estar-se-á perante a violação clamorosa dos direitos do arguido ínsitos no art.º 61.º do CPP.
21. Em resultado de tudo o referido, temos de concluir o seguinte (considerando que, no dito supra, já especificamos concretamente as passagens em se baseia a nossa discordância quanto à decisão proferida em relação à matéria de facto dada como provada e não provada, nos termos do consignado no artigo 412.º, n.º 4 do CPP, neste ponto, por uma questão de simplicidade no discurso e porque já o fizemos acima, não vamos aludir às referidas passagens):

Os factos (412.º, n.º3, alínea a) do CPP):

1. No dia 4 de Junho de 2017, pelas 02h40m, a arguida conduzia automóvel com a matrícula (...), no parque de estacionamento das (...), sito no Lugar (...), em (...), neste concelho de Valença, quando sofreu um despiste.

Deveriam ter sido dados como Não Provados, em virtude da seguinte prova (412.º, n.º3, alínea b) do CPP):

a) a Testemunha afirmou que não viu a Arguida a conduzir a viatura supra identificada, em assistiu ao acidente de viação;
b) a Testemunha afirmou que na companhia da Arguida se encontrava um cidadão do sexo masculino;
c) A Testemunha afirmou que a Arguida nunca lhe disse que era quem conduzia o veículo acidentado, apenas que a Arguida nunca lhe disse que não era a condutora do mesmo.
d) A Testemunha refere claramente que a Arguida não aparentava, sequer, estar alcoolizada.
22. Tais factos, conjugados com as regras da experiência, salvo melhor opinião, não são susceptíveis de demonstrar que era a Arguida quem, no dia 4 de Junho de 2017, conduzia o veículo automóvel com a matrícula (...), no parque de estacionamento das (...), sito no lugar (...), em (...), concelho de Valença, quando sofreu um despiste, conforme resulta do depoimento do Militar da GRN M. R..

Sem prescindir,

II – Da validade do meio de prova

23. Caso se admita, o que só por mera hipótese académica se concebe, como provados os factos em que assentou a sentença recorrida, sempre se diga que a condenação da Arguida fica inquinada pela violação do procedimento previsto nos art.os 153.º e 156.º C. da Estrada e art.os 1.º, n.º 3 e 4.º, n.º 1 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob o Efeito do Álcool ou de substâncias Psicotrópicas aprovado em anexo pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio.
24. Das supra citadas disposições legais resulta claro que os intervenientes em acidente de viação terão de ser submetidos, em primeiro lugar, a exame de pesquisa de álcool por ar expirado e só nas situações em que o seu estado de saúde não o permita é que se abre a possibilidade de proceder à realização de exame de sangue para determinar se o interveniente em acidente se encontra sob o efeito do álcool.
25. Ora, o despacho de pronúncia é absolutamente omisso quanto a este facto essencial. Com efeito, o despacho de pronúncia tinha obrigatoriamente que fazer referência que o estado de saúde da arguida não foi de molde a poder ser efectuado o exame por ar expirado. Recorde-se, ainda por cima, que a arguida tinha apenas um tornozelo inchado, o que é absolutamente irrelevante para a realização de um exame de ar expirado.
26. A sentença recorrida não explicita a razão pela qual a Arguida não foi primeiramente sujeita ao exame de pesquisa de álcool no sangue através de exame de ar expirado, tendo a mesma sido logo submetida a exame de sangue.
27. Das declarações da Testemunha em audiência de discussão e julgamento não resulta provado que a Arguida se encontrava impossibilitada de realizar o teste de despistagem de álcool no sangue por meio do exame de ar expirado, também não resultam claras as razões pelas quais a Arguida não podia ser submetida à realização do exame por ar expirado, uma vez que a mesma apenas se queixava de dores num tornozelo que se encontrava inchado.
Cfr. (Declarações da Testemunha, Militar da GNR M. R., com inicio às 14:29:13, do dia 29.05.2018, minuto 00:03:14 e ss.)
28. A Arguida não se encontrava inconsciente, não aparentava problemas respiratórios, nem outras queixas que evidenciassem qualquer obstáculo à realização do teste por ar expirado.
29. A lei estabelece um procedimento que deve ser observado, sob pena da ilegalidade da prova assim obtida.
30. A Testemunha não referiu sequer que foi tentado que a Arguida realizasse o exame através de ar expirado, nem resulta do despacho pronúncia, nem dos restantes autos, que o estado de saúde da arguida merecia cuidados especiais.
31. Este procedimento de fiscalização deve ser escrupulosamente cumprido, uma vez que com a realização do exame de sangue está em causa uma ofensa à integridade física e uma limitação ao direito à não autoincriminação do arguido, o que nos conduz a afirmar que estamos perante um método proibido de prova, que invalida toda a prova produzida.
Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2012, disponível em www.dgsi.pt.

