Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
296/13.8TAVVD-O.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL
ORGANIZAÇÃO JUDICIAL INTERNA DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO RELATIVAMENTE À COMPETÊNCIA MATERIAL
OPOSIÇÃO MEDIANTE EMBARGOS DE TERCEIRO
PROVIDÊNCIA (ARRESTO PREVENTIVO) DECRETADA NO ÂMBITO DE PROCESSO PENAL
QUESTÃO DE NATUREZA EXCLUSIVAMENTE PENAL
COMPETÊNCIA DA SECÇÃO PENAL DA RELAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA SECÇÃO CÍVEL
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material apenas na natureza do litígio.

II- A forma base da Organização Judicial interna do Tribunal da Relação relativamente à competência material são as Secções, que detêm competência própria com formações de julgamento segundo a composição determinada nas leis de processo.

III- Sendo a questão colocada nos autos – embora inserida num instituto de natureza processual civil -, de natureza exclusivamente penal, convocando para a sua apreciação e decisão princípios e normas de natureza penal, ela deve ser apreciada e decidida pela secção Penal desta Relação (e não pelas seções cíveis).
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Fernando Fernandes Freitas
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Na sequência do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, pelo qual se jugou o Arresto Preventivo requerido pelo MP procedente, vem a “X, LDA” deduzir oposição àquele Arresto mediante embargos de terceiro, pedindo a procedência dos mesmos.
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Alegou desde logo que o arresto ora ordenado coincide com o que foi determinado por despacho de 20/01/2017, que foi revogado por acórdão deste Tribunal da Relação, o qual determinou o seu levantamento, pelo que havia que cumprir o que foi determinado por aquele acórdão.
Não o tendo sido, houve violação de lei, sendo o arresto decretado nulo.
Mais alega que o veículo arrestado, marca Porsche, modelo Panamera, de matrícula QQ, é de sua propriedade, pois pagou-o, usava-o, e paga os impostos e revisões a ele respeitantes. O veículo estava nas suas instalações aquando do arresto efectuado e faz parte do seu imobilizado.
Acresce que é terceira e nada tem a ver com a actividade eventualmente ilícita em causa nos autos.
Entretanto requereu e prestou caução, tendo-lhe já sido ordenada a entrega do veículo.
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O MP pronunciou-se sobre a dedução de embargos, pugnando pelo indeferimento dos mesmos.
A embargante, notificada para o efeito, manifestou interesse no prosseguimento dos embargos.
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Foi então proferida a seguinte decisão:

“…Termos em que, não tendo sido os embargos liminarmente indeferidos, mas sendo incontroverso que a embargante não é terceiro de boa-fé, julgo improcedentes os embargos de terceiro, mantendo-se o arresto nos exactos termos decretados – sem prejuízo da caução entretanto prestada pela embargante…”
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a embargante interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