Sem prescindir, sempre se dirá ainda o seguinte:

32. Tal como resulta dos autos e da própria sentença ora recorrida, a Arguida foi conduzida ao hospital por ter sofrido um despiste e se queixar de dores no tornozelo, tendo aí sido sujeita a um exame de recolha de sangue.
33. Face a estas circunstâncias não sabemos, se a arguida foi informada, encontrando-se em ambiente hospitalar e depois de ter sofrido um despiste, de que a recolha de sangue a que estava a ser submetida se destinava à despistagem de álcool no sangue.
34. Nos autos não consta que a Arguida tenha assinado qualquer consentimento na unidade de saúde, nem consta qualquer declaração da mesma unidade de saúde declarando a impossibilidade de o fazer. Nem tão-pouco, sequer, que tal lhe foi comunicado. O que, ao que se vê, também não foi atestado pela entidade de saúde competente.
35. A nossa lei processual penal, no seu art.º 129.º CPP, considera nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, sendo tão importante o respeito pela civilidade dos meios de obtenção de prova, que se consagrou constitucionalmente no art.º 32.º da CRP a nulidade das provas obtidas por meios que de uma forma ou de outra violam a dignidade da pessoa humana e os princípios de Direito Processual Penal.
36. A colheita de sangue para exame como procedimento de obtenção de prova, desacompanhado do consentimento da Arguida, é proibido e a prova assim obtida é nula, sendo que a sua valoração processual é inconstitucional.
37. Mas ainda que assim não se entenda sempre terá que concordar-se que a utilização do resultado do exame de recolha e análise de sangue como meio de prova para efeitos criminais, viola a integridade moral da Arguida – cfr. art.os 25.º, 32.º, n.º8 da CRP e 126.º, n.º 1 do CPP.
38. A utilização de prova extraída do corpo da Arguida sem consentimento expresso desta viola, claramente, este princípio e viola a integridade moral da mesma a qual é também protegida constitucionalmente pelo art.º 25.º, n.º 1 da CRP.
39. Para além disso, como já referimos, a Arguida deveria estar sempre informada do fim a que se destinava determinada colheita de sangue a que foi submetida, contudo, não se retira dos presentes autos que a Arguida tenha sido previamente informada do destino ou do fim da colheita de sangue, como deveria ter efectivamente sido.
40. Em suma, destinando-se a colheita do sangue a outro fim que não o benefício clínico do doente, como aqui foi o caso, deveria a Arguida ter sido informada desse fim, dando-lhe a possibilidade de poder recusar ou poder consentir nessa recolha – cfr. art.º 156.º, n.º 3 do C. da Estrada.
Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05.02.2018, disponível em www.dgsi.pt.
41. Nestes termos, não poderá ser dado como provada a TAS de 1,85g/l que a Arguida apresentava nas circunstâncias de tempo e lugar em causa nos presentes autos. A colheita de sangue feita à Arguida na unidade de saúde e que serviu para apurar o grau de alcoolémia, constitui prova ilegal, inválida e nula, não podendo produzir quaisquer efeitos em juízo.
42. Do exposto resulta que a interpretação feita pelo Tribunal a quo da norma do art.º 156.º, n.º 3 do C. da Estrada enferma de inconstitucionalidade, por violação da integridade moral da Arguida – art.º 25.º, n.º 1 da CRP e das garantias do processo criminal – art.º 32.º CRP, uma vez que a Arguida foi sujeita a exame para pesquisa de álcool no sangue, depois de ter sido conduzida a uma unidade hospitalar na sequência de um acidente de viação, por se queixar de dores num tornozelo, sem que, por um lado, dos autos tenha resultado provado que o estado de saúde da Arguida a impedia de realizar o exame por ar expirado e, por outro, que a Arguida estava devidamente informada da finalidade a que se destinava o exame, tendo consentido na realização do mesmo,