“l-A sentença recorrida é ilegal por manter a decisão que ordenou o arresto objecto dos embargos de terceiro;
2-O Tribunal a quo decidiu erradamente, tendo violado o artº 362º, nº 4 do CPC, ao ter renovado o arresto que havia sido revogado pelo TRG que ordenou o seu levantamento, não sendo admissível a renovação da providência;
3-O Tribunal recorrido decidiu erradamente por nunca ter cumprido a decisão do TRG que ordenou a revogação do arresto de 20/1/2017 que mandou " …revogar o despacho recorrido, determinando-se o levantamento do arresto ordenado em 20/01/2017, relativamente ao requerido J. N.." Com aplicação, em consequência directa, à recorrente embargante de terceiro, tal como sucedeu com os outros embargantes de terceiro, portanto em violação do artº 122º, nº 4 do CPP;
4-Houve aí manifesta violação de lei por parte deste tribunal, que se mantém na sentença ora recorrida, o que se invoca, como nulidade, no não cumprimento de decisão de Tribunal Superior, por haver a violação do princípio do dever de cumprimento de decisões superiores, nos termos do disposto no artº 210 da CRP, artº 3º, nº 2 da Lei 38/87, actual artº 42, nº 2 da Lei 3/99 de 13 de Janeiro e do EMJ artº 4º, n 1 da lei 21/85 de 30/7.
5-A sentença recorrida viola o artº 374º, nº 2 do epp.
6-A decisão do Tribunal recorrido que mantém a renovação do arresto é nula e sem efeito, por inadmissibilidade, por falta de fundamento e por não ser suportada por factos novos;
7-A decisão recorrida é nula por violar o artº 120º, 2 d) do epp;
8-Nula também por não justificar e/ou fundamentar com factos que permitam a renovação do arresto, face à existência da providência velha, (nunca foi mandada extinguir pelo Tribunal recorrido) não sendo também admissível a fundamentação da nova providência por mera remissão;
9-É por isso desprovida de legalidade a Promoção do MP e que a sentença recorrida absorve e ratifica, que diz "O Ministério Público dá por reproduzidos no presente despacho os factos e fundamentos e respectivas provas constantes de fls.3 a 5.
10-Foi violado o artº 228º do CPP já que a providência de arresto só poderá ser ordenada se for dada a possibilidade ao arguido de prestar caução económica, sendo por isso nula, e tal como refere o ASTJ de 15/05/2013 no Proc, 12/09,9TAVGS-ACl.Sl 7ª Secção "O requerente do arresto preventivo nem sequer tem que alegar factos que justifiquem o receio de perda de garantia patrimonial, mas apenas que o requerido não prestou a caução económica fixada.";
11-0 tribunal recorrido violou ainda os princípios previstos da necessidade, adequação e proporcionalidade ao estender a providência aos bens da embargante, entidade completamente alheia aos factos que possam motivar os autos principais, nos artº 193º do CPP;
12-Foram assim violados entre outros os artºs 120º nº 2 d), 122º nº 4, 191º nº 1, 192º 2, 58º, 227º nº 1, 228º e 122º nº 1 do CPP; 362º nº4, 392º, 393º, 373º do CPC; 9º do CC; 210º da CRP; e 3º nº2 da Lei 38/87, actual artº 4º nº 2 da Lei 3/99 de 13 de Janeiro e do EMJ artº 4º n 1 da Lei 21/85 de 30/7.
13-O bem arrestado corresponde ao da embargante que foi adquirido por esta, sua única dona e possuidora com exclusão de outrem, por isso, não pode este bem já antes apreendido e arrestado da embargante responder por dívidas e ou ilícitos eventuais de arguidos, de que esses sujeitos sequer são possuidores dos mesmos, mesmo precário, e muito menos proprietários, errou por isso o Tribunal recorrido;
14-O tribunal a quo decidiu erradamente ao julgar improcedentes os deduzidos embargos de terceiro da ora recorrente, sendo nula e sem efeito a recorrida decisão;
15-Os factos alegados e as provas já apresentadas na PI pela embargante são suficientes para que os apresentados embargos de terceiros fossem julgados procedentes por existir a probabilidade séria do direito invocado pela embargante, aqui recorrente;
16-A recorrente na sua PI já demonstrou a existência de factos suficientes de ter ilidido as presunções previstas no artº 79, nº 1 e 2 e a não proveniência ilícita do veículo arrestado, cfr. nº 3 da Lei nº 5/2002;
17-O bem apreendido e arrestado é totalmente da propriedade e posse da recorrente, com exclusão de outrem;
18-Tal bem, objecto dos embargos de terceiro pela recorrente, foi adquirido de forma e com fundos monetários de proveniência lícita pela recorrente;
19-A proveniência das quantias monetárias para a aquisição desse bem pela recorrente foi totalmente lícita, através do resultado do seu giro comercial, mormente, através de financiamentos bancários, serviços de consultaria e outros, das comparticipações do Ministério da Educação e Ciência, de propinas dos seus estudantes e de clientes diversos, por serviços prestados por esta no âmbito da sua actividade comercial;
20-Os documentos juntos com a PI) nomeadamente os contabilísticos, saldos extractos de conta bancária de conta da recorrente nas Caixa … e Banco …, demonstram suficientemente de forma inteligível os fluxos económicos financeiros na origem da aquisição do bem da recorrente, nomeadamente no lapso temporal a que respeita, quanto ao veículo automóvel arrestado, demonstrativo da sua licitude;
21-As quantias aí movimentadas a crédito nas ditas contas da recorrente, provêm de origem de financiamentos bancários, comparticipações do Ministério da Educação, propinas dos alunos, e doutros clientes da recorrente por serviços prestados, portanto, com total proveniência sobejamente lícita;
22-O tribunal a quo violou o disposto nos artºs 342º, 345º, 347º e 348º do CPC ao ter julgado improcedentes os deduzidos embargos de terceiro da recorrente sem ter realizado a audiência de discussão e julgamento, violando ainda o princípio do artº 120º, nº 2 d) do CPP; 23-O tribunal a quo violou o disposto no artº 202º, nº 2 e 203º da CRP;
24-O tribunal a quo violou o disposto no artº 79, nº 1, 2 e 3 da lei nº 5/2002 e o artº 111º do CP;
25-O tribunal recorrido violou ainda o disposto no artº 4º) nº 3 e 4 da Lei nº 60/2013, por falta do seu cumprimento que é imperativo legal em tempo útil.

Nestes termos e nos demais de direito (…), deverá o presente recurso ser declarado por provado e procedente e em consequência (…) revogar ou ordenar a revogação da decisão recorrida, substituindo-a ou ordene-se a sua substituição, por outra que declare por procedentes os embargos de terceiros ou mande prosseguir os seus termos até final, por haver probabilidade séria da existência do direito invocado pela embargante, ora recorrente, seguindo-se os ulteriores termos de lei…”.
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O Mº Pº veio Responder ao recurso interposto, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Recebidos os autos nesta Relação, e distribuídos os mesmos na seção Penal à qual foram dirigidos, foi proferido pela Exma Sra. Relatora (a quem foram distribuídos os autos) a seguinte decisão:

“…A situação em apreço reconduz-se a saber se o julgamento de um recurso referente a decisão de indeferimento de embargos de terceiro, proferida no âmbito de processo-crime é admissível no processo penal. Pela nossa parte entendemos que não, pois tal é apenas permitido no âmbito do processo civil. O caminho correcto para atacar uma decisão penal é, como se sabe, o recurso, a reclamação, a arguição de nulidades etc.. E jamais embargos de terceiro. Se um terceiro de boa-fé vê de um momento para o outro afectada a sua posse por uma decisão judicial que determina o arresto de vários bens entre eles um veículo, tem no âmbito do processo penal o meio próprio de reagir - o recurso nos termos do artigo 401º. nº. 1 al. d) do C.P.P.. Com efeito diz este artigo na referida alínea: "...têm legitimidade para recorrer (...) aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão".

Face à actual Lei da Organização do Sistema Judiciário (L. 62/2013, de 26/08 e à sua Regulamentação pelo D.L. 49/2014, de 27/03) e aos artigos 10º e 12º do CPP, logo se nos suscita a questão da competência em razão da matéria para decidir os presentes embargos de terceiro, ou seja, se a decisão a proferir compete a esta Secção, ou às Secções Cíveis deste Tribunal.

Na verdade, ainda no âmbito da anterior LOTJ (L. 52/2008, de 28/09, e o seu Regulamento constante do D.L. 28/09, de 28/01), já, em decisão sumária proferida em 6/05/2014, no âmbito do recurso n.º 728/96.8TBVCT-B.G1, o Ex.mº Senhor Desembargador Lee Ferreira, declarou incompetente esta Secção Criminal, em razão da matéria, para decidir embargos de terceiro, estes deduzidos em execução apensa a processo de natureza criminal.

Fundamentando tal decisão, em que não obstante, “…a execução de sentença criminal pertence em primeira instância ao tribunal em que o processo-crime tiver corrido, como decorre do disposto nos artigos 71º a 82º e 470º do Código de Processo Penal, bem como do princípio de que o tribunal da decisão é o competente para a respectiva execução – artigo 103º, L. 3/99, de 13/1, artigo 134º da L. n.º 52/2008, de 28/08” (sublinhado do próprio texto citado), “…em sede da tramitação do recurso as conclusões deverão ser diferentes, tendo em conta o regime próprio da competência dos tribunais superiores, previsto, quer nos artigos 10º e 12º do Código de Processo Penal, quer nas leis de organização judiciária.”.