III – Da violação do princípio da vinculação temática

43. O processo penal tem natureza acusatória, sendo o seu objecto balizado pela acusação ou pelo despacho de pronúncia, se a houver, daqui decorre que o Tribunal, em sede de audiência de discussão e julgamento, está vinculado à apreciação dos factos relevantes para apreciação da causa, que estejam descritos na acusação ou no despacho de pronúncia.
(Cfr. art.º 358.º CPP.)
44. Ora, no caso em análise, no despacho de pronúncia apenas é dito que a arguida sofreu um acidente, tendo sido transportada a uma unidade hospitalar por se encontrar com dores num tornozelo e aí tido sido submetida a um exame laboratorial de análise de sangue.
45. Ora, com o devido respeito, há aqui um salto cronológico e factual que não poderia ter sido ultrapassado e que se prende com o procedimento previsto nos art.os 153.º e 156.º do C. da Estrada e nos art.os 1, n.º 3 e 4.º, n.º 1 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob o Efeito do Álcool ou de substâncias Psicotrópicas aprovado em anexo pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio.
46. No despacho de pronúncia não constam quaisquer factos que clara e inequivocamente demonstrassem de que o estado de saúde da arguida a impedia de ser submetida a exame de pesquisa de álcool através do exame de ar expirado, nem tão-pouco que a arguida tivesse sido devidamente informada da finalidade a que se destinava o exame de sangue realizado na unidade hospitalar e dado consentimento para a realização do mesmo.
47. Não constando esses factos nem da acusação, nem do despacho de pronúncia, resulta que os mesmos não foram trazidos para o processo o que impede que a decisão do Tribunal se possa fundamentar nos mesmos.
48. Não obstante, verifica-se que foi isso que sucedeu no caso concreto, uma vez que apesar de não constarem do despacho de pronúncia quaisquer factos que justifiquem a necessidade de a Arguida ser submetida a exame de sangue, sem que antes se tivesse tentado sequer realizar o exame por ar expirado, o Tribunal a quo considerou provado que o estado de saúde da mesma a impedia de realizar o exame de pesquisa de álcool por ar expirado.
50. Não constando esses factos da acusação, nem do despacho de pronúncia, não foram os mesmos sujeitos a contraditório, verificando-se a violação dos direitos processuais do arguido, previstos no art.º 61.º do CPP e das suas garantias de defesa previstas no art.º 32.º da CRP.
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito próprios.
O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer, igualmente no sentido do não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
1. Questões a decidir.

Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, as questões a decidir são as seguintes:

. impugnação de determinados pontos da matéria de facto, por errada apreciação e valoração da prova;
. saber se quando a determinação da taxa de álcool no sangue (TAS) é feita por exame toxicológico por colheita de sangue é necessário constar do despacho de pronúncia e da sentença que o estado do arguido não permitia a determinação da TAS através de pesquisa de álcool no ar expirado, sem o que estamos perante um método de prova proibida;
. saber se é nula a prova obtida através da análise sanguínea para determinação da taxa de álcool no sangue, por falta de consentimento.
*
2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida.

«a) Factos provados:

1. No dia 4 de Junho de 2017, pelas 02h40m, a arguida conduzia o veículo automóvel com a matrícula (...), no parque de estacionamento das (...), sito no Lugar (...), em (...), neste concelho de Valença, quando sofreu um despiste.
2. Após a realização do competente exame laboratorial pelo Instituto de Medicina Legal, constatou-se que a arguida, à data, conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,85 g/l.
3. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que antes de iniciar a condução ingerira bebidas alcoólicas, em quantidade não apurada, as quais lhe podiam determinar, como determinaram, uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l.
4. Bem sabia a arguida que tal conduta é proibida e punida pela lei penal.
5. Por factos praticados em 21.06.2008 e por sentença transitada em julgado em 22.01.2010, a arguida foi condenada na pena de 60 dias de multa pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, pena essa que já foi declarada extinta pelo cumprimento.
6. Por factos praticados em 19.02.2016 e por sentença transitada em julgado em 2.06.2016, a arguida foi condenada na pena de 70 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
7. Por factos praticados em 26.12.2017 e por sentença transitada em julgado em 26.01.2018, a arguida foi condenada na pena de 70 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
*
b) Factos não provados.

Com relevância para a boa decisão da causa não existem.
*
c) Motivação de facto.

A convicção do Tribunal assentou fundamentalmente no depoimento prestado por Guarda da GNR M. R., subscritor do auto de notícia de fls. 4. Explicou o depoente que quando chegou ao local identificado no ponto 1 dos factos provados a arguida assumiu perante si ser a condutora do veículo acidentado, circunstância que, de resto, deu origem à elaboração da participação de acidente de viação e do aditamento à mesma juntos, respectivamente, a fls. 7 e 8 e reverso, e 9 e reverso.

Parece-nos claro que neste caso nem sequer se coloca a hipótese de estarmos perante “conversas informais” cuja valoração seja eventualmente proibida tendo em conta o regime decorrente dos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2 do CPP. Como se sabe, os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.

No caso concreto, repetimo-lo, a “comunicação” que o Guarda da GNR em causa recebeu reduziu-se à verbalização voluntária e espontânea da assunção da prática de um determinado facto por parte da arguida antes de esta ter sequer essa qualidade. Assim sendo, o depoimento em análise constitui prova que é legalmente admissível, sendo valorado dentro da livre apreciação pelo Tribunal nos termos do artigo 127.º do CPP. Como se refere no Ac. do TRC de 6.06.2013 (processo n.º 220/11.2GBTND.C1, acessível em www.dgsi.pt), “…uma testemunha – órgão de polícia criminal – que em audiência de julgamento depõe relatando o que lhe foi transmitido pelo arguido (antes da sua constituição como tal, sublinhe-se), não profere um depoimento indirecto, antes sendo algo que aquele ouviu directamente da boca do arguido, de viva voz. E, um tal depoimento constitui prova que é legalmente admissível, sendo valorada dentro da livre apreciação pelo Tribunal, nos termos do artigo 127º do CPP. Trata-se de um meio legal de obtenção de prova”
.
Quanto à taxa de álcool detectada no sangue da arguida, relevou-se o teor do relatório do Serviço de Química e Toxicologia Forenses do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. junto a fls. 5.

A defesa da arguida, em sede de alegações, levantou a questão de não terem sido cumpridos os procedimentos previstos no artigo 156.º do Código da Estrada uma vez que a impetrada não foi sujeita a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º daquele diploma legal, e que só poderia proceder-se à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas caso não tivesse sido possível a realização do exame supra mencionado (cfr. artigo 153.º, n.º 2, do Código da Estrada).

Vejamos.

Decorre do disposto no artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, do Código da Estrada, que “Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:

a) Os condutores;
….
3. As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência”.

Relevam também os procedimentos previstos no Regulamento de Fiscalização da Condução sob o Efeito do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas aprovado em Anexo pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio. De feito, nos termos do disposto no artigo 1.º, n.º 3, do citado Regulamento “A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo”. E quando é que assim sucede? Quando “… após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste…”, diz-nos o artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento em análise.

Ora, o depoente M. R. explicou que, quando chegou ao local, a arguida estava sentada e queixava-se de dores num pé, aduzindo que poderia ter lesões internas (recorde-se que o veículo que conduzia se havia despistado pouco tempo antes). No auto de notícia consta mesmo que a arguida “.começou a queixar-se de imensas dores num dos tornozelos, onde era visível seu inchaço, em que A. P. dizia já ter sido operada e que possivelmente teria ciada lesão interna”, sendo que “Por questões de saúde foi accionado pela linha 112 um pedido de assistência médica, á qual compareceu uma viatura dos bombeiros Voluntário de Valença e por ordem do CODU, A. P. foi encaminhada para o Hospital em Viana do Castelo”.

Assim sendo, cremos que no contexto supra assinalado a recolha de sangue foi realizada segundo os procedimentos legalmente previstos – designadamente aqueles que vêm enunciados no artigo 4.º, n.º 1, do citado Regulamento de Fiscalização da Condução sob o Efeito do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas aprovado em Anexo pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio – uma vez que a arguida, tendo intervindo em acidente de viação do qual lhe resultaram lesões, demonstrou, aliás naturalmente, preocupação pelo seu estado de saúde, pelo que a postura adoptada pelo militar da GNR foi a que se impunha, como dissemos, naquele contexto muito particular.

Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta da arguida foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum, tendo em conta, designadamente, a elevada TAS detectada no sangue da arguida, que é de molde a concluir que esta última não podia deixar de prever que iria conduzir sob influência do álcool.

No mais relevou-se o teor do CRC de fls. 96 a 98.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

. Da decisão sobre a matéria de facto.

A arguida/recorrente A. P. começa por fazer uma impugnação ampla da matéria de facto, alargada à análise do que se pode, ou não, extrair da prova produzida em audiência, sustentando não se ter feito prova de ser ela quem conduzia o veículo automóvel de matrícula (...), nas apuradas circunstâncias de tempo e lugar em causa nos autos.