A actual LOSJ em nada alterou a competência das secções criminais (ver art.º 73º e art.º 66º da LOFTJ), e como se refere na douta decisão supra referida, todas as reformas de organização dos tribunais judiciais têm obedecido a critérios cada vez mais evidentes de especialização material, e o que é certo é que, os embargos de terceiro, com tramitação própria dos recursos em processo civil, e em que a única questão a decidir é a da propriedade dos bens arrestados, “contra” cujo arresto são os mesmos deduzidos, não têm qualquer ligação de natureza substancial ou processual com o processo-crime do qual, quer aquele arresto, quer o presente incidente são apensos.

Ora, a actual L. 62/2013 (LOSJ) estipula no seu art.º 40º n.º 1 que na ordem jurídica interna, a competência se reparte pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território (tal como já estipulava a LOFTJ no seu art.º 23º), e que nos tribunais da Relação, a competência das secções se define pela sua especialização, competindo às secções cíveis julgar as causas que não estejam atribuídas a outras secções (art.ºs 73º, 74º e 56º n.º 1).

Por sua vez, o art.º 12º do CPP define no n.º 3 a competência das secções criminais, que funcionam com 3 juízes, um deles o presidente da secção, que não obstante dirigir a conferência, apenas vota, para desempatar, ou seja, em caso de divergência entre o Relator e o Juiz adjunto (n.º 2 do art.º 419º do mesmo diploma legal).

Igualmente em decisões do STJ, uma delas relatada, em 24/10/2012, pelo Sr. Conselheiro Manuel Braz, em questão relativa a reclamação oposta a despacho de não admissão de recurso interposto de decisão proferida num processo de execução por custas, ao qual era aplicável o regime do art.º 688º do Código de Processo Civil então em vigor (art.º 643º do actual), foi decidida a incompetência da secção Criminal daquele Tribunal a que fora distribuída, e a competência para a decisão das Secções Cíveis, por a mesma não ter natureza penal, “…visto não ser regulado por normas penais ou processuais penais, designadamente em matéria de recursos.”.

O mesmo foi decidido pelo Conselheiro Henriques Gaspar, no acórdão relatado em 14/07/2010 (ainda no âmbito da L. 3/99, de 13/01 revogada pela 52/2008 já referida), em sede de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, no qual apenas se punha em causa, invocando oposição de julgados, o quantum indemnizatório fixado em duas decisões do STJ, uma proferida numa Secção Cível (acórdão fundamento) e outro numa Secção Criminal (acórdão recorrido), neste por força do princípio da adesão previsto no art.º 71º do CPP), por a matéria em causa em ambos ser de natureza exclusivamente civil.

O facto de a decisão recorrida ter sido proferida no âmbito de processo apenso a processo criminal não lhe retira a sua natureza exclusivamente cível, único critério definidor da competência das secções dos Tribunais da Relação (neste sentido, ver Ac. citado doo Conselheiro Manuel Braz, e recente Ac. do TRP de 8/02/2017, da Senhora Desembargadora Maria Dolores Silva e Sousa, este em matéria de decisão de um incidente de execução apensa a processo crime), única razão pela qual se vê que o legislador tenha consagrado a permissão, em primeira instância, e nos termos do n.º 4 do art.º 228º do CPP, que em casos de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, o juiz possa remeter a decisão para o tribunal civil.

Assim, e nos termos dos art.ºs 12º do CPP, 54º, aplicável por força do 74º. e 73º todos da LOSJ, declaramos esta Secção Criminal incompetente, em razão da matéria (excepção de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 97º do CPC, aplicável por força do 4º do CPP), para a decisão do recurso aqui em causa, sendo competentes para a mesma decisão as Secções Cíveis deste Tribunal.

Impõe-se ainda referir que tem sido esta a orientação do nosso Supremo Tribunal de Justiça, como se constata do acórdão de 30 de Janeiro do corrente ano, no processo 112/17.1 T9VPC-A.G1.S1acerca de conflito de competência (…). Pelo exposto, julga-se incompetente em razão da matéria, esta Secção Penal, para a apreciação e decisão dos presentes embargos de terceiro, que deverá ser decidido por uma das Secções Cíveis deste Tribunal.