Como é sabido, o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova e busca de uma nova convicção, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido.

Limitando-se o Tribunal da Relação a fazer o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas que imponham, e não só que permitam, decisão diferente, sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no cumprimento do ónus de especificação que lhe é imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e a sua relação com a imediação e oralidade, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração efetuada na primeira instância da prova produzida através de declarações dos arguidos, assistentes e depoimentos das testemunhas, face à ausência de contacto direto com esses intervenientes, o que integra uma das grandes limitações deste tipo de recursos.

Posto isto, e dentro dos limites que a lei estabelece para a apreciação do recurso da matéria de facto, vejamos pois se o Tribunal a quo errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência e se o resultado do processo probatório devia ser outro.

A divergência da recorrente relativamente à matéria de facto dada como provada circunscreve-se, como já referimos, a que fosse ela a condutora do veículo automóvel, com a matrícula (...), nas circunstâncias de tempo e lugar dadas como provadas.

Argumenta que na audiência, realizada na sua ausência, a única testemunha inquirida foi M. R., que não a viu a conduzir, não tendo sequer a arguida lhe confirmado ser ela a condutora.

Contudo, ouvido o registo áudio do depoimento integral daquele M. R. verifica-se que este é o militar da GNR que, no dia e hora em causa nos autos, foi chamado ao parque de estacionamento das (...), sito no Lugar (...), em (...), Valença, por causa do despiste de um veículo. Afirmando que quando aí chegou se encontrava lá a arguida, que foi quem perante ele, sem a mínima contestação de quem quer que fosse, logo se assumiu como a condutora do veículo protagonista do despiste, ao narrar-lhe sempre nessa qualidade o que havia sucedido e ao responder às questões que lhe foram colocadas pela autoridade precisamente no mesmo evidente pressuposto.

Neste contexto, afirmando ainda a testemunha que em momento algum a arguida disse o contrário e que, numa atitude sempre colaborante, forneceu também os seus elementos de identificação, facultando toda a documentação necessária, não há dúvida de que o depoimento deste agente da GNR M. R. – não obstante os esforços em contrário da recorrente – não permite qualquer outra interpretação que não seja a de que a arguida se assumiu espontaneamente no local, perante a autoridade policial, como sendo a condutora do veículo interveniente no despiste, do qual é aliás a proprietária.

Estes factos diretamente percecionados pelo agente da GNR, designadamente as informações que lhe foram transmitidas pela arguida, ocorreram numa fase em que ainda não havia inquérito e se procedia a uma recolha informal de indícios, como é próprio dos órgãos de polícia criminal (2), sendo por isso prova admissível, a apreciar livremente, nos termos do disposto nos artigos 125.º e 127.º do Código de Processo Penal. (3)

Ora, as regras da experiência comum que por imposição deste último normativo legal devem presidir à apreciação da prova e formação da convicção do julgador, dizem-nos que em caso de acidente com um veículo automóvel, quem se assume no local e perante as autoridades, sem qualquer contestação, como sendo o condutor do veículo interveniente no sinistro é em regra a pessoa que efetivamente o conduzia.

É claro que todos já ouvimos falar de situações em que um terceiro declara falsamente às autoridades ser o condutor de determinado veículo, normalmente para ilibar de responsabilidades quem de facto o conduzia, que para tal não estava legalmente habilitado ou que não apresentava as condições necessárias ao exercício da atividade de conduzir. Mas para além da manifesta excecionalidade dessas situações, quando acontecem a regra é então que o tal terceiro reúna as condições necessárias para se poder passar pelo condutor sem que lhe possa a ele ser imputada responsabilidade penal pelo exercício da condução que falsamente declara. O que não acontece no caso em apreço, em que a arguida tinha ingerido bebidas alcoólicas em excesso, como não podia deixar de saber, que lhe originavam uma TAS de 1,85 g/l.

Assim, não resultando dos autos – nem tendo sequer sido alegado pela recorrente – qualquer circunstancialismo suscetível de infirmar a conclusão lógica que decorre naturalmente das afirmações da testemunha agente da GNR, nenhum reparo há a fazer ao Tribunal a quo por assentar nesse depoimento a prova de que era a arguida quem de facto conduzia o veículo.