Notifique, e oportunamente, remeta os autos à distribuição pelas Secções Cíveis…”.
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Tendo em consideração a decisão proferida, a questão que se nos impõe desde logo apreciar e decidir é a de saber se esta secção cível é competente para conhecer do objecto do recurso interposto pela embargante, por ele versar, em nosso entender, contrariamente ao decidido pela Exma Relatora da secção penal, sobre matéria de natureza exclusivamente penal.
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Está efectivamente em causa apreciar e decidir no presente recurso se a providência decretada no âmbito de um processo penal, instaurando contra o arguido J. N. – de Arresto Preventivo de bens dos quais o arguido era beneficiário, e contra o qual a embargante reagiu mediante embargos de terceiro -, reveste natureza cível ou criminal.

Isto porque, não obstante o expediente processual usado pela embargante – Oposição mediante Embargos de Terceiro – estar inserido no Código de Processo Civil (artºs 342º e ss. daquele diploma legal), haverá que apreciar, à luz do que vem previsto desde logo no artº 342º, se a penhora ou o ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofende a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de que seja titular quem não é parte na causa, o que nos levará a apreciar quais os direitos do terceiro que são ofendidos pela providência decretada, convocando necessariamente para o efeito as disposições legais do Código Penal, nomeadamente os seus artºs 110º e 111º, intitulados, respectivamente, “Perda de produtos e vantagens” e “Instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro”.

Estamos em crer por isso que os pressupostos da validade e procedência da oposição deduzida pela embargante são de natureza eminentemente penal e não civil, sendo à luz das normas e dos princípios vigentes no direito penal que a questão deverá ser apreciada.
Ou seja, do que se trata nos presentes autos é de uma questão de natureza exclusivamente penal, pelo que deveria ser uma secção penal desta Relação a apreciar e decidir tal questão (e não uma seção cível).
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Fazendo uma abordagem prévia da questão, diremos que a Organização Jurisdicional interna dos tribunais se distribui, no que respeita à sua competência, em razão da matéria, da hierarquia e do território.

Segundo Manuel de Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, 94 a 98), a competência em razão da matéria é a competência das diversas ordens de tribunais, dispostas horizontalmente, e prende-se com a atribuição das competências em razão da matéria da causa, isto é, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação jurídica substancial em litígio.

A competência traduz-se assim na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material apenas na natureza do litígio.

Como tem sido sublinhado pela doutrina e pela jurisprudência, a distribuição da competência pelos vários tribunais especializados assenta no pressuposto, racional e lógico, da maior idoneidade desse tribunal para a apreciação das matérias que lhe são atribuídas, de forma a que as causas sejam julgadas por magistrados com a preparação específica adequada (cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Processo Civil, Coimbra Editora, vol. I, pg. 107).

Trata-se pois da habilitação funcional do tribunal relativamente a certa matéria (Ac STJ, de 19.3.2004 disponível em www.dgsi.pt).

No que respeita aos tribunais da Relação, aquele pressuposto racional e lógico da distribuição dos processos deve manter-se: as causas devem ser apreciadas e julgadas por Desembargadores com a preparação específica adequada à matéria que lhe é distribuída.

De facto, nos termos da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (LOSJ), a forma base da Organização Judicial interna do Tribunal da Relação relativamente à competência material (em razão da matéria) são as Secções, que detêm competência própria, com formações de julgamento segundo a composição determinada nas leis de processo. Segundo o art. 73º alínea a) da citada Lei, compete às secções da Relação, segundo a sua especialização, julgar os recursos.

Ou seja, a dimensão organizativa das secções do Tribunal da Relação parte de um modelo de competência em razão da matéria, existindo secções cíveis, secções criminais e secção social, decidindo cada uma delas as matérias relacionadas com a sua especialidade. Assim, as secções criminais julgam as causas de natureza penal; as secções sociais julgam as causas de natureza cível da competência material dos tribunais de trabalho; e as secções cíveis julgam as causas que não estejam atribuídas a outras secções (artigo 54º e 74º da LOSJ; Ac RP de 08 de Fevereiro de 2017; e Ac. do STJ de 14.07.2010 - a propósito da composição do STJ -, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

O critério adoptado na lei no que respeita à competência em razão da matéria das seções no Tribunal da Relação, consubstanciou-se assim em identificar as causas que compete julgar às secções criminais e sociais, sendo o julgamento das restantes da competência residual das secções cíveis.