Como é sabido, nem só quando o arguido faz uma confissão integral e sem reservas dos factos, em situações de flagrante delito, quando há testemunhas presenciais ou outras fontes de prova direta pode haver condenações. São muitas as situações em que não há prova direta, porque o autor do crime o praticou sem ser notado ou de forma dissimulada, e nem por isso pode deixar de ser punido. Por isso mesmo é que a denominada prova indireta ou por presunção também assume um papel fundamental e virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência, uma vez que em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (cfr. artigo 125º do Código de Processo Penal).

Não sendo a ausência da arguida em audiência impeditiva da prova dos factos nos termos referidos, nem tal determinando a alegada violação dos direitos do arguido consignados no artigo 61.º do Código de Processo Penal, designadamente do direito de estar presente nos atos processuais que directamente lhe digam respeito.

Como decorre dos autos e não foi sequer posto em causa, à recorrente foi efetivamente garantida a possibilidade de poder estar presente na audiência, tendo sido ela que optou por não usufruir desse direito.

Por outro lado, não existindo no nosso ordenamento jurídico prova tarifada, vigorando antes a regra que qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal (4)), também por aí nada impede que a decisão da matéria de facto impugnada tenha assente exclusivamente no depoimento do agente da GNR M. R. e sua conjugação com as regras da experiência comum.

Posto é que o Tribunal a quo, no processo de imediação em que foi produzida a prova, tenha conferido credibilidade à dita testemunha, como ressalta de forma evidente da motivação ter conferido.

Não se vendo, também, como é que a circunstância de a testemunha afirmar não se ter apercebido que a arguida estava alcoolizada a pode descredibilizar, como se alude no recurso.

Em primeiro lugar é por demais conhecido que a tolerância e reações à excessiva ingestão de álcool são muito diversas de indivíduo para indivíduo e, depois, é sabido que a arguida tinha acabado de ter um aparatoso despiste, estava lesionada e com dores, o que é naturalmente suscetível de alterar significativamente a forma de reagir de qualquer pessoa e dificultar a um terceiro que não a conhece a perceção do seu estado de sobriedade ou embriaguez.

De tudo assim decorrendo que a argumentação e prova indicadas pela recorrente não impõem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativa de outra interpretação da prova, menos credível, aliás, por contrária aos juízos de normalidade e à sensibilidade e sagacidade de qualquer cidadão médio.

Sendo por conseguinte inatacável o impugnado ponto da decisão da matéria de facto, porque proferida de acordo com a livre convicção do Tribunal a quo, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
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. Da validade da prova da taxa de álcool (TAS) feita com base nos resultados de exame toxicológico por colheita de sangue.

A arguida/recorrente insurge-se também por a prova da taxa de álcool no sangue (TAS) que apresentava, de 1,85 g/l, ter tido como base os resultados de exame toxicológico por colheita de sangue, realizado sem o seu consentimento e sem que houvesse sido alegada e dada como provada a excecionalidade que pudesse justificar o afastamento da determinação da TAS através do método de pesquisa no ar expirado.

Compulsados os autos, constata-se que tal questão foi já anteriormente suscitada em termos similares pela ora recorrente, em sede de instrução, na sequência do que veio a ser conhecida pelo Mmo. Juiz de Instrução, que considerou que a prova em causa podia ser valorada, o que fez por decisão constante do mesmo despacho que a pronunciou pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.

Contudo, sendo tal decisão irrecorrível mesmo na parte em que apreciou a validade da prova pericial – face à atual redação do artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal – nada obsta a que dela se conheça agora novamente, em reapreciação da decisão que sobre ela foi tomada pelo Tribunal a quo (de julgamento), ao considerá-la também admissível. (5)

Vejamos pois.

A questão suscitada prende-se com a alegada violação pelo Tribunal a quo de normas legais relativas à validade dos meios de prova para a deteção do estado de influenciado pelo álcool, ao fundamentar a decisão de facto no resultado da perícia ao teor de álcool realizada com base em amostra de sangue, sem que se tenha assegurado da excecionalidade que pudesse justificar o afastamento da determinação da TAS através do método de pesquisa no ar expirado e sem que a arguida tenha dado consentimento para a recolha de sangue com tal fim.

A ser considerada inválida a perícia efetuada à amostra de sangue recolhida à recorrente não poderia com base nela fundamentar-se e consequentemente dar-se como provada a TAS que ela apresentava nas circunstâncias de tempo e lugar em causa nos autos, o que conduziria à sua absolvição.

A questão levantada pela recorrente é pois a de saber se a colheita ao sangue a que foi sujeita constituiu, ou não, um método proibido de prova, nos termos dos artigos 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa e 126.º do Código de Processo Penal, determinante da nulidade da prova através desse meio obtida.

O exame de pesquisa de álcool encontra-se minuciosamente previsto e regulado por lei, nos artigos 152.º, n.º 1, a), 153.º e 156.º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio), de onde decorre a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores, os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, e as pessoas que se propuserem iniciar a condução. Cominando inclusive a lei, com o crime de desobediência, a recusa de submissão às provas estabelecidas na lei para a deteção de álcool, por parte das pessoas que integram os dois primeiros grupos e com o impedimento de iniciarem a condução no caso das últimas.

A fiscalização da condução sob influência de álcool destina-se à recolha de uma prova rapidamente perecível e por isso de natureza urgente, que assegure o fim da descoberta da verdade no processo penal, bem como, ainda, a salvaguardar bens fundamentais, ao impedir que um condutor influenciado pelo álcool persista numa condução suscetível de fazer perigar a sua vida e integridade física, assim como as dos demais utentes da estrada.

O exame de sangue é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, apenas admissível em casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível (6).

Revertendo agora novamente ao caso em apreço, resulta dos autos – designadamente do teor do auto de notícia de fls. 3 e 4, da participação de acidente de fls. 7 e 8 e respetivo aditamento de fls. 9 – que a arguida foi interveniente num acidente de viação quando conduzia na via pública um veículo automóvel; tendo sofrido lesões e por causa delas sido de imediato conduzida ao Hospital, em Viana do Castelo, em veículo dos Bombeiros Voluntários de Valença, na sequência de pedido de assistência médica pelo nº de telefone 112; na sequência do que foi assistida naquele estabelecimento hospitalar. Tendo sido consignado expressamente pelo agente da GNR que se deslocou ao local e verificou a existência do acidente, que a arguida A. P. «começou a queixar-se de imensas dores num dos tornozelos, onde era visível um inchaço, em que a A. P. dizia já ter sido operada e que possivelmente teria uma lesão interna» motivo pelo qual foi conduzida ao Hospital e «realizada a mensagem nº 1547/17 a fim de solicitar que a mesma fosse submetida a colheita sanguínea para pesquisa de presença de álcool no sangue» (7).

Perante o que não pode deixar de ter-se por verificada a previsão do n.º 2 do artigo 156.º do Código da Estrada, justificadora da colheita de amostra de sangue à arguida, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, através da qual se apurou ser ela portadora de uma taxa de 1,85 g/l de álcool no sangue.

Embora a arguida – como alega – estivesse consciente e sem problemas respiratórios, não era naturalmente aconselhável submete-la ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado no local, tendo ela uma lesão visível num tornozelo, estando com «imensas dores» e suspeitando até de lesão interna, determinante da sua condução ao Hospital em veículo de assistência médica. Nessas circunstâncias, manda naturalmente o bom senso que, enquanto não chega ajuda médica, deve o sinistrado ficar repousado, mexendo-se o menos possível e acompanhado por alguém que lhe possa transmitir alguma calma, o que naturalmente não se coaduna com a obrigação (sob pena de desobediência!!) de realizar um teste de álcool no ar expirado, inicialmente em aparelho qualitativo e depois em aparelho quantitativo, este último naturalmente até só disponível no Posto, como é costume, o que implicaria a deslocação até lá se o resultado do primeiro teste fosse positivo.

E, embora não resulte dos autos que a arguida tenha dado o seu consentimento para a colheita de sangue, o quadro fáctico deles resultante também não dá conta que ela tenha sido realizada contra a vontade da recorrente, o que, aliás, esta nem sequer invoca.
De todo o modo, sempre se adianta que percorrida toda a legislação e regulamentação da matéria – já supra identificada – constata-se que em momento algum a lei impõe ou exige o consentimento expresso do visado para a recolha de sangue, quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível. De onde decorre, desde logo, que nesta matéria se encontram apenas excluídos os exames coercivos, aos quais o titular do interesse manifestou oposição, através de recusa em sujeitar-se ao exame.

E, in casu, como já se salientou, a arguida não manifestou oposição, embora não pudesse desconhecer o regime legal da proibição de condução sob o efeito de álcool nem o regime normativo que desencadeia a recolha de sangue, quando não é possível proceder ao exame através do método do ar expirado.