Dito de outro modo, a organização segundo um modelo de competência material (em razão da matéria) distribui as competências por especialidade, com enunciação da competência das secções por tipos e espécies de matérias, estando bem definido na lei de Organização Judiciária que as secções criminais julgam as causas de natureza penal, matéria também reforçada no artº 12º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal, no qual se prevê que às secções criminais das Relações compete julgar recursos “em matéria penal”.
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Definidas as regras legais enunciadas - também elas subjacentes, cremos, à decisão proferida pela Exma Relatora da secção penal a quem foi distribuído o processo ora em análise –, resta-nos aferir se a matéria do recurso que temos em mãos é ou não de natureza penal.

Estamos convencidos que sim.

Efetivamente, analisada a questão colocada nos autos, cremos que a causa a apreciar e julgar é de natureza exclusivamente penal, a ser apreciada e decidida pela secção Penal desta Relação (e não pelas seções cíveis), cientes que estamos ser aqui irrelevante a circunstância de a decisão recorrida ter sido proferida num processo apenso a um processo criminal, pois como acima afirmamos, o critério definidor da competência é apenas o da natureza da causa (Cf. neste sentido os Acs. do STJ de 14.07.2010 e de 26/04/2012 e o Ac. do TRC de 03.02.2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Como se refere no citado Ac do STJ de 14.07.2010 – a cuja tese aderimos -, o que releva para aferir da competência material do tribunal (e das secções dos tribunais superiores, sejam da Relação, sejam do Supremo), é a matéria que está em causa no objecto do recurso, vista no sentido de questão, determinação, controvérsia, objecto e matéria -, e não no sentido adjectivo e formal de tipo ou espécie de processo.

Ou seja, estamos cientes que não é a circunstância de a decisão recorrida ter sido proferida num processo penal que determina nem a natureza da «causa» nem a matéria sobre que versa. A espécie de processo em que foi proferida a decisão recorrida não é, para este efeito, relevante; a competência, sendo material, sobrepõe-se ao processo.

Olhamos portanto tão somente para a decisão recorrida, nomeadamente para os institutos jurídicos ali apreciados e respectivos preceitos legais; para as alegações de recurso da apelante; e para a resposta do MºPº às alegações de recurso. E delas concluímos com segurança que a relação jurídica subjacente ao presente recurso, ou seja, a matéria a ser nele apreciada e dirimida, é de natureza exclusivamente penal.
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Começando pela análise da decisão recorrida, as questões nela abordadas e decididas convocam amiúde normas de direito penal e de direito processual penal, nomeadamente o artº 178.º do Código de Processo Penal (relacionada com os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos apreendidos no âmbito do processo penal).

Mesmo sobre a questão prévia invocada pela recorrente – da nulidade da decisão recorrida por não acatamento da decisão desta Relação no levantamento do arrento -, é feita referência ao despacho que decretou o arresto (Apenso D), e ao disposto no artigo 122.º do CPP para justificar a bondade da decisão tomada.

Outrossim se faz apelo naquela decisão – ainda a propósito da nulidade decidida por este Tribunal da Relação relativamente ao primeiro arresto -, à constituição prévia de arguido, e às normas legais relacionadas com tal matéria (o artº 120º nº 2 d) do CPP).

Aliás, compulsados os autos, verificamos que a embargante já havia deduzido embargos relativamente ao primeiro arresto, os quais foram julgados improcedentes por este Tribunal em duas decisões sumárias (ambas proferidas na seção Penal desta Relação).

Acresce que ao elencar os factos essenciais para a decisão da causa, faz-se sempre referência na decisão recorrida a factos de natureza penal alegadamente praticados pelos arguidos ali identificados, entre eles o arguido J. N., gerente único da ora embargante, a quem são imputados factos criminosos “contrários aos seus deveres”.

Ali se refere expressamente que se investigam nos autos factos que indiciam a prática pelo arguido J. N., de crimes de corrupção – crime de catálogo (artigo 1.º da Lei 5/2002) -, com relevância no tipo de providência decretada – de Arresto Preventivo dos bens –, e também com repercussão no meio de oposição ora deduzido pela embargante (artº 11.º/2 do Código Penal).

E faz-se referência ao arresto decretado (por iniciativa do Ministério Público) ao abrigo do disposto nos artigos 7º e 10.º da Lei 5/2002 de 11/01, ou seja no quadro da perda alargada de bens a favor do Estado (instituto de natureza eminentemente penal), dissertando-se também a propósito das vantagens da actividade criminosa, com apelo ao que se dispõe no artigo 111.º do CP.