Acresce que também não pode considerar-se que a colheita de sangue para exame pericial à respetiva taxa de álcool viole o direito à não auto-incriminação, posto é que a jurisprudência mais recente tem vindo pacificamente a aceitar que tal se circunscreve, essencialmente, ao direito ao silêncio e não, também, ao direito de não ser compelido a realizar determinados exames com vista à obtenção de provas, não alcançáveis por outra via.

De todo o modo, o certo é que a colheita de sangue com vista à realização de perícia à taxa de álcool não só não constitui em si qualquer declaração, como também nem sequer visa a condenação do respetivo sujeito, destinando-se antes e exclusivamente a averiguar a verdade material sobre o seu estado de influenciado de álcool, que é desconhecido e, à partida, tanto pode servir a acusação como beneficiar a defesa.

De tudo assim decorrendo que a recolha de amostra de sangue à arguida, no circunstancialismo dos autos, constituiu um meio de obtenção de prova legal, constituindo o respetivo resultado da pesquisa quantitativa de álcool efetuada nessa amostra um meio de prova válido, não se verificando por isso na sua valoração a violação de quaisquer preceitos legais, designadamente dos artigos 25.º, 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa.

Ora, as circunstâncias de onde decorre a validade de um meio de prova, se bem que tenham que emanar dos autos, não têm que ser alegadas na acusação/pronúncia nem de constar do elenco dos factos que, a final, são dados como provados e não provados na sentença.

Note-se que o n.º 2 do artigo 368.º do Código de Processo Penal, onde são expressa e taxativamente enunciados os factos a incluir na fundamentação factual da sentença (8), entre eles manifestamente não inclui aqueles de onde decorram os pressupostos da validade de cada meio de obtenção de prova que for considerado (9).

Naufragando também este ponto do recurso.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso da arguida A. P..
Custas pela recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UCs a taxa de justiça.
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Guimarães, 3 de dezembro de 2018
Elaborado e revisto pela relatora
(artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)



1- Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2- A quem compete praticar «os atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova», entre os quais, «colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime», nos termos do disposto no artigo 249.º do Código de Processo Penal
3- Não estando por conseguinte abrangidas pela proibição do artigo 129.º do Código de Processo Penal, que neste âmbito se reporta apenas aos testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, colhidos em conversas informais com agentes policiais à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os atos, quando já existe um inquérito e a condição de arguido.
4- É a seguinte a redação deste artigo 127.º «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
5- Como a este propósito escreveu o Senhor Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, António Gama, em decisão de 10.12.2014, proferida no âmbito de reclamação, no processo nº 200/04.4IDAVR-A, (disponível em www.dgsi/jtrp.pt), «A decisão de uma irregularidade em instrução, quer na decisão instrutória, quer em decisão prévia à decisão instrutória, não forma caso julgado se essa questão contender com a afirmação da responsabilidade penal, não só porque a decisão dessa questão é irrecorrível e como tal não pode assumir carácter definitivo nem ficar ao abrigo do caso julgado, sob pena de flagrante violação das garantias de defesa, mas principalmente porque a decisão – definitiva – cabe sempre ao juiz ou tribunal do julgamento e, em última instância, ao tribunal de recurso que vai julgar a decisão A decisão de uma irregularidade em instrução, quer na decisão instrutória, quer em decisão prévia à decisão instrutória, não forma caso julgado se essa questão contender com a afirmação da responsabilidade penal, não só porque a decisão dessa questão é irrecorrível e como tal não pode assumir carácter definitivo nem ficar ao abrigo do caso julgado, sob pena de flagrante violação das garantias de defesa, mas principalmente porque a decisão – definitiva – cabe sempre ao juiz ou tribunal do julgamento e, em última instância, ao tribunal de recurso que vai julgar a decisão final. Esta é a solução que se retira de uma interpretação e aplicação dos preceitos legais perspectivada a partir da Constituição e levada a cabo de acordo com esta.»
Sendo que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 95/2009, salientou já que «(…) O artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal aponta, de facto, no sentido de a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público não constituir decisão final, também na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais.»
6- Cfr. artigos 153.º n.º 8 e 156.º n.º 2 do Código da Estrada.
7- Cfr. fls. 9.
8- De entre os alegados pela acusação, pela defesa e resultantes da discussão da causa.
9- Artigo 368.º, n.º 2 do Código de Processo Penal: «2 - Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;
c) Se o arguido atuou com culpa;
d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.»