Mesmo na análise que se faz na sentença recorrida do conceito de terceiro de boa-fé para efeitos da oposição deduzida, acentua-se a diferença desse conceito no âmbito do direito civil e no âmbito do direito penal, ressaltando-se que é a este último conceito que deverá atender-se para a decisão da causa.

Ou seja, da decisão recorrida resulta, cremos que de forma clara, que a questão material a apreciar – subjacente aos embargos de terceiro deduzidos -, demanda o conhecimento de normas e princípios de natureza eminentemente penal (e outros com ela relacionados, no âmbito do alegado crime de corrupção e da perda de bens a favor do Estado, provenientes do crime em causa), para os quais estão mais vocacionados os Srs. Desembargadores da seção Penal.
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Também a recorrente nas suas alegações de recurso convoca normas do Código de Processo Penal (artº 120.° nº 2 al. d) e 228º) para apodar a decisão recorrida de nula, apelando depois, na Oposição propriamente dita quanto ao Arresto preventivo decretado (providência cautelar de natureza iminentemente penal), às normas e interpretação da Lei nº 5/2002 de 11/01, referente ao quadro da perda alargada de bens a favor do Estado.

Ou seja, também a apreciação do recurso deduzido pela Apelante exige da parte do julgador conhecimentos específicos de natureza penal, mais compatíveis com a sua apreciação pela secção Penal desta Relação.
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Finalmente, analisada a Resposta apresentada pelo Exmo Procurador da República ao recurso interposto, também nela são convocadas essencialmente normas e princípios de natureza penal para rebater os argumentos da recorrente.

Efetivamente, delimitando o objecto do recurso da apelante (com a qual concordamos inteiramente), afirma-se naquela resposta que “os fundamentos invocados no recurso (…) gravitam essencialmente sobre a questão essencial de definição da posição de terceiros de boa-fé para efeitos de confisco das vantagens da prática do crime…”. (sublinhado nosso).

E faz-se apelo na resposta apresentada, sistematicamente, a preceitos de natureza penal, seja à Lei 5/2002 de 11 de Janeiro, seja aos preceitos do Código Penal (artºs 109º, 110º e 111º) - preceitos também referidos, quer na decisão recorrida, quer nas alegações de recurso -, para rebater os argumentos da apelante, insistindo-se que é à luz do artº 111º do CP que deverá ser apreciado o conceito de “Terceiro de boa-fé” para efeitos de confisco das vantagens do crime.

Concluímos também aqui, após a análise da Resposta ao recurso da apelante apresentada pelo MºPº, de que é com o enquadramento da questão no âmbito dos princípios e institutos de natureza exclusivamente penal, que deve ser apreciada a questão colocada no recurso pela recorrente, não sendo pertinente, face às especificidades do regime do confisco (e das medidas de garantia patrimonial que o possam anteceder), a convocação de institutos estranhos ao processo penal.
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Concluímos assim de todo o exposto que estando em causa nos autos a apreciação de uma questão de natureza exclusivamente penal, competente para conhecer da mesma é a seção Penal desta Relação e não a seção Cível, motivo pelo qual nos consideramos incompetentes, em razão da matéria, para conhecer do objecto do recurso.
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Decisão:

Em consequência, decide-se declarar a Incompetência absoluta desta secção cível, por não ter competência em razão da matéria para julgar o recurso interposto pela Apelante, sendo competente para tanto a seção criminal deste Tribunal da Relação.
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Sem custas.
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Notifique, sendo o MºPº para os fins tidos por convenientes, nomeadamente para suscitar o conflito (negativo) de competência.
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Sumário do acórdão:

I- A competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material apenas na natureza do litígio.
II- A forma base da Organização Judicial interna do Tribunal da Relação relativamente à competência material são as Secções, que detêm competência própria com formações de julgamento segundo a composição determinada nas leis de processo.
III- Sendo a questão colocada nos autos – embora inserida num instituto de natureza processual civil -, de natureza exclusivamente penal, convocando para a sua apreciação e decisão princípios e normas de natureza penal, ela deve ser apreciada e decidida pela secção Penal desta Relação (e não pelas seções cíveis).
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Guimarães, 10.7.2